O ASPECTO SOCIAL EM BAKHTIN E VIGOTSKI

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O ASPECTO SOCIAL EM BAKHTIN E VIGOTSKI Angela Francisca Mendez de Oliveira1

Resumo: Embora os trabalhos de Vigotski e de Bakhtin se sustentem em diferentes objetivos, suas ideias se entrelaçam em muitos aspectos, dentre eles o de considerar as ações humanas em suas dimensões sociais. A compreensão do homem como um conjunto de relações sociais será, então, o foco deste trabalho que visa travar um diálogo entre as ideias expostas nos conceitos de Bakhtin e de Vigotski. Buscaremos tornar visível a convergência de ideias do aspecto social de ambos, e para tanto, nos respaldaremos em alguns autores que se dedicaram a estudar tais teóricos, dentre eles Carlos Alberto Faraco, Maria T. de Freitas, Augusto Ponzio, entre outros. Palavras-Chave: Bakhtin, Vigotski, social, linguagem.

INTRODUÇÃO Embora os trabalhos de Vigotski e de Bakhtin se sustentem em objetivos e campos de investigação científica diferentes - Vigotski na área da psicologia do conhecimento e Bakhtin da filosofia da linguagem -, em ambos os autores podemos observar “a base comum cultural e ideológica de que surgem” seus fundamentos (PONZIO, 2008, p. 71). Segundo pesquisadores da teoria bakhtiniana e vigotskiana, a possibilidade de diálogo entre esses pensadores russos está ligada, além do contexto real existencial, pelo materialismo histórico que está presente como referencial teórico em ambas às teorias, e pela dialética que se constitui em seus métodos de trabalho. No que diz respeito ao contexto existencial, sabemos que ambos teóricos nasceram na Rússia, desenvolveram suas ideias na União Soviética marxista, em meados da década de 1920, e foram igualmente vítimas de perseguições. Recusaram o comportamentalismo marxista e refutaram “a concepção dos fenômenos psíquicos como estados simplesmente subjetivos” (PONZIO, 2008, p.73), entendendo que as especificidades dos fenômenos psíquicos humanos residem na intermediação, e são “produzidos e empregados dentro de formas sociais concretas” (idem, p. 79).

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Mestranda PPGL UniRitter. E-mail: mendez_oliveira@yahoo.com.br

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Vigotski, explica a professora Maria T. de Freitas 2, compreende que todo o fenômeno tem sua história e “deve ser estudado como um processo em movimento e mudança buscando-se conhecer sua gênese e transformação” (1995, p.4). Por sua vez Bakhtin, segue a autora, compreendendo a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação, “propõe uma dialética que, nascendo do diálogo, nele se prolonga, colocando pessoas e textos num permanente processo dialógico” (idem). Adotando, então, a conclusão de Freitas, “Ambos são marxistas que valorizaram a consciência” (ibdem, p. 158), privilegiando em seus estudos uma perspectiva sócio-histórica. Vigotski e Bakhtin consideram, assim, a linguagem como fator fundamental no processo de conhecimento do mundo e entendem que a constituição dos sujeitos se dá nas interações sociais. Assim “como Vigotski, Bakhtin se opõe a reduzir a reação verbal a um fenômeno de caráter unicamente fisiológico, do qual se exclui o elemento sociológico” (PONZIO, 2008, p.73). Para os autores o conceito de signo, de linguagem verbal ultrapassa a concepção de simples instrumento transmissor de significados. São, além disso, instrumentos de significação e de manifestação social do organismo. Para Freitas os dois teóricos “tentaram encontrar a dialética do subjetivo e do objetivo, mediada pelo fenômeno da linguagem”. Por isso a linguagem é uma questão central em seus sistemas. [...] Destacaram aí o valor da palavra e da interação com o outro. Consciência e pensamento são tecidos com palavras e ideias que se formam na interação, tendo o outro um papel significativo. [...] Buscaram explicar e compreender, a partir de uma perspectiva social, os fenômenos intrapsíquicos e linguísticos. (FREITAS, 1995, p. 158-159)

1 MIKHAIL BAKHTIN – A FILOSOFIA DA LINGUAGEM 1.1 O Contexto histórico existencial As ideias e proposições do Círculo de Bakhtin já têm consolidado seu lugar na história dos estudos linguísticos. O conhecido Círculo trata-se de grupo de 2

Texto apresentado na mesa redonda: Bakhtin e seus interlocutores, durante o colóquio internacional Dialogismo: 100 anos de Bakhtin – USP, 1995. Disponível em: http://www.moodle.ufba.br/file.php/11739/lic/NOS_TEXTOS_DE_BAKHTIN_E_VYGOTSKY.pdf

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intelectuais russos, multidisciplinar - agregava profissionais de diversificadas áreas de estudos, tais como arte, literatura, filosofia, biologia, linguística, entre outros -, que se reunia periodicamente entre 1919 e 1929. Proposto por Bakhtin, à época em que se formara em História e Filologia pela Universidade de São Petersburgo, os participantes do Círculo, conforme podemos ler em Carlos Alberto Faraco (2009), tinham em comum a paixão pela filosofia e pelo debate de ideias, que progressivamente levou-os a paixão também pela linguagem. Sobre a consistência e fundamento das discussões do grupo, Beth Brait 3

aponta que "vale dizer que, antes de refutar qualquer tese, esses pensadores

russos delineavam um panorama das ideias e dos conceitos abordados e, partindo de aspectos pouco explorados, propunham novas concepções" (2005). Entre esses intelectuais encontram-se dois importantes companheiros e amigos de Bakhtin, cujos textos provocaram algumas polêmicas e confusões autorais: o linguísta Valentin Voloshinov (1895-1936) e o teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938). Ao grupo foi atribuído a posteriori, por estudiosos de seus trabalhos, o nome de Círculo de Bakhtin por ser o filósofo um dos integrantes de maior destaque, dado a originalidade e a densidade de suas reflexões. Bakhtin, segundo prefácio de Todorov à edição francesa de Estética da criação verbal “é uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas da cultura européia de meados do século XX” (2010, p. 13). Importante filósofo de ideias densas, obra rica e temas amplos - que abarcam, além da lingüística, a psicanálise, a teologia e a teoria social, a poética histórica, a axiologia (teoria crítica dos conceitos de valor) e a filosofia -, Mikhail Mikhailóvitch Bakhtin nasceu em Orel, ao sul de Moscou, em 1895, e desenvolveu seu trabalho sob condições extremamente difíceis. Nascido em uma Rússia instável sob o regime czarista, na juventude fora discriminado pelo governo de Stálin, viveu à margem do contexto intelectual que o envolvia, sofreu perseguições e exílios políticos, vida de dificuldades assim resumidas por Tezza4 em resenha à Revista Cult:

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Revista Nova Escola disponível em http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/mikhailbakhtin-498487.shtml Acesso em: 10 de abril de 2011. 4

Resenha de Cristóvão Tezza sobre o livro Mikhail Bakhtin, de Katerina Clark e Michael Holquist . Disponível em http://www.cristovaotezza.com.br/textos/resenhas/p_9805_cult.htm. Acesso em 15 de maio de 2011.

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[...] atravessou a vida inteira praticamente anônimo - sobrevivendo pelas frestas do acaso à Revolução Russa, ao exílio no Cazaquistão, aos expurgos de Stálin, à osteomielite (que lhe obrigou a amputar uma perna), ao silêncio gélido da cultura oficial do estado soviético, à falta crônica de dinheiro e de conforto, e, mais que tudo, ao fato de, motivado sempre pela escrita interminável de seus textos, quase nunca vê-los publicados. (TEZZA, 1998)

Resumidamente podemos dizer que o contexto em que viveu Bakhtin em nada lhe contribuiu para que desenvolvesse tão magistralmente suas ideias. Após a Revolução de Outubro5, com o governo de Lenin, os anos foram marcados por uma intensa atividade cultural - acompanhada de mudanças sociais, econômicas e políticas - na Rússia, que se tornara marxista. Mais tarde, com o advento do regime stalinista, há uma subversão da ideologia marxista e o Círculo passa a ser perseguido. Bakhtin, discriminado por suas ideias e envolvido em acusações incomprovadas, é preso e condenado a seis anos de exílio no Cazaquistão, acusado “mais por seu vínculo com a tradição ortodoxa – por sua ligação com a Ressurreição, organização religiosa não oficial – que por suas posições políticas” (BRAIT, p. 22).

Em 1937, é exilado novamente, desta vez em Saransk e no ano

seguinte, devido ao agravamento da osteomielite sofre a amputação de uma perna. Por essa época defende sua tese de doutorado no Instituto Gorki, denominada Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais, porém, o título de doutor só lhe é concedido 20 anos depois. Após a morte de Stalin acaba sendo redescoberto por alguns estudantes de Moscou. Esses estudantes, admiradores de suas obras, descobrem vários estudos do autor ainda inéditos, que pouco tempo depois ganharam uma incrível notoriedade no âmbito acadêmico russo. Suas produções chegaram ao ocidente nos anos 1970 - e, uma década mais tarde, ao Brasil. Mas Bakhtin já havia morrido, em 1975, de inflamação aguda nos ossos.

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A Revolução de Outubro na Rússia, também conhecida como Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha, foi a segunda fase da Revolução Russa de 1917. Começou com o golpe de estado, liderado por Lenin e pelos bolcheviques, contra o governo provisório. Foi a primeira revolução comunista marxista do século XX e deu o poder aos bolcheviques. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. Após a morte de Lenin, em 1924, os comunistas aceitaram Stalin como a máxima autoridade do marxismo-leninismo, mas as ideias marxista sofreram algumas subversões.

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1.2 Ideias e conceitos do Círculo de Bakhtin Na Rússia da década de 1920 tinham destaque as teorias de Karl Marx - o marxismo - que, ultrapassando suas bases político-sociais, expressou-se também, no campo das ciências humanas, isto é, “no campo da psicologia, da teoria da literatura, da filosofia da linguagem, etc.” (PONZIO, 2008, p.71). Bakhtin e o Círculo, explica Ponzio, partem da “carência do marxismo no que se refere ao estudo da consciência, da linguagem e da formação de ideologias concretas” (idem) para fundamentar suas teorias. Observaram, negando-se a “reduzir a reação verbal a um fenômeno de caráter unicamente fisiológico, do qual se exclui o elemento sociológico” (ibdem, p. 73), que a língua sofria influências do contexto social, da ideologia dominante e da luta de classes. Por isso entenderam que a linguagem era ao mesmo tempo produto e produtora de ideologias. O que diferencia Bakhtin dos outros filósofos que se ativeram a estudos semelhantes no cerne da linguagem é ter colocado, em sua filosofia da linguagem, a dinâmica social da prática observável da linguagem como força especificadora que estrutura as relações interpessoais. O que o distingue, em outras palavras, é sua ênfase na linguagem como prática tanto cognitiva quanto social, aspectos esses que lhe permitem compreender e explicar os complexos fatores que tornam possível o diálogo que abrange, simultaneamente, as diferenças. Para Bakhtin, o social é uma “construção historicamente especificada em relação às diferentes formas de produção material e, portanto, da organização cultural, e diversificada com relação à divisão do trabalho” (PONZIO, 2008, p. 110). Em sua filosofia da linguagem, compreendida, então, a partir de uma concepção histórica e social, Bakhtin diz que a compreensão dos signos dá-se em ligação com a situação, o contexto em que ele toma forma e esse contexto, essa situação é sempre social. O signo ideológico na constituição do sujeito, afirma Bakhtin, parte do exterior para o interior, ou seja, do “social para o individual”, e a palavra nada mais é do que “produto de interação viva das forças sociais”. Na construção de sua filosofia da linguagem, o autor passa a valorizar a fala – “a enunciação” -, deixada de lado por Saussure. Opera este o resgate do sujeito nos estudos linguísticos, pensando as relações da linguagem como um todo, vista do ponto de vista da interação humana. Os conceitos de Bakhtin se contrapõem à concepção de língua como sistema sem 5


sujeito, pois é preciso “considerar que o organismo humano não pertence a um meio natural abstrato, mas faz parte integrante de um meio social específico” (BAKHTIN, 1990, p.53). A língua, na concepção do Círculo, é a “realidade material específica da criação ideológica” (idem, p. 25). Na visão do filósofo, a ideologia é algo intrínseco ao semiótico, pois “o domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico” (ibdem, p. 32). A ideologia para o Círculo de Bakhtin, conforme explica Faraco, comporta várias esferas ideológicas, que identificam áreas da produção intelectual humana, ideologia “é o nome que o Círculo costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais” (2010, p.46). Para o Círculo, então, todo e qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias, ou seja, no interior de uma das atividades humanas. Faraco apresenta a seguinte definição de ideologia: Algumas vezes, o adjetivo ideológico aparece como equivalente a axiológico. Aqui é importante lembrar que, para o Círculo [de Bakhtin], a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica). (FARACO, 2010, p. 47)

Tudo que é ideológico possui um significado e é, portanto, um signo, conclusão que se reflete na afirmativa de Bakhtin que diz que sem signo não existe ideologia, firmando com isso que o universo da criação ideológica é de natureza semiótica. A ideologia, uma vez que é constituída pelo semiótico, é inerente à consciência, “Meu pensamento, desde a origem, pertence ao sistema ideológico e é subordinado às suas leis” (BAKHTIN, apud SOUZA, 1994, p. 114). Bakhtin acredita que os signos foram criados nas relações interindividuais, portanto, são carregados de valores conferidos por diferentes interlocutores. Com isso conclui que a consciência, além de ideológica, é social. A separação da língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato. Assim, a língua, para a consciência

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dos indivíduos que a falam, de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas. O sistema linguístico tal como é constituído pelo objetivismo abstrato não é diretamente acessível à consciência do sujeito falante, definido por sua prática viva de comunicação social (BAKHTIN, 1990, p. 96).

A lógica das relações dialógicas do Círculo de Bakhtin está intrinsecamente ligada às múltiplas relações e interações socioideológicas, em que o sujeito “vai-se constituindo discursivamente, assimilando vozes sociais”. O mundo interior é então “uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas relações de consonância e dissonancias” (FARACO, 2010, p. 84). Sendo o sujeito um ser social, imerso em uma determinada cultura, logo todo enunciado expressa consigo o posicionamento do sujeito, com o que, para o Círculo “não há enunciado neutro”, mas há, podemos inferir, discursos reproduzidos inconscientemente. Nossos enunciados emergem – como respostas ativas que são no diálogo social – da multidão das vozes interiorizadas. Eles são, assim, heterogêneos. Desse ponto de vista, nossos enunciados são sempre discurso citado, embora nem sempre percebidos como tal, já que são tantas as vozes incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que percebamos sua alteridade (na figura bakhtiniana, são palavras que perderam as aspas). (FARACO, 2010, p. 85).

2 LIEV VIGOTSKI – PSICOLOGIA DO CONHECIMENTO 2.1 O Contexto histórico existencial Vigotski é o grande fundador da escola soviética de psicologia históricocultural, e é a ele que recorrem os psicólogos e estudiosos “ao examinarem o modo pelo qual o homem luta, livre do domínio do condicionamento estímulo-resposta” (BRUNER, apud VIGOTSKI, 2008, p. 13). Jerome Bruner, na introdução de Pensamento e Linguagem (1961 - 2008), afirma que “sob a perspectiva ideológica marxista, Vigotski tornou-se conhecido como o homem que percebeu a determinação histórica da consciência e do intelecto humanos”. Construiu a sua teoria tendo por base o desenvolvimento do indivíduo como resultado de um processo sócio-histórico, enfatizando o papel da linguagem e da aprendizagem nesse desenvolvimento. Foi leitor e estudioso assíduo e profícuo no campo da Linguística, Ciências Sociais, Psicologia, Filosofia, História e das Artes. 7


Homem de inteligencia impar e trabalho ávido, Lev Semenovich Vygotsky, nasceu em Orsha, cidade da Bielorrússia , em 17 de novembro de 1896. Formou-se em Direito em 1917 pela Universidade de Moscou, quando simultaneamente estudava Literatura e História na Universidade Popular de Shanyavskii. Nascido sob o regime czarista, na juventude viveu a Revolução Russa de 1917, estudou Marx e Engels e, a partir do materialismo histórico propôs a reorganização da Psicologia, antevendo a tendência de unificação das Ciências Humanas no que denominou como "psicologia cultural-histórica". Assim, o seu interesse pela Psicologia levou-o a uma leitura crítica de toda produção teórica de sua época, tais como a Gestalt, a Psicanálise e o Behaviorismo, além, claro, das ideias do teórico da educação Jean Piaget. Pesquisador impecável, Vigotski também tinha o seu círculo. Vivia rodeado de devotados dicípulos talentosos que, como ele, tinham “elevada consciência de sua missão no desenvolvimento da ciência” (PUZIERI, in VIGOTSKI, 2000, p.21). Sofreu perseguições e teve suas obras proibidas pelo governo stanilista, o que, para estudiosos de Vigotski, iniciou-se com a identificação do teórico como idealista em função de suas críticas à utilização das teoria de Pavlov quanto as potencialidades de condicionamento ambiental. Por volta de 1920, Vigotski iniciou sua luta contra a tuberculose que se estendeu por 14 anos, vindo a falecer em Moscou em 11 de Junho de 1934, então com 37 anos de idade. Somente com o fim da censura do totalitário regime stalinista foi que começou a ser redescoberto iniciando-se pela publicação de seu clássico Pensamento e Linguagem. Atualmente sua obra repercute e influência a psicologia e educação no mundo todo, especialmente no Brasil.

2.2 A psicologia do conhecimento – Ideias de Vigotski Vigotski, ao elaborar uma “teoria social do conhecimento” - buscando reconstruir a origem e o processo de desenvolvimento do comportamento e da consciência -, “procurou a possibilidade de o homem, através de suas relações sociais, por intermédio da linguagem, constituir-se e desenvolver-se” (FREITAS, 1995, p. 158). Importante elemento a ser considerado na elaboração e no 8


desenvolvimento dos conceitos da teoria vigotskiana é a filosofia marxista e hegelniana que marcavam à época em que vivera Vigotski, e nas quais funda o princípio de suas ideias. Conforme lemos em Kozulin, “O que o próprio Vygotsky buscou e encontrou em Marx e Hegel foi uma teoria social da atividade humana”. De Hegel, por exemplo, Vigotski assumiu a postura histórica nos processos de desenvolvimento e “as formas de realização da consciência humana”. Já Karl Marx atraiu Vigotski “com seu conceito de práxis humana, isto é, a atividade histórica concreta que é um gerador por trás dos fenômenos de consciência” (KOZULIN, apud RIBEIRO, 2010, p. 119). O caráter histórico, assim como o social e o cultural, é a matriz que constitui todo o pensamento vigotskiano, e é a partir dele que podemos definir os valores que o social e a cultura, aspectos fundamentadores que permeiam toda a obra de Vigotski, assumem nas suas análises. É esse caráter, aponta Sirgado, que “diferencia a concepção de desenvolvimento humano de Vigotski das outras concepções psicológicas e lhe confere um valor inovador ainda nos dias de hoje” (SIRGADO, 2000, p.48). A teoria de Vigotski é considerada sócio-histórica e, através de sua epígrafe em seu Manuscrito de 1930, o teórico esclarece-nos sua concepção de homem, ao que diz: “Para nós o homem é uma pessoa social. Um agregado de relações sociais encarnadas num indivíduo”. Em artigo 6 publicado na revista Educação e Sociedade, encontramos a seguinte colocação de Vigotski: Da mesma maneira que a vida da sociedade não representa um todo único e uniforme, e a sociedade é subdividida em diferentes classes, assim, durante um dado período histórico, a composição das personalidades humanas não pode ser vista como representando algo homogêneo e uniforme, e a psicologia deve levar em conta o fato fundamental que a tese geral que foi formulada recentemente só pode ter uma conclusão direta, confirmar o caráter de classe, a natureza de classe e as diferenças de classe que são responsáveis pela formação dos tipos humanos. As várias contradições internas que foram encontradas em diferentes sistemas sociais encontram sua expressão, ao mesmo tempo, no tipo de personalidade e na estrutura da psicologia humana neste período histórico. (VIGOTSKI apud SIRGADO, 2000, p.63)

Marta Kohl Oliveira, autoridade em estudos vigotskianos, explica que como a linguagem é o sistema simbólico comum entre os homens, o seu desenvolvimento e 6

Angel Pino Sirgado professor da Unicamp , autor do artigo O social e o cultural na obra de Vigotski no qual realiza uma análise de duas categorias teóricas fundamentais na obra de Vigotski : o social e o cultural.

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suas relações com o pensamento é objeto central na obra de Vigotski, para quem “o pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir” (2006, p. 54). Vigotski, segundo Oliveira, trabalha com duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social – principal função da linguagem - e o pensamento generalizante – que torna a linguagem um instrumento do pensamento. (2006, p. 42-43) e em ambos observamos o caráter social que os sustenta. A principal função é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem. [...] Para que a comunicação com outros indivíduos seja possível [...] é necessário que sejam utilizados signos, compreensíveis por outras pessoas, que traduzem idéias, sentimentos, vontades, pensamentos [...]. (OLIVEIRA, 2006, p. 42) [...] é a função generalizante da linguagem que a torna um instrumento do pensamento. Ao se utilizar da linguagem o ser humano é capaz de pensar de uma forma que não seria possível se ela não existisse: a generalização e a abstração só se dão pela linguagem. (OLIVEIRA, 2006, p. 51)

A unidade dessas duas funções encontra-se no significado que é a propriedade que propicia “a mediação simbólica entre o indivíduo e o mundo real, constituindo-se no “filtro” através do qual o indivíduo é capaz de compreender o mundo e agir sobre ele” (OLIVEIRA, 2006, p. 48). A significação confere ao social sua condição humana, o que significa, na visão do professor Sirgado - pesquisador vigotskiano -, “que a convivência humana é regida por leis históricas”, e não basicamente e unicamente por mecanismos naturais. Sirgado afirma ainda que Vigotski, ao introduzir as relações sociais como definidoras das funções mentais superiores, subverte o pensamento psicológico tradicional (2000, p. 61), abrindo caminho para a discussão para a importância das relações sociais na constituição do sujeito e da consciência. As funções superiores constituem o terceiro tipo de objetos a que Vigotski atribui caráter social, não só porque elas não emergem das funções biológicas, mas porque sua natureza é social. “Elas são”, diz Vigotski, “relações internalizadas de uma ordem social, transferidas à personalidade individual e base da estrutura social da personalidade” (1989, p. 58). Tudo nelas é social: sua composição, sua estrutura genética e seu modo de funcionar. De tal modo que, mesmo sendo transformadas em processos mentais, permaneçam quase sociais, como ele diz (1997, p. 106). (SIRGADO, 2000, p. 60)

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Para Vigotski o pensamento está intimamente vinculado à linguagem e se desenvolve a partir de instrumentos linguísticos e pela interação sócio-cultural do falante. Assim, para o teórico, é na troca com outros sujeitos e consigo próprio que se internalizam os saberes, papéis e funções sociais, o que permite a formação de conhecimentos e da própria consciência.

Se o desenvolvimento é visto como um acontecimento de natureza individual, mesmo admitindo que ocorre em interação com o meio, a inserção social do indivíduo constitui realmente um problema, pois implica na adaptação das condutas individuais às práticas sociais, consideradas, em tese, fenômenos de natureza diferente. Dessa maneira, a socialização assemelha-se ao fenômeno migratório humano que exige uma adequação das características sociais e culturais do imigrante às condições do novo meio. (SIRGADO, 2000, p.52)

Vigotski, explica Sirgado, inverte a direção da relação indivíduo-sociedade. No lugar de nos perguntar como a criança se comporta no meio social, diz o autor, “devemos perguntar como o meio social age na criança para criar nela as funções superiores de origem e natureza sociais”. (2000, p. 61). Na perspectiva em que se situa Vigotski, as relações sociais são determinadas pelo modo de produção que caracteriza uma determinada formação social. Isso nada tem a ver com qualquer tipo de determinismo mecanicista que ele mesmo critica, uma vez que os modos de produção não são dados pela natureza, mas determinados pelos homens (por aqueles que detêm o poder na sociedade) em função de interesses específicos. Seria ingenuidade portanto pensar que Vigotski fala de relações sociais como algo natural e ideologicamente neutro. (SIRGADO, 2000, p. 63)

2 BAKHTIN E VIGOTSKI DIÁLOGOS POSSÍVEIS Não só pelo materialismo histórico dialético que está presente como referencial teórico nas teorias tanto de Bakhtin quanto de Vigotski ou pela dialética que se constitui em seus métodos de trabalho é que podemos aproximar esses dois teóricos aqui estudados. Poder-se-ia ainda pô-los em diálogo pelo contexto histórico comum em que desenvolveram seus trabalhos, mas o aspecto de maior relevância 11


na obra desses dois intelectuais de importante ideias e teorias é sem dúvida a compreensão do homem como um conjunto de relações sociais. Ligado ao homem e a suas relações está presente a linguagem, aspecto para o qual também se voltaram Vigotski e Bakhtin. Na filosofia da linguagem, o que diferencia Bakhtin dos outros filósofos que se ativeram a estudos semelhantes é ter colocado a dinâmica social da prática observável da linguagem como força especificadora que estrutura as relações interpessoais. Já em Vigotski, na sua psicologia do conhecimento, o caráter histórico e social que constitui o homem e a conversão das relações sociais em funções mentais é o que “diferencia a concepção de desenvolvimento humano de Vigotski das outras concepções psicológicas e lhe confere um valor inovador ainda nos dias de hoje” (SIRGADO, 2000, p. 48). Em palavras da professora Maria T. de Freitas “ambos são marxistas que valorizaram a consciência” (1995, p. 158), privilegiando em seus estudos uma perspectiva sócio-histórica. Contemporâneos, ambos nasceram, viveram e desenvolveram suas teorias em tempos difíceis, na Rússia fria e, ainda que não haja registros de que Vigotski e Bakhtin se conhecessem7, esse fato que não invisibiliza a aproximação de suas teorias, já observado que ambos privilegiaram o aspecto cultural e social em seus fundamentos, construindo “uma perspectiva histórica e uma compreensão do homem como conjunto de relações sociais” (idem, p. 157). Semelhante também é a versatilidade, tanto de Bakhtin quanto de Vigotski, em diversas áreas do conhecimento, o que deve ser compreendida no contexto histórico e cultural da Rússia daquela época, como expõe Zinchenko: Os relatos de Vygotsky sobre a psicologia histórico-cultural emergiram somente quando a era de prata, ou renascença, da cultura russa estava em declínio. Durante essa época não havia nenhuma divisão definida de trabalho entre ciência, filosofia, arte, estética e até mesmo teologia. Gustav Shpet, Aleskei Losev, Mikhail Bakhtin, Pavel Florenskii e o fundador maior da Psicologia histórico-cultural, Lev Vygotsky, eram simultaneamente teóricos e conhecedores dessas esferas da atividade humana. As idéias de Vladimir Solov’ev sobre a ‘unidade em tudo’ no conhecimento racional e espiritual ainda estavam vivas.Os notáveis poetas Boris Pasternark e Osip Mandel’shtam tinham conhecimento em filosofia e nas ciências. (ZINCHENKO, apud RIBEIRO, 1998, p. 41) 7

Maria Teresa de Assunção Freitas, em seu livro Nos textos de Bakhtin e Vigotski: um encontro possível, registra que encontrou duas notas na obra de Bakhtin – o freudismo (1925) – que fazem referencia ao artigo A consciência como problema do comportamento de Vigotski, o que mostra, segundo a autora, que “Bakhtin sabia da existência de Vygotsky, lera um artigo seu e o citava em seu livro um ano depois”. (1995, p.156)

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Recusaram

o

comportamentalismo

marxista,

entendendo

que

as

especificidades dos fenômenos psíquicos humanos residem na intermediação, e são “produzidos e empregados dentro de formas sociais concretas”. O signo ideológico na constituição do sujeito, afirma Bakhtin, parte do exterior para o interior, ou seja, do “social para o individual”, e a palavra nada mais é do que “produto de interação viva das forças sociais”. Para Vigotski o sujeito também se constitui do social para o individual e ao introduzir as relações sociais como definidoras das funções mentais superiores, subverte o pensamento psicológico tradicional (SIRGADO, 2000, p. 61), abrindo caminho para a discussão para a importância das relações sociais na constituição do sujeito e da consciência.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. BRAIT, Beth e CAMPOS, Maria Inês Batista. Da Rússia czarista à web. Disponível em: http://www.livrariacultura.com.br/imagem/capitulo/2822093.pdf. Acesso em: maio de 2011. BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. BRAIT, Beth. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as idéias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. FREITAS, Maria Tereza de Assunção. Nos textos de Bakhtin e Vigotski: um encontro possível. São Paulo: Contexto, 1995. LORDELO, Lia da Rocha e TENÓRIO, Robinson Moreira. A consciência na obra de L.S. Vigotski: análise do conceito e implicações para a Psicologia e a Educação. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional. São Paulo: Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 79-86. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pee/v14n1/v14n1a09.pdf. Acesso em: maio 2011. OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento – um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2006. 13


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