Medeia Magazine - Marco / Abril

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KENJI

9 Obras-primas de um dos maiores realizadores do mundo

MIZOGUCHI

SÓNIA BRAGA EM AQUARIUS Retrato (soberbo) de uma mulher

SÃO JORGE

Consagração de

Nuno Lopes

WIM WENDERS ON THE ROAD Alice nas Cidades e O Amigo Americano, como nunca os viu

NOCTURAMA Regresso fulgurante de Bertrand Bonello

Março | Abril 2017

MARÇO | ABRIL '17

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EDITORIAL Juramos que não foi propositadamente. Tal como escreveu João Bénard da Costa (Os Filmes da Minha Vida, 2º vol.), também esta Semana Santa será três vezes Santa, como aquela, no longínquo ano de 1961, em Paris, que o baptizou em Mizoguchi quando viu pela primeira vez dois dos seus filmes, começando aí um estado de Graça que se prolongaria pelo Verão. Sim, esta Semana Santa será duas vezes Santa também graças a Kenji Mizoguchi, e aos dois filmes que nessa Semana veremos, a iniciar um ciclo de nove, uma sucessão de obrasprimas que se prolongará pelos meses seguintes. A terceira Santidade ficará à vossa escolha, de um leque dos melhores filmes que vêm dos grandes festivais, ou ainda zweimal Wenders, duas das suas obras maiores em cópias restauradas: Alice nas Cidades e O Amigo Americano. As Nossas Salas: Cinema Monumental (Lisboa) Espaço Nimas (Lisboa) TMP Campo Alegre (Porto) Auditório Charlot (Setúbal) Theatro Circo (Braga) Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra) Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz)

Programação sujeita a alterações de última hora. Confirme sempre em www.medeiafilmes.com

Equipa Director: Paulo Branco Coordenação Editorial: António Costa Colaboram neste número: Diana Cipriano, Fátima Castro Silva, Kleber Mendonça Filho, Kristen Stewart, Lara Marques Pereira, Olivier Père, Nuno Galopim, Nuno Júdice, Renata Curado, Sabrina D. Marques Design: André Carvalho e Catarina Sampaio Capa: Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi Com o apoio

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MARÇO | ABRIL '17

O SIV S CLU EX EMA

A DEI ME

CIN

PERSONAL SHOPPER PERSONAL SHOPPER

DE OLIVIER ASSAYAS EM EXIBIÇÃO

Dur: 1h 45min

COM KRISTEN STEWART, LARS EIDINGER, SIGRID BOUAZIZ

Entrevista a Kristen Stewart, por Olivier Père P.: Achou que iria trabalhar novamente com o Olivier Assayas tão cedo, apenas dois anos depois de As Nuvens de Sils Maria? R.: Não. Eu sabia que ele gostava de trabalhar com as mesmas pessoas, actores e técnicos. Por isso, no fundo, tinha essa esperança. As coisas correram muito bem na rodagem de As Nuvens de Sils Maria e eu pensei que, mais cedo ou mais tarde, iríamos trabalhar juntos novamente. Mas não tinha ideia que seria tão cedo! Sou amiga do produtor do Olivier, Charles Gillibert. Foi ele que me disse que o Olivier estava a trabalhar num novo argumento. Acho que estávamos em Cannes para apresentar o Sils Maria. Honestamente, foi a primeira vez que conheci um grupo tão unido, que formava uma verdadeira equipa. Não queria deixá-los. Era como se fôssemos feitos uns para os outros! Sinto-me uma sortuda. Por isso mesmo, quando o Olivier me ofereceu a hipótese de participar no Personal Shopper, admito que fiquei entusiasmada mas não surpreendida. Queríamos continuar a nossa experiência enquanto grupo. P.: Personal Shopper lida com o luto. Mas é também a história da emancipação de uma jovem mulher, que procura encontrar a liberdade através de um caminho pouco comum. R.: Sim, os melhores períodos da minha vida sempre foram precedidos por tragédias. Os momentos de serenidade ou plenitude surgem frequentemente depois de eventos traumáticos. Sentimo-nos mais vivos quando temos uma experiência relacionada com a morte. No final do filme, mesmo que ela não tenha encontrado aquilo que procurava, a Maureen [personagem de Kristen Stewart] pode finalmente começar de novo. Arte [Trad. Renata Curado]

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Prémio Melhor Realizador Festival de Toronto – Selecção Oficial Festival de Londres – Selecção Oficial Festival de Nova Iorque – Selecção Oficial


ESTREIAS CINEMA

ALICE NAS CIDADES

EXCLU

CINEMSIVO AS M

ESTREIA 16 MARÇO

EDEIA

ALICE IN DEN STÄDTEN

DE WIM WENDERS Provas de Contacto

COM RÜDIGER VOGLER, YELLA ROTTLANDER, LISA KREUZER

Depois de várias curtas, e antes de Alice nas Cidades, Wim Wenders realizara já três longas-metragens: Summer in The City, A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty e A Letra Escarlate. No entanto, para Wenders, Alice nas Cidades é o seu verdadeiro ‘primeiro filme’, aquele onde encontrou a sua voz pessoal, a sua “própria caligrafia no cinema”. É também a etapa inaugural de uma trilogia (embora nunca pensada como tal) de road movies, que inclui ainda Movimento em Falso e Ao Correr do Tempo. Philip Winter (o jornalista alemão em crise que enceta uma odisseia com Alice, uma menina de 9 anos), interpretado por Rüdiger Vogler (presente também nos outros filmes da trilogia, espécie de alter ego de Wenders), é a primeira personagem ‘wendersiana’ por excelência. Nesta história inicial de errância (que só o Travis de Paris, Texas encerrará) e de trânsito entre os Estados Unidos e a Europa, há uma cena-chave: a da visita de Philip à amiga em Nova Iorque. A ‘ferida’ que rasga estes ‘peregrinos’ de Wenders expõe-se aí: a perda de identidade, a insolubilidade da pergunta “como viver?” Mais à frente, será Alice a confrontar Philip com o seu paralisante “medo do medo”. Ele poderá ter partido para a América para aprender o medo, mas só a viagem com Alice o

Dur: 1h 50min

resgatará dessa paralisia. E se as suas polaróides são uma ‘prova de vida’, aquele retrato que Alice lhe tira é uma verdadeira ‘prova de contacto’. As crianças (as duas meninas de O Estado das Coisas, o pequeno Hunter em Paris, Texas) experimentam o mundo, mantêm vivos a imaginação e o sonho (só elas vêem os anjos em As Asas do Desejo). Ficção habitada por um desejado lado documental (as várias viagens, sobretudo aquela pelo Ruhr natal de Philip e de Wenders) e pela música (o concerto de Chuck Berry, as jukeboxes) que a propulsionam, Alice nas Cidades invoca já o cinema como esse ‘mundo perdido’ – título do obituário de John Ford que Philip lê na viagem final de comboio e cujo Young Mr. Lincoln tinha visto (ou sonhado?) na TV do motel americano – de que Wenders fará o luto em O Estado das Coisas. Alice nas Cidades foi rodado em 16mm, mas Wenders ‘sonhou-o’ em 35mm, no formato largo 1.66 (Robby Müller, o seu director de fotografia predilecto, tinha marcas no visor da câmara pelas quais se guiava para enquadrar). O restauro actual devolve esse sonho e uma fotografia granulada espantosa. Instiga-nos a ver e ouvir de novo, como Alice instiga Philip. Fátima Castro Silva

“Também não sei como se deve viver. Nunca ninguém me ensinou.” in Alice nas Cidades Prémios e Festivais: Prémios da Associação de Críticos de Cinema Alemães — Melhor Filme

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ESTREIAS CINEMA

O AMIGO AMERICANO

EXCLU

ESTREIA 30 MARÇO

DER AMERIKANISCHE FREUND

DE WIM WENDERS

CINEMSIVO AS M

EDEIA

Dur: 2h 05min

COM DENNIS HOPPER, BRUNO GANZ, LISA KREUZER, NICK RAY, SAMUEL FULLER, DANIEL SCHMID, JEAN EUSTACHE

Regra Sem Excepção Depois de Ao Correr do Tempo, último tomo da trilogia de road movies, rodado a partir de um esboço de argumento e cuja história se escrevia dia-a-dia, Wim Wenders quis voltar a trabalhar sob a estrutura sólida de uma história alheia. Já o fizera com o filme intermédio, Falso Movimento, escrito por Peter Handke a partir de Goethe. Em O Amigo Americano é o próprio Wenders quem assina a adaptação do romance Ripley’s Game de Patricia Highsmith, concretizando um sonho antigo. Fascinado, desde a primeira leitura, pelas histórias de Highsmith, pela forma como as personagens lhes dão forma (em vez de serem moldadas por elas), pela ausência de psicologia, Wenders sentiu uma proximidade com o seu próprio trabalho, sempre mais interessado em “documentar do que manipular”. Em O Amigo Americano, a questão da identidade, essencial no seu cinema, revela-se numa nova perspectiva: a sua busca só pode ser alcançada pela acção. Em si mesma, a viagem (as múltiplas derivas dos filmes da trilogia) não leva ao autoconhecimento, por isso perdeu significado, tornouse secundária. As personagens agora circulam entre cidades que parecem intermutar-se num único grande cenário. A identidade aqui é um assunto de vida ou morte. Somente face à morte, ao jogo mortal que Ripley despoleta, é que Jonathan se descobre realmente a si próprio. A vivência da morte (a “regra sem excepção”, título alternativo de O Amigo Americano) revela intensamente algo sobre a vida, um fragmento de liberdade e dignidade.

Prémios e Festivais: Festival de Cannes: Selecção Oficial, Competição Deustcher Filmpreis: Melhor Realizador

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Film noir esparso e mutável, trabalhando a cor como um ‘barómetro’ da alma (cortesia, de novo, de Robby Müller), incorporando cameos dos cineastas Jean Eustache (o médico no bar) e Samuel Fuller (que retornaria em O Estado das Coisas) e ‘vénias’ a Ozu (na essência descritiva) e Hitchcock (a música, as sequências no metro de Paris e no comboio), O Amigo Americano é atravessado pela sombra tutelar de Nicholas Ray (o pintor, dado como morto, que faz cópias dos seus quadros para os inflacionar e que só o olhar de Jonathan — um picture framer, alguém que emoldura, que enquadra, como Wenders — vê como falsos), o cineasta americano que, com Ford, mais influenciou Wenders. No filme seguinte, Lightning Over Water — Nick’s Movie, ambos assumem o risco total, numa síntese radical de documento e ficção, filmando a autenticidade da morte de Ray como reminiscência da sua personagem neste filme. Face a essa verdade, a arte (o cinema) não pode mentir. Fátima Castro Silva


ESTREIAS CINEMA

NERUDA

EM EXIBIÇÃO

NERUDA

DE PABLO LARRAIN

COM GAEL GARCÍA BERNAL, LUIS GNECCO, ALFREDO CASTRO

Dur: 1h 48min

Um filme de puro prazer sobre um dos grandes poetas do século XX, num dos melhores trabalhos do chileno Pablo Larraín

Um filme intitulado Neruda levar-nos-ia a pensar que iríamos estar perante uma biografia do poeta chileno, a partir de episódios políticos, amorosos, poéticos, que converteram este vencedor do Nobel num herói mítico que percorreu várias tragédias do século XX, da guerra de Espanha ao golpe de estado de Pinochet a que, já muito doente, não resistiu. Já tínhamos tido, antes desta obra de Pablo Larraín, um outro filme, O carteiro de Pablo Neruda, baseado no romance de António Skarmeta, num tom inteiramente lírico e intimista. Quem esperava a mesma homenagem transpondo para o cinema a figura do escritor com a aura romântica que habitualmente lhe é associada, irá desiludir-se. Larraín entra, com este filme, num registo mordaz e por vezes surrealista, como se encontra em Luis Buñuel ou no também chileno Alejandro Jodorowski. No entanto, Larraín ocupa um espaço próprio, e o filme retrata o mundo da boémia, com os cafés, prostitutas e artistas,

que lhe estão associados, a que se junta a militância comunista de Neruda. Larraín, porém, vai no sentido de desmitificar a imagem do poeta resistente, acentuando os aspectos humanos e, por vezes, demasiado humanos, do personagem, num cruzamento de abjeccionismo com hipocrisia que nos deixa hesitantes perante a posição a tomar perante alguém que vive, de forma apresentada como “oportunista”, a sua grandeza de homem de cultura e de homem político, no período em que o poeta que deu voz à esperança revolucionária dos povos dá a primazia ao senador que assiste ao golpe de estado anticomunista de Videla, em 1948, que faz dele um fugitivo. Poderia pensar-se, numa primeira visão mais superficial, que o filme vem na linha de uma crítica a Neruda, feita sobretudo por quem não o leu e por quem,

ignorando a História, pense que ele pudesse manter-se nas nuvens, ignorando o exílio de muitos amigos seus e o assassínio de outros, como Federico García Lorca. O que é original no filme, porém, é que o ponto de vista que nele se assume é o do perseguidor do poeta clandestino, o polícia que faz da captura do fugitivo o seu objectivo até à bela sequência da sua agonia na neve, em que o poeta procura salvá-lo, acabando por ajudar a que a sua morte seja digna. E se outra qualidade não tivesse o filme, bastaria o estímulo ao conhecimento de quem é um dos grandes poetas do século XX, quanto mais não seja para ler, ou reler, um dos mais belos livros de amor da literatura universal: 20 Poemas de amor e uma canção desesperada. Nuno Júdice

Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Quinzena dos Realizadores Golden Globes — Nomeação Melhor Filme Estrangeiro

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ESTREIAS CINEMA

NA VERTICAL

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

RESTER VERTICAL

DE ALAIN GUIRAUDIE ESTREIA 16 MARÇO

Dur: 1h 38min

COM DAMIEN BONNARD, INDIA HAIR, RAPHAËL THIÉRY

Para muitos a descoberta fez-se há quatro anos quando a vitória em Cannes como Melhor Realizador na secção Un Certain Regard e a conquista da Queer Palm fez de O Desconhecido do Lago um dos casos que a Croisette viu nascer na edição de 2013 do festival. Convém lembrar que o realizador francês Alain Guiraudie (nascido em 1964) não era de todo, e já por essa altura, um nome ausente das salas portuguesas. Tanto que tinham conhecido estreia entre nós filmes seus como Os Bravos Não Têm Descanso (2003) e O Rei da Evasão (2009). Apresentado então em primeira mão no LEFFEST (que dedicou uma retrospectiva ao realizador) numa sessão seguida de uma conversa entre Guiraudie e João Pedro Rodrigues e, depois, estreado no circuito comercial, O Desconhecido do Lago teve entre nós o mesmo efeito que desencadeou em outros territórios, colocando o nome de Alain Guiraudie num

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plano de reconhecimento (e consequente curiosidade) com o qual vamos acompanhando o cinema de alguns dos autores menos canónicos do atual cinema francês (como Bruno Dumont ou Gaspar Noé), ao mesmo tempo afirmando nele uma voz diferente e muito particular entre os espaços da cinematografia queer atual. Tal como acontecia nos seus dois mais recentes filmes o novo Na Vertical (Rester Vertical, no original, título que o desfecho do filme explicará), que integrou a competição oficial de 2016 em Cannes, mantém firme a sua vontade em explorar figuras e espaços que escapam aos territórios das vivências urbanas. Mas desta vez junta a um cenário achado em terreno real e a um cinema que olha de forma explícita o corpo e a(s) sexualidade(s), uma trama que não fecha a porta ao inesperado, por vezes quase surreal, mantendo em todas estas frentes ligações a demandas caras ao corpo da sua obra.

O filme acompanha, na essência, a jornada de um cineasta em busca de uma história e que, depois de conhecer, no meio do nada, uma jovem pastora, tem com ela um filho que acaba a seu cargo. Mas, como num ziguezague em volta desta linha central, a narrativa evolui abrindo frestas a outras presenças, desejos e situações, mergulhando-nos (e ao protagonista) numa experiência não realista que tem, a dada altura, na música dos Pink Floyd, uma banda sonora que sublinha o turbilhão de inexplicáveis sensações em jogo. Nuno Galopim

Prémios e Festivais: Festival de Cannes: Selecção Oficial em Competição Festival de Sevilha: Melhor Realizador Prémios Lumière: Melhor Actor Revelação Damien Bonnard


ESTREIAS CINEMA

AQUARIUS

ESTREIA 16 MARÇO

AQUARIUS

DE KLEBER MENDONÇA FILHO

Dur: 2h 22min

COM SONIA BRAGA, MAEVE JINKINGS, IRANDHIR SANTOS

Entrevista a Kleber Mendonça Filho MM: Aquarius é um filme sobre uma personagem feminina extremamente forte e o lugar que habita. As suas inquietações e a sua luta são o “som vindo de dentro” do Recife? KMF: O que mais me interessa na escrita de personagens é tê-las como representações de pessoas que existem, ou de movimentos que fazem parte da sociedade. No caso de Clara, ela é fruto de uma sociedade que, por acaso, é a sociedade brasileira. Se o filme tem tido um apelo e uma comunicação universal, isso provavelmente significa que o alcance da história é universal. Todos nós temos o nosso espaço, que é a nossa casa. E no caso de Clara, ela tem não só o espaço físico, mas também o espaço emotivo dela. […] Então as inquietações vêm muito de uma visão que discorda dos modelos de um mercado que é muito voraz, ele consome, ele come. Acho que essa é uma das ideias que mais me atraíram para o filme, para essa história, alguém que se transforma num obstáculo a uma empresa, impedindo-a de atingir as suas metas e os seus objetivos. Sim, acho que essa movimentação de Clara acaba por ser interna, ela vem de uma maneira de ver a cidade, de ver o espaço público, de ver como as coisas são feitas, numa sociedade onde o dinheiro, na maior parte das vezes, vem em primeiro lugar.

KMF: Clara é uma personagem forte. […] É curioso como a reação ao fato de ela ser uma mulher tem sido muito forte para o filme. […] Acho que chama a atenção de muitas pessoas até pelo fato de que noutros filmes, e talvez na televisão, esse tipo de personagem seria retratado como uma vovozinha, com os óculos na ponta do nariz e fazendo croché o dia inteiro. Clara não é isso, é uma mulher, que por acaso tem 65 anos, tem energia, tem saúde, tem senso crítico, já foi machucada pela vida e é forte. Sempre me senti muito à vontade escrevendo essa personagem porque ela tem muito da minha própria mãe, Joselice, e é uma personagem que eu amo muito. MM: O desempenho de Sonia Braga em Aquarius é magnífico e este é seguramente um dos seus grandes papéis. Como foi trabalhar com ela? KMF: A Sónia foi uma coisa muito feliz que aconteceu. […] Mandámos o roteiro e ela reagiu apaixonadamente, começámos a conversar por Skype, e pela forma como comentava cada detalhe, vi que seria a pessoa correta para fazer o filme. Fui para Nova Iorque conhecê-la e três semanas depois a gente estava já ensaiando no Recife para filmar. Então foi um processo muito rápido, a equipe amou ela, ela amou a equipe, a gente se deu muito bem, trocou muitas ideias sobre a vida, sobre política, a visão política de Sónia se alinha com a do filme, a forma como olha para a cidade, para a história, para as memórias. É uma mulher com muita experiência de vida e de história. E hoje somos amigos. Então a melhor coisa que poderia ter acontecido, aconteceu. Uma experiência muito feliz de trabalho. [Leia a entrevista completa em medeiafilmes.com]

MM: Aquarius é também um filme sobre o que desaparece, as pessoas e os lugares que fazem a(s) nossa(s) história(s)?

Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Selecção Oficial em Competição

KMF: Sim, eu acho que a cidade é um lugar que promove atos de desaparecimento, quase como uma mágica perversa. […] A cidade está sempre se transformando. Isso não é necessariamente uma coisa ruim, porque as coisas se transformam, as cidades se transformam. Mas quando essa transformação é patrocinada por interesses que não batem com a ideia de história, de memória, de património histórico, isso para mim e para muita gente se torna um problema. A transformação violenta de uma cidade através de interesses do mercado acaba sendo predatória, apagando traços que poderiam ser úteis no futuro, no sentido de você entender a própria cidade, a história desse povo. […] E é por isso que eu quis que o Aquarius, o prédio em si, o apartamento de Clara, fosse um sítio arqueológico vivo. MM: Por outro lado, Clara é uma personagem combativa, independente, que não recua perante nada, a doença, a idade, os especuladores imobiliários que querem desalojá-la da casa onde sempre viveu. MARÇO | ABRIL '17

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ESTREIAS CINEMA

KENJI MIZOGUCHI

EXCLU

CINEMSIVO AS M

A PARTIR DE 13 DE ABRIL, 9 FILMES DE KENJI MIZOGUCHI

Mizoguchi, cineasta das mulheres Kenji Mizoguchi nasceu em Tóquio, a 16 de maio de 1898. Morreria precocemente, aos 58 anos de idade, celebrado como um dos mais emblemáticos nomes do cinema japonês. Sobre o seu túmulo, o produtor Masaichi Nagata mandaria inscrever o epitáfio: “Aqui jaz o maior cineasta do mundo”. Realizador e argumentista, trabalhou no era dos estúdios do cinema japonês, do mudo aos talkies, do preto-e-branco à cor, realizando a ritmo regular entre dois a três filmes por ano. Para lá de um inconfundível estilo marcado por longos travellings, jogos de sombras e simetrias interrompidas, Mizoguchi é, acima de tudo, o cineasta das mulheres. Entre dramas alicerçados na resistência das suas protagonistas femininas, constrói críticas às desigualdades da sociedade patriarcal que persistem no Japão do seu tempo. Se, apesar das suas claras influências, os temas e motivos são essencialmente japoneses, o permanente afecto pela tradição preserva uma visão tão manifestamente progressista que ‘‘se não fosse japonês, os seus filmes seriam provavelmente rotulados de anti-japoneses’’, como reparou Tag Gallagher. Rever Mizoguchi hoje permite retroceder até às fundações de um Japão antigo, ainda fechado ao Ocidente, distinto daquele que a globalização nos traz. A revisitação tem ao dispor muitos instrumentos para enquadrar um dos mais fundadores pilares da história do cinema: pensar sobre Mizoguchi hoje é mapear migrações entre a sua vida e o seu cinema mas é, também, entrar num fluxo de grandes frases, grandes ideias e grandes artistas, críticos e académicos que têm, ininterruptamente, 8

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EDEIA

contribuído para o estudo de uma influência que permanece incontornável. Em 1975, o grande realizador da geração seguinte, Kaneto Shindô, dedicaria a Mizoguchi o retrato The Life of a Film Director, documentário que procura pistas junto dos vários colaboradores. Destes testemunhos, soma-se um coro: Kenji Mizoguchi era um homem exigente e não abdicava de controlar tudo ao pormenor, até o tamanho dos botões, afirma Takako Irie, actriz regular de Mizoguchi. Apreciador de verdadeiros artistas e artesãos, Mizoguchi usufruía dos processos conjuntos implicados em cada filme e mantinha colaborações regulares. Entre outros, repetem-se os nomes da actriz Kinuyo Tanaka ou do argumentista Yoshikata Yoda, braço direito do realizador e autor de inúmeros guiões de Mizoguchi, entre os quais O Conto dos Crisântemos Tardios, A Senhora Oyu, Contos da Lua Vaga, Festa em Gion, O Intendente Sansho, A Mulher de Quem se Fala, Os Amantes Crucificados ou A Imperatriz Yang Kwei-Fei.


ESTREIAS CINEMA Mizoguchi é um realizador esquemático — de tal forma, que facilmente nos parece que os filmes se entre-respondem. Tipicamente, um melodrama seu começa por largar-nos dentro da agitação das ruas e conhecemos o palco do que se seguirá. Só depois, entre os movimentos anónimos do bulício urbano, aí encontramos a medida individual do enredo (metonímica) na personagem principal. Tão barroco quanto minimal, é possível reconhecer rapidamente as marcas de um estilo minucioso que se distingue a cada plano, cada filme, cada genérico. Apesar da profunda originalidade de um cinema que, pela sua frescura, se popularizaria junto das audiências ocidentais, as variações deste corpo de trabalho desdobram-se num leque de influências rigorosamente medidas que, alicerçadas na tradição pictórica japonesa, também se deixaram influenciar por estéticas europeias como o neo-realismo italiano, o expressionismo alemão ou o naturalismo francês. A questão da arte e do estudo necessário para a apurar são temas recorrentes, exemplificados de variadas formas: no treino rigoroso das geishas de Festa em Gion, na perícia musical “à Edo” de A Senhora Oyu, no drama do actor desinspirado em O Conto dos Crisântemos Tardios, entre outras. Celebrar a arte e a honra à tradição é, por conseguinte, condenar tudo o que é falso, decadente e descuidado e, talvez por isso, menos japonês: as prostitutas que são uma versão insultuosa das geishas em Rua da Vergonha, os falsos tecidos brocados que surgem em Os Amantes Crucificados e são vendidos ao preço de verdadeiros em As Irmãs de Gion ou a patética imobilidade do pai de Festa em Gion, que aceita dinheiro de mulheres. Na verticalidade destas histórias, só há uma forma de falsidade permitida: a estratégia feminina. Como se ouve em Festa em Gion, “uma mentira de geisha não é uma verdadeira mentira”. A questão da “guerra dos sexos” está no centro permanente de um cinema concretamente construído sobre incontáveis planos de túneis, passagens, entradas e saídas, como um projecto contíguo de emancipação feminina que perpassa os vários enredos. É situado do interior da trincheira das mulheres que o realizador as defende, esquematizando estas disputas de poder em imagens que, apesar da força moral das protagonistas, retratam

contextos de clausura, opressão, aprisionamento. De acção enquadrada por um sistema arcaico, ainda assim as jovens geishas resistem “na dignidade de mulheres da nobreza” (ouve-se em Rua da Vergonha), astutamente manobrando os seus inimigos, os “homens sempre iguais” (diagnóstico de uma d’ As Irmãs de Gion). Estes retratos íntimos do feminino mostram como a solução das mulheres para a sua condição se traduz, através dos tempos, num espírito de irmandade que, sistematicamente, funciona como uma consciência de classe, voltada para a ascensão social e para a luta por melhores condições. Alusiva a distintos séculos da história do Japão, a obra de Mizoguchi funda, em subtexto, uma genealogia da sujeição do feminino e, em simultâneo, um retrato da sua resistência ancestral. Um exemplo é o da desigualdade no castigo pelo adultério, verbalizada pelas personagens do filme Os Amantes Crucificados, que, situado no Japão do séc. XVIII, dá a ver como, contrariamente aos homens, as mulheres que mantinham casos extraconjugais eram injustamente perseguidas e crucificadas. Até num casamento combinado como o descrito em A Senhora Oyu, são as mulheres a orquestrar as condições em que o amor do homem se expressará. E são as mais jovens geishas de Festa em Gion a reivindicar o direito de não serem forçadas a deitar-se com os homens que não lhes agradem. Este projecto revolucionário rebenta com o continuum da História na inesquecível ousadia da geisha que morde violentamente o seu agressor — uma cena caricata que nos lembra um episódio vincado no próprio Mizoguchi — este homem do mundo que chegou aos jornais por ter sido esfaqueado por uma geisha, permaneceria sempre fiel ao seu amor pelas mulheres. E, um dia, disse sobre si e sobre o cinema: “Os filmes não são feitos por decisão consciente mas por paixão interior”. Sabrina D. Marques

9 FILMES DE KENJI MIZOGUCHI O CONTO DOS CRISÂNTEMOS TARDIOS (1939) A SENHORA OYU (1951) CONTOS DA LUA VAGA (1953) FESTA EM GION (1953) O INTENDENTE SANSHO (1954) A MULHER DE QUEM SE FALA (1954) OS AMANTES CRUCIFICADOS (1954) A IMPERATRIZ YANG KWEI-FEI (1955) RUA DA VERGONHA (1956) MARÇO | ABRIL '17

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ESTREIAS CINEMA

SÃO JORGE

EM EXIBIÇÃO

Dur: 1h 52min

SÃO JORGE

DE MARCO MARTINS

COM NUNO LOPES, MARIANA NUNES, JOSÉ RAPOSO, BEATRIZ BATARDA, GONÇALO WADINGTON

Mais de 10 anos depois de Alice, o realizador Marco Martins volta a trabalhar com o actor Nuno Lopes. O resultado é um retrato singular da austeridade em Portugal, a partir da luta de um pai para manter a família

Nuno Lopes encarna a personagem principal do filme, um homem sem emprego, praticante de boxe e que tenta arranjar dinheiro para evitar que a mulher e o filho se mudem para o Brasil. O actor confessa-se fã de filmes de boxe, como Belarmino de Fernando Lopes, que é o seu filme português favorito. Há muito que queria experimentar fazer um boxeur e acrescenta que tem ombros largos para experimentar os ringues. Mas, no filme São Jorge, o mundo do boxe é apenas uma boa metáfora para falar da crise provocada pelos tempos da troika em Portugal. Segundo Nuno Lopes, só depois de ter começado a frequentar ginásios, percebeu que havia ali uma história para ser contada, ao descobrir que vários praticantes usam a compleição física, para ganhar dinheiro a fazer cobranças difíceis. Quanto ao realizador Marco Martins, confessa que não era propriamente a ideia de fazer um filme sobre boxe que lhe interessava, mas o contexto social que se foi revelando nos ginásios oferecia uma perspectiva interessante — “Não queria fazer um filme sobre a crise mas queria falar do presente, e isso era possível através do olhar daquelas pessoas.” Marco Martins diz que a crise acabou por entrar pelo filme. Nuno Lopes acrescenta que na altura era impossível criar um projecto artístico sem falar da crise. 3 anos antes da rodagem, Nuno Lopes começou a fazer preparação física de forma moderada, até chegar a 5 horas de treino diário de boxe e cross-fit, nos últimos 5 meses antes de começar a filmar. O actor conta, que no ponto de partida do projecto, “havia uma ideia de pegar 10 MARÇO | ABRIL '17

no género neo-realista italiano, e da luta contra o fascismo na altura, inspirado em filmes que também usavam actores amadores e tinham uma componente social muito forte”. A dupla realizador/actor tinha a experiência de um projecto de teatro feito com os trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, que acabaram por ser chamados para São Jorge e dar uma dimensão realista ao filme. Nuno Lopes, Beatriz Batarda e José Raposo estão muitas vezes em cena rodeados destes trabalhadores que falam entre si sobre os problemas que enfrentam e o contexto em que vivem: salários, desemprego, segurança social ou os pequenos casos da vida de bairro. A câmara de Marco Martins ligava-se para captar conversas informais, impossíveis de serem escritas pelo realizador — “São eles que estão a falar, não caí na tentação de escrever o meu texto para ser dito, não ia funcionar.” Nuno Lopes acrescenta que o trabalho dos actores no filme, era desaparecer enquanto classe burguesa que vive uma vida mais confortável, e que não seria possível criar um mundo imaginário de quem está a passar pela crise. O Jorge do filme, é um santo no meio do inferno, diz o actor — “É um homem honesto num mundo duro. E inocente, num mundo onde não se pode ser inocente”. Lara Marques Pereira [entrevistas com Marco Martins e Nuno Lopes, no Festival de Cinema de Veneza], Cinemax / Medeia Magazine

Prémios e Festivais: Festival de Veneza, Secção Orizzonti: Prémio Melhor Actor — Nuno Lopes


ESTREIAS CINEMA

O JOVEM KARL MARX

ESTREIA 20 ABRIL

LE JEUNE KARL MARX

DE RAOUL PECK

COM AUGUST DIEHL, STEFAN KONARSKE, VICKY KRIEPS, OLIVIER GOURMET

Dur: 1h 52min

Retrato do filósofo quando jovem revolucionário

Raoul Peck tem dividido a sua obra entre o documentário e a ficção, o cinema e a televisão. Este ano, foi um dos nomeados para o Oscar do Melhor documentário com o filme I’m not Your Negro, sobre o escritor e activista James Baldwin. Causara sensação, em 2000, a sua longa-metragem Lumumba, sobre o primeiro presidente eleito do Congo, e um dos mais perspicazes e estimulantes estudos do colonialismo. Traz-nos agora um novo filme de ficção, O Jovem Karl Marx, onde, tal como no filme sobre Patrick Lumumba, volta a trabalhar, no argumento, com o realizador e crítico Pascal Bonitzer. No festival de Berlim, onde o filme teve estreia mundial, Raoul Peck explicou o porquê desta escolha: “Fiz este filme porque queria clarificar algumas coisas neste mundo confuso em que vivemos, onde se pensa que não temos história. Queria varrer esta confusão e a desinformação. Este é o primeiro filme sobre Karl Marx no mundo ocidental. Porquê?” 1 Peck, enquanto jovem estudante universitário na Alemanha, estudou Marx e O Capital, e

percebeu que o filósofo, através dos seus escritos, “nos deu um instrumento com o qual podemos analisar qualquer sociedade de forma crítica”. Mas este retorno a Marx e ao seu pensamento, a sua actualidade, não se invoca em vão. Nos últimos anos, vários filósofos, certamente Žižek à cabeça, mas também Badiou ou Derrida, e, entre nós, em vários livros, mas, sobretudo, em Grandeza de Marx — Por uma Política do Impossível (2011), Sousa Dias (que fala em “absoluta actualidade de Marx”), têm contribuído para percebermos como continua a ser essencial nos nossos dias a obra do filósofo mais influente desde a segunda metade do século XIX aos nossos dias. E o que nos traz este filme? Como nos diz o realizador, é um buddy movie sobre os anos de formação do jovem Marx (August Diehl), menino entre os doutores (um prodígio licenciado aos 19 anos, que não receava confrontar-se com as mentes mais brilhantes do século, como Hegel e Feuerbach), orador intempestivo, que segue o seu percurso, de Colónia, na Alemanha, a Paris, Bruxelas e Inglaterra, que nos mostra as suas grandezas e fraquezas, a luta

diária que travava para, através da escrita, sustentar o dia-a-dia, quase sempre complicado, da sua família (magnífica Vicky Krieps, no papel de Jenny, a sua mulher, de origem nobre, que abdicou da vida confortável que a esperava, apaixonada por este jovem rebelde, pelas suas ideias, que com ele discutia, que o empurrava para a frente se o sentia claudicar). A frutuosa relação com Friedrich Engels, que o considerava um génio, e com quem passou a colaborar e viria a escrever o Manifesto Comunista. Nesse manifesto, de 1848, fala-se do espectro do comunismo, o Gespenst des Kommunismus, e, como escreveu Derrida, é da essência do espectro ser sempre futuro, e não passado. “Ver espectros: coisa de visionários, coisa de Marx” (Sousa Dias) é também, desde sempre, coisa do cinema, diríamos nós. Pois que O Jovem Karl Marx, presença viva dessa voz espectral, que agora estreia, nos inquiete, e nos dê a vontade de o (re)ler. A.C. 1 Entrevista a Sean Gallen, theupcoming.com

Prémios e Festivais: Festival de Berlim

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ESTREIAS CINEMA

MA LOUTE

ESTREIA 13 ABRIL

MA LOUTE

DE BRUNO DUMONT

COM JULIETTE BINOCHE, FABRICE LUCHINI, VALERIA BRUNI TEDESCHI, DIDIER DESPRÉS

Dur: 2h 02min

Após O Pequeno Quinquin, Bruno Dumont continua o seu trajecto na comédia grotesca

A transformação que se registou na obra de Bruno Dumont nos últimos anos é digna de admiração. Outrora figura proeminente de um cinema que abordava, quase exclusivamente, dramas polémicos, extremos e divisivos, como La Vie de Jésus (1997) ou L’Humanité (1999), Dumont estreou, em 2014, o filme e mini-série O Pequeno Quinquin. Uma comédia negra recheada de elementos burlescos que gira à volta de um murder mystery, mostrou Dumont a abandonar, pela primeira vez, a ferocidade e o realismo social que se assumiam até então como constantes no seu trabalho, por um registo de farsa. Ma Loute continua a sua exploração pelos caminhos da comédia com contornos macabros, desta feita explorando uma comunidade à beira-mar no norte de França, durante a Belle Époque. Em entrevista à revista Film Comment, Dumont dizia sobre a drástica mudança de tom: “Era como se dantes habitasse nas trevas e agora tivesse passado para a luz, a luz só pode vir depois da escuridão. A comédia é apenas o outro lado do drama, 12 MARÇO | ABRIL '17

a comédia vem do drama. Percebi recentemente que são dois lados da mesma moeda. Por isso não tenho quaisquer problemas em filmar nos mesmos locais, com as mesmas pessoas, contando mais ou menos a mesma história, mas a partir do lado contrário.” No epicentro de Ma Loute estão duas famílias amplamente distintas, unidas pela forma delirante como vivem as suas vidas, os Bréfort, uma peculiar família de barqueiros, e os Van Peteghem, burgueses decadentes e degenerados. Neste filme, Bruno Dumont junta pela primeira vez um elenco composto por vários nomes conhecidos. Para além de Juliette Binoche, com quem já trabalhara em Camille Claudel 1915, temos ainda Valeria Bruni Tedeschi e Fabrice Luchini. Os três actores interpretam membros da família burguesa. Paralelamente, trabalha com actores não profissionais, nos

papéis da família Bréfort e restante comunidade costeira. Relativamente à justaposição entre o trabalho com actores profissionais e amadores, Dumont refere: “Não são as mesmas ferramentas, não é o mesmo aparelho. Um actor profissional é um Boeing 747: cheio de botões e controlos, e sentimo-nos inseguros sobre a forma de os usar, pois são extremamente complexos e sofisticados. Um actor não profissional é como uma avioneta de motor único, apenas com uma manete – muito mais fácil de manobrar.” Ao usar nomes conhecidos para encarnar os depravados e excêntricos burgueses e não profissionais para interpretar os modestos (mas não menos excêntricos) Bréfort, Dumont potencia as suas capacidades ao máximo, trazendo a Ma Loute estranheza e comicidade em quantidades iguais. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Selecção Oficial em Competição Prémios César — Nomeado para Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor, Melhor Actriz Secundária, Melhor Jovem Actriz, Melhor Argumento Original, Melhor Fotografia, Melhor Guarda-roupa, Melhor Direcção de Arte


ESTREIAS CINEMA

NOCTURAMA

ESTREIA 6 ABRIL

EXCLU

CINEMSIVO AS M

Dur: 2h 10min

EDEIA

NOCTURAMA

DE BERTRAND BONELLO

COM FINNEGAN OLDFIELD, VINCENT ROTTIERS, HAMZA MEZIANI, MANAL ISSA

Um grupo de jovens leva a cabo um acto terrorista, num filme que se recusa a explicar os inexplicáveis horrores da actualidade

Tudo começa com acções paralelas em diversos pontos de Paris, sem falas, apenas jovens que trocam olhares comprometidos e tensos, consultam o relógio, trocam mensagens, deixam pacotes em vários locais e deitam fora os telemóveis. Uma sensação de desconforto aumenta a cada instante e percebemos porque todas as acções do grupo de protagonistas de Nocturama nos assustam e perturbam. Estamos a testemunhar um acto terrorista e todos os sinais de “actividade suspeita” que aprendemos a ler estão perante os nossos olhos. Os autores destes actos são um grupo heterogéneo, com várias idades, várias etnias e diferentes contextos sociais. Nesta primeira parte do filme, Bertrand Bonello não se limita a deixar o condicionamento clássico actuar sobre acções que obviamente preparam algo terrível, e injecta tensão através da montagem rápida e de uma banda sonora inebriante, composta por si próprio. Após todos os dispositivos estarem prontos para colocar Paris em ebulição, os jovens escondem-se numa loja de vários pisos no centro da cidade, onde um dos mais velhos trabalha como segurança. Neste refúgio, regressam à sua dimensão humana, explorando cada recanto, um mundo de fantasia onde, rodeados pelo silêncio e opulência da loja e assombrados pelas suas acções, se torna cada vez mais evidente a sua juvenilidade e falta de preparação para lidar com o peso dos seus actos. O realizador não oferece justificação ideológica para a heterogeneidade do grupo nem para as razões

que levaram aos ataques (e note-se que o filme foi escrito em 2011 e 2012, e rodado antes dos atentados de Paris de 2015), apenas os apresenta como uma inevitabilidade. Durante uma Q&A após a projecção no Lisbon & Estoril Film Festival, Bonello afirmou: “Não queria fazer um filme com ‘discurso’, apenas queria o momento […]; se damos uma motivação, apontamos para algo, o que se torna reconfortante, porque podemos justificar a acção, mas não era isso que pretendia fazer, apenas queria mostrar um sentimento geral, não apontar razões. Foi também essa a razão pela qual o grupo é tão díspar e de contextos tão diferentes, para evitar justificações. Apenas queria expressar o sentimento predominante que conseguia constatar em França quando escrevi o filme.” Ao recusar tomadas de posição, Bonello não limita a força das suas imagens a uma ideologia política a ser discutida e dissecada, apenas prova que a violência não é enfraquecida pela sua disseminação e que nunca será banal, que continuará a chocar e horrorizar, pois a natureza humana impede-nos de sermos impenetráveis a tal flagelo. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de San Sebastián — Prémio SIGNIS Festival de Toronto — Selecção Oficial LEFEST — Selecção Oficial, em Competição

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ESTREIAS CINEMA

A CRIADA AH-GA-SSI

DE CHAN-WOOK PARK

ESTREIA 30 MARÇO

Dur: 2h 24min

COM MIN-HEE KIM, JUNG-WOO HA, JIN-WOONG JO, SO-RI MOON, KIM TAE-RI

Chan-wook Park adapta um romance vitoriano, transporta-o para a Coreia ocupada pelo Japão e torna-o num caleidoscópio ludibriante e irresistível. Um dos mais populares realizadores da Coreia do Sul, Chan-wook Park deixou a sua marca no cinema mundial com alguns dos filmes mais interessantes das últimas décadas, como Thrist – Este é o Meu Sangue ou Oldboy – Velho Amigo, que Spike Lee refez, sem sucesso, em 2013. Foi também em 2013 que o realizador coreano realizou Stoker, o seu primeiro filme em língua inglesa, protagonizado por Nicole Kidman, Mia Wasikowska e Matthew Goode. No ano seguinte, Park anunciou que iria adaptar Fingersmith, romance de Sarah Waters passado na Grã-Bretanha vitoriana. “Chan-wook Park cria uma atmosfera opressiva, inebriante e sensual, deixando que os sentidos nos levem a deslizar nos contínuos embustes e a ser surpreendidos a cada nova revelação.” Em A Criada, Chan-wook Park troca o século XIX na Grã-Bretanha por uma realidade mais próxima da sua: a Coreia do Sul durante a ocupação Japonesa na primeira metade do século XX. Embora sejam sobejamente diferentes, ambos os contextos inserem perfeitamente o espectador em realidades onde mulheres vivem isoladas e subjugadas às vontades de outros. A premissa do filme, desde os primeiros momentos, é a de um embuste, no entanto à medida que avançamos na narrativa, o enredo apresenta-se perante o espectador como um caleidoscópio que a cada instante se desdobra e mostra diferentes combinações e enganos em jogo. Chan-wook Park cria uma atmosfera opressiva, inebriante e sensual, deixando que os sentidos nos levem a deslizar nos contínuos embustes e a ser surpreendidos a 14 MARÇO | ABRIL '17

cada nova revelação. A construção dos planos, a luz e a direcção de arte complementam-se e potencializam-se, tornando este filme num banquete para os sentidos. No entanto, nem só de ambiente e estética vive esta narrativa, cada passo é calculado, cada reviravolta é inteligente e capaz de deixar o espectador mais experiente boquiaberto. Balançando elementos de mistério, romance e thriller, talvez uma das grandes surpresas deste filme seja a sua natureza romântica, que se opõe à opressão em que as protagonistas vivem. Todos os actores contribuem para que este origami de fraudes se desdobre na perfeição, com destaque para Min-hee Kim, que interpreta Lady Hideko, a peça-chave e a personagem mais fascinante deste caleidoscópio de enredos e engodos. É também aquela que, ao desdobrar-se em várias e inesperadas facetas, se torna numa alegoria para o próprio filme. O caleidoscópio acaba por funcionar como a metáfora perfeita para A Criada: um pequeno tubo por onde, ao espreitar, vemos fragmentos de enorme beleza espelhados uns nos outros, criando um todo hipnotizante, que nos envolve e muda a cada instante, nunca parando de nos inebriar com as suas mutações e desdobramentos das realidades que nos mostra. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Prémio Vulcain para Artes Técnicas National Board of Review, E.U.A. – Top 5 Melhores Filmes Estrangeiros 2016 National Society of Film Critics, E.U.A. – Melhor Filme Estrangeiro 2016 – 2º Lugar


ESTREIAS ESTREIASCINEMA CINEMA

SONHOS COR-DE-ROSA

ORNAMENTO E CRIME

FAI BEI SOGNI

DE MARCO BELLOCCHIO ESTREIA 6 ABRIL

Dur: 2h 14min

COM BÉRÉNICE BEJO, VALERIO MASTANDREA, GUIDO CAPRINO, BARBARA RONCHI

Inspirado numa história verídica, o filme de Marco Bellocchio é uma ode ao amor materno e à nostalgia

Em Sonhos Cor-de-rosa, Marco Bellocchio adapta o bestseller autobiográfico do italiano Massimo Gramellini, no qual o escritor descreve o seu percurso pessoal para superar a dor e o sentimento de abandono associados à perda inesperada da mãe, aos nove anos. No filme de Bellocchio, é precisamente com esta idade que conhecemos Massimo, um rapaz muito próximo da mãe, habituado a uma relação recíproca e a receber todo o amor materno. É depois no seio de uma família disfuncional que o pequeno Massimo se vê obrigado a lidar com a perda, o que irá influenciar o resto da sua vida. Reencontramo-lo em adulto, quando regressa à casa dos pais, com o objectivo de vendê-la. Apesar de ter-se tornado um jornalista bem-sucedido, Massimo não conseguiu ultrapassar a perda, o que afecta a sua vida ao ponto de não conseguir ligar-se verdadeiramente a ninguém. A hipótese de mudança surge no momento em que conhece Elisa, uma mulher que irá ajudá-lo a confrontar as suas feridas de infância e reconciliar-se, na medida do possível, com o passado. Com recuos à infância e momentos da vida adulta, Massimo percorre a memória – principalmente as fortes memórias da mãe e dos momentos passados juntos. Não é difícil encontrar neste filme temas comuns à obra de Marco Bellocchio, como o próprio explica na nota de intenções do filme: “Esta história tocou-me bastante, e profundamente, porque encontrei nela temas que tenho tratado nos meus filmes. Família, mães, pais, uma casa em vários períodos de tempo ao longo de 30 anos, durante um período de mudança em Itália.” Com uma realização sensível e delicada, Sonhos Cor-de-rosa afasta-se de clichés melodramáticos, para ser capaz de criar uma forte ligação emocional.

DE RODRIGO AREIAS Ornamento & Crime é um filme policial sobre extorsão, arquitectura e corrupção. Baseado numa estética Noir, conta a história de um detective privado série B que, enquanto tenta encontrar uma forma de sair da cidade, vai continuando os seus esquemas de extorsão com a ajuda da sua companheira. Porém, numa sociedade dominada pela máfia da construção civil, a parada poderá ser alta demais. Vereadores, empreiteiros, polícias e femmes fatales dificilmente poderão ser vencidos nesta mesa de jogo. A banda sonora original é assinada por The Legendary Tigerman e Rita Redshoes.

ESTREIA 23 MARÇO

THE IDOL A FORÇA DE ACREDITAR DE HANY ABU-ASSAD Mohammad, um jovem residente em Gaza, sonha cantar na Ópera do Cairo e ser reconhecido internacionalmente pelo seu talento. O filme segue o percurso do jovem, desde a sua infância num campo de refugiados em Gaza, até à audição para o programa “Ídolos”, no Egipto, e à aclamação da sua vitória em Beirute. The Idol – A Força de Acreditar é baseado na história verídica de Mohammad Assaf, vencedor do programa Arab Idol, em 2013.

ESTREIA 13 ABRIL

Renata Curado

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Quinzena dos Realizadores Festival de Toronto – Selecção Oficial

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16 MARÇO | ABRIL '17


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