Medeia Magazine - Setembro Outubro

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SETEMBRO | OUTUBRO 2016

11 MINUTOS O premiado e vertiginoso thriller de Jerzy Skolimowski

SE AS

MONTANHAS SE AFASTAM Um conto contemporâneo de Jia Zhang-ke

CAFÉ SOCIETY

A Era Dourada de Hollywood por Woody Allen

JULIETA Almodóvar regressa ao melodrama no feminino

SETEMBRO | OUTUBRO 2016

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EDITORIAL Num livro sobre Raúl Ruiz, publicado pouco depois da morte inesperada do realizador, quando ainda esperávamos dele tantos filmes depois do sucesso internacional de Mistérios de Lisboa, que trazemos agora de novo às salas, Miguel Marías escrevia que “o futuro de Ruiz fica agora nas nossas mãos, e são os seus espectadores passados, presentes e futuros que devem ocupar-se, como herdeiros, do seu legado”.

MISTÉRIOS DE LISBOA MISTÉRIOS DE LISBOA

DE RAÚL RUIZ EM EXIBIÇÃO

Duração: 4h 26min

COM ADRIANO LUZ, MARIA JOÃO BASTOS, RICARDO PEREIRA, CLOTILDE HESME, AFONSO

PIMENTEL, LÉA SEYDOUX, JOÃO LUÍS ARRAIS, ALBANO JERÓNIMO, JOANA DE VERONA

Regresso às salas de um “clássico contemporâneo” do cinema português, aquele que mais sucesso internacional alcançou, referenciado no mundo inteiro como uma das “obras-primas” do cinema no séc. XXI. Zénite da obra de Raúl Ruiz, Mistérios de Lisboa tem argumento de Carlos Saboga, e adapta o romance homónimo de Camilo Castelo Branco.

É com esta imagem de “espectadores activos” (e apaixonados) que começamos mais uma rentrée cinematográfica depois das férias de Verão. Os dois meses que aí vêm trazem-nos muito e bom cinema, entre as estreias e as reposições de filmes que fazem a sua história, entre os “contos contemporâneos” e a revisitação de “épocas douradas”… Sejam bemvindos/as! As Nossas Salas: Cinema Monumental (Lisboa) Espaço Nimas (Lisboa) TMP Campo Alegre (Porto) Auditório Charlot (Setúbal) Theatro Circo (Braga) Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra) Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz)

Programação sujeita a alterações de última hora. Confirme sempre em www.medeiafilmes.com

Equipa Director: Paulo Branco Coordenação Editorial: António Costa Colaboram neste número: Alberto Ruiz de Samaniego, Diana Cipriano, Fátima Castro Silva, Filipa Pinto, Francisco Louçã, Inês Viana, Gianfranco Rosi, Jean-Michel Frodon, Jerzy Skolimowski, Juan Branco, Luís Pinheiro de Almeida, Noam Chomsky, Nuno Galopim, Renata Curado. Design: André Carvalho e Catarina Sampaio Capa: 11 Minutos, Café Society Se as Montanhas se Afastam, Julieta Com o apoio

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No labirinto da ficção Vendo Mistérios de Lisboa apercebemo-nos de que a roda da fortuna gira a cada momento, como os próprios movimentos de uma câmara cujo contorno hipnótico corresponde ao impulso imparável da narrativa. Assim, um marquês converter-se-á em mendigo, um cigano em padre e militar napoleónico, e um libertino em frade. Tudo é possível, assevera o Padre Dinis, figura essencial deste conto de contos. Nenhuma personagem é unívoca, todas têm fundo duplo e diferentes nomes. São ambíguas, vítimas e carrascos de acordo com a ocasião, pois que com cada volta que a fortuna dá a localização de cada um no carrossel social também muda. Desta forma se traça o labirinto da ficção, com as suas falhas e atalhos, com as histórias que, como n’As Mil e Uma Noites, encaixam umas nas outras em movimento de mise-en-abîme quase infinito. Em tal circularidade labiríntica se cria sentido, deformando-o a cada instante, desviando-o da narração. Por isso o Padre Dinis, garante último da ficção, é uma personagem teatral e mefistofélica, ele próprio um vazio ou abismo psicológico protegido por múltiplas máscaras, vestes, disfarces. Ninguém, no fundo, se conhece ou se reconhece em Mistérios de Lisboa. Ninguém sabe o que é na realidade, como manifesta Pedro, o protagonista, no início – e no final – do filme. “Eu tinha 14 anos e não sabia quem era…”. “Pensei que sonhava”, diz também Pedro a certa altura. Não será todo o filme um sonho premonitório de Pedro/João enquanto criança? O sonho como resposta a um enigma identitário. Então os duelos, os segredos, as perdas, os bailes e os amores funestos, as amarguras sem fim da vida seriam produto de uma imaginação febril, a de um leitor adolescente. A mente infantil – como postulou Freud – constrói todo o tipo de fantasias. O filme constituiria, portanto, uma construção


JÁ NOS CINEMAS

Le Monde

Positif

Les Inrockuptibles

de substituição que suprisse a falta de sentido da experiência vivida; e por isso Pedro se agarra ao teatrinho e ao seu próprio retrato e à bola da infância, objectos que confirmam o sintoma da sua ancoragem a uma fantasia primeira. Incluindo talvez a pista de que nunca teremos abandonado a sua infância e que, consequentemente, todo o filme não seja outra coisa senão o delírio agónico e prospectivo do rapaz. O resultado é análogo à formação em mosaico dos sonhos: tudo se condensa numa unidade composta. O nexo que existe entre os diferentes relatos seria então o mesmo entre os diferentes sonhos de uma mesma noite. Todos significam a mesma coisa, expressando os mesmos impulsos mediante elementos distintos. A repetição está relacionada aqui com a ausência de um sentido para a experiência vital, como se este mesmo sentido apenas se encontrasse nas dobras que o desfazem e o deformam indefinidamente. Mas a repetição com variações de mecanismos de mise-en-scène e de tipos

NOVA EDIÇÃO EM DVD NAS LOJAS

Télérama

Cahiers du Cinéma

The Guardian

ou situações narrativas (bailes, duelos, deslocações pela Europa, visitas a conventos, guerras, traições, etc.) confere também ao filme a ideia de um destino inelutável, ao qual não será possível escapar. Ninguém controla a sua própria vida. Somos todos marionetas governadas por mão alheia. Chegamos assim à conclusão que dá impulso aos delírios do rapaz, os da narração, os do próprio cinema. Pois o cinema, ainda mais em Raúl Ruiz, sempre nos surge como construção fantasmática, mas só onde haja vazios ou ausências, como as de uma mãe, ou a do auto-conhecimento. Por isso o mistério está em toda a parte, porque o sentido que se busca está sempre ausente na sua plenitude. Em Mistérios de Lisboa todas as histórias formam uma cadeia de significantes substitutivos que aludem a um mesmo significado: a existência como bastardia. A própria bastardia como consequência de amores em desgraça e, em última instância, a vida eternamente condenada à traição e à morte. Alberto Ruiz de Samaniego [Trad. Cláudia Coimbra]

“Um dos melhores filmes do século XXI.” Michael Barker, Sony Classics

“Extraordinário. Uma obra-prima.” J.M. Coetzee (Prémio Nobel da Literatura)

“Fundamental para entender o cinema do nosso século.” Cahiers du Cinéma

“Magistral. Uma das primeiras obras-primas deste século.” Film Comment

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ESTREIAS CINEMA

SNOWDEN SNOWDEN

DE OLIVER STONE ESTREIA 22 SETEMBRO

Duração: 2h 14min

COM JOSEPH GORDON-LEVITT

SCOTT EASTWOOD SHAILENE WOODLEY NICOLAS CAGE

Quando Oliver Stone realiza um filme sobre um assunto político quente, a controvérsia instala-se. Mesmo antes da estreia do filme, como acontece agora com o muito aguardado Snowden, biopic do ex-funcionário da NSA que revelou ao mundo segredos de espionagem do governo americano. A fuga de Snowden dos EUA tinha já sido objecto do documentário Citizenfour, de Laura Poitras, que, com Glenn Greenwald, divulgara esses documentos na imprensa. O actor Joseph Gordon-Lewitt, que interpreta Snowden, serviu-se desse filme para preparar o seu papel. Citizenfour (já editado em DVD) foi apresentado em primeira mão no Lisbon & Estoril Film Festival pela realizadora, no âmbito do simpósio internacional “Ficção e realidade: para além do Big Brother”. Na altura, Paulo Branco e Juan Branco, responsável pela organização do simpósio, deslocaram-se aos EUA, onde entrevistaram o filósofo Noam Chomsky sobre o tema. Publicamos aqui excertos dessa entrevista. Noam Chomsky: De facto, noutros tempos, talvez Snowden tivesse simplesmente sido assassinado. […] Acho que isso já é uma mudança. Os EUA vão tentar apanhá-lo a todo o custo, e se o conseguirem, não vão assassiná-lo, vão pô-lo numa prisão o resto da vida. Juan Branco: Para servir de exemplo? NC: Sim, para servir de exemplo. Mas, sobretudo, por vingança. Muito disto é apenas pura vingança. […] não se pode sair da linha. JB: E a questão da legalidade da resistência? Para além do acto de revolta pontual de Snowden, temos de respeitar as leis que nos são impostas para mudar o sistema? NC: É uma espécie de hipótese nula: a menos que haja um argumento em contrário, obedecemos à lei. Se eu conduzir o carro para casa esta noite e me deparar com um sinal vermelho, eu páro. Mas, se vir alguém aos tiros sobre as pessoas no outro lado da rua, talvez não pare no sinal vermelho. Normalmente obedecemos à lei, a menos que haja razões para não o fazer. Há muitas leis que são inaceitáveis, que não 4

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deveriam existir. De facto, os maiores infractores da lei são, de longe, os mais poderosos. [...] Acho que o violento ataque a Snowden, desde que isto começou, as alegações dos poderosos de que iríamos persegui-lo até ao fim do mundo, de que o apanharíamos onde quer que ele estivesse, de que o castigaremos, mostra como, de facto, estão com medo. Pode ser paranóia. Por exemplo, se, ao mais alto nível, a Casa Branca o tivesse ignorado, poderia não ter tido o efeito que teve. É possível. A sua própria paranóia pode estar a alimentar o sistema, a sua própria morte, de certo modo, mas reflecte as atitudes. Quanto à dimensão do efeito que isto pode ter, não temos a certeza. Houve efeitos no Brasil, por exemplo: foi cancelada a visita presidencial, as relações não foram propriamente quebradas mas foram seguramente prejudicadas. Lembre-se de que muitas destas revelações de Snowden não são apenas sobre a vigilância das pessoas, são também acerca dos esforços feitos pelas empresas para comprometer os negócios noutros países, como espiar os negociadores e acordos energéticos de modo a garantir que as empresas americanas estejam a par, entre outras coisas. As grandes empresas de outros países não gostam disso. Tal como Merkel não gosta do facto de ter alguém a ler os seus e-mails. Mas as pessoas poderosas e as instituições poderosas estão a ser prejudicadas o suficiente para que houvesse reacção. O Congresso começou a preocupar-se quando se descobriu que os Comités do Senado responsáveis por isto estavam a ser espiados. Devo dizer que não há absolutamente nada de novo nisto. Se retrocedermos até à fundação das Nações Unidas, houve uma conferência em San Francisco em 1947 que estabeleceu as Nações Unidas, durante a qual o FBI esteve a importunar os escritórios das delegações estrangeiras para que os negociadores Americanos pudessem ter uma vantagem e conseguir o que queriam. Houve um enorme escândalo quando os russos fizeram a mesma coisa à embaixada americana, mas faz-se constantemente.


ESTREIAS CINEMA

SE AS MONTANHAS SE AFASTAM MOUNTAINS MAY DEPART

DE ZHANGKE JIA

COM ZHAO TAO, ZHANG YI, LIANG JING DONG

O novo filme de Jia Zhang-Ke começa como um conto contemporâneo, cuidando simultaneamente de forma estilizada e fisicamente inscrita numa realidade material as gigantescas mutações do seu país. Com efeito, tratar-se-á de um conto, mas de um conto tão desesperado como sentimental, onde o maior cineasta chinês reinventa a sua maneira de mostrar e de narrar, em total coerência com o que fizera anteriormente (sendo Xiao-wu, Plataforma, O Mundo, Still Life — Natureza Morta, China — Um Toque de Pecado os marcos mais importantes desse percurso) mas explorando novas tonalidades. [...]

ESTREIA 15 SETEMBRO

Duração: 2h 11min

O filme de Jia Zhang-ke é uma obra de grande profundidade e de uma grande inquietude. Interroga-se sobre o futuro dos valores essenciais que fundam as relações humanas, no contexto da transformação fulgurante da economia e dos modos de vida. Questiona ao mesmo tempo a contradição aberta, dinâmica, entre duas concepções do tempo.

Abordando a desestruturação-recomposição brutal de uma sociedade milenar que está todavia longe de desaparecer completamente e que envolve mil e quinhentos milhões de seres humanos (se nos limitarmos aos chineses, mas aquilo de que aqui O destino de Tao, há quinze anos, no presente, e se trata diz também respeito, de modo diverso, a dentro de quinze anos, o que será do seu marido, inúmeras outras partes do mundo), Jia Zhang-ke do filho de ambos, do pretendente rejeitado e revela um verdadeiro génio na capacidade de tratar de uma outra mulher chinesa com um percurso e partilhar estes desafios infinitamente massivos e totalmente diverso mas totalmente síncrono, será complexos através dos meios mais simples: um necessário atravessar estas três épocas para o saber. molho de chaves, um prato de massa, um cão de Será uma viagem feita a diferentes velocidades. companhia. A velocidades diversas como os comboios, TGV Se as Montanham se Afastam é um melodrama ou comboios lentos, que cruzam uma paisagem familiar, que mobiliza os recursos do drama tanto em rápida mutação como imutável, e uma clássico como nunca antes o realizador o havia sociedade estratificada em camadas de desigualdade feito. Isto traduz-se numa relação com a ficção e estonteante. [...] com o romance que constitui novidade na obra de Jia, uma relação que é particularmente visível Prémios e Festivais: na figura da actriz de todos os seus filmes desde Festival de Cannes — Selecção Oficial, Em Competição há quinze anos, Zhao Tao — de presença e beleza sensível e desconcertante nas três idades que lhe atribui o argumento, e que nos faz descobrir certos dotes de uma actriz até então não revelados. Muito emocionante (e, por vezes, muito divertido), este filme que interroga aquilo que se mantém e aquilo que se põe em movimento, para o melhor e para o pior, traduz também a manutenção da exigência do grande cineasta Jia Zhang-Ke e o seu constante movimento, como artista e como cidadão. Jean-Michel Frodon, Slate.fr / Medeia Magazine [trad. de Inês Viana]

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ESTREIAS CINEMA

TAXI DRIVER

EXCLU

ESPASIVO N ÇO

SAINT AMOUR

DE

MARTIN SCORSESE

ESTREIA 22 SETEMBRO

Duração: 1h 53min

IMAS

COM ROBERT DE NIRO, HARVEY KEITEL, JODIE FOSTER OU CYBILL SHEPHERD

O próprio protagonista, num dos papéis mais marcantes da filmografia de Robert de Niro, é um ex-militar regressado do Vietname e agora mentalmente instável, um homem alienado decidido a fazer valer os valores da justiça (nem que à sua maneira), sugerindo a ideia de um “vingador” niilista que, mesmo marcado pelo espaço e o tempo em que vive, pode transcender, no que o compele a agir, as marcas de época e geografia que o filme fixa nas imagens.

Um justiceiro nas ruas de Nova Iorque Quarenta anos depois de ter arrebatado a Palma de Ouro em Cannes, Taxi Driver, de Martin Scorsese, regressa em versão restaurada e remasterizada para nos recordar um dos maiores clássicos do cinema norte-americano dos anos 70. Numa edição recente da revista Sight and Sound, um texto de Jon Savage sobre os 40 anos do punk recordava Taxi Driver de Martin Scorsese lembrando como este era um filme contemporâneo de um tempo em que os Ramones (assim como outros dos primeiros vultos maiores da cultura punk) caminhavam por aquela mesma Nova Iorque, numa altura em que gravavam as canções do seu álbum de estreia que, com o título The Ramones, seria editado em 1976, o mesmo ano em que este filme arrebatava a Palma de Ouro em Cannes. Um dos maiores retratistas de Nova Iorque através da ficção, Martin Scorsese tinha já tomado a cidade como cenário em I Call First (filme de 1967 que acabaria depois conhecido como Who’s That Knocking at My Door ou em Os Cavaleiros do Asfalto (1973). É contudo em Taxi Driver que, com alguns planos de exteriores rodados nas ruas de Nova Iorque durante uma vaga de calor e em tempo de uma greve dos serviços de recolha do lixo, Scorsese define um olhar que, mesmo física e narrativamente ligado à cidade, na verdade pode ser também lido como um cenário-tipo capaz de traduzir o patamar de gigantismo e desumanização das grandes metrópoles ocidentais nos anos 70. 6

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O filme é centrado na sua figura, num tempo que se segue ao regresso à vida civil e a uma tentativa de enquadramento na sociedade, encontrando trabalho onde ele existe, segundo as regras a que está sujeito. Ao andar pelas ruas de noite, guiando um táxi, o quotidiano fá-lo um observador (não passivo) de situações que soma a outras que vive nas horas livres durante o dia. E entre o que descobre numa rede de prostituição e as figuras de uma campanha política nasce uma inquietude que, sob o seu quadro mental, acaba a gerar uma espiral de descontrolo e violência. Com argumento de Paul Schrader, uma direcção de fotografia de Mark Chapman que não esconde heranças da nouvelle vague, uma banda sonora que correspondeu à recta final do trabalho de Bernard Herrmann e um elenco onde figuram ainda nomes como os de Harvey Keitel, Jodie Foster ou Cybill Shepherd, Taxi Driver é, 40 anos depois, um título que frequentemente habita, e com toda a justiça, as listas de melhores filmes de todos os tempos. Nuno Galopim

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Palma de Ouro


ESTREIAS CINEMA

11 MINUTOS

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

11 MINUT

DE

JERZY SKOLIMOWSKI

ESTREIA 1 SET

Duração: 1h 21 min

COM RICHARD DORMER, AGATA BUZEK, ANDRZEJ CHYRA, DAWID OGRODNIK, BEATA TYSZKIEWICZ, DAVID L. PRICE, PIOTR GLOWACKI

11 minutos com Anna e outras histórias O que está por detrás deste número 11, título do novo filme do cineasta polaco Jerzy Skolimowski, o terceiro a marcar um regresso singular (provocador?), que começou com Quatro Noites com Anna, em 2008, continuou com Essential Killing (2010) e agora nos surpreende de novo, num registo entre um “nihilismo virtuoso” e um “desregramento surrealista”, um “caos controlado” com mão de mestre, em 11 Minutos? Ao telefone, de Varsóvia, o realizador esclarece-nos: “Tinha estas oito histórias, todas elas andavam à volta de dez, doze minutos. Mas o número 10 tem uma carga simbólica muito forte, os Dez Mandamentos, tudo isso. O mesmo acontece com o número 12, os doze apóstolos, 12 Angry Men1, por exemplo. Acabei por decidir-me pelo número 11, que por um lado se afasta dessa carga simbólica dos outros dois, e é um número de que gosto, pelo lado estético, os algarismos 1 + 1; parece-me muito bonito. Por isso decidi também colocar o número 11 em vários sítios: é o número do andar e do quarto do hotel onde o realizador americano faz uma audição a uma actriz, etc.” Em complemento a 11 Minutos será exibida a curta-metragem Marasmo, de Gonçalo Loureiro, Menção Honrosa do Prémio para a Melhor Curta-Metragem — Escolas de Cinema Europeias, no Lisbon & Estoril Film Festival. 1 Skolimovski refere-se ao filme de Sidney

Lumet de 1957 (em Portugal, Doze Homens em Fúria)

Neste filme cheio de dispositivos tecnológicos, a lembrarem-nos que as nossas vidas são hoje permanentemente mediadas por smartphones, webcameras e outros, que gravam (vigiam? espiam?) tudo e todos, as diferentes personagens que aqui se cruzam parecem ter sempre algo a esconder umas das outras. Skolimovski tem perfeita consciência de que “hoje em dia somos vigiados em todo o lado. Mas as pessoas têm, naturalmente, a necessidade de um espaço próprio, dos seus pensamentos, dos seus segredos.” E nós, espectadores espantados, surpreendemo-nos com situações e comportamentos que vemos surgir à nossa frente, no ecrã, com os segredos destas personagens à beira do precipício que já nada poderá evitar. Mas em todos estes seus “azares”, há afinal algo que acaba por nos fazer sorrir. “Mesmo nas situações mais sombrias, acabo por introduzir momentos mais leves e divertidos, como acontece, por exemplo, com o vendedor de cachorros quentes”, diz o realizador. Fundamental para nos envolver nesta “história de histórias” é a música, de novo composta por Pawel Mykietyn, que já havia trabalhado no filme anterior de JS, Essencial Killing. “Correu muito bem e Pawel acabaria até por receber um prémio. Temos ideias coincidentes em relação à música para os filmes e entendemo-nos perfeitamente. Por isso, voltei a convidá-lo para trabalharmos juntos. E, de facto, o filme deve-lhe muito.” Já agora, sabem qual é o recorde do maior cachorro quente no mundo? Prémios e Festivais: Festival de Veneza — Selecção Oficial, Competição Lisbon & Estoril Film Festival — Prémio Melhor Filme “Jaeger-LeCoutre”

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ESTREIAS CINEMA

FOGO NO MAR

EXCLU

CINEMSIVO AS M

FUOCOAMMARE

DE GIANFRANCO ROSI ESTREIA 6 OUTUBRO

EDEIA

Duração: 1h 54min

DOCUMENT]ARIO COM SAMUELE PUCILLO, MATTIAS CUCINA, SAMUELE CARUANA, PIETRO BARTOLO, GIUSEPPE FRAGAPANE

A rotina da vida ao lado da vala comum Fuocoammare, ou Fogo no Mar, é simultaneamente uma melosa canção siciliana dedicada num programa de discos pedidos em Lampedusa, onde se desenrola a acção deste documentário de Gianfranco Rosi a que dá o título, e uma recordação de Maria sobre essa guerra mundial que lhe atormenta a memória. Como os espectadores descobrirão, a vida prossegue placidamente em Lampedusa enquanto milhares de refugiados são resgatados das águas do Mediterrâneo, tantas vezes enganadoras e mais vezes ameaçadoras (“vamos ter vento de 30 nós”, diz o pai de Samuele). Desses refugiados sabemos pouco e nem vemos as condições em que vivem, não sabemos para onde vão, não conhecemos as suas histórias em detalhe, só o eco de uma récita da travessia pelo deserto até à Líbia, pelas mãos dos traficantes, presos e roubados, ou fugindo do ISIS, da morte e da miséria. Só sabemos como chegam. E vemos, como se fosse do outro lado do mundo, a terra curta, mas tão deserta, onde os desembarcam. Lampedusa na noite de um miúdo de 12 anos tem árvores sonolentas, pássaros perdidos, esconderijos infantis, pedras nuas. Os pescadores prosseguem a faina, o mergulhador é a solidão a caminho da sua gruta, a mulher puxa os lençóis e arruma a cama, só o médico é chamado a ver os refugiados que chegam. Vê pela máquina, com a ecografia, vê os mortos, inspeciona as mãos dos que chegam, faz uma triagem entre desesperos. Ele sabe que tem que ajudar, que os desembarcados fazem parte da sua vida. Mas são outra vida.

Prémios e Festivais: Festival de Berlim — Urso de Ouro, Melhor Filme; Prémio da Amnistia Internacional

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O filme é um retrato de retratos paralelos e foi criticado por isso. Talvez na sua contenção Rosi queira deixar-nos o incómodo de estabelecermos o paralelo entre as nossas vidas, dos que vemos o Mediterrâneo ao longe e prosseguimos a nossa vida mais confortável, e o sofrimento desses que só viajam porque nada têm a perder e de quem até os nomes ignoramos. Os habitantes de Lampedusa, como se fossem o lado de cá, têm nomes, os que chegam do lado de lá não têm. Vencedor do Festival de Berlim de 2016, este é um filme do nosso tempo. Porque é simples e conta histórias simples, pode ser visto como uma metáfora. Ou somente como uma tristeza e portanto como uma indignação. Francisco Louçã

Entrevista a Gianfranco Rosi Medeia Magazine: Como e quando é que decidiu fazer este filme sobre um jovem rapaz na ilha de Lampedusa, e como é que isso se ligou com a “crise dos refugiados” que atravessam o mar Mediterrâneo e têm chegado à ilha nos últimos tempos? Gianfranco Rosi: No início, eu queria fazer uma curta-metragem de dez minutos. Mas, na minha primeira viagem à ilha, apanhei uma bronquite aguda que me levou ao hospital onde conheci o Dr. Pietro Bartolo. Começámos a falar e ele disse-me que nos últimos vinte anos tinha examinado


ESTREIAS CINEMA não apenas os habitantes da ilha mas também os migrantes. Depois de uma longa conversa, deu-me um cartão de memória cheio de fotografias do estado dos migrantes encontrados pelos guardas costeiros. Ao ver aquelas fotografias apercebi-me rapidamente de que seria impossível condensar tudo: o filme precisava de ter mais de dez minutos de duração. Eu queria mesmo contar a história desta crise através dos olhos dos habitantes da ilha. Então mudei-me para Lampedusa no início de 2015 e comecei a filmar. Em relação ao rapaz, o Samuele cativou-me imediatamente, mas não tinha a certeza da dimensão ou da importância do papel que ele teria no filme. Mas depois de o ver uma vez a brincar com pássaros, soube que tinha de incluir no filme histórias de miúdos na ilha. MM: Os seus projectos mudam muito durante a construção do filme? GR: No meu caso, a câmara digital levou à improvisação e reforçou a minha confiança nos meus próprios instintos durante a rodagem. Em Fuocoammare eu filmava de acordo com a minha intuição: deixava as coisas acontecerem naturalmente. Num dia filmava num navio militar e no outro ia para o centro de acolhimento porque tinha conhecido pessoas que me levavam lá. Nunca disse “hoje vamos fazer isto”. Apenas deixava a história seguir o seu curso, usando situações do quotidiano, como o encontro do médico com o Samuele, e filmando-as: é o tipo de coisa que nenhum actor poderia representar. No entanto, usar uma câmara digital leva a que se filme mais e, consequentemente, a que se monte mais. Na minha opinião, toda essa fase de montagem deveria ser realizada durante a rodagem. Para mim é necessário que cada fotograma, cada plano, conte uma história.

Talvez tenha reparado que há muito poucos cortes dentro de cada cena em todos os meus filmes. Cada uma delas tem um início e um fim, é um itinerário preciso. O mais difícil é ter uma situação à nossa frente e perceber que esse momento tem de ser uma compressão de vários momentos. MM: Com excepção das notícias e do médico que cuida tanto dos locais, incluindo o jovem Samuele, como dos refugiados, parece não haver muito contacto entre uns e outros… Para perceber bem isso, creio que é importante saber que nos últimos anos as condições de desembarque dos refugiados sofreram grandes mudanças. De facto, há cinco anos, os barcos que transportavam migrantes desembarcavam todos os dias numa parte diferente de Lampedusa, o que facilitava o contacto entre eles e os habitantes da ilha. Mas desde que a operação “Mare Nostrum” foi posta em prática, no seguimento da tragédia de 13 de Outubro de 2013, a fronteira foi deslocada para um local mais distante da ilha, e os barcos que transportam os migrantes são agora interceptados no mar pelos navios militares. Assim que o barco pára, os militares transferem-nos para o seu navio e levam-nos até ao porto, onde se encontra um autocarro que os conduz até a um centro. Lá, são identificados e, depois de alguns dias, são transportados para outras instalações na Sicília ou noutra parte de Itália. Como vê, não há nenhuma forma de contacto entre ambos e, à excepção do médico, os migrantes não alteram o quotidiano dos habitantes da ilha. Isto é uma esquematização daquilo que está a acontecer na Europa: as pessoas têm uma imagem negativa de todos os migrantes que tentam forçar a entrada na Europa, mas eles são invisíveis, como sombras que ninguém vê. [trad. de Inês Viana]

SETEMBRO | OUTUBRO 2016

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ESTREIAS CINEMA

CAFÉ SOCIETY CAFÉ SOCIETY

DE WOODY ALLEN

ESTREIA 20 OUTUBRO

Duração: 1h 36min

COM JESSE EISENBERG, KRISTEN STEWART, STEVE CARELL, BLAKE LIVELY, PARKER POSEY

Woody Allen viaja ao brilho de Hollywood na década de 1930 Na última década Woody Allen tem trocado frequentemente a sua eterna Nova Iorque por várias cidades, tanto europeias como americanas, realizando alguns filmes que funcionam como cartão de visita da cidade em que se passam. E embora tenha havido esta diversidade geográfica na sua obra, Allen já não filmava a cidade de Los Angeles desde Annie Hall, em 1977. Nessa altura, quando Alvy Singer (Woody Allen), chega à cidade, vê-se fora do seu elemento cultural e destila comentários jocosos sobre a vida e cultura da cidade californiana. Café Society partilha alguns destes traços, nomeadamente na personagem de Bobby Dorfman ( Jesse Eisenberg). Quando este, um nova iorquino do Bronx que se mudou para L.A. para trabalhar com o tio na indústria do cinema, liga para a família, rapidamente faz uma comparação entre ambas as cidades. Nova Iorque torna-se gradualmente na Meca idealizada para onde sonha regressar, a cidade a que o seu coração pertence. No entanto, ao contrário de Alvy Singer em Annie Hall, Bobby Dorfman deixa-se encantar um pouco por Los Angeles. Este fascínio prende-se com o facto de esta não ser a L.A. de hoje, muito menos a de 1977. Esta é uma cidade banhada pela Era Dourada de Hollywood, iluminada pelo brilho do sistema de estúdios e das suas grandes estrelas.

De certa forma, é irónico que este, o primeiro filme de Woody Allen filmado em digital, retrate exactamente as imagens de outra era do cinema. Para capturar esse brilho, o realizador trabalhou pela primeira vez com Vittorio Storaro, director de fotografia de filmes como Apocalypse Now ou O Último Imperador. A fotografia de Storaro leva o espectador numa viagem ao passado e cada plano de Café Society resplandece com um classicismo luminoso. Café Society partilha ainda com Annie Hall o romance com rasgos cómicos, mas de tom agridoce, que analisa a passagem do tempo e aquilo que com ela ganhamos e perdemos. O romance central, entre Bobby Dorfman e Vonnie, a secretária (e amante secreta) do seu tio, é enriquecido pela cumplicidade e química entre Jesse Eisenberg e Kristen Stewart, para quem este é já o terceiro filme em que fazem de par romântico. Ambos brilham individualmente, e juntos constroem uma relação orgânica e natural, que nunca se afoga nos diálogos rápidos e complexos de Allen. Visualmente encantador, com boas interpretações e uma interessante reflexão sobre o efeito do tempo na nossa identidade, Café Society é Woody Allen a conseguir surpreender ainda que se mantenha em território familiar. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Filme de abertura

10 SETEMBRO | OUTUBRO 2016


ESTREIAS CINEMA

JULIETA JULIETA

DE

ESTREIA 22 SETEMBRO

PEDRO ALMODÓVAR

Dur: 1h 39 min

COM ADRIANA UGARTE, EMMA SUARÉZ, ROSSY DE PALMA, INMA

CUESTA, MICHELLE JENNER, NATHALIE POZA, PILAR CASTRO

Pedro Almodóvar regressa ao universo feminino em Julieta, um melodrama percorrido por um sopro de tragédia Originalmente intitulado Silêncio, segundo um dos três contos (Acaso/Chance, Em breve/Soon e Silêncio/ Silence) do livro Fugas/Runaway (2004), da escritora canadiana Alice Munro, esta vigésima longametragem de Almodóvar era para ter sido o seu primeiro filme em inglês, protagonizado por Meryl Streep, mas foi sobretudo a própria natureza da história e as suas ressonâncias que o motivaram a ambientá-lo em Espanha e a adaptar de forma muito livre e pessoal os contos de Munro. Desde Volver (2006) que um filme de Almodóvar não tinha um protagonismo feminino tão vincado, voltando a centrar-se numa relação mãe-filha, só que aqui esta é uma relação truncada: um encontro fortuito na rua com uma antiga amiga da filha, de quem nada sabe há 12 anos, reabre em Julieta essa ferida antiga de mãe abandonada, sem explicações. Sublinha Almodóvar: “fiz muitos filmes sobre mães, mas esta é mais vulnerável do que as outras, que eram mulheres poderosas e com capacidade de luta sobre-humana. A dor não é um tema em Julieta, mas uma das personagens e talvez a personagem mais importante do filme”.

Estruturado em flashback como uma longa carta à filha, desenhando um arco temporal de três décadas e com duas actrizes interpretando a personagem-título — Adriana Ugarte é uma Julieta jovem e radiante, personificação do espírito da movida madrilena que Almodóvar tão bem captou nos filmes dos anos 80 e Emma Suárez uma Julieta madura, silenciosa e dorida, sendo que a transição de uma para a outra é um verdadeiro coup de cinéma — Julieta constrói uma narrativa complexa, feita de silêncios, ecos, referências, símbolos, de close-ups e de cores fortes, as cores de Almodóvar (o azul vivo para Ugarte, o vermelho-sangue para Suárez), que aqui gritam e iluminam o que os sentimentos contidos calam e encobrem (“Precisava da cor. Julieta é muito sombrio, muito duro. Sem a intensidade e luminosidade da cor para equilibrar, poderia ficar insuportável.”). Esta contenção, desejada e auto-imposta (regra de ouro em Julieta: nada de humor e nada de lágrimas), nova em Almodóvar, e a ausência de resolução emocional, de redenção final, fazem de Julieta um retrato grave e pungente da dor humana, da solidão e da culpa. Fátima Castro Silva

Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Selecção Oficial em Competição International Cinephile Society Awards, Prémio Melhor Realizador

SETEMBRO | OUTUBRO 2016 11


ESTREIAS CINEMA

THE BEATLES: EIGHT DAYS A WEEK THE BEATLES: EIGHT DAYS A WEEK

DE RON HOWARD ESTREIA 15 SETEMBRO DOCUMENTÁRIO COM

Duração: 1h 40min

PAUL MCCARTNEY, RINGO STARR, GEORGE HARRISON, JOHN LENNON, YOKO ONO

É grande a expectativa à volta do documentário de Ron Howard sobre os Beatles. Luís Pinheiro de Almeida, co-autor do livro Beatles em Portugal, tenta adivinhar-lhe algumas das imagens… Não é preciso ser bruxo ou possuir bola de cristal para adivinhar os 100 minutos de Eight Days A Week — The Touring Years, o novo documentário sobre os Beatles do aclamado realizador (Apollo 13, 1995; Código Da Vinci, 2006) e fã assumido do grupo de Liverpool, Ron Howard, cidadão democrata norte-americano de 62 anos. Paulo Bastos, guitarrista da banda de versões dos Beatles, Discovers, e fã empedernido de Ron Howard, lembra até a carreira do actor na série televisiva Happy Days, com música dos anos 50, além, claro, de American Graffiti, como nota Teresa Lage, co-autora de Beatles em Portugal. Ambos se manifestam ansiosos por mais esta prenda que os Beatles normalmente dedicam aos fãs pelo Natal, desde sempre. Eight Days A Week — The Touring Years é um documento autêntico dos anos loucos dos Beatles e das digressões ao vivo que fizeram por todo o Mundo entre 1962 e 1966, tão autêntico que teve a

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participação dos seus protagonistas ou representantes legais. Por aqui se percebe a razão pela qual os Beatles, em 1966, desistiram do contacto directo com os fãs e preferiram concentrar-se nos estúdios, na manipulação dos sons de que resultaram obras geniais como Revolver, Sgt Pepper, The Beatles e AbbeyRoad. “Estávamos saturados dos concertos. Ninguém nos ouvia, nem nós próprios. Queríamos progredir e não conseguíamos”, explicaram, em várias circunstâncias. Basta “ouvir” o concerto do Shea Stadium, em Nova Iorque, no dia 15 de Outubro de 1965, tido como o primeiro concerto de rock de sempre em estádio (perto de 60 mil pessoas), pièce de resistance deste documentário, filmado por 14 câmaras da equipa de Ed Sullivan Show, onde os Beatles conquistaram a América em 1964 com 70 milhões de telespectadores, então um recorde.

Deste concerto — ao que se sabe — são usados 30 minutos. Dos restantes 70 pouco ou nada se sabe, embora já tenha sido noticiado que há imagens da Cavern, em Liverpool, “onde tudo começou”, e do histórico concerto de 1963, em Manchester, “Beatles Come To Town”, a cores. Admite-se que haja muitas outras que ninguém terá visto. Há uns anos, a Apple, dos Beatles, pediu em todo o Mundo imagens de digressões, concertos, etc. Não é líquido, porém, que Ron Howard as tivesse aproveitado. Como quer que seja, não há muita publicação oficial de imagens destes devaneios à volta das apresentações ao vivo dos Beatles, pelo que não será muito difícil acreditar no sucesso da película, mesmo 50 anos depois de os jovens de Liverpool terem abandonado voluntariamente os palcos. Luís Pinheiro de Almeida


ESTREIAS CINEMA

VALLEY OF LOVE VALLEY OF LOVE

DE GUILLAUME

NICLOUX

Dur: 1h 32 min

BREVEMENTE

COM ISABELLE HUPPERT, GÉRARD DEPARDIEU, DAN WARNER

Huppert e Depardieu emprestam a sua persona cinematográfica às personagens que interpretam em Valley of Love, uma singular exploração do luto e do perdão No filme anterior, O Rapto de Michel Houellebecq, Guillaume Nicloux ficcionava a partir do misterioso desaparecimento, real, de Houellebecq, com o escritor representando-se a si próprio. Em Valley of Love, Huppert e Depardieu (reunidos 40 anos após Les Valseuses de Blier e 35 depois de Loulou de Pialat) são Isabelle e Gérard, um casal de actores famosos, separados há muito, a braços com a morte do filho (o filho que as personagens de Loulou poderiam ter tido), que, ainda muito jovens, abandonaram. No Vale da Morte, na Califórnia, para onde são convocados por uma carta deste, encetam uma espécie de peregrinação, que os elevará para lá da culpa e do remorso. Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Selecção Oficial, Competição Cesars — Melhor Fotografia

MILAGRE NO RIO HUDSON SULLY

DE CLINT EASTWOOD

Nessa paisagem-limite, plena de ressonâncias, inclusive cinéfilas – Stroheim (Greed), Antonioni (Zabriskie Point) ou Van Sant (Gerry) fizeram dela uma paisagem de perdição, literal e simbólica – Nicloux encena um reencontro e uma redenção, como se, suspendendo a descrença, o Death Valley fosse um revelador, uma interface com um mundo onírico e espectral, que é afinal também o lugar do cinema. O sinal ou manifestação por que esperam Isabelle e Gérard é do cinema que vem (desse fora de campo) e é pelo cinema que lhes é revelado. Huppert e Depardieu (ele, no melhor papel em anos, com ecos pessoais, já que perdeu um filho) talvez nunca tenham estado assim tão despojados, frágeis e comoventes. Fátima Castro Silva

ESTREIA 8 SET

Dur: 1h 36min

COM TOM HANKS, ANNA GUNN, LAURA LINNEY, AARON ECKHART

A primeira colaboração entre Clint Eastwood e Tom Hanks dramatiza a história de Chelsey “Sully” Sullenberg, responsável pela aterragem de emergência no rio Hudson, e pelo salvamento de mais de 150 vidas No dia 15 de Janeiro de 2009, o voo 1549 da US Airways tornou-se mundialmente conhecido graças ao acontecimento apelidado como “milagre no rio Hudson”, quando o comandante Chelsey “Sully” Sullenberg realizou com sucesso uma aterragem de emergência nas águas do rio Husdon, em Nova Iorque, salvando as 155 pessoas a bordo e evitando um desastre de aviação. Enquanto os media e a opinião pública retratavam Sully como um herói, nos bastidores decorria uma investigação que podia destruir a reputação e carreira do comandante, aspectos que o filme de Clint Eastwood explora. Para se preparar para este papel, Tom Hanks passou muito tempo com o comandante Sully, tentando

apreender não só as suas expressões físicas, mas também o seu discurso. Mas não é só este aspecto que se destaca no biopic: o cenário do acidente foi recriado com um avião Airbus A320, desmontado e transportado para uma piscina no estúdio; partes do filme foram rodadas no local da aterragem, utilizando os mesmos barcos que foram utilizados no resgate, e com a participação de várias pessoas que estavam presentes. Milagre no Rio Hudson baseia-se no livro Highest Duty: My Search for What Really Matters, de Chelsey Sullenberg, no qual o capitão descreve a forma como a sua vida foi escrutinada após o acidente, e como aquela investigação o afectou. Renata Curado

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ESTREIAS CINEMA

UMA DIVA FORA DE TOM

IRMÃS AMADAS DIE GELIEBTEN SCHWESTERN

ESTREIA 1 SET

FLORENCE FOSTER JENKINS

DE STEPHEN FREARS

Meryl Streep brilha como a pior cantora de ópera de todos os tempos, num filme de Stephen Frears

Florence Foster Jenkins foi uma influente dama da sociedade nova iorquina da primeira metade do século XX e mecenas das artes, que se convenceu ser uma talentosa soprano, embora tivesse muito pouca noção de ritmo e afinação. Deu vários concertos privados, atrozes, nos quais cantava fora de tom, e foi despertando a curiosidade do público em geral, até esgotar o Carnegie Hall no seu único (e desastroso) concerto público. Esta curiosa figura poderia ter sido ficcionada como uma personagem trágica, uma socialite vaidosa e iludida ou o produto de uma sociedade cobarde e fechada sobre si mesma. Mas a adaptação de Stephen Frears torna Florence numa figura cativante que consegue abanar a alta-sociedade de Nova Iorque da década de 40. Fugindo ao registo da sátira irónica do privilégio de classes e da subserviência burguesa, o realizador britânico cria empatia com o público fazendo um retrato simpático e comovente de Florence e do seu marido, um actor falhado e complacente com as ambições operáticas da mulher, interpretado irreprensivelmente por Hugh Grant. A empatia e a compaixão que sentimos por Jenkins deve-se também, em grande parte, ao trabalho de Meryl Streep. Nos últimos anos, a actriz tem vindo a interpretar uma série de personagens históricas, como Emmeline Pankhurst, em As Sufragistas, ou Margaret Thatcher, em A Dama de Ferro. Mas Florence relembra, até certo ponto, a sua encantadora interpretação da chef Julia Child, em Julie & Julia. Ambas dotadas de determinação, coragem e o apoio incondicional dos seus companheiros, lutaram pelo seu sonho. A Jenkins apenas faltou o talento. 14 SETEMBRO | OUTUBRO 2016

Duração: 2h 18min

ESTREIA 6 OUT

COM HANNAH HERZSPRUNG, FLORIAN STETTER, HENRIETTE CONFURIUS

Duração: 1h 51min

COM MERYL STREEP, HUGH GRANT, SIMON HELBERG, REBECCA FERGUSON

Diana Cipriano

DE DOMINIK GRAF

O poeta e filósofo Friedrich Schiller no centro uma história de amor pouco convencional Após uma década desde o seu último filme, o realizador alemão Dominik Graf regressa ao grande ecrã com um drama histórico focado num romance entre o filósofo e escritor Friedrich Schiller e as irmãs Charlotte von Lengefeld, que se tornaria sua esposa, e Caroline von Beulwitz, que viria a ser a sua biógrafa. No filme, o escritor envolve-se com as duas irmãs, e o romance a três que protagonizam é a força que conduz a acção e que Graf usa como janela que mostra o lento desmoronar da sociedade burguesa europeia, narrando os esforços de Schiller e das irmãs Lengefeld para manter o romance que nasceu durante um Verão que passaram juntos perto de Weimar, o eventual centro intelectual de uma corrente estética e cultural ainda não realizada. O desejo partilhado pelos três por uma forma de felicidade diferente das normas sociais estabelecidas é o reflexo perfeito de uma era de conflito em que o velho mundo da senhoria feudal subsiste ao mesmo tempo que o sonho de um estado federal estava cada vez mais perto de se tornar uma realidade. Um momento de transição que condensa possibilidades infinitas. Os três tentam manter esta relação, mesmo tendo de abrir espaços para a conciliar com as obrigações e convenções sociais e, embora enfrentem momentos de afastamento, conseguem honrar o compromisso que os une. Irmãs Amadas tem um ritmo ofegante, conseguindo ao mesmo tempo respeitar a cadência temporal das personagens, interpretadas formidavelmente pelos três actores, em especial Hannah Herzsprung e Henriette Confurius, que brilham de forma tão diferente quanto as personalidades das irmãs que interpretam. Diana Cipriano

Prémios e Festivais: Festival de Berlim — Seleccção Oficial, Competição Associação de Críticos Alemães — Melhor Filme


ESTREIAS CINEMA

A CASA DA SENHORA PEREGRINE PARA CRIANÇAS PECULIARES DE TIM

MISS PEREGRINE'S HOME FOR PECULIAR CHILDREN

BURTON

ESTREIA 29 SET

COM EVA GREEN, ELLA PURNELL, SAMUEL L. JACKSON, RUPERT EVERETT

Quando Jake descobre pistas para um mistério que se estende para diferentes mundos e tempos, cruza-se com um refúgio secreto conhecido como a Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares. Mas os segredos e o perigo aumentam à medida que vai conhecendo os seus residentes — um grupo de crianças com aptidões especiais, protegidas por poderes mágicos e que são, inevitavelmente, perseguidas por poderosas e ensombradas criaturas. Jake tem de perceber o que é real, em quem pode confiar e, acima de tudo, descobrir quem ele realmente é. Do imaginário misterioso e sedutor de Tim Burton, baseado no romance homónimo de Ramson Riggs, esta é uma inesquecível experiência cinematográfica. Adaptado ao grande ecrã por Jane Goldman, o universo e as personagens de Riggs parecem ter sido ressuscitados no filme, com a assinatura visualmente estilizada de Burton.

Num cenário onde estas crianças são conhecidas como “Peculiares” devido às suas aptidões que transcendem a normalidade, esta poderia também ser uma espécie de versão sombria da Mary Poppins, que governa este albergue de pequenos super-poderes. “Crianças estranhas: é algo com o qual sempre lidei e que me interessa”, diz Burton, um realizador que tende a contar histórias sobre aqueles que vivem nas orlas da sociedade devido às suas características singulares. Sem fugir à peculiar sensibilidade de Burton, o filme balança entre a escuridão e a leveza, numa versão cinemática e reavivada da obra escrita de Ramson Riggs, que afirma: “Não poderia ter tido mais sorte com esta adaptação”. Filipa Pinto

CAPITÃO FANTÁSTICO CAPTAIN FANTASTIC

DE MATT ROSS ESTREIA 15 SET

Dur: 1h 58min

COM VIGGO MORTENSEN, SAMANTHA ISLER, KATHRYN HAHN, GEORGE MACKAY

Realizador, argumentista e actor (recentemente integrou o elenco da série Silicon Valley do canal HBO), Matt Ross assina a sua segunda longametragem, Capitão Fantástico, vencedora de vários prémios no circuito dos festivais, incluindo o prémio de Melhor Realização na secção Un Certain Regard em Cannes. Viggo Mortensen (Ben) vive sozinho com os seis filhos numa floresta do Noroeste Pacífico, após o internamento da mãe das crianças. O exemplar isolamento da família, privada de bens materiais e das tendências consumistas da sociedade moderna, alia-se a um rigoroso regime de disciplina e autosuficiência. Os esforços do pai, líder incansável do clã, para dar às crianças uma educação completa, fundada no diálogo, na aprendizagem de línguas e na leitura de clássicos da literatura, da história e da filosofia, sem esquecer a prática de exercício físico e a relação com a natureza, sugerem que o título do filme, evocativo de uma história de super-heróis, poderá afinal não estar muito longe da verdade.

A necessidade de uma deslocação súbita à cidade e o encontro com o resto da família vêm, no entanto, questionar os métodos pouco ortodoxos de Ben. Nas palavras do realizador: “Ben desistiu do mundo exterior e de quaisquer ambições pessoais que este lhe reservasse para dedicar a sua vida a ser o melhor pai que ele crê poder ser. A questão é: é ele o melhor pai do mundo ou o pior? O que ele está a fazer é uma loucura ou loucamente grandioso?” Inês Viana

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Secção Un Certain Regard: Prémio para Melhor Realização Festival de Karlovy Vary – Prémio do Público

SETEMBRO | OUTUBRO 2016 15


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