AS PESSOAS COM QU EM NU NCA FALEI
M a r i a G a b r i e l a Araújo
Ás vezes passam por mim e eu reparo nelas. Já que são muitas, tantas com sacos ou chaves na mão e sandálias de corda ou
sapatinho de verniz, uma ou outra lá me ficou na memória. Nunca lhes dei mais do que um “bom dia”, “gracias”, ou “é um euro e meio
por favor”, e sempre sorrio ou arregalo os olhos quando passam por mim: alguns até, de persistentes, fazem questão de se cruzarem acidentalmente comigo em todo o lado que possa ser chamado
de público. Não sei quem são, não sei o nome, idade, se têm filhos, se têm pais, avôs, se são casados, viúvos ou simples solitários,
se preferem peixe a carne ou se vêm do outro lado do mundo.
Desconheço-os, mas decorei-os, só porque alguma coisa os faz
bonitos ou bonitos de feios. E aqui estão, saídas da minha testa e
entradas com critérios de selecção que me são estranhos, as pessoas com quem eu nunca falei.
Passaram-me à frente uns mil anos de razão. Ouriços-cacheiros de
loiro oxigenado, casaco de couro e andar de quem nunca deixou de dominar o mundo ou como se não houvesse mais ninguém nele, para além de sex, sons, and rock ‘n’roll.
Entre riscos e mudanças, não lhe consegui ver a cara, para além de um
algodão branco e uma gabardine que lhe escondia o resto que me fugiu. Só me pude deliciar com as meias às riscas por alguns segundos, que mais já era arriscar a espetar-me com o carro da frente.
Sempre tive medo dele. Desde o primeiro dia em que o vi, tinha ele
metade da minha idade e o dobro do meu tamanho e peso. Morava
no terceiro andar e nós em segundo plano, com o meu pai a grunhir umas palavras de frustração todas as noites que a minha mãe, já
agora, não ouvia porque estava com os tampões nas orelhas. E não fosse eu ficar de fora, a minha persiana levou com um ovo, vindo
do nada ou da janela de cima, que ficou a coser ao sol a tarde toda e deixou o meu quarto a cheirar a omolete. Nunca ninguém, tirando
ele, bateu o pé, porque nós falamos e ele não, porque a mãe dele está sozinha e nós não.
Corri atrás do homem que me fugia dos olhos. Corri-lhe a sombra
só porque os braços tinham na mão a tranquilidade que as costas
da t-shirt faziam adivinhar. Flores, só porque eu gosto de flores! Lá
devia ser um florista, ou empregado de uma qualquer, numa entrega
ao domicílio carinhosa o suficiente para ter como meio de transporte o pé. Lá ia ele, levezinho, sem saber que estava a ser perseguido por
uma máquina fotográfica de fotografias desfocadas e cortadas pelas
esquinas das ruelas de Barcelona. Gostei dele, porque me fugiu antes que pudesse dar os meus olhos por satisfeitos.
Esta ficou-me mais no coração e no sorriso do que na testa. Olhavase e transbordava bondade, transbordava tudo que há de bom
no mundo e em Paris. Não consegui não ir ter com ela para saber se amanhã ia chover, porque esta não era como as bruxas que
transformam tudo em sapos e dizem que o fim está próximo. Esta sorria com todos os poros e conchinhas que tinha. Disse-me, em
francês traduzido no caminho, o que não diria que ela pudesse saber e adivinhar, por muitos búzios que tivesse lá no cestinho. Mas disse, pôs-me o queixo nos joelhos até o dia seguinte, por ter acertado no que eu não digo e dito o que eu talvez ainda nem saiba.
Uns tem mais que outros e todos dizem que têm menos. É tudo uma questão de genes e contas, então dois não é
menos que três? Se aos vinte e um nós
temos dois e eles três, não terão algo de especial?
Chamei-lhe bidimensional durante
uns quatro meses e ri-me da sua forma quadrada, mas deixou-me saudades de
geometria. É que aqui não se fala catalão nem há só uma chave no prédio inteiro
para se aceder aos contadores lá de baixo.
Parecia que fazia parte das paredes, que estava entranhado nas
pedras do castelo do queijo desde que há memória. Quase que lhe
via a moldura da polaroid à volta da cara, ou a bandeira de Portugal reflectida nos óculos de quem viu queijo à frente a vida toda. E lá
continua, imune ao tempo e preso às pedras, com cafés e afins para vender e com o horário das 13h às 17h, fins de semana, na ponta da língua ou da bandeira.
Não gosto muito de leitões. Particularmente os da nossa raça, no
espeto e de fio dental, de Maio a Setembro, a grelhar todos os dias em puffs à entrada da minha praia. O Verão passa e eu vejo-as
espalmadas a afogarem-se em óleos e manteigas, a ver se passam do tostado ao queimado.
Até aquele dia, nunca pensei que alguém me pudesse pôr um tutu de bailarina de uma forma tão cómica e séria ao mesmo tempo.
Séria, porque nunca lhe vi os dentes, e cómica, por nunca lhe ter visto as gengivas mas adivinho-as: boca de pedra, coração de gelatina
(e um dicionário de fotografia no cérebro). Fui lá pela primeira vez,
sorridente, a querer revelar um rolo. Por duas vezes conseguiu, sem uma única ruga de início de sorriso, pôr-me um nariz de palhaço e chapéu do bobo da corte, enquanto desdobrava a minha máquina
do avesso e descobria-lhe botões que eu não sabia existirem. Depois fez-se silêncio, acompanhado daquele olhar de pálpebra superior a
meio da janela. E eu, eu virei pimento e fui-me embora, a mostrar as
gengivas que sei que ele há-de ter, lá no meio da expressão de pedra.
A cruela versão 2012, de corpo preto e amarelo oxigenado na cabeça. Fita métrica ao pescoço, cigarro estiloso, professora de moda da aula de esboço.
Naquele dia reparei a senhora a olhar as gaivotas. Tantas, no ar, devia de haver tempestade no mar. Irónico, com uma pitada de estranheza, o edifício para cegos ter, por delicadeza, desenhos nos vidros das
janelas. No lar, gigantes panelas e rasgões nas paredes. Irónico, e com uma pitada de cómico, enferrujarem no jardim selvagem dois cestos de basket. O sol pôs-se, não ficou frio, mas o arrepio das gaivotas e o
branco azulado do céu faziam o meu cabelo parecer mais escuro. E o
gato preto também, casmurro, fez questão de sorrir falsamente para nós. Tudo lá envolvia. Não sorria como o gato preto, mas levava-nos como ele. Apetecia ficar lá perdida para sempre, no meio dos gira-
-discos virados ao contrário e do armário dos tantos abandonados.
Mentes de quem nĂŁo sabe sempre me fizeram espĂŠcie.
Esta anda pelo shopping sem saber o que fazer a tantos sacos de plĂĄstico.
Tinha umas meias bonitas, que nem eu
resisti e n達o sou homem. Embora, vendo bem, olhei mais para as meias do que para as pernas.
Conversas de umbigos. Mesmo lado a lado e sem abrirem a boca, foram num falatório a viagem toda, pelo menos a mim pareceu-me ouvir, já que ainda não falam mas devem sussurrar, já que ainda não andam,
mas pelos vistos apanham o metro. Como poderia não reparar, ainda tão pequeninos e já a cruzarem-se com desconhecidos como gente grande?
Graças a Deus que ficou vermelho, que me fez dizer um palavrão e olhar pela janela. Assim tão simples como abrir uma cervejola e sentar à porta do café na esquina da circunvalação, também não lhe devia parecer do avesso que, em vez de um rafeiro
qualquer de coleira gasta, estivesse uma cadelita com todos os pompons a que tem direito refastelada no colo do dono de bigode nas sobrancelhas e manga caveada.
E se se juntassem os dois, os glamourosos e os tatuados? Dava o empregado de mesa do
cafÊ preto e de luzinhas de natal nas janelas, com turistas ingleses e senhores barrigudos de 50 anos a serem servidos por pescoços enlaçados e braços rabiscados.
Enquanto todos pagam o pacote inteiro com direito a sol, calor, toda a comida
e bebida que a barriga consiga guardar, e ainda andam de trombas porque está
enevoado com chuvas tropicais duas vezes por dia ou até só porque estão cheios,
os de lá da casa, que desconheço que vida levarão fora das palmeiras organizadas e da relva aparada, riem-se às gargalhadas. Mesmo rodeados de mal encarados
para fingir servir, eles dançam, abraçam-se. Estes dois, trouxe-os de volta nas 7h
de avião, porque se não estavam apaixonados, dançaram como se estivessem, por detrás da banca dos cocktails. É que havia música ambiente.
Quando ainda estaria eu, por esta altura, a chorar baba e ranho pela chupeta que já não voltava, este grupinho de 4 pessoas
pequenas, que deviam estar a aprender o aeiou e a decidir se
preferem ser esquerdinos ou não, andavam pela rua com lápis de acender e deitar fumo. Se a professora visse, diria que estavam a
pegar no lápis de forma errada. Se visse, ou se eles fossem, talvez ainda desse para corrigir. Só que preferiam estar no McDonalds a tirar comida às pessoas, porque afinal são crianças e todas gostam de batatas fritas.
Era mulata. Tinha sardas. Era bonita.
Toda a minha vida passei por ele e não lhe sei as medidas. É simples: nunca o vi de pé. Nunca o vi com o rabo descolado daquele degrau. E sempre me questionei, será que se levanta para comer, ou os do café atrás vêm dar-lhe as refeições para que não estique os joelhos?
Se me entrasse pelos ouvidos sem ter quem percebe de música a dizer que é bom, que é perfeito, provavelmente apenas lhe teria
reparado a gola alta e arqueado uma ou outra sobrancelha porque a mão não tocava como todas as outras que pedem moedinha. Nunca
lhe teria sorrido sempre que lhe aparecia, não fosse dizerem-me que o que lhe saía da guitarra era quase tão impossível como a postura de estátua a fazer música.
Está bem que se ponha as cartas na mesa, até tem piada de vez em
quando, ver as luzinhas e os plins todos, a bolinha a saltitar entre os pares
e os ímpares. Mas a senhora, de tanta pintura, devia estar com a mente em borrão, ou simplesmente não gostava de cartas cor de rosa, porque deixou-as cair no verde, estúpida ou inconscientemente, umas atrás das outras, até não ter mais mão nem olho nelas. Ficaram lá todas, e eram várias,
mas algo me diz que não teve frio durante a noite, quanto muito teria que vender os brincos para compensar ter andado a jogar as cartas.
Este nรฃo se meteu em apostas. Aliรกs, sabia bem o que queria. Nunca fui com a cara dele, mas a roupa e jeitos convenceram-me, sem ter que fazer bluff, que era rei ou dama da sua sorte, assumidamente apaixonado por si prรณprio ou por quem fosse igual a ele.
Descendente da cruela, mas mais inconsistente e inconsciente. E se me agarrou à primeira, prendeu-me à segunda e terceira quando
aparecia tão diferente que só a reconhecia pelos óculos hexagonais.
Tanto vinha como hoje, como das motas dos 70, ganga dos 90 ou dos guns ‘n roses de rosas e lábios vermelhos.
Para os que lhe chamam “animais exóticos”, este devia estar na
categoria das aves, não andasse ele ao ombro do dono no seu passeio
a meia-luz pela marginal à beira mar. A diferença é que um papagaio diz “olá” e fica no ombro, já este vai pelas costas abaixo pela calada.
Às vezes aparecem destes, pelas 3 ou 4 horas da manhã, quando o álcool lhes subiu do estômago à cabeça e a bola de cristal lhes desceu para dentro das
calças. E depois quem é menina tem que andar a fugir de bolas de cristal que giram por lá às apalpadelas, com a desculpa de que estão tontos.
Estava ao meu lado, de suíças, na turma de html e fez um site a
dizer “gay pride”, para que não restassem dúvidas, como se ainda as houvessem. Escrevia a canetas de feltro e usava camisas aos
bonecos e lenços. Guardei-o, no entanto, mais pelas suíças do que pelo orgulho.
O café tinha aberto há 15 dias e andava tudo ainda a desembrulhar cadeiras e a montar fiarada. Ainda andava eu a tentar não me
enganar nos trocos nem no café em vez do pingo, quando se senta alguém de chapéu mais para ser servido do que atendido. Era um
café com adoçante, 10h da manhã e tinha o seu jornal para passar o
tempo que, pelos vistos, não passou despercebido. Tanto não passou
que foram, cronometrados, 12 minutos de incompetência e ilustrados pelo relógio de pulso que me atirou à cara e à conta. Fui embora
de boca aberta, sem saber se por terem sido 12 minutos ou por um chapéu se ter dado à paciência de reparar.
Em Berlim todos são punks, freaks, góticos, de cores flourescentes e rabos acidentalmente à mostra. O que sobra, são velhotas de cabelo verde-alface.
Tinha cola no cabelo, eu sei que tinha. MĂŁos de rugas e cara de barbie falsificada de matĂŠrias-primas compradas ao desbarato.
Morar a 1200m de altura, um mundo e um lago congelado aos pĂŠs,
um posto de primeiros socorros nas costas, uma cadeira de plåstico no rabo e um sol de Inverno a bater na cabeça, que mais se pode querer?
Sempre o vi a fazer pizzas, anos e refeições, e cá para nós, desconfio que o calor do forno lhe foi derretendo a cara.
Sempre tive problemas com transportes públicos. Na primeira vez que pus o pé num, uma adolescente atropelou o autocarro e não
o contrário, coitado do condutor que teve que reclamar que o seu
veículo tinha uma amolgadela. Quando já tinha eu calo de bêbados aos gritos, conversas sobre o preço do bacalhau e da filha que ficou grávida, sou obrigada a sair entre paragens depois de uma ligeira
travagem, ligeira suficiente para levar meio homem. Era velhinho, avô de alguém que lá gritou, a bicicleta e metade dele estavam
debaixo do metro, e as laranjas foram todas parar ao chão. Veio nas notícias, e para mim veio em meia mão.
Começava de amarelo e acabava azul esverdeado ou verde azulado, nunca se soube bem. Não sei se por inveja minha ou da camisola
dela, nunca deixei de a seguir com os olhos, fosse pelo verde, pelo azul, ou pelo “envy” estampado no peito.
Parecia gostar que olhassem para ela, tal a indiferença. E para quem
olha, era absolutamente livre, como se nunca tivesse deixado a selva e nĂŁo vivesse com o mundo a abarrotar de pessoas a olhar para ela.
Um estava vestido à banana. Dos outros, um era “nerd” de óculos a ocupar meia cara, 0 outro tinha carapinha e não cabelo. Estavam a
dançar em cima de uma coluna, como se fossemos todos figurantes e as luzes programadas, num filme para adolescentes ou só mais uma comédia a estrear brevemente.
Quando cheguei Ă beira deles, nĂŁo tinham vida nem tinham morrido. Estavam brancos, de
boca fechada, corpo parado, garganta e cinto apertados. Precisavam de uns minutos, bastantes, para digerir a milĂŠsima de segundo que os fez despistar-se contra os railes da VCI e quase me levarem a mim tambĂŠm.
Passou por mim umas quantas vezes nos túneis de Barcelona, e tenho a sensação que não reparou em mim. Não usava óculos e todos olhavam, menos ela.
Estava com mais álcool no sangue que sangue. Mas queria um gelado, por isso foi a uma
máquina automática lá do aeroporto. Mas o gelado não saía e ele não percebia porquê. Então
resolveu que tinha sede, tentou a máquina do lado e gastou o resto do dinheiro que tinha. E a
garrafa também não saiu. Depois de andar à luta com o paralelepípedo que não tinha culpa, e de lhe rogar umas quantas pragas, foi-se embora a rastejar no próprio embaraço. Tinha uma fila de pessoas a assistir, e ninguém fez nada. Eu, eu também não. Ninguém teve a coragem ou simples pena de lhe apontar o papel de “fora de serviço” colado à sua frente.
Mas é que é só uma bola. Uma esfera que quis jogar xadrez. Só porque a bola rola, todos
suam, berram, aumentam pulsações e trabalham as rugas de velhice precoce. Levantam e sentam, levantam e sentam, levantam, berram, e sentam. Tanta fé na bolinha rolante. E penso, eu e a minoria que não cai de amores por matrecos, para quanto daria tanta
fé. Quão melhor seria o mundo. Mas depois dizem-me, mas isto une ricos e pobres, é a união do povo. Ao que eu digo, sim sim, é a união do povo a bater palmas aos grandes
e gigantes, que andam a arrastar-se nos seus milhões pelo descampado falso. O resto?
O resto é relva, é fé, a música, a força. Está tão enganada, a gastar calorias em exercícios
que fazem mal às costas. É relva a gostar de gastar voz. Prova disso é que já berram desde sementinha, atrás de mim e de voz estridente, porque está a ser cometido um crime à
Humanidade, o número de passes errados é “pornográfico” e, na falta de melhor, porque somos desde lado e não do outro. Pincha durante uma hora e meia, a apontar o dedo
porque o pai aponta, a fotocopiar a cores o que o pai é, sem interrogar e muito menos sem perceber.
Quanta perdição, má publicidade ou realidade vem de brinde,
quando a pessoa mais gorda que vi na minha existência, comia um hamburguer no McDonalds?
Para mágico que me iludiu, pareceu hipnotizar-me nas estrelas das calças e no vermelho dos óculos decorativos. Mesmo que quisesse, nunca prestaria atenção ao resto dele que era estudante, estava demasiado entretida a contar estrelas.
Não costumo olhar de lado para estas pessoas. Precisamente por
estes dois seres mandarem o mundo dar uma volta, só me apetecia
ir lá e dizer que gostava de ser como eles. Primeiro vi o rapaz, na fila para a Torre Eiffel, a falar com os corvos. Pensei que se não tivesse um metro e pouco, até seria giro. Um tempo depois, encontrei-o
nos Invalides, de mãos dadas a outro metro e pouco de cabelo loiro. Sorri a tentar conter o espanto mal disfarçado, e gravei por cima do
pensamento anterior: “Caraças, de inválidos não tem nada”. Olho-as de baixo, não por serem altas, não por se medirem em palmos, mas
por porem o mundo num bolso e os pessimistas não lhes chegarem aos calcanhares.
Ainda hoje tenho, algures nas minhas tralhas, um boneco
extraterrestre de 4 cm, feio como tudo. Tenho-o porque nunca digeri bem um gelado que pedi no café perto de minha casa, onde o dono
devia achar que nós, crianças, somos doutro planeta. Claro que o que eu queria era o gelado, pelo menos não era verde. Por isso reclamei
a alto e bom som, porque o mundo quer é rebeldes, nem que depois tenhamos que andar com extraterrestres no bolso a vida toda, porque fomos rebeldes e estúpidos.
Chamei-lhe mentalmente o homem da meia farda. Ou teve que
sair do emprego à pressa ou achou piada ao conjunto, de casaco
de homem do metro das 8h às 18h e calças de treino ou de sofá e batatas fritas para o resto das 24h.
Arrependi-me de não lhe ter perguntado como é que respirava
debaixo de água. É que trazia o fundo do mar todo. As conchas, as
cordas, a barba das roupas rasgadas e a rede reparada. As gaivotas
rondavam-lhe como se já o conhecessem, e eu rondei-o para lhe ver as feições de sal.
Em época de saldos, oferecia o esqueleto e não o corpo, que esse já tinha ficado
pelo caminho ou na última refeição. Só
lhe sobrava pele, osso, muito osso, preto,
transparências e meias de renda. E ligas, que as meias não seguram em ossos.
Cruzei-me demasiadas vezes com ela. Acompanhava-me, sem
saber, no metro, no autocarro, na rua, no shopping e aonde mais eu não contasse. Quase que já lhe dizia olá. Não sei a primeira, mas a
sua segunda profissão é andar de mãos pesadas, de cabeça baixa e
ombros altos. Todo o tipo de sacos, roupa, comida, pretos, pesos que sabe-se lá de onde vieram. Pode ser que amanhã passe por mim e não me veja, está com a cabeça baixa.
Este ainda apanhou os escudos. Todos os dias dava-lhe a
moedinha que a minha mãe me mandava entregar, já que
sempre estacionava atrás dele para me deixar na escola. Tinha um carrinho de três rodas e víamo-lo pela cidade de vez em
quando, mas às 8h20 de segunda a sexta-feira estava sempre ali no seu carrinho, a receber a minha moedinha. Viu-me crescer, e nunca lhe falei.