Cidadania ambiental: das diversidades culturais à identidade planetária

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CIDADANIA AMBIENTAL: DAS DIVERSIDADES CULTURAIS À IDENTIDADE PLANETÁRIA Autora: SILVA, Cláudia do Socorro Gomes da 1 – UA e UFPA – claudia.gomes@ua.pt Orientador: MEIRELES-COELHO, Carlos2 – UA – meireles@ua.pt

Introdução O presente trabalho faz parte do primeiro eixo metodológico do projecto de tese de doutorado “Cidadania Ambiental: das diversidades culturais à identidade planetária” em curso, na Universidade de Aveiro (Portugal). O objectivo central deste projeto consiste em analisar concepções e práticas de professores e alunos sobre educação ambiental (EA) – Portugal e Brasil – e os reflexos das identidades culturais na construção da cidadania ambiental, a fim de elaborar propostas educativas que auxiliem na superação da pseudo dicotomia entre a natureza, o homem e a cultura. As questões – diversidade cultural e educação ambiental – são demandadas no contexto escolar e comunitário em vários países do mundo e Portugal e Brasil não ficam de fora. Por um lado, tanto em Portugal quanto no Brasil existem escolas nas quais convivem crianças oriundas de culturas diversas, seja por serem de outros países, seja por apresentarem uma identidade cultural específica (indígenas, ciganos, judeus e outros). Por outro lado, as situações de riscos e incertezas

ambientais trazem à consciência social de que se trata não apenas de problemas imediatos, nacionais, regionais e tribais, mas de uma crise global que atinge a todos sem privilégios e afeta a relação entre os seres humanos e o meio ambiente em âmbito planetário. Neste texto, iremos apresentar os resultados oriundos da pesquisa bibliográfica, encetado desde março de 2007, cujo objetivo é fazer algumas reflexões sobre o vínculo entre as

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Professora da Universidade Federal do Pará - UFPA - (Brasil) e doutoranda do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro – UA - (Portugal).

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Professor da Universidade de Aveiro – UA - (Portugal).


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diversidades culturais e a natureza. Este vínculo se baseia na idéia da construção da cidadania ambiental através de uma identidade planetária, ou seja, do pertencimento da humanidade a um mesmo mundo interdependente e “considérée comme première et ultime Patrie” (Morin, 2000:81). Nossas culturas são testemunhas da natureza A sociedade ocidental, ao longo dos tempos, tem expressado duas visões sobre a natureza. Por um lado, concebe a natureza de forma pejorativa, retirando elementos da natureza para demonstrar (pré) conceitos sociais, como “veado” para o homossexual, “piranha” para a prostituta, “cavalo” para o grosseiro, entre outros, e também a terminologia “selvagem” que foi construída a partir da palavra “selva” para o não civilizado - o mal-educado. Por outro, a natureza é tida como algo intocável, harmonioso e adorável, idéia de superioridade em relação ao homem que deverá estar a serviço da mesma. Esse argumento denota a natureza como algo que não faz parte das construções humanas, ou seja, aquilo que se opõe à cultura. (Gonçalves, 1993). Diversos autores têm contribuído com discussões sobre cultura, educação e natureza, que superam as duas visões simplificadas supra-citadas, entre os quais destacamos Sacristán (2003), Peres (2000), Leff (2006) e Sauvé e Brunelle (2007), e outros. Em seus estudos esses autores ressaltam reflexões sobre o conceito de cultura e suas variantes, quais sejam: identidades, diversidades, pluri, multi e interculturalidade, objetivando explicar, compreender e analisar a epistemologia das práticas culturais e articulá-las à dinamicidade das redes históricas, educativas e sócio-ambientais, entre outras. Sauvé e Brunelle (2007) partem da concepção de que nossas culturas são manifestações da natureza e destacam que “elles se forment à partir des caractéristiques du milieu de vie des populations, comme en témoignent les vêtements, la nourriture, l´habitat, les chansons, etc.”. Como afirmam esses autores, a natureza está intrinsecamente relacionada com o homem e, consequentemente, com sua cultura identitária – que possuem

peculiaridades e são

testemunhadas na língua, na religião, nas relações que estabelecem com a natureza, consigo e com os outros; nas produções artesanais e artísticas (dança, teatro, música, artes plásticas), e outras formas de expressões que na maioria das vezes, sob olhar de outros,


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podem parecer estranhas, quando partem de uma visão etnocêntrica. A realidade cultural, portanto, é compreendida através de identidades construídas por conhecimentos e saberes dinâmicos, específicos e diferenciados. Aproximando-se também da discussão entre cultura e natureza, Leff (2006:418) afirma que atualmente há o que se chama de cultura ecológica que “…orienta um conjunto de comportamentos individuais e coletivos para os objetivos da sustentabilidade”. Sustentabilidade concebida como a forma de conservar e preservar a vida – humana, cultural, histórica – bem como do uso durable dos recursos naturais provenientes da natureza bio-física. As populações amazônicas (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, garimpeiros, seringueiros, pescadores, caboclos, entre outros) têm passado por processos de apropriação e espoliação de seus recursos naturais e saberes tradicionais, e, ao mesmo tempo, têm defendido a sustentabilidade ecológica através de práticas (agricultura familiar, agroecologia, extrativismo mineral e vegetal, pesca artesanal e outros), que lhes colocam na condição de salvaguardas de pequenas faixas da natureza. Vale citar estudos realizados com os índios Tembés3, que apesar de viverem no limite das necessidades básicas de subsistência, se baseiam no viver cooperativo, onde os produtos obtidos pelo trabalho de alguns são partilhados entre todos (crianças, velhos, adolescentes, enfermos). Os povos indígenas possuem seus próprios modelos de sustentabilidade e apoiam-se “…na forma coletiva de subsistência econômica, baseada na solidariedade…” (Sauvé, 1996). Não pretendemos fazer apologia dos modelos de vida das populações tradicionais e mostrá-las a partir de uma visão romântica ou afirmar que são melhores ou piores, mas “...abrir-se para novas maneiras de olhar e entender o mundo, os outros, a si próprio” (Silva e Grupioni, 1995: 19), com respeito e tolerância diante das diversidades culturais. Essas reflexões remetem às críticas de Marcuse (1898-1979) ao acelerado aumento do desejo pelo consumo globalizado que perdeu de vista a noção do que é necessário para viver uma “boa vida”. Nem todos os seres humanos necessitam de um kit tecnológico

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Sobre os estudos ver o trabalho de Silva, Dias e Paiva (2007). Identidades e cidadanias: trocas culturais e sócio-ambientais com os índios Tembés de Santa Maria do Pará/Brasil.


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(computador, celular, micro-ondas, jogos electrônicos e outros) para ter qualidade de vida com felicidade, pois há diferenças nos valores culturais dos povos expressos nas suas formas de viver e, por conseguinte, criar um modelo de desejo globalizado é um equívoco. Todos também carecem de garantir suas necessidades básicas (alimentação, água potável, saúde, educação, ambiente ecologicamente saudável e outras), pois é intolerável permitir, por exemplo, como cita o relatório do Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que “…Quase duas em cada três pessoas sem acesso à água potável sobrevivem com menos de 2 dólares por dia, com uma em cada três a viver com menos de 1 dólar por dia. Mais de 660 milhões de pessoas sem saneamento vivem com 2 dólares por dia e mais de 385 milhões com menos de 1 dólar por dia” (2006). Os significativos desequilíbrios entre países pobres e ricos ao serem difundidos pelos meios comunicativos “…comprazem-se, muitas vezes, em dar a conhecer aspectos de hábitos e consumo dos mais favorecidos” e, concomitantemente, apresentam a miséria e a violência dos países pobres, sobretudo africanos, asiáticos e latino-americanos. As ambiguidades mostram que, por um lado, a diversidade multicultural converge para as diferenças de “necessidades” de consumo entre as nações, e por outro lado, o modelo dos países ricos passa a ser o padrão de “desejo” de todos, “…suscitando, assim nos mais deserdados sentimentos de rancor e frustrações, ou até de hostilidade e rejeição…” (Delors, 2005: 40). Vandana Shiva4 afirma que o desenvolvimento científico e tecnológico desencadeado a partir da Revolução industrial, no século XVIII, assentou a natureza apenas como fonte de matérias-primas para a produção de bens de consumo. Quando a natureza não é considerada uma matéria viva, composta pela fauna, flora, pelos seres humanos e suas construções, corre-se o risco, conforme Loureiro (2004) de ser reduzida “…a uma matéria morta e manipulável à vontade a consequência é a destruição da diversidade natural e cultural”.

Peres (2000: 49) afirma que “A cultura deverá ser a força positiva ao serviço do homem; não entendida como a cultura institucionalizada, recomendada, mas sim como cultura pessoal”. O homem real, próximo, perto, ao lado, e não o homem abstrato e distante que possui uma cultural inacessível e imposta pela escola, pelos meios de comunicação, entre

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Vandana Shiva é do movimento ecofemista na Índia e no mundo. Atualmente é diretora da Research Foundation for Science, Technology, and Ecology em Nova Deli.


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outros, que padronizam posturas e comportamentos em nome da civilidade. Nesse sentido, a cultural significa um movimento ao encontro dos seres humanos, das relações que estabelecemos com os outros homens e a maneira como “cultivamos”, “cativamos”, ou não, a natureza; experiências pessoais, subjectivas e, consequentemente, coletivas e identitárias, que nos diferenciam e nos tornam semelhante, simultaneamente. Paradigmas da EA que se aproximam dos componentes culturais Vários autores têm se debruçado sobre os estudos da EA, suas concepções e implementações, entre os quais destacamos Sauvé (1992, 1994, 2007) e Caride e Meira (2004). Sauvé (1992, 1994, 2007) recorre no modelo explicativo de Bertrand e Valois (1992) para explicitar os paradigmas educativos ambientais: o educativo racional, educativo humanístico e o inventivo educativo. Os autores para explicar o referido modelo reforçam e aproximam os paradigmas sócio-culturais aos educativos. O paradigma educativo racional dá ênfase à transmissão, memorização e reprodução de conhecimentos pré-estabelecidos, baseados na racionalidade técnica e científica. Dá-se grande valorização à produtividade, crescimento e desenvolvimento econômico. A relação entre o homem e a natureza é de dominação, onde a mesma é fonte de recursos (matériasprimas) para o processo de industrialização e, consequentemente, consumo. O humanístico se fundamenta no paradigma sócio-cultural existencialista no qual a natureza é concebida como harmoniosa e intercessora do bem- estar pessoal do ser humano. Essa concepção, conforme Sauvé (2007), baseia-se no individualismo, na subjetividade e na afetividade. Por último o paradigma educativo inventivo é o baseado no simbiossinergético sóciocultura, no qual há a simbiose entre a natureza, o homem e a cultura. O mesmo favorece a construção crítica e reflexiva da cidadania ambiental com base nos componentes tanto subjetivos quanto sócio-culturais. Caride e Meire (2004: 243) baseados no Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global consideram que a temática é um ato político e deve


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buscar a “…formação de cidadãos com consciência local e planetária (…) recorrendo a estratégias democráticas e à interacção entre as culturas…”. Os autores partilham da concepção de que a crise ambiental não se resume apenas aos problemas bio-físicos, mas alcança em cheio os problemas humanos e sociais inerentes à sociedade de consumo globalizado que lança na biosfera resíduos sólidos, líquidos e gasosos, baseada em um modelo mundial de desenvolvimento, tanto no ocidente quanto no oriente, que se alicerça no lucro e no progresso ilimitado, sob a égide da ciência e da tecnologia, reconhecidas como instrumentos eficazes de controle. Os mesmos destacam, ainda, um componente primordial que é a construção da consciência crítica cidadã local e planetária para com os problemas ambientais e, ao mesmo tempo, ressaltam o papel fundamental de estimular a igualdade, a solidariedade, o respeito e as interações entre as diversas culturas, baseados na construção do paradigma – educar para uma racionalidade alternativa (Leff, 2006). Esse paradigma busca a valorização das diversidades, fundamentando-se na crítica à homogeneização da “cultura do consumo” e reivindica a preservação das identidades culturais, conforme seus próprios valores. Das diversidades culturais à identidade planetária: é possível concluir? Ainda não é possível concluir, mas temos a certeza de que é um grande desafio articular as diversidades culturais a uma identidade planetária, em decorrência da multiplicidade de incertezas e divergências de ordem conceituais e práticas inerentes às mesmas. Para os autores Morin, Cuiurana e Motta (2003: 98), a missão da educação para a era planetária é o fortalecimento da "...sociedade-mundo composta de cidadãos protagonistas, conscientes e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização planetária". Recorremos a esta citação para fundamentar a nossa tese de que as diversidades culturais e outros tipos de diversidades são realidades explícitas e inegáveis que devem ser respeitadas e também poderão ser fortalecidas pela idéia de uma identidade planetária – consciência de que somos múltiplos e uno. Múltiplos no sentido da tolerância entre as diversidades, especialmente as culturais. Uno, pois a espécie humana está situada em uma comunidade planetária, e, portanto, com responsabilidade diante da continuidade da vida no planeta Terra, o que Gadotti (2000) chama de cidadania planetária que se assenta em uma visão


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unificadora do planeta, não globalizada em sentido economicista, mas no “sentido de pertencimento à humanidade” . Para finalizar, consideramos bastante inspiradora a citação de Moreira (2001), baseado na afirmação de Santos (1997), ao dizer que “as pessoas têm direitos de ser iguais sempre que as diferenças as tornem inferiores, têm também direito de ser diferentes sempre a igualdade colocar em riscos suas identidades”

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Loureiro, Isabel (2004). Mudar o sentido do progresso ou parar o progresso? Herbert Marcuse e a crítica à tecnociência. In: M.N. Strey, S. Cabeda e D. Prehn (Orgs.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, pp. 261-280. Morin, Edgar (2001). O método I: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina. __________(2000). Les sept savoirs nécessaires à l’education du futur. Paris : Éditions du Seuil. Morin, Edgar; Cuiurana, Emílio; Motta, Raul (2003). Educar para a era planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza. São Paulo: Cortez; DF: Unesco. Paixão, Maria de Lourdes (2000). Educar para a cidadania. Lisboa: Lisboa Editora. Praia, Maria (2001). Educação para a cidadania. 2ª ed. Porto. Edições ASA. Pnud (2006). Resumo do Relatório de Desenvolvimento Humano. A água para lá da escassez: poder pobreza e a crise mundial da água. Site: http://hdr.undp.org/. Acessado em 7 de Janeiro de 2008. Sacristán, José (2003). Educar e conviver na cultura global. Porto: Edições ASA. Sauvé, Lucie (1994). Pour une éducation relative à l’environnement. Montréal/Paris : Guérin/Eska. ___________(1992). Éléments d’une théorie du design pédagógique en éducation relative à l’environnement. Thèse de doctoral, Université du Québec à Montréal. Sauvé, Lucie ; Brunelle, Renée (2007). Environnements, cultures er développements. Site : http://www.unites.uqam.ca/ERE-UQAM/REVUE/vol4/editorial.htm. Acessado em 25 de maio de 2007. Shiva, Vandana (2003). La guerre de l'eau: privatisation, pollution et profit. Paris: Paragon. Silva, Cláudia ; Dias, Ana ; Paiva, Zilda. (2007). Identidades e cidadanias: trocas culturais e sócio-ambientais com índios Tembés de Santa Maria do Pará – Brasil. Anais do I Congresso Internacional de educação ambiental dos países lusófonos. Santiago de Compostela.


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A

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