Revista dek. - Edição 90's

Page 1




4

Dek 90’s

Editorial Carolina Navarro Design

Gabriela Bourdette Redação/Coordenação

Gabriela Vieira Design

Lucas Leone Redação/Revisão

Mia Tiziano Redação

Romulo Moraes Redação

Victor Oliveira Design


5

6 10 12 14 18 20 24 26 30

A odisséia noventista Atônitos & Remediáveis ERROR 404 - Person not found O fim e o recomeço da música Pinturas em movimento Centenário - ou quase - da sétima arte A dualidade no universo das sitcoms dos anos 90 Imagem em ação Na hora do recreio


6

Dek 90’s

A odisséia noventista

Gabriela Bourdette

Pode-se dizer que os anos 90 deram início a uma nova era. A era da globalização, do capitalismo global, da privatização e, de certa maneira, da consolidação da democracia. Logo em 1991, o dito comunismo entrava em colapso com a dissolução da União Soviética, desencadeando o real fim da Guerra Fria, mesmo que muitos acreditem que essa tenha acabado em 1989. A perestroika e a glasnost de Gorbachev, respectivamente abertura econômica e política, claramente não foram uma sábia decisão para um sistema já falido, elas acabaram por se tornar armas para a própria oposição nos diversos países acoplados na antiga URSS, assim, implicando diversas rebeliões. Algumas, de certa forma, calmas, como a Revolução de Veludo que acabou com o comunismo na Tchecoslováquia, separando o território em República Tcheca e Eslováquia e outras extremamente violentas, vide o famoso conflito étnico de desintegração da Iugoslávia, a Guerra do Kosovo e a Guerra de Independência da Croácia, episódios sangrentos que tiveram como fim a desintegração iugoslava em seis

A era da globalização, do capitalismo global, da privatização e, de certa maneira, da consolidação da democracia. repúblicas, Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia e Montenegro, e duas regiões semiautônomas, Kosovo e Voivodina. Se a Europa Oriental havia perdido em 1991 um ponto de estabilidade, apenas um ano depois, a América do Norte, especificamente os Estados Unidos, ganhavam o que acreditavam ser o seu: Bill Clinton. O democrata assumia a presidência em 1992 com as promessas de combater o desemprego e o retrocesso econômico, sequelas do governo anterior de George Bush. A popularidade pós Guerra do Golfo não foi o suficiente para Bush ser reeleito, ao assumir o mais


7 alto cargo político estadunidense, Clinton teve como prioridades domésticas reformas na área de educação, restrição de vendas de armas e fortalecimento das leis de proteção ao meio ambiente. Internacionalmente, buscou reduzir barreiras comerciais, vide Nafta, mediar conflitos na Irlanda do Norte e entre palestinos e israelenses, a suposta Paz de Oslo. Teve como primeira dama Hillary Clinton, atual secretaria de Estado do Barack Obama, que em Abril de 2015 anunciou formalmente que iria tentar a candidatura do Partido Democrata para o cargo de presidente nas eleições de 2016. Em 1996, o crescimento econômico continuo e moderado ao longo dos últimos quatro anos e a redução das taxas de desemprego, permitiram que Clinton fosse reeleito com a economia na situação mais saudável em anos. Neste segundo mandato, aparentemente tudo o que deveria ser feito era dar continuidade as ações iniciadas anteriormente. No entanto, essa calmaria logo passou, em 1998, ele tornou-se o segundo presidente estadunidense a sofrer um processo de impeachment, devido ao escândalo sexual envolvendo a estagiária Monica Lewinsky, as relações extraconjugais do presidente entraram em choque com a cultura

puritana que exige do homem público, na vida privada, comportamento pautado pelos mesmos valores que deve demonstrar em sua esfera política e pública. Tal caso acabou sendo absolvido pelo Senado. Mesmo assim, ao deixar o cargo, recebeu as mais altas taxas de aprovação para um presidente na história contemporânea dos Estados Unidos, 58% de imagem positiva. Os últimos dez anos do século XX, indubitavelmente, reafirmaram os Estados Unidos como potência mundial, mas do Chile, os chicago boys, com o fim da ditadura lá vigente, tiveram de se despedir. Esse regime teve como início o bombardeio ao Palácio La Moneda em 1973 e a consequente morte do então presidente democraticamente eleito, Salvador Allende, dando lugar ao Augusto Pinochet, à implantação do neoliberalismo na América do Sul e à pior ditadura da América Latina. O ano de 1990 foi o adeus definitivo a tal tempo sangrento, o processo começou em 1987 com o plesbicito ao povo chileno acerca da permanência ou não de Pinochet no governo, o não ganhou e, com isso, três anos depois, Patrício Aylwin assumia a presidência do país.


8

Dek 90’s

No Brasil, a década de 90 teve um início desesperador: Collor ordenava o confisco das poupanças. O país ainda era assolado pela inflação galopante da década perdida, os anos 80. Com as privatizações das estatais, Collor trouxe ao país o flagelo do neoliberalismo. O fracasso dos planos Collor I e Collor II, que visavam combater a inflação, junto ao escândalo do esquema PC Farias, levaram a insatisfação geral da população com o governo, culminando no movimento “Caras Pintadas”, que suplicava pela renúncia do então presidente. A juventude saiu de preto às ruas com um posicionamento político nāo tāo marcado, pautado em um desejo: o impeachment de Fernando Collor de Melo. 1992 foi o ano da vitória dos caras pintadas, dando

fim a era do “caçador de marajás” e a descoberta de uma nova forma de fazer democracia: cobrar a deposição dos dirigentes corruptos ou incompetentes. Com a renúncia de Collor, o Brasil ganhou um novo presidente, Itamar Franco, e um novo Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. O Plano Real de 1994, que colocava o real em paridade ao dólar, foi o plano mais bem sucedido de controle inflacionário da Nova República, por conseguinte, trouxe ao Brasil a tão sonhada estabilidade. O bem-sucedido plano acabou trazendo a presidência, em 1995, o antigo ministro da fazenda, FHC. O seu primeiro mandato teve como alicerces o Plano Real e as privatizações. No que diz respeito às reformas, o governo conseguiu


9 que o Congresso Nacional aprovasse a quebra dos monopólios estatais nas áreas de comunicação e petróleo, bem como a eliminação de restrições ao capital estrangeiro. Calcado na estabilidade econômica e no controle inflacionário, em 1999, Fernando Henrique continuou a ocupar o cargo mais almejado de Brasília. Muito embora o Plano Real tenha contido a inflação, é necessário olhar também para o seu lado sombrio cujas sequelas apareceram principalmente em seu segundo mandato: elevaram-se as taxas de juros, a fim de atrair capital especulativo, para encher os cofres do Estado, assim, a população perdeu poder de compra. Além disso, a redução do protecionismo estatal em conjunto as privatizações realizadas, efetivou a inserção do neoliberalismo em nosso país, dessa forma, efetivou também a maior taxa de desemprego do Brasil, assim como a falência de nacionais. Em 1998, a Rússia declara moratória e, então, deflagra-se no mundo inteiro uma crise econômica. Essa chegou ao Brasil no ano seguinte, sendo um dos fatores responsáveis que vieram a culminar os problemas econômicos que o país voltaria a enfrentar. Tais problemas foram agravados com o aumento da má distribuição de renda por todo o Brasil. Ademais, as universidades federais durante esses 8 anos tucanos foram sucatea-

1992 foi o ano da vitória dos caras pintadas, dando fim a era do “caçador de marajás” e a descoberta de uma nova forma de fazer democracia: cobrar a deposição dos dirigentes corruptos ou incompetentes. das, tal situação se reflete na atualidade. Neste período não houve programa algum de expansão de vagas, fazendo com que a escala social de acesso ao ensino publico e gratuito se verticalizasse ainda mais, não foram criadas novas universidades federais e houve corte de gastos públicos, tanto para a infraestrutura como para atividades de pesquisa, ensino e extensão. Portanto, a fim de analisar a crise que a educação se encontra em nosso país, é primordial analisar essa época e romper com esse ciclo vicioso marcado pelo descaso e negligencia da mesma, que continua, inclusive, no governo atual.


10

Dek 90’s

Atônitos & Remediáveis

Romulo Moraes

Há um pedaço de verdade nos manuais de auto-ajuda e psicologia pop, e na mitologia do homem comum, sobre o qual até o mais polidamente arguto dos filósofos falha em se debruçar: a vida humana precisa de significado. É simbólico e sintomático o suficiente que talvez o padeiro do seu bairro tenha essa noção muito bem definida e em constante exercício, enquanto Nietzsche, Tarkovski ou David Foster Wallace a tenham ultrapassado com desdém. Sem significado, a vida vai se despindo de seu real valor, e se torna, progressivamente, irrelevante e trágica. Não estou dizendo que não há espaço para a tristeza na vida. A tristeza é, inclusive, essencial, porque, tendo a alegria como contraparte e amante sutil, se uma não pode se colocar, também não pode a outra – elas são a ida e a vinda do badalar de um pêndulo (e a sensibilidade sempre propicia tanto as maiores alegrias quanto as mais profundas tristezas). Mas, se, quando começamos a nos perguntar se a existência vale a pena, não fazemos a menor ideia da resposta, ou então temos medo de responder, alguma coisa deve estar errada. Esta é a história de uma geração inteira, a que testemunhou o apogeu e a queda dos anos noventa: éramos ex-

tremamente efetivos, super-humanamente funcionais, totalmente livres, e terrivelmente tristes. A falta de propósito é o maior dos cansaços e o próprio ócio torna-se torturante, pois só serve para confessar o sacal drama do arrastar do tempo. Quando a euforia é só uma fagulha entre dois nacos de sofrimento, e o desejo de completude é fruto de uma vontade insaciável (da ambição que, quando alcançada, deixa de ser desejável e migra de um objeto a outro), é difícil mesmo não se entupir de remédios e drogas recreativas para escapar da mediocridade de sua própria consciência. Ezra Pound dizia que a arte é “a antena da raça”, um tipo de bússola que indica qual é o estado mental e moral de uma sociedade, e, bem, a única coisa mais triste que a literatura japonesa pós-45 é a literatura russa de todos os tempos. Já a cultura dos anos noventa (principalmente americana, que guia a – a época recém-surgida - cultura do mundo) é evidência cabal do desenraizamento causado pela hipertrofia do progresso no fim do século XX. Não adianta achar que é possível resolver um problema existencial sério com remédio, ou que é uma boa ideia medicar crianças mais ou menos agitadinhas porque você não tem tempo para dar a elas a atenção que


11

merecem. Uma hora ou outra isso vai acabar transformando a nossa cultura, e, a partir daí, transformando nossa forma de lidar com o mundo como um todo. O movimento da “New Sincerity”, que se inicia com o épico “Graça Infinita”, de David Foster Wallace, demonstra isso com aquela precisão acidental (do tipo que seria improvável se fosse consentida e deliberada). Nada mais adequado para descrever uma juventude que passou a funcionar na base de Prozac e Ritalina que a sinceridade tornada fetiche estéti-

co, ou que um escritor-símbolo tão livre e desapegado, de estilo tão blasé e cool, que termina seus dias com uma corda amarrada no pescoço. Talvez tenhamos nos tornado sensíveis demais à realidade, ou talvez tenhamos nos tornado extremamente insensíveis em relação às suas sutilezas. Como avestruzes que meteram suas cabeças na terra e acabaram presos ao chão.


12

Dek 90’s

ERROR 404 Person not found

Mia Tiziano

Em 1990, Tim Berners-Lee, cientista, físico, professor e atual pai adotivo de quase três bilhões de pessoas, encenou sua proposta de criação da World Wide Web. A ideia se escorava no conceito de hipertexto e em alguma subestimação ao ambientar o protótipo de sistema apenas no universo dos pesquisadores. Mas, de certo, era só questão de tempo para que avanços técnicos somados a um consórcio de empresas minimamente proativas dimensionassem o que a conectividade sem restrições e a neutralidade da rede poderiam fazer pela geração Z. É fator comum do século XX a temporização e taxação de gerações por características socioculturais. A grande geração, a geração silenciosa, os baby boomers e as XYZ, separadamente como no alfabeto mas que se esbarram nas aparições de inúmeras vertentes da contracultura, ao tempo em que se esvaziam de particularidades e dispensam a própria identidade; todas elas são capítulos de uma história inacabada. Ironicamente, a geração adotada por Tim é uma nuvem, repleta de efemeridades. A dinâmica econômica mundial naturalizou o descarte, não só do que é matéria, mas também do que a transcende. Cria-se então um am-

biente volátil, onde nada é insubstituível, e as ideias, de disseminação facilitada e vozes que mais parecem ruídos, viram palavras de ordem de um messias sem rosto. O niilismo da sociedade digital descrito pelos cyberpunks, a utilização do meio virtual para desestruturação das noções de sexo e gênero falocêntricas pelo VNS Matrix e as cyberfeministas, o hedonismo e a glamourização da decadência tingidos em preto e neon pelos retalhos da subcultura gótica: correntes e estilos que foram surgindo ou sobrevivendo com a visibilidade que as novas mídias e hipertextos garantiram. De certo, é um avanço a existência de um espaço de sociabilidade tão amplo e expressivo capaz de originar

Talvez estejamos, desde a década de 90, nos encaminhando pra esse esvaziamento visceral em troca da possibilidade de ser todo o resto que não nós mesmos.


13 novas formas, códigos e especificidades, mas o mesmo potencial que tem de ser objeto de criação de conteúdo, tem de ser mera reprodução. A interconexão generalizada reflete uma universalidade sem totalidade, onde a cultura cibernética é instrumento para divagações compartilhadas, e toma a inteligência coletiva como sinal da incapacidade do homem de pensar sozinho - ou ao menos de sua insegurança e má vontade para fazê-lo. Afinal, com a infinidade de possibilidades do que ser, é simplório e confortável fazer-se um simulacro de si mesmo. E é uma pluralidade tão vasta, que esgota as possibilidades do individuo ser único. Até mesmo o marginal é incluído em algo maior que ele: o lado de fora. O anonimato surge como escape ou disfarce, já que identidade é

fluida e cambiante, e dele se desdobram a expansão de chats, o Usenet, a aparição dos blogs, redes sociais e a curiosamente triste prática de sexo virtual. Talvez estejamos, desde a década de 90, nos encaminhando pra esse esvaziamento visceral em troca da possibilidade de ser todo o resto que não nós mesmos. Talvez esse seja o mais perto que alcançaremos da liberdade desejada pelos grunges de uniforme flanelado. E muito provavelmente isso se torne natural e na próxima geração, de letra desconhecida, essa matéria seja uma reclamação do óbvio. A internet é uma biblioteca, uma fofoca, uma mesa de bar, um filme pornográfico e um palanque: em todos eles há pelo menos um personagem inventado. Ela só permite que esse seja você.


14

Dek 90’s

O fim e o recomeço da música

Romulo Moraes


15 O momento em que a música parecia se extinguir, no fim de um ciclo de dois séculos e meio, foi justamente o momento em que ela ganhou propulsão e fertilidade. Foi com o surgimento de uma indústria cultural comercialmente bélica e desestruturadora que a música pôde, paradoxalmente, se abrir por completo para novas possibilidades que escapassem à visão estreita dessa mesma indústria. Nos anos noventa, os artistas começam a expandir seus horizontes técnicos, se aproveitando da revolução midiática provocada pela internet, e seus horizontes conceituais, se aproveitando do fato de não dependerem mais das grandes gravadoras (de não poderem depender delas, isto é, por essa ser a única chance de permanecerem com sua sanidade e dignidade artística intactas). E a música, em seu último suspiro, toma a lufada de ar puro pela qual sua falta de fôlego implorava. Mas vamos começar do começo: a saga da evolução da música (da música ocidental, de raízes eruditas e europeias, é sempre bom lembrar), se inicia com o medievalismo, que logo se torna matéria de manipulação nas mãos dos grandes compositores renascentistas, e então surgem os barrocos, com a ópera de Monteverdi e a revolução musical de Bach. Se marcamos o início da escalada da cultura musical moderna (aquela que desemboca e desabrocha na atual música pop) em Bach, podemos ter uma noção do seu progresso e da sua transformação ao longo da história e do desenvolvimento propriamente dito dos meios técnicos e dos meios de autoanálise e aprofundamento da autoconsciência.

Da música clássica, dodecafônica, vem o jazz, com gênios como Duke Ellington e John Coltrane, e, do jazz, o rock, inspirado pela profética subversão dos beatniks, através de Chuck Berry, B.B. King e Bob Dylan. Os Beatles instauram o reinado das bandas de quatro homens e das músicas curtas, com melodias e harmonias límpidas e composições perfeitas - verso um, refrão, verso dois, refrão -, tudo bem fechado e sem erro, tudo facilmente digerível e sem rebuscamento ou complexidade (e digo isso como elogio). No sentido dialeticamente oposto, ao mesmo tempo em que os Beatles inventam o pop, Frank Zappa e o Velvet Underground, tonificados por uma revolução cultural, propagam a música experimental (que vai, em breve embebedar a música dos próprios Beatles): a música livre de qualquer coordenada rígida que a limite em seu jogo de acordes, a música como poética, ou como forma explosiva de catarse e realização de si própria. Vaza dessa ebulição musical, funcionando como válvula de pressão para a hegemonia dos hippies, a música punk. Um ou dois empresários se aproveitam da cultura da raiva canalizada e reprimida por vinte anos para meticulosamente inventar (e investir em) bandas como o New York Dollls e o Sex Pistols, que, se me é permitido dizer, não eram nada mais que boy bands proudhonianas, de roupa e atitude comercialmente pensadas. Começava a sair de cena a música em si para dar lugar a identidades estéticas, a comportamentos artísticos, à arte-além-da-arte. Nesse meio, e, estranhamente, simultâneo ao punk, surge o pós-punk, em Iggy Pop, Talking Heads e Joy Division, destinado a estilisticamente destruir


16

Dek 90’s

e experimentar, e surge a dança eletrônica do New Wave, que não queria nada mais que entreter seus ouvintes e fazê-los esquecerem que existe um mundo lá fora, ou que aquele exato momento passará. É na mistura desses dois sentimentos aparentemente imiscíveis que a década de noventa começa. A impressão geral é de divisão e decadência cultural, mas, como se a cultura não estivesse tanto à disposição de um progresso unidirecional, como se seguisse uma proporção bastante livre e incalculável, parabólica, helicoidal, é nesse clima de decadência que uma nova sensibilidade surge, assim como um novo tipo de experimentalismo e de concepção musical. Uma sensibilidade que, ao mesmo tempo, faz um retorno à musicalidade clássica e busca integrar os novos ritmos e identidades do pós-punk ao sentimento original de subversão do rock, e à virtuosidade vigorosa do jazz, e – porque não? - à organicidade do pop. Para entender o estado da música nos anos noventa (estado que se aprofunda a partir dos anos dois mil em diante), é só prestar atenção na multiplicidade de gêneros e jeitos musicais que irradiam ou se reinventam justamente nesse período. São gêneros distintos e até, muitas vezes, opostos entre si, mas que têm em comum a semelhança com essa sensibilidade e esse ambiente comportamental de globalização que os possibilitou, bem como a marca de uma agitação cultural frente à aparente decadência. Em 1986, Dr. Dre, Ice Cube e Eazy E. formavam um dos primeiros grupos

de rap da história, o N.W.A. (que significa literalmente “negros com atitude”), e, em 1989, G.Z.A., Ghostface Killah, O.D.B. e mais alguns outros, seguindo a tendência, formavam o Wu-Tang Clan, primeiro grupo de rap a receber alguma atenção da crítica especializada. Três anos foi o que demorou para o preconceito racial deixar de entupir o ouvido de alguns senhores da crítica cultural a ponto de eles conseguirem ouvir um grupo de rap com honestidade intelectual. Um avanço em comparação ao que tinha acontecido com o jazz meio século antes, mas chocante quando percebemos que essa atitude se alastra, ainda, até os dias de hoje, na ausência expressiva de premiações a artistas do calibre de Kendrick Lamar, Madlib, Flying Lotus e MF DOOM. Do outro lado do Atlântico, em 1987, Clare Wadd e Matt Haynes, de Bristol, na Inglaterra, criavam o fanzine que deu forma ao que viria a ser a Sarah Records, popularizadora, junto da famosíssima Factory, da ideia clássica do indie. A estética almejada, ali, acredite, puxava muito mais para um jangle pop estilizado e aberto para distorções e arranhos (quer dizer, para o que, mais tarde, originaria o nosso amigo shoegaze) que para qualquer coisa relacionada aos sintetizadores gritantes e as vozes agudas do MGMT – ou: muito mais para a sinceridade lírica morriseyana que para a composição publicitária da atitude pseudo-militante, subversão-de-jardim-de-infância, de uma Lorde. Era o início dessa ramificação do pós-punk que a cada dia se populariza mais, e a cada dia se transforma e, ela mesma, passa a se ramificar: o indie rock. Enquanto isso, em algum lugar no seio de Seattle, bandas como o Nirvana,


17 o Pearl Jam, o Soundgarden e o Stone Temple Pilots se proliferavam obsessivamente, formando a malha musical do grunge. De camisa flanelada e jeans rasgados, banhos menos frequentes e repletos de um niilismo blasé, de um afastamento praticamente estoico de suas próprias emoções, eles tocavam um rock pesado e cheio de barulho e dissonância, e acabaram por cativar uma juventude carente da potência do punk e de uma mesma identidade que finalmente os unisse em meio à caótica heterogeneidade da globalização. Da grave tensão entre a vontade irrefreável de criar música independente e a prisão moral das gravadoras surgiram incontáveis disputas internas, e todos sabemos como algumas delas terminaram. E o rap, o indie e o grunge definiram a década de noventa musicalmente, mas nenhum gênero poderia explicá-la

tão bem quanto o pós-rock o fez (ele é, não por acaso, o gênero mais difícil de descrever). Imagine alguma coisa como o Miles Davis tocando guitarra numa banda de rock progressivo. Ou Gustav Mahler brincando com sintetizadores. O pós-rock, reflexo preciso dos anos noventa, foi a fusão esquisita e improvável de trejeitos de um monte de gêneros diferentes, que terminavam em uma apoteose orquestrada. Tanto em forma de hard rock, com o Slint, quanto em forma de música ambiente hiper-trabalhada, com o Tortoise, ou de diversão sinfônica-eletrônica, com o Mogwai: os barulhos ali, só feixes em constante dispersão, não interessam muito – não tanto quanto o espírito que adorna aquele sentimento como um todo, o tipo de sensibilidade que o produziu e o tipo de identidade que passou a gerar, e de sentido que passou a fixar no mundo que nos envolve.


18

Dek 90’s

Pinturas em movimento Todos os dias da semana, Hayao Miyazaki chega exatamente às 11 da manhã e sai exatamente às 9 da noite, do seu estúdio, um casarão branco de arquitetura moderna, e que parece estar sendo modernamente invadido pela natureza que a envolve, de uma forma que só a própria imaginação do diretor poderia conceber. Há mais de vinte anos, ele permanece firmemente apegado aos seus horários. Só não aparece para trabalhar aos domingos, e, nesses dias, para evitar

A arte animada do Studio Ghibli Romulo Moraes

qualquer resquício de ócio, limpa um rio que passa perto de sua casa. São hábitos que combinam dois aspectos tradicionalmente japoneses: a resoluta disciplina e a vontade indesviável de ocupar todo o seu tempo livre - mais por querer exercer dedicação que por possuir um gosto pelo trabalho em si. Tanto que, no fim de cada


19 jornada diária, Miyazaki se força a fazer uma pausa para observar o céu e fumar alguns cigarros. “O que eu faço é ler o mundo. Gosto de olhar o céu, me perguntar o que está acontecendo com aquela pessoa ou aquela outra, ficar percebendo as mudanças de preço no mercado, esse tipo de coisa.”, conta à cineasta Mami Sunada, em seu documentário sobre o Studio Ghibli, “Yume to Kyôki no Ôkoku” (algo como “O Reino dos Sonhos e da Loucura”). “O mundo está mudando e o futuro é claro: tudo vai cair aos pedaços. Eu já posso ver”, diz, sorrindo de orelha a orelha. Quando Miyazaki anunciou sua aposentadoria com “Asas ao Vento”, em 2013, reavivou o debate sobre seu legado e suas posições estéticas e políticas. Ao mesmo tempo em que o diretor publicava uma carta se opondo à decisão do governo japonês de mudar a Constituição para voltar a possuir um exército próprio, após as sanções da Segunda Guerra, ele desenhava um filme em que cria um herói a partir de Jiro Horikoshi, inventor do mortal avião de guerra Mitsubishi Zero. Enquanto toda sua figura pública aponta para uma forte militância em favor do pacifismo e do ambientalismo, Hayao Miyazaki sabe separar o homem do artista, e sempre deixa o filme livre para expressar exclusivamente o que se dispõem a expressar. Não que os filmes não demonstrem apreço pelo pacifismo ou pelo ambientalismo, por exemplo – na maioria das vezes, até o fazem – mas a

obra é a obra, e só então vem o resto. “Já aconteceu de a equipe vir me dizer que não fazia ideia do que estava acontecendo nos meus filmes. Em “A Viagem de Chihiro”, nem eu mesmo sabia.” Mas é assim mesmo que deve ser. Seus filmes não foram feitos para serem compreendidos, logificados. Foram feitos para que nos sentemos em nossas cadeiras e contemplemos a beleza daquelas cores deslizando delicadamente através das paisagens. Como pinturas em movimentos, todas os cenários desses universos imaginados já são, em si, profundamente significativos, todas as narrativas são profundamente fantásticas e sobrenaturais, como mundos inteiramente novos, com novos processos e dinâmicas, tudo quimérico – o que exige uma imaginação incrível. Com o Studio Ghibli, o desenho animado deixa de ser só entretenimento infantilizado e se torna arte. Nos anos 90 e 2000, começando com o ilustre “Meu Vizinho Totoro”, de 1988, e culminando em “Princesa Mononoke”, de 1997, as obras de Hayao Miyazaki passam a desvendar as possibilidades vivas de aprofundamento estético e filosófico nas animações, renovando o mistério da criação, e demonstrando, mais um vez, o sentido do cinema.


20

Dek 90’s

Centenário - ou quase da sétima arte

Lucas Leone


21

Run, Forrest, Run! Embora críticos considerem as produções cinematográficas da década de 1990 uma sucessão de fracassos e de orçamentos portentosos, as mesmas permitiram a inúmeros artistas e diretores transpor barreiras do anonimato e conquistar renome internacional, alterando percepções da posteridade. Um dos mais ancestrais gêneros da História recebeu, à época, vertiginoso destaque: o drama permeou desde ficções científicas até aventuras épicas, sem desatar seu vínculo vitalício com o suspense. Algumas tramas incorporaram recém-surgidos efeitos especiais, outras utilizaram do tratamento concreto e realista; todas, porém, mantiveram um tom trágico e uma tênue linha de tensão, suscetível a constantes oscilações. Consolidou-se, assim, uma indústria dos blockbusters, cujo dinamismo sustentava, ideológica e economicamente, as entidades do cinema-espetáculo, estabelecidas, sobretudo, em Hollywood. Forrest Gump (1994), de Robert Zemeckis, apresenta um homem trivial, pouco inteligente, do Alabama e sua longa jornada através de anos da História norte-americana – inclusive, ele presencia episódios tais quais os governos de Kennedy e de Nixon, a Guerra do Vietnã, a marcha de Martin Luther King. Obteve uma receita próxima de US$ 700 milhões, junto de 13 indicações ao Oscar. Titanic (1997), de James Cameron, revela Jack Dawson e Rose DeWitt Bukater, protagonistas de uma antológica relação amorosa a bordo de um colossal transatlântico. Oriundos

de estratos sociais opostos, ambos enfrentam obstáculos morais e uma catástrofe física para permanecerem unidos. Houve uma bilheteria superior a US$ 2,1 bilhões e uma premiação de 11 estatuetas, a segunda maior da Academia. Concomitantemente, nesse mercado concentrado, emergiram longas-metragens de menor dispêndio e de eminente qualidade, de modo a estimular uma frente de concorrência, além de empreendimentos independentes. Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), de Martin Scorsese, enfoca a próspera ascensão, seguida do vexatório declínio, de um capo de mafiosos do Brooklyn, em meados do século XX. O Guarda-Costas (The Bodyguard, 1992), de Mick Jackson, retrata Rachel Marron, cantora e atriz que, ameaçada de morte, emprega Frank Farmer, ex-agente do Serviço Secreto, como segurança particular, nutrindo uma febril paixão por ele. À Espera de um Milagre (The Green Mile, 1999), de Frank Darabont, concatena duas figuras peculiares dentro de um ambiente hostil: Paul Edgecomb, chefe de guarda de uma prisão da Louisiana, e John Coffey, cativo negro e dotado de um dom misteriosamente milagroso. Talvez estetas da sétima arte não aclamem qualquer obra de tal período, sequer o recomendam àqueles de apetência apurada. Em contrapartida, expectadores desejosos de conflitos sentimentais e de comoção devem assistir a grande porção dos dramas “noventistas”, pois são fascinantes e diversificados.


22

Dek 90’s

Buongiorno, mundo novo

Ao longo dos anos 1990, registrou-se uma participação ativa do gênero épico-histórico na edificação da cultura popular e na perpetuação de eventos memoráveis da cronologia humana. Com traços do drama, do romance e da aventura, películas do nicho sempre demonstraram diligência e perícia diante do processo de montagem e de representação, comumente detalhistas e faustosos. A partir disso, angariaram tanto a afeição da audiência massiva quanto o prestígio da elite intelectual. Uma das temáticas amplamente abordadas – e igualmente polêmicas – constituiu-se da Segunda Grande Guerra, responsável pela polarização do globo, de 1939 a 1945, entre Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e Aliados (EUA, Inglaterra, França e URSS). A Lista de Schindler (Schindler’s List, 1993), de Steven Spielberg, e A Vida é Bela (La vita è bella, 1997), de Roberto Benigni, tratam do antissemitismo nazista, que confinou judeus em campos de concentração e os exterminou brutalmente. O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998), também de Steven Spielberg, introduz um resgate militar ao último de quatro irmãos norte-americanos, desaparecido depois dos Desembarques da Normandia. Atrás do extenso aparato técnico-visual das superproduções, resistiu um ilustre objetivo: narrar e disseminar ocorrências pretéritas, de modo a removê-las do esquecimento e projetá-las sobre as gerações futuras. Essas, afinal, jamais repetirão tamanhas atrocidades, compartilhando de uma sociedade livre, bela, isenta de ódio e de cobiça.


23

Quem é Burton sempre aparece De cabelos desgrenhados, levemente encanecidos, e óculos de sol, Tim Burton constitui um dos célebres nomes do cinema contemporâneo e um dos expoentes do terror fantasioso. Recluso e fortemente inspirado pelo expressionismo alemão de 1920, ele desenvolveu um estilo peculiar e obsessivo, referto de formas angulares, perspectivas distorcidas e contraste entre claro e escuro; intrínseco a uma atmosfera surreal, onírica, sombria, gótica e macabra, referida de forma sensível e bem-humorada. Seus projetos carregam, geralmente, uma explosão cromática, com matizes lilás, laranja e vermelha, que acarretam um impacto ótico entusiasmante. Suas personagens são estranhas, deslocadas da esfera circundante e à procura de aceitação: esqueletos, vampiros, bruxas, cientistas insanos, crianças fantasiadas e aberrações da natureza – todos esguios, macilentos, pálidos, esquálidos, desleixados e assustados. No derradeiro decênio do milênio anterior, Burton trilhou um crescente profissional e realizou filmes autorais como Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 1993); dirigiu Batman, o Retorno (Batman Returns, 1992), Ed

Wood (1994), A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Sleepy Hollow, 1999) e; produziu Batman Eternamente (Batman Forever, 1995) e James e o Pêssego Gigante (James and the Giant Peach, 1996). Em cada qual, cotejou um mundo frugal e perfeito a um mundo sobrenatural, habitado por introspectivos, soturnos, apreciadores da poética do breu. Portanto, princesas mostram-se entediantes, enquanto monstros incompreendidos possuem sensibilidade, emoções e estado de espírito. Natal e Halloween, datas festivas ideologicamente avessas, sofrem uma excêntrica aproximação, interligando-se e complementando-se. Portador de engenhosa criatividade, Burton resgatou certos valores estéticos, de cuja combinação com elementos perturbadores irrompeu uma famigerada marca, hoje designada “burtonesca”.


24

Dek 90’s

A dualidade no universo das sitcoms dos anos 1990: Friends vs. Seinfeld

Gabriela Bourdette

As séries de televisão constituíram os folhetins do fim do século XX e do início do XXI. Se, no século XIX, liam Balzac como forma de entretenimento e alimento para debate, os coetâneos dos anos 1990 escolheram as sitcoms. Friends, de David Crane e Marta Kauffman, foi a minha primeira série. Lembro-me de chegar à casa, depois da escola, e ligar a televisão no Warner Channel, religiosamente às 13 horas, para assistir a reprise das temporadas originais. Primeiramente intitulada Insomnia Cafe, a partir da apropriação do humor neurótico e do cotidiano frenético

nova-iorquinos, tentou aproveitar a onda favorável ao gênero da comédia, gerada pela predecessora Seinfeld. Há exatos 21 anos, estreou a saga de seis amigos que buscavam sobreviver à cidade grande: Rachel, Monica, Phoebe, Ross, Chandler e Joey, jovens normais e frequentadores assíduos do Central Perk, uma cafeteria local. Porém, diferente de outras produções concorrentes, não persistem adolescentes excluídos socialmente, toxicodependentes, sem controle das respectivas vidas. Em Friends, tudo é utópico demais. O caso de uma das protagonistas estar animada


25 para um show do Sting expressa uma metonímia diante do desinteresse dos roteiristas de refletir aquele período com fidelidade; nota-se, inclusive, um distanciamento da Big Apple de Wu-Tang Clan, de Björk, de The Tunnel e dos Club Kids. Críticas à parte, Friends mostra-se bem razoável. Envolvente, comportado, reconfortante e completamente leve, possui um bom timing em diversas das situações abordadas. Jamais causaria epifanias, tampouco se propõe a tal; aceita, afinal, a qualificação de genérico.

Nada obstante, desde a transmissão do episódio final – a 6 de maio de 2004 – tornou-se um marco, para no mínimo, duas gerações, sempre reinserido dentro das grades atuais. Sete anos antes, NYC testemunhou o surgimento do que muitos consideram a melhor sitcom sobre o nada já concebida: Seinfeld, de Larry David e Jerry Seinfeld. De 1989 a 1998, emergiram relacionamentos amorosos, problemas no trabalho e os mais fúteis assuntos sob a perspectiva de Jerry, um comediante em tempo integral; George Constanza, o protótipo do perdedor; Elaine Barnes, a ex-namorada do protagonista, com compulsão a ser sincera e; Cosmo Kramer, o excêntrico vizinho. Apesar de neurastênicos, disfuncionais e, de certa forma, underdogs, eles resistiram aos desafios e às tentações constantemente assomados. De fato, programas humorísticos bem sucedidos nunca enfocaram indivíduos “legais” – esses permeiam filmes hollywoodianos, sobretudo os ambientados em Beverly Hills. Geralmente, posicionam os marginalizados e os excêntricos em um campo de destaque. A exemplo, Seinfeld, através do espírito irreverente, transformou em ícones da contemporaneidade quatro figuras cínicas, narcisistas e dissociadas de qualquer evolução moral, obtendo calorosa recepção do público. Ambas, em suma, perduram como referência da década noventista. Esquecer o “How you doin’?” de Joey Tribbiani é uma missão difícil, apenas suplantada pelo “Sem sopa para você!” do nazista de Seinfeld. Sitcoms vêm e vão; algumas, especialmente, possuem a sorte de ter seus bordões e frases de efeito ecoando em mentes tanto juvenis quanto maduras.


26

Dek 90’s

Imagem em ação

Lucas Leone

Ao decorrer da década de 1990, ocorreu uma efervescência das séries de desenho animado. Veiculadas por canais da televisão abertos ou de assinatura, atendiam a um público infanto-juvenil e abrangiam gêneros diversificados, como ação, aventura, comédia, fantasia, suspense. Em função do sucesso imediato e das constantes demandas, conglomerados de emissoras estabeleceram consórcio com estúdios de animação e cinematográficos para, a partir de seus acervos, consolidar uma indústria rentável, ainda vigorosa. Uma expressiva parcela desses produtos provém do Cartoon Network

Studios, fundado pelo norte-americano Ted Turner, a 1 de outubro de 1992. Após aquisição, em 1991, da precursora Hanna-Barbera – cujo patrimônio incluía de Tom e Jerry (1940) a Scooby Doo (1969) –, Turner Enterprises tornou-se referência técnica e criativa do setor de entretenimento. Também detentora de determinadas bibliotecas da MGM, da Warner Bros. e da Paramount Pictures, desenvolveu uma programação televisiva singular, introduzindo-a entre 1994 e 1995. Intitulada World Premiere Toons ou The What a Cartoon! Show, oferecia mostruários de desenhos animados, com aproximadamente 48 curtas-metragens, e


27 buscava retomar uma atmosfera próspera de meados do século XX. Fred Seibert, empresário e idealizador, incumbiu artistas do roteiro tanto escrito quanto gráfico, de modo a permitir aos mesmos autonomia executiva e retenção dos respectivos direitos e royalties. Ambiciosamente inovador, ele reuniu cineastas e animadores de inúmeras nacionalidades e raças, de sexos opostos, que compuseram uma extravagante paleta de influências. A despeito da ascensão da Nickelodeon Studios, sua concorrente potencial, Seibert traçou um projeto distante da tendência predominante e redefiniu padrões da television animation. Em 1996, então renomeada Cartoon Cartoons, tal plataforma devotou-se à edição de spins-off, ou seja, sequências derivadas de obras anteriores, agora dimensionadas para longos seriados. Uma vez popularizados, conquistaram um bloco nobre dentro da grade programática: toda noite de sexta-feira, exibia-se Cartoon Cartoon Fridays. Surgiu, inicialmente, A Vaca e o Frango (Cow and Chicken, 1995), de David Feiss. Em uma realidade bizarra, um mamífero e uma ave são irmãos, descendentes de uma relação humana. Ambos dispõem de facetas ocultas: Vaca apresenta um alter-ego de heroína, capaz de voar e falar espanhol; Frango enfrenta consecutivas tentações do vilão Bum de Fora, uma espécie de demônio vermelho.

Pai e Mãe aparentam uma normalidade, porém, existem apenas da cintura aos pés, sem vestígios da parte superior do corpo. O Laboratório de Dexter (Dexter’s Laboratory, 1996), de Genndy Tartakovsky, retrata um menino prodígio e seus projetos em um laboratório secreto, abaixo do próprio quarto. De guarda-pó branco e óculos, ele disputa contra Mandark pelo mérito das descobertas científicas, além de sempre repreender a irmã Dee Dee, imatura e irritante. Originalmente, Dexter carrega um sotaque alemão, talvez aludindo ao físico teórico Albert Einstein. Concebido por Van Partible, Johnny Bravo (1997) revela um jovem extremamente vaidoso, egocêntrico e forte, desprovido de inteligência. Reconhecido pelos óculos escuros e pela crista de cabelo loiro, ele venera mulheres belas e procura um amor verdadeiro nelas, geralmente fracassando. Vive aos cuidados da Sra. Bravo, uma mãe superprotetora, e da vizinha Suzy, uma menina ruiva de seis anos e secretamente apaixonada por Johnny. Em As Meninas Superpoderosas (The Powerpuff Girls, 1998), Craig McCracken contempla uma audiência feminina, pois introduz Florzinha, Lindinha e Docinho, da fictícia cidade de Townsville. Portadoras de habilidades especiais, elas resultam de uma experiência química do Professor Utonium: enquanto mesclava “açúcar, tempero e tudo que há de bom”, ele acrescentou um elemento “X” extra e potente. Assim, em lugar de uma, nasceram três personagens perfeitas, corajosas, enérgicas e determinadas a eliminar as forças do mal.


28

Dek 90’s

De autoria de John R. Dilworth, Coragem, o Cão Covarde (Courage the Cowardly Dog, 1999), destaca outro protagonista do reino Animália, frágil, aterrorizado e confuso. Devido ao rapto de seus pais e o envio deles ao espaço, recebe abrigo de Muriel e Eustácio Bagge, proprietários de uma fazenda em Lugar Nenhum, Kansas. Ali, ocasionalmente, afloram criaturas sobrenaturais, como monstros, alienígenas e zumbis; compete, ironicamente, ao Coragem protegê-los do perigo e mantê-los salvos. Du, Dudu e Edu (Ed, Edd n Eddy, 1999) enfoca três jovens amigos, habitantes do bairro Peach Creek, em Vancouver. Absolutamente diferentes, partilham, em comum, de uma adoração por balas de caramelo e utilizam de qualquer artifício para obtê-las – até trabalhos de meio período durante as férias de verão. Pelos becos e ruas, eles encontram rivalidades, romances, novas companhias e Plank, uma placa de madeira capaz de

inspirar tédio ou medo a quem lhe fitar intensamente. A datar de 1996, Turner Broadcasting System funde-se com Time Warner, incorporação de conteúdo cinematográfico, televisivo e literário. Consequentemente, Cartoon Network converteu-se em subsidiária da mesma e Warner Bros. reassumiu direito de distribuição e comércio sobre filmes angariados por Turner. No Brasil, Cartoon Network Studios detém um canal próprio, em pacote de TV fechada, e transmite, senão completamente, grande fração de suas produções internacionais. Redes de TV aberta, sobretudo SBT, também respondem pela difusão e pela perpetuação das séries animadas em cada imaginário, em cada jovem-adulto de hoje.


29


30

Dek 90’s

Na hora do recreio

Mia Tiziano

É bem verdade que a década de 90 ficou marcada pelos jogos eletrônicos, a guerra de consoles entre Nintendo e SEGA e as infinitos cartuchos sendo assoprados diariamente. Mario, o encanador bigodudo, e Sonic, o ouriço tão ágil que parecia ser movido a cocaína, foram mascotes que até hoje são lembrados e defendidos por fãs saudosistas. No entanto, os anos noventa, em meio a cabos, botões e fases impossíveis do Megaman, também contou com brinquedos incríveis e que por vezes não faziam sentido algum. Fluffy: Uma bolinha peluda de borracha. Provavelmente o brinquedo mais sem propósito da lista, mas desproporcionalmente viciante.

Tamagotchi: O animal virtual que não sobrevivia mais de três dias, mas que felizmente tinha um botão de reset para preencher novamente corações órfãos, inocentes e incapazes de manter Tazos: Os mini-discos que limpa uma criatura pixelada. vinham em salgadinhos feitos de isopor e que por pouco não foram considerados arma branca. Os Meu Primeiro Gradiente: pátios das escolas nos intervalos Para as crianças, um gravaeram campos de batalha, ninguém dor portátil; para os pais, um estava seguro. convite ao desassossego. Aparentemente, nas instruções do brinquedo diziam ser necessárias ao menos três entrevistas diárias com os membros da família do usuário.


31 Aquaplay: Um aquário onde, ao invés de peixes, nadava a honra de quem se pusesse a jogar. Argolinhas que flutuavam insistentemente pra longe dos pinos foram inspirações para muitos pesadelos infantis.

Bolimbolacho: Um fio de nailon preso a um anel e duas bolinhas de plástico. A brincadeira era simples: girar as bolinhas até elas se chocarem... O brinquedo ficou conhecido como quebra-dedo e foi proibido. Teorias da conspiração revelam que a proibição se deu, na verdade, porque o barulho que fazia era insuportável.

Growing Grass Heads: Dispensa descrições. Olhe a imagem.


32

Dek 90’s


33


34

Dek 90’s




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.