Um quarto desconhecido
Acordei subitamente. Não sabia que horas eram naquele momento, mas podia sentir o Sol, já alto, a aquecer a minha face. Correndo os lençóis para baixo, levantei-me da cama. Não sabia onde estava. Juro que não sabia. Olhei em volta para todos os cantos do quarto. As suas paredes de um branco sujo pelo tempo reflectiam o meu olhar. Era impossível olhar através delas como eu muitas vezes costumo fazer para me situar. A cama onde tinha acordado era grande. Os seus lençóis eram de um roxo muito suave rasgado com algumas linhas brancas aqui e ali. O estrado de madeira contrastava de uma forma tão impecável com a parede que este mesmo brilhava com uma tal intensidade que prendia o meu olhar. Mais nada havia naquele quarto: eu, a cama e as paredes. Começava a sentir-me cada vez mais confuso. Por mais que tentasse reconhecer o local onde me encontrava, simplesmente não conseguia. Dirigi-me, então, à janela através da qual o Sol matinal rompia quarto a dentro. O céu estava pintado de um azul brilhante ao longo do qual serpenteavam algumas nuvens. Estas nuvens nem eram grandes nem pequenas, mas reparei que nunca estavam mais do que cinco segundos na mesma forma. Os seus padrões alteravam-se conforme o vento que as rasgava. Não havia mais nada à volta do edifício em que me encontrava a não ser campos extensos rodeados de densas florestas. Reparei, ainda, que nesta paisagem bucólica havia um caminho de terra. Visto daqui parecia ser muito estreito e dava a sensação de que o seu piso era bastante irregular, o que me fez pensar que não seria muito utilizado. Continuava perdido. Virei as costas para a janela na tentativa de vislumbrar a porta. Ali estava ela, de um castanho que brilhava sob os raios de Sol que entravam pela janela. Dirigime a ela com o intuito de abri-la e, assim, descobrir o que se encontrava do outro lado.
Descobrir o que se encontrava do outro lado sempre foi algo que me preocupou. O primeiro dos meus maiores sustos que me lembro terá acontecido quando eu tinha cerca de seis anos de idade. Estava com os meus pais numa festa de encerramento organizado pela escola e tínhamos terminado o jantar servido pelo restaurante incumbido de o fazer. Eu e os meus colegas levantámo-nos da mesa para começarmos a divertir-nos noite a dentro. O facto é que naquela idade era impossível estarmos parados à mesa enquanto os nossos pais falavam uns com os outros ao longo daquelas mesas muito compridas enfeitadas de pratos e copos usados. Eram várias as garrafas de vinho e de refrigerantes semeadas por aquelas toalhas fora. Começámos a jogar às escondidas. Estávamos dentro de um edifício que albergava um enorme anfiteatro, um ginásio e, ainda, tinha mais três andares para cima. Desconhecia o que se encontrava nestes pisos. Eu e os meus colegas. Contudo, estávamos a começar a viver uma época em que nada nos assustava e em que o mistério, o desconhecido, nos faz ferver o
sangue pela primeira vez. O espaço disponível para a brincadeira era enorme. Com três pisos não tínhamos com que nos queixar. Não havia luz e de facto não era suposto estarmos ali a explorar aqueles recantos escuros. Tinha visto alguns dos meus colegas e usarem o elevador para se esconderem durante a brincadeira e confesso que fiquei também com vontade de o usar, de me aventurar. Foi a minha vez e entrei sozinho. Dei ordem ao elevador para subir até ao segundo andar daquele edifico e tenho a dizer que não tardou a lá chegar. O elevador parou e atrás de mim e abriu-se a porta. Não tinha reparado que tinha duas entradas e, por isso fui completamente surpreendido enquanto aguardava que a porta diante dos meus olhos se abrisse, pois atrás de mim ouvi o barulho de metal a arrastar-se. Virei-me e deparei-me com uma tal escuridão que me era praticamente impossível ver fosse o que fosse. Saí do elevador e dei dois passos em frente. Estava num corredor longo e ao fundo podia ver uma janela três ou quatro vezes maior que eu. Através dela conseguia ver a Lua que levitava naquele pano escuro a que normalmente chamamos de noite. Esperei alguns segundos e de repente tive a prova de que não me encontrava ali sozinho. – Vamos comer-te todo cru! - pronunciou uma voz. Entrei em pânico. A minha primeira reacção foi deitar a minha pequena mãozinha ao botão do elevador para me pôr dali para fora. Para piorar a situação o elevador não respondia. Senti que estava prestes a enfrentar algo de terrível, algo contra o qual não teria a mínima hipótese de reagir positivamente. Alguém pousou a mão no meu ombro. Ia morrendo de susto. Virei-me e reparei que era um rapaz dos seus vinte anos. Os seus cabelos negros brilhavam ao luar e os olhos faiscavam suavemente. – Deixa vir o elevador, pah! O miúdo quer ir embora - disse ele para uma outra pessoa que estaria no andar de cima. – Obrigado - disse eu ao rapaz. – Vai lá para o pé dos teus pais e da próxima vez tem mais cuidado. Entrei novamente para o elevador e desci para o rés-do-chão. Durante aqueles segundos de viagem que pareceram uma eternidade tentei perceber o que realmente se tinha passado. A minha experiência de vida não o permitia. Dirigi-me, então, para a sala onde as mesas estavam dispostas, carregadas de loiça e de pessoas. Escusado será dizer que a brincadeira para mim, naquela noite, tinha terminado.
Pus a mão na maçaneta da porta para abri-la. Hesitei. Na minha cabeça só passavam o receio, o medo, de encontrar o que estava do outro lado da porta. No entanto, olhei para trás. Observei novamente o quarto onde ainda me encontrava. Olhar para ele causava-me uma sensação estranha. Passado todo este tempo comecei a ver que o espaço me parecia familiar, mas não me consegui lembrar de todo do porquê, mas percebi que não podia ficar ali. Ao abrir a porta, esta libertou um rangido que me fez arrepiar da cabeça aos pés. Dava a sensação de não ter sido aberta durante muitos anos. À minha frente encontrava-se um longo corredor com uma grande janela ao fundo. Prossegui. Cada passo que dava levantava uma imensidão de pó. Olhando para trás podia ver todas as minhas pegadas naquele espelho tapado pelo esquecimento. As paredes colocadas ao longo deste túnel eram igualmente brancas e, à semelhança do quarto, era visível uma sujidade acumulada ao longo dos anos. Riscos, manchas, marcas de palmas de mãos… À minha esquerda encontrava-se um interruptor de um candeeiro localizado exactamente sobre a minha cabeça. A curiosidade levou-me a pressioná-lo na esperança de ver se o solitário candeeiro funcionava. O resultado foi um simples estalo da lâmpada. Voltei a conseguir ver através das paredes. Parece que o interruptor, ou a própria lâmpada, serviu como uma chave para abrir as paredes ao meu olhar. Olhei através delas, mas continuava sem conseguir saber onde me encontrava. Os campos cercavam por completo o edifício. Nada mais havia ali à volta a não ser a floresta e o pequeno caminho pintado há muitos anos por um artista. Restava-me seguir caminho para tentar sair dali. Desci, portanto, uma escadaria de dois lanços que descansava diante dos meus olhos. Igualmente coberta de pó, deixava transparecer a sua cor de granito. Lembro-me que em tempos vivia numa casa com uma escadaria igualzinha àquela, mas o resto do edifício em nada se assemelhava a essa casa. Pensando bem, não sei. Não me lembro. A minha memória parecia estar completamente bloqueada desde que acordara naquela cama. Cheguei ao andar de baixo onde encontrei apenas uma sala enorme onde só havia uma pequena televisão. Mais uma vez, esta divisão do edifício era rodeada pelas mesmas paredes que encontrei antes de chegar às escadas. Tudo me parecia estar abandonado desde há muito. Não tinha portas e era como se fosse um prolongamento da escadaria que deixei para trás. O chão estava todo lavado em pó, mas através dele consegui ver algumas pegadas. Pareceram-me ser recentes. O comando da televisão encontrava-se exactamente sobre esta e, mais uma vez, fui vítima da minha curiosidade. Peguei nele. Estava cheio de pó e ao mesmo tempo transmitiame uma sensação de frio e parecia estar coberto de algo pegajoso. Arriscava-me a dizer que tinha sido lambido por alguma criatura. Fiquei hesitante diante da televisão. Não sabia o que poderia esperar de um aparelho que reflectia uma infinidade de anos de vida. Carreguei no botão e, por surpresa ou não, o
pequeno televisor ligou-se. Diante de mim passava agora uma imagem completamente cinzenta cheia de ruído, mas no exacto momento em que me aproximei mais do televisor para perceber o que ali estava, uma porta abriu-se de repente do meu lado esquerdo. Eu não tinha reparado nela quando entrei nesta sala…Ela não estava lá antes. – Ah, estás aqui. Anda. Temos que sair daqui o mais depressa possível - disse um homem que apareceu de rompante atrás dessa porta. Não o conhecia. Nunca o tinha visto mais gordo. Era um homem baixo, jovem e com um cabelo encaracolado. A sua pele estava ligeiramente bronzeada e vestia uma camisa com um padrão que combinava com umas calças de ganga. Não reagi à sua voz. – Porra, embora Tomé. Não podemos ficar aqui nem mais um minuto! – continuou. Não sei quem era, mas ele parecia saber quem eu era. Afinal, o meu nome é Tomé.
Cresci numa pequena aldeia erguida no meio das montanhas. À volta só havia florestas. Não muito longe da minha casa corria um pequeno rio que embelezava aquela paisagem cerealífera com o seu azul. Vendo bem, com o azul vindo do céu. Quando era pequeno todos os dias ao final da tarde, durante o Verão, ia tomar um pequeno banho nas suas águas límpidas ao chegar da escola. A escola era a mais de três quilómetros e ia e voltava todos os dias a pé. A minha mochila era pesada. Os livros não eram assim muitos, mas a caminho de casa divertia-me a recolher pedras do chão. Umas brilhantes, outras nem tanto. Eram os meus amigos. Os colegas da escola eram-me distantes e nenhum deles vivia na mesma aldeia que eu, por isso passava o caminho de casa a construir amizades com as pequenas pedras que ia recolhendo. Lembro-me de lhes ter dado um nome diferente a cada uma. Chegava a casa cansado e a transpirar por tudo o que era sítio. Mergulhava, então, no rio sob o olhar vigilante de algumas ovelhas que se encontravam ali a pastar a erva que, por estar próxima do rio, se mantinha verde. Sentia-me feliz por poder desfrutar daquele banho refrescante depois de ter brincado com as minhas amigas pedras. Continuei ali durante muitos anos e isso significa ter ficado muito tempo enjaulado numa solidão da qual não me tinha apercebido. Chegou a altura de sair dali, mas estar junto das pessoas arrepiava-me. Tinha medo e desconfiava delas. Devido a esta minha condição nunca consegui fazer grandes amizades ao longo da minha vida, mas podia-me gabar de ter alguns bons amigos, daqueles que dariam a vida por mim.
Não soube como reagir. Não sabia se devia seguir aquele homem, que parecia ser um pouco mais novo que eu, ou se devia procurar outros caminhos. Ele fincou o seu olhar no meu e transparecia algum pânico e horror. O seu rosto parecia que chorava. Não sabia quem ele era, mas percebi que estava a sofrer. – Vais querer ficar aqui? - insistiu. – Desculpa, mas quem és? – tinha finalmente a começar a reagir de alguma forma à presença daquele indivíduo. – Quem sou? Deixa-te de piadas e vamos embora – respondeu ele – Temos de chegar ao fundo deste caminho o mais depressa possível. Fiquei expectante, e mais uma vez a minha cabeça latejava de tanta confusão que a afogava em dor e medo. Olhei novamente para o televisor e a mesma imagem mantinha-se atrás daquele vidro, mas não tão nítida como antes. Não conseguia perceber o que era, mas ansiava por um pouco de ar puro. Perdido nesta caixa de betão sufocava-me com o que me rodeava. Procurava conhecêlo, senti-lo, tocá-lo. Poder clarear as minhas dúvidas. Contudo, por mais que tentasse aproximar-me mais este se desvanecia. Amanheceu, as estrelas desapareceram. O calor tórrido iria voltar a destruir-me até que a Lua voltasse, pronta para revelar o caminho camuflado pela noite. Mas a urgência do indivíduo convenceu-me a enfrentar o que se encontrava do lado de fora, o que em parte me aparecia no coração como um alívio por poder sair dali. Dirigi-me a ele. Assim que me aproximei virou costas. – Vamos! - disse ele ao mesmo tempo que começou a caminhar num ritmo acelerado. Segui-o, mas continuava a desconfiar. Não sabia quem ele era. Não sabia para onde me levava. Não sabia o que é que ele estava a pensar naquele momento. Fomos percorrendo o caminho que não dava sinal nenhum de ter sido usado recentemente. O piso, tal como me tinha parecido quando olhei através da janela, era bastante irregular. Caminhámos uns duzentos metros quando o homem parou e voltou a falar para mim. – Vira-te e olha - disse com alguma firmeza na voz como que a confirmar algo que ele já esperava. Segui o seu conselho e virei-me para o lado de onde vínhamos. À frente do meu olhar só via os campos limitados pela densa floresta. A casa de onde saí tinha desaparecido. Fiquei assustado e ainda mais confuso. – Aquele lugar pertence ao teu passado. Aquilo que tu foste está lá dentro – continuou. – Não percebo nada do que estás a dizer. – Em breve irás perceber e nessa altura terás vontade de voltar. Mas neste momento não estavas em condições de ficar ali. Irias desaparecer tal como aconteceu com a casa. – E porque é que terei vontade de voltar? – Porque será ali onde vais encontrar aquilo que te falta. E agora vamos embora. Está a começar a ficar tarde – finalizou o desconhecido.
Continuamos a caminhar ao longo do sinuoso caminho durante mais trinta minutos até chegarmos ao fim do trajecto. O caminho terminava diante de uma cabana, exactamente no local onde se encontrava a porta feita de palha. O meu companheiro de trilho abriu-a. – Espera – disse eu – Deixa-me só olhar mais uma vez para trás. Assim fiz. A paisagem continuava constituída pelos mesmos elementos: os campos, a floresta e o pequeno caminho de terra. Nenhum sinal da casa. Virei costas para seguir caminho, mas não havia mais pista nenhuma da existência do homem que me tirou dali. Entrei naquele pequeno espaço escuro que diante de mim se erguia.
Acordei subitamente. Ainda era noite e apesar de o Outono ter chegado sentia-me quente. Não sabia como tinha ido ali parar. O quarto estava escuro e não consegui perceber onde estava. No entanto senti um braço a abraçar-me ao mesmo tempo que um corpo se encostava ao meu. – Estás bem? – disse uma voz de uma mulher. Comecei a voltar a mim. Os olhos começavam a adaptar-se à escuridão que levitava no sítio onde me encontrava. Reconheci o perfume que emanava do meu lado e voltei-me. Olhava agora aquela mulher que se encontrava ali. Os seus olhos castanhos brilhavam ao sabor do luar que invadia o quarto. – Sim. Estou bem - respondi. Acaricie-lhe a face e beijei-a. Levantei-me calmamente para não a perturbar e comecei a vaguear de um lado para o outro sem saber muito bem o que fazer. Olhei para a porta e mais uma vez senti o mesmo que sinto sempre que uma surge diante dos meus olhos. Medo. Ela sentou-se na cama. Olhei para ela enquanto passava as mãos pelo seu cabelo castanho, a fugir para o aloirado, como se estivesse a ajeitar. O seu corpo despido reluzia como que se de um farol se tratasse. A minha atenção virou-se para ela. Parecia que ela me estava a avisar de algum perigo. Mas não liguei. Foquei novamente a porta e avancei. – Deixa-me ir contigo – disse o farol com uma voz tão brilhante que era impossível uma alma não se acalmar e de sentir que afinal não estava sozinha. Olhei para ela e sorri-lhe. O rosto dela estava sereno, mas transparecia alguma preocupação. Contudo, olhá-la e perceber a sua atitude fazia-me sentir feliz. Aproximei-me dela e enquanto lhe segurava a mão, de pele macia, soltei num tom muito suave: – Nunca me passou pela cabeça não te trazer comigo.