histórias femininas de Mata Cavalo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GRUPO PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL

ROSANA MANFRINATE

HISTÓRIAS FEMININAS: Poder, Resistência e Educação no Quilombo de Mata Cavalo.

Cuiabá, Março de 2011.


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Rosana Manfrinate

HISTÓRIAS FEMININAS: Resistência e Educação no Quilombo de Mata Cavalo.

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação na Área de Concentração Educação, Cultura e Sociedade, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais, Política e Educação Popular.

Orientação: Profa.Dra.Michèle Sato.

Cuiabá, MT 2011


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DISSERTAÇÃO APRESENTADA À COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UFMT

ROSANA MANFRINATE Autora

Prof. Dr. CARLOS EDUARDO MAZZETTO SILVA Examinador Externo (UFMG)

Prof.Dr.EDSON CAETANO Examinador Interno (UFMT)

Profa. Dra.MICHÈLE SATO Orientadora (UFMT)

Aprovada em 25/03/2011


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Agradecimentos: Agradeço à professora Michèle Sato por esses dois anos de paciência em orientar-me, não apenas corrigindo meus erros e aperfeiçoando meu trabalho, mas levando-me a refletir sobre a educação ambiental numa dimensão da justiça sócio-ambiental. A Comunidade Quilombo Mata Cavalo, por me receberem e tornar possível minha pesquisa. Meu muito obrigada a banca avaliadora que com paciência e sensatez fizeram as correções e intervenções que tornaram possível melhorar meu trabalho. Agradeço imensamente a minha grande amiga Lucia Shiguemi, pela amizade, e pela força para que eu tentasse entrar no mestrado, depois, pelos inúmeros “lanches teóricos” onde discutíamos idéias, teorias e desabafos referentes a dissertação. E já na defesa, agradeço pela verdadeira personificação da “mãe da noiva”, se encarregando de tudo que fosse necessário para que eu me concentrasse apenas na apresentação. Além do que sempre foi muito divertido conviver com seu bom humor, sem dúvida nenhuma a vida com sua amizade é muito melhor. Amigo que é amigo quando quer estar presente faz-se quase transparente sem deixar-se perceber Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar, se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha e oferece lugar pra dormir e comer. (zé Renato). Outra grande amiga que não posso deixar de agradecer é Denize Amorim, companheira de mestrado e de todas as horas. Pela presença pronta a apoiar e ajudar, dividindo problemas, dúvidas e alegrias. O meu muito obrigada a Michelle Jaber pelo apoio lógistico durante toda a pesquisa de campo em Mata Cavalo, tornando tudo muito mais fácil. Obrigada ao Herman Hudson de Oliveira por ter ajudado na linda homenagem para Dona Tereza durante a defesa.


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Agradeço a todo Grupo Pesquisador Em Educação Ambiental-GPEA, pelo apoio, aprendizado e aconchego durante toda essa caminhada, e aqui fica impossível nominar pessoas. Tenho que dizer um muito obrigada para minha amiga Márcia Carvalho pela revisão ortográfica, e todo o cuidado que teve em ajudar a deixar o texto melhor possível. Sou muito grata a secretaria do PPGE em especial a Mariana e Luiza pela sempre pronta ajuda, a todos os professores do mestrado e todos os colegas que comigo dividiram as disciplinas e juntos debatemos nossas pesquisas. Agradeço a SEMA por me liberar para as aulas, e um agradecimento em especial aos meu amigos da velha guarda: Venina, Tide, seu Jorge, Jucileide, Silvana e Gleidy, por ensinar-me o valor do serviço público compromissado. Tenho que agradecer a minha familia, a minha mãe em especial por ser meu apoio durante todos esses momentos, e acabar por fazer o papel de mãe também para os meus filhos, e ao meu pai por ensinar a paixão pela leitura, tão importante para minha vida academica. E ao final agradeço a Deus e a Espiritualidade por ter me acompanhado nessa caminhada, sendo uma presença firme e querida, onde eu encontro paz e reativo as minhas forças.


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Dedicatória.

Ás mulheres de Mata Cavalo pela força e pela luta do dia a dia, sem nunca esmorecer. A minha querida mãe Ercila, por ser a grande mulher presente em minha vida. E aos meus filhos Thiago e Pedro, por fazerem de mim a mulher mais feliz e orgulhosa do mundo. Á Dona Tereza que a quem não tenho palavras para agradecer pela oportunidade de convivência e exemplo de luta. Levarei para sempre no meu coração a marca indelével de sua presença como parte da “minha História de Vida”.


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Homenagem

(Dona Tereza Arruda)

“Sou o que quero ser, porque possuo apenas uma vida e nela só tenho uma chance de fazer o que quero.Tenho felicidade o bastante para fazê-la doce, dificuldades para fazê-la forte, Tristeza para fazê-la humana e esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas, elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos." Clarice Lispector


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Resumo No Brasil a história dos quilombos sempre representou um lócus de luta e resistência à escravidão e ao sofrimento do povo negro (SILVA, 2003, p.28). A contar mais de um mais de um século da libertação oficial da escravidão, as comunidades originadas desses antigos quilombos ainda precisa lutar contra o racismo, contra o descaso por parte do governo e principalmente contra a tomada de suas terras destituindo-os dos seus direitos fundamentais de cidadão. O presente trabalho apresentará os caminhos percorridos à compreensão do processo de educação contínua realizada por um grupo de mulheres do quilombo de Mata Cavalo, buscando interpretar à luz da Educação Ambiental a importância do reconhecimento da própria identidade e do seu território como uma forma de aprender, a saber, lutar politicamente com táticas adequadas

e

coerentes

à

causa.

(PAULO

FREIRE,

1997,

p.37).

Especificamente trazemos a história de vida de Dona Tereza Arruda, líder do quilombo, e como sua trajetória de vida como professora pode influenciar na emancipação

das

mulheres

do

quilombo.A

educação

Ambiental

nos

acompanha nessa caminhada na medida em que é entendido que a construção de gênero e suas identidades estão ligadas ao território em que essas mulheres vivem, por sua ligação com a terra pela qual lutam na forma e como se relacionam com o seu próprio ambiente e no movimento de pertencimento ao lugar e reconhecimento do valor de ser quilombola.

Palavras Chaves: Mulheres Quilombolas, Identidade, Educação Ambiental.


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ABSTRACT In Brazil the story of the Quilombo always been a locus of struggle and resistance to slavery and the suffering of black people (SILVA, 2003, p.28). Starting over a more than a century of official release from slavery, the Quilombo communities arising from these ancient remains to fight against racism, against the neglect by the government and against the taking of his land depriving them of their fundamental rights citizen. This work will show the paths taken to understand the process of continuing education conducted by a group of women from quilombo Forest Horse, seeking to interpret in the light of environmental education the importance of recognizing one's own identity and territory as a way of learning, namely, to fight politically with appropriate tactics and coherent to the cause. (Paulo Freire, 1997, p.37). Specifically we bring the life story of Tereza Arruda, leader of the Quilombo, and how his life story as a teacher can influence the empowerment of women quilombo.A environmental education in this journey with us as it is understood that the construction of gender and their identities are linked to the territory in which these women live, in connection with the land for which they fight in shape and how they relate to your own environment and move to the place of belonging and recognition of the value to be maroon.

Keywords: Women Quilombo, Identity, Environmental Education.


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SUMÁRIO CAPÍTULO I O COMEÇO DAS HISTÓRIAS.........................................................................03

1.1 UMA HISTÓRIA PESSOAL...........................................................................04 1.2 História das Moiras e da Educação ambiental..........................06 CAPÍTULO II Histórias das Moiras........................................................................22 2.1 AS MOIRAS DO QUILOMBO.....................................................................................23

2.2 Breve História de outras Moiras................................................36 CAPÍTULO III HISTÓRIA DO TERRITÓRIO DAS MOIRAS..............................................................41 3.1 Esticando o Fio do Território.......................................................................42

3.2 A Característica do Território das Moiras e suas Histórias......47 CAPÍTULO IV HISTÓRIA DA PESQUISA...................................................................................68 4.1 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL E HISTÓRIA ORAL....................................69 4.2 O Convívio com as moiras.........................................................91 CAPÍTULO V AS IDENTIDADES DAS MOIRAS......................................................................95 5.1 OS FIOS DA IDENTIDADE.......................................................................96 5.2 Os Fios da Educação.........................................................106 5.3 Os Fios do Poder...............................................................123 CAPÍTULO VI CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................141 Referências.............................................................................................147 ANEXO..........................................................................................157


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Lista de figuras Figura 01: Reunião do grupo GPEA......................................09 Figura 02: Oficina do GPEA em Mata Cavalo.......................10 Figuras 03 e 04: Resto de despejo ocorrido no quilombo.....17 Figura 05: Córrego Mata Cavalo............................................46 Figura 06: Casa do Quilombo.................................................48 Figura 07: Foto Dona Tereza.................................................88 Figura 08: Vegetação nativa do território quilombola............50 Figura 09: Sinais de desmatamento ilegal.............................50 Figura 10: Charrete como meio de transporte.......................51 Figuras 11 e 12: Casa do quilombo.......................................53 Figuras 13 e 14: Fogão a lenha.............................................54 Figura 15: Forno a lenha........................................................54 Figuras 16 e 17: Plantas no quintal........................................55 Figura 18: Roça de mandioca...............................................56 Figura 19: Plantação de Banana...........................................56 Figura 20: Dona Tereza.........................................................96 Figura 21: Placa da Associação de Mata Cavalo...............116 Figura 22: Foto de duas entrevistadas................................132


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CAPÍTULO I O começo das Histórias Saber Viver Não sei... Se a vida é curta Ou longa demais pra nós, Mas sei que nada do que vivemos Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser: Colo que acolhe, Braço que envolve, Palavra que conforta, Silêncio que respeita, Alegria que contagia, Lágrima que corre, Olhar que acaricia, Desejo que sacia, Amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo, É o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela Não seja nem curta, Nem longa demais, Mas que seja intensa, Verdadeira, pura... Enquanto durar Cora Coralina

Moça em frente ao Espelho – Pablo Picasso 1932


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1.1 Uma História Pessoal Desde os tempos de graduação em história, entender o mundo apenas pela visão Marxista sempre me pareceu algo lógico e determinante, e ainda é uma tendência muito forte em mim, herança dos meus professores, aos quais sou muito grata, diga-se de passagem. A história tinha muito com o que se preocupar, desde os deslocamentos singulares dos fatos aos marcos gerais da civilização. Acabando com a figura do herói ou dando foco às personagens não centrais, o mosaico histórico se emaranhava na minha formação e eu ingressava na faculdade num período de transição, numa época que o Marxismo puro na história estava sendo superado e já eram muito comuns trabalhos com vertentes da micro-história, ou da história do cotidiano. Não posso deixar de lembrar, todavia, que sempre me chamou a atenção o lado das particularidades, dos detalhes da história que fazem a diferença. Antes eram apenas curiosidades, fruto da imaginação de quem gosta de ler Gabriel García Márquez e seu Realismo Mágico e que gosta de ouvir “causos” antigos. Depois de um tempo afastada do mundo acadêmico e de um maior amadurecimento emocional, penso que comecei a enxergar o mundo com outra visão, talvez de uma forma mais sensível. O marxismo ainda é uma forte tendência, como já disse, mas sinto necessidade de alçar voo em outros campos. Com a necessidade de lapidar o que eu entendia por pensamento científico, veio-me a vontade de estudar e pesquisar novas fontes de saber que até então me eram indiferentes, levando-me a criar oportunidades e espaços para que isso ocorresse. Nesta minha pequena história, tenho que destacar um lugar especial para o lado educador que sempre fez parte da minha vivência e que merece ser contemplado por meus estudos.


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O Grupo Pesquisador em Educação Ambiental – GPEA -, da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, aparece neste contexto como esse espaço que oportunizou o que para mim representa a construção do conhecimento e o crescimento intelectual dos quais sinto necessidade. Inicialmente

participava

do

grupo

como

ouvinte

dos

colóquios

acadêmicos e, à medida que entendia o real objetivo do GPEA, sentia o anseio de também ser uma de suas pesquisadoras. O que mais me chamou a atenção foi que o GPEA tem como papel fundamental a pesquisa em comunidades, priorizando a troca de saberes e conhecimentos para o fortalecimento da Educação Ambiental (EA) no estado de Mato Grosso e no Brasil, com o compromisso de participação e transformação social. Outra característica interessante do GPEA é a multirreferencialidade 1 de seus pesquisadores, pois diversas áreas do conhecimento conversam numa mesma pesquisa o que torna seu resultado muito mais rico e expressivo. A escolha por um mestrado na área de Educação Ambiental se deveu também a minha área de atuação profissional. Sou servidora pública de carreira da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) e estar na Superintendência de Educação Ambiental, levou-me a lidar com questões para as quais é necessário um profundo conhecimento e reflexões nesta área. A minha atuação em Educação Ambiental como educadora ultrapassa os limites de uma disciplina ou de ações desfocadas. Não delego a ela o incômodo papel de ser a grande solucionadora de problemas ambientais, e nem a entendo como alicerce político pedagógico. Na verdade, a Educação Ambiental ofereceu-me um novo significado do mundo, que agora enxergo através de olhares diferentes, que podem ver múltiplas realidades, ter múltiplos sentimentos, mas que também exprimem multíplices formas de solidariedade e comunhão onde a mais importante é a do ser humano com seu ambiente. Para Sato, Educação Ambiental é complexa, pois: Relaciona-se com várias áreas do saber, implica em campos ideológicos e políticos, e traz conflitos ao lado de solidariedade. Implica em mudanças, sobretudo à luz das injustiças sociais sempre relacionadas com a degradação ambiental. Não há como considerar 1

São pesquisadores de várias áreas que atravessam o conjunto dos campos das ciências e da sociedade, interessando tanto ao psicológico, social, econômico, sociológico, biológico, pedagógico, historiador, etc. (VARELA, 2009)


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Educação Ambiental apenas pelo viés social, ou apenas pelos componentes naturais. São duas dimensões interligadas, que se complementam oferecendo uma magnitude de difícil conceituação. E, por isso mesmo, exige reflexões constantes na maturidade política de nossas esperanças à construção da sustentabilidade planetária. (SATO, cedido por e-mail, 2006).

Perceber essa dimensão e complexidade da educação ambiental foi de grande importância para meu crescimento não só como estudante, mas também como técnica, pois me auxiliou a entender sob quais valores e princípios poderia atuar nos programas de políticas públicas nos quais exerço minha função. De acordo com Leroy (2002), as políticas públicas devem possibilitar a existência de uma sociedade em que todos tenham a cidadania reconhecida, criando condições para que a massa da população, vivendo na indigência e na pobreza, possa sair dessa situação; assegurar que, no futuro, o território esteja em condições de sustentar e permitir a reprodução da vida e da sociedade, em condições ecologicamente saudáveis e socialmente justas. Esse

olhar epistemológico

da

educação

ambiental proporciona,

profissionalmente, um perfil técnico mais ligado ao debate, conversando tanto com a academia e suas pesquisas quanto com as bases populares. E é esse olhar, de apaixonadamente pesquisadora em Educação Ambiental2, que espero ter durante toda a minha vida profissional e acadêmica. Entretanto, agora afasto um pouco o lado profissional e assumo apenas a parte acadêmica, para assim apresentar a minha pesquisa e o que ela tem para contribuir com minha caminhada na educação ambiental.

1.2. HISTÓRIA DAS MOIRAS E DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL

A história do Brasil está intimamente ligada à história da escravidão mundial. Desde o início de sua colonização até as vésperas da República, o Brasil teve como sua principal mão de obra o trabalho escravo, primeiro o do indígena depois, maciçamente, o do negro.

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Referência ao título de um artigo da professora Michèle Sato, consta do livro. SATO, Michèle (coord.). Sentidos Pantaneiros: Movimentos do Projeto Mimoso 2ª Ed. Cuiabá. KCM, 2003.


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De acordo com o antropólogo Darcy Ribeiro (2000), aproximadamente cem milhões de africanos foram trazidos para o Brasil. Entre os principais grupos estavam os sudaneses originários da Nigéria, Daomé e Costa do Ouro: os bantos, de Angola, Congo e Moçambique; e os maleses, sudaneses islamizados. Essas pessoas eram arrancadas de suas terras, famílias, de suas vidas, como animais caçados. Eram embarcadas em porões de navios e despachadas para o novo continente, onde o que lhes esperavam eram alguns anos de trabalho árduo, intenso e uma vida de dor e sofrimento, ocasionada por castigos físicos, aprisionamento, falta de dignidade, e a constatação de que eram mercadorias e que pertenciam a outras pessoas: os brancos. Entretanto, a população escrava, apesar de toda a crueldade que lhe foi impingida, sempre tentou resistir à dominação de várias formas. Uma delas era a fuga para os quilombos, comunidades afastadas criadas por escravos que fugiam, principalmente, das fazendas. Um desses quilombos se denominava Mata Cavalo, e, ainda hoje, seus descendentes lutam para o reconhecimento e posse definitiva da terra. Mata Cavalo se localiza no estado de Mato Grosso, próximo à rodovia MT-060. Pertence ao município de Nossa Senhora do Livramento. Possui 11.722 hectares e é dividido em seis associações distintas matriculadas em cartório: Mata Cavalo de Cima; Ponte da Estiva; Ventura Capim Verde; Mutuca; e Mata Cavalo de Baixo, formando o complexo Quilombo Boa Vida Mata Cavalo (SATO et. al. 2008). Por sua origem estar relacionada à doação de terras feita pela dona de uma antiga sesmaria no ano de 1876 a alguns escravos, a comunidade não se enquadra na definição clássica de quilombo, alçada na idéia de fuga e isolamento

geográfico,

mas

num

conceito

mais

amplo

usado

contemporaneamente que designa uma “herança cultural e material que os insere a um território e integra sua identidade” (CHAGAS, 1998, p.183). Juridicamente, o que garante a posse da terra a esses quilombolas é o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, da Constituição Federal:


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Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (BRASIL, 1988).

Mata Cavalo foi reconhecido pelo Decreto Presidencial de 05 de novembro de 2007, após ter sido elaborado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) e a ata nº 24 da reunião do Comitê de Decisão Regional do Instituto de Colonização e Reforma Agrária-INCRA/MT, embasadas no laudo antropológico financiado pela Fundação Palmares para o Mapeamento e Sistematização das Áreas de Comunidades Remanescentes de Quilombo. Mesmo com o reconhecimento ao direito à terra garantido juridicamente, ainda hoje os herdeiros lutam pelo seu reconhecimento e posse definitiva, pois existe uma forte contestação por parte dos fazendeiros da região em aceitá-los como verdadeiros donos da terra. Para espoliá-los variam os métodos com atos de intimidação e violência sendo usado até aparato policial para isso. Parte da comunidade, no passado, já havia sido expulsa pelos fazendeiros e se espalhado pela periferia de Cuiabá. Entretanto, durante a década de 90, após a criação da Associação Quilombo Mata Cavalo, aos poucos os descendentes e herdeiros do quilombo retornaram à comunidade para encampar uma luta mais forte e, dessa vez, definitiva pela posse das terras. E foi na efervescência dessa luta que o Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA) passou a trabalhar no quilombo com o projeto macro “Territorialidade e Temporalidade da Comunidade Quilombo de Mata Cavalo”, que agrega várias pesquisas em áreas diferenciadas do conhecimento e tem como objetivo geral: Conhecer e compreender a comunidade quilombola de Mata Cavalo, registrando e valorizando seus hábitos, culturas e modo de vida, suas expressões artístico-culturais, suas relações de gênero, sua espiritualidade, seus saberes que revelam aspectos de sensibilidade, de visões de mundo, de escolhas e possibilidades de vidas sustentáveis, envolvendo a comunidade em processos formativos e educomunicativos. A articulação em ouvir as inúmeras vozes, nos levará a um amplo diagnóstico dos conflitos ambientais na região. Aliando todas essas propostas na construção de indicadores de sustentabilidade, evidenciando a Educação Ambiental como uma das possibilidades para melhorar as condições de vida da biorregião, no marco dos cuidados ecológicos, na aliança indissociável da natureza e da cultura. (SATO, 2006.p.09).


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Em 2008 passei a participar do GPEA e desse projeto como pesquisadora voluntária. Como ainda não tinha uma pesquisa definida, minha função era auxiliar aos colegas em suas pesquisas de campo e aproveitar esses momentos para observar o quilombo e todas as possibilidades de estudo que poderiam ser mostradas, aprendendo com o debate e avaliação das atividades feitas pelo grupo como mostra a figura 01.

Figura 1: Foto de uma das reuniões de Avaliação de atividade do GPEA após a oficina oferecida aos Quilombolas. Data: março/2008. Local: Quilombo Mata Cavalo- Arquivo GPEA.

Aos poucos fui conhecendo a comunidade de Mata Cavalo, seus detalhes, encantos e problemas. A cada ida ao quilombo, a cada história escutada, ia tentando delinear a característica daquele povo que se mostrava tão injustiçado e ao mesmo tempo tão forte. Num grupo multirreferencial como o GPEA muitas são as possibilidades de atividades para se fazer na pesquisa de campo. Alguns pesquisadores elegeram as oficinas de trabalho como o meio de intervenção e interação para o levantamento de registros e compreensão da comunidade e de sua relação com a natureza. Agendávamos, previamente, um horário com as pessoas em Mata Cavalo, geralmente aos sábados, fazíamos os preparativos para a oficina e para lá nos dirigíamos com nossas expectativas e dúvidas a serem respondidas.


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No primeiro encontro do qual participei, surpreendeu-me que existisse um número de mulheres superior ao dos homens nas oficinas, como podemos observar na figura 02. A partir dessa constatação passei a observar mais a situação. Fiquei sabendo que no quilombo as mulheres tinham fama de serem “bravas” e corajosas. E foi numa dessas oficinas que consegui encontrar-me com o que se transformaria no meu projeto de pesquisa.

Figura 2: Oficina do GPEA em Mata Cavalo, a presença feminina superior à presença masculina. Foto: Arquivo GPEA/março 2008

A oficina em questão foi oferecida por Ivan Belém, teatrólogo, ator e produtor mato-grossense, com importantes trabalhos sobre a cultura regional, e também pesquisador do GPEA. Como metodologia da sua oficina, Ivan utilizouse da prática do Teatro do Oprimido como uma tática para liberar as histórias de opressão e conflitos ocorridos no quilombo e que estavam guardadas dentro de cada um dos participantes, sensibilizando-os para a consciência política da situação. Os quilombolas deveriam encenar algo vivenciado por eles e relacionado à luta pela terra no Quilombo. A situação que foi encenada os remeteu a uma agressão verbal sofrida por algumas mulheres durante um encontro numa estrada no interior do quilombo com empregados do fazendeiro. Eles ofenderam e ameaçaram-nas correndo atrás delas com cavalos. Com a mesma determinação dos cavaleiros, as mulheres pararam e os enfrentaram, delimitando até onde eles poderiam chegar: a divisa entre a fazenda e as terras quilombolas.


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O resultado da encenação foi magnífico, as histórias afloraram e elas atuaram representando as próprias vidas. O Teatro do Oprimido tem o objetivo de humanizar. Ele é feito do, pôr e para os oprimidos, buscando o cidadão dentro de cada um, “reinventando a sua vida no teatro numa descoberta de si mesmo e sua correlação com a identidade, e é necessariamente político, pois políticas são todas as atividades da humanidade, e o teatro é uma delas” (BOAL, 1983.p.13). Quando as mulheres quilombolas contavam as histórias dos despejos, colocavam as atuações femininas em alta consideração. A resistência e a luta no quilombo são particularidades assumidas pelas mulheres, são elas que brigam e discutem com os fazendeiros. Na narrativa feita isso era colocado como uma tática de “combate”, pois quando havia brigas e os homens quilombolas entravam na frente de batalha, os fazendeiros não tinham nenhum escrúpulo em partir para a agressão física, e, como contavam com armas de fogo e empregados contratados justamente para esse fim, os quilombolas acabavam sofrendo muito. Porém, com as mulheres quilombolas tomando a frente da luta os fazendeiros relutavam um pouco em agredi-las e a discussão ficava só nas ofensas verbais. Para elas isso garantia um papel importante no quilombo. Nas oficinas percebia-se que eram solidárias umas com as outras, principalmente quando as histórias versavam sobre despejos, mas que existia disputa na hora de falar, ou de se mostrarem corajosas. Todas tinham experiências importantes e tentavam mostrar, cada qual ao seu jeito, ser mais interessante que a outra. É um fenômeno muito relevante a atuação feminina em Mata Cavalo, levando-se em consideração que, até o início da década de 90, a comunidade estava desmobilizada e em poucos anos eles se agruparam, reconhecendo-se como comunidade e passaram a enfrentar os fazendeiros da região, ficando as mulheres como barreira para o confronto propriamente dito. E, mais ainda, a liderança desse movimento está sob os cuidados de uma mulher: a presidenta da associação, Dona Tereza. Imbuída de um olhar pesquisador procurei enxergar que esse fenômeno não ocorre por acaso, deveriam existir situações e vivências que foram


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construindo essa forma de lutar onde as mulheres desempenham seus papeis de guerreiras. A estratégia de colocar-se à frente de “peões” armados ou mesmo da polícia para que os seus homens não sofressem agressões físicas não me pareceu uma explicação, mas sim uma consequência de um movimento anterior que as incitava e as “armava” moralmente para enfrentar esse desafio. A partir dessas observações, comecei então a questionar a situação que eu acompanhava: Como essas mulheres tornaram-se tão importantes nessa luta ao ponto de tomarem a frente dos embates? Outro ponto que me ajudou a delimitar mais o tema e afunilar meus questionamentos para a pesquisa foi a presença da presidenta da associação dos quilombolas, Dona Tereza. Uma mulher que sempre chamou a atenção por causa de sua personalidade e posicionamento firmes. Ela é uma importante referência para todos que vão ao quilombo. Professora aposentada, mesmo com mais de 70 anos, acompanha a todos os movimentos, manifestações e despejos que acontecem na comunidade. Entretanto, Dona Tereza nem sempre é uma unanimidade entre os quilombolas, alguns a admiram outros já tiveram discussões com ela. Mas ela é, sem dúvida nenhuma, uma presidenta atuante. É uma das fundadoras da Associação e sua liderança representa o carro chefe do poder feminino em Mata Cavalo. Com um carisma e uma memória admiráveis ela reconta a história das lutas no quilombo como ninguém. Sua história de vida tem muito a dizer para ajudar-me a responder ao meu questionamento, pois está intimamente ligada às histórias de Mata Cavalo e à efervescência feminina na comunidade. Caminhando pelas trilhas já abertas por Dona Tereza em seu território, poderia encontrar elementos que, compreendidos por meio de reflexões teóricas, me levassem a uma construção epistemológica de como as mulheres se tornaram as grandes guerreiras e líderes do Quilombo Mata Cavalo. Sendo assim, elegi como objetivo da minha pesquisa compreender, por meio da história de vida da presidenta do Quilombo de Mata Cavalo, como foi estabelecida a atual liderança feminina na comunidade à luz da Educação Ambiental.


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Para a construção desse trabalho, porém, não entrevistei apenas Dona Tereza, foram várias as entrevistas com o objetivo de dar suporte ao seu enredo, pois acredito que as vidas se entrelaçam num emaranhado de histórias. Dentro das respostas possíveis a essa pesquisa, a primeira hipótese foi levantada junto às próprias mulheres da comunidade. A explicação delas para o poder feminino no quilombo é o que chamam de herança das antigas guerreiras africanas, que implica numa grande força às suas descendentes, e a qual elas sabem fazer bom uso. Existiria ainda a memória dessas mulheres africanas pairando pelo quilombo, servindo de inspiração para a resistência e poder que elas exercem? O conceito de memória aqui mencionado é o retirado dos trabalhos de Paul Ricouer (2007) que reflete sobre a memória como lembranças construídas com intencionalidades de auto-reconhecimento, tanto no campo cognitivo quanto no pragmático. Sobre

o

passado

guerreiro

das

africanas

podemos

levar

em

consideração o que encontramos em algumas bibliografias (Altuna, 1980. Barbosa, 2003) que fazem referência, principalmente, ao povo Bantu, habitante de Angola. Esse povo tinha o sistema familiar de matrilinearidade 3. A mulher estava associada à subsistência da família por meio da agricultura. A sucessão filial era feita pela linhagem materna, o homem deveria deixar sua família, aldeia e passar a conviver com a família da mulher após o casamento. A mulher Bantu também tinha uma grande influência educativa e religiosa, era líder no seu clã resolvendo questões ligadas à vida cotidiana fazendo-se de juíza. Algumas chefiavam toda a aldeia tomando decisões importantes, inclusive nos conflitos externos, onde elas se tornavam guerreiras, e saiam à luta para proteger seus territórios do ataque inimigo. “Sua sabedoria era respeitada pelo reconhecimento da ancestralidade que emanava delas, e vista como uma base para a união e solidariedade do coletivo” (Barbosa, 2003.p.148). Na triste história da escravidão do Brasil, muitos foram os navios que chegaram ao país, carregados de pessoas Bantu originários de Angola, que 3

Matrilinearidade é uma classifficação ou organização de um povo, grupo populacional, família, clã ou linhagem em que a descendência é contada em linha materna ( AUGÈ, 2003).


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nesse período era um forte entreposto de venda de escravos. Dentre essas pessoas, muitas, sem dúvida, eram mulheres que exerciam papeis importantes e de autoridade em seus territórios, e que poderiam ter passado as suas descendentes a força e o vigor para tomar decisões e lutar mesmo que sob a tirania dos brancos. Quando observamos Dona Tereza e as outras mulheres do quilombo, é impossível não as compararmos com essas mulheres descritas. Mas existem ainda outras hipóteses que podem ajudar a explicar a liderança feminina em Mata Cavalo, questões relevantes que devem ser pesquisadas. É interessante considerar que a própria dinâmica do passado escravista e a situação da mulher negra naquele período pode ter conferido às mulheres de Mata Cavalo uma herança de poder. Algumas escravas serviam seus patrões nas casas-grandes como mucamas, amas de leite, pajem, e todos os serviços outros que poderiam ter que executar. Essas atividades as colocavam em contato direto com seus senhores e senhoras, a convivência diária proporcionava que escutassem informações importantes sobre a vida social e política dos patrões, assim como lhes dava conhecimento sobre as suas fraquezas e até alguma malícia para sobreviver sem sofrer tanto com a violência dos brancos. Essas escravas eram os ouvidos da senzala nas casas dos senhores, e contavam com certo poder diante dos outros escravos, pois sabiam quando seria o momento para a fuga ou para alguma rebelião. (FREYRE, 1989). Emilia Viotti da Costa (1998) pondera que o trabalho na casa grande nem sempre era visto com bons olhos pelos pares da senzala, mas mesmo assim conferia às escravas domésticas prestígio em relação aos outros escravos: Eram invejadas e respeitadas como se essa ocupação lhes conferisse um grau hierárquico superior (...). Tinham melhor sorte, a vida mais suave, os castigos mais brandos. Encontravam maiores oportunidades de conquistar a amizade dos proprietários e obter cartas de alforria, do que os parceiros que labutavam de sol a sol na lavoura e pequeno contato tinham com os senhores. (COSTA, 1998.p.326).

Mas não podemos nos embasar de que a força herdada pelas mulheres atuais de Mata Cavalo fosse vinda apenas das escravas que trabalhavam dentro das Casas Grandes, pois seriam dados abstratos para serem levantados, por falta de fontes específicas. Por outro lado também temos


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outros aspectos na vida das mulheres escravas que as obrigava a serem fortes e a lutar por uma continuação de vida futura. Aos escravos era negado o direito do casamento formal, da constituição de uma família, poucos eram os casais que conseguiam viver juntos. Mas ao mesmo tempo era imposto a essas mulheres que fossem geradoras de outros escravos, para o abastecimento do próprio sistema escravista, principalmente após o fim do tráfico negreiro. Crianças que muitas vezes não poderiam sequer ser amamentadas, pois deveriam dar o lugar no seio de suas próprias mães a outras crianças, brancas. Os filhos de escravos para conhecimento dos patrões só tinham mãe, não importando se o pai fosse outro escravo da senzala ou o próprio senhor. “Sendo que essas mães eram as responsáveis pelos seus cuidados, educação, pelos ensinamentos úteis para conseguirem sobreviver num mundo escravocrata e cruel ao extremo” (Costa, 2008, p.306-318). As avós das mulheres de Mata Cavalo chegaram a viver na senzala, mesmo que no fim da época da escravidão e desenvolveram suas artes para sobreviverem e criarem seus filhos, sendo portadoras de informação e influência sobre os demais. Após formarem o quilombo a forma como administravam suas vidas permaneceu, ficando as mulheres responsáveis pela criação dos filhos, agora no seu território constituído, de onde deveriam tirar seus alimentos e construir suas casas. A defesa desse território era a certeza de que não veriam mais o sofrimento de seus descendentes e elas educaram suas filhas para seguirem os seus caminhos como donas de suas próprias opiniões e atitudes. Para responder a essa segunda hipótese eu deveria entender qual seria a influência que essas avós tiveram na criação e no atual papel feminino no quilombo. Como terceira hipótese, sugeri que a liderança feminina no quilombo estivesse ligada ao fenômeno de emancipação feminina e se conjugasse com o reagrupamento do quilombo e sua caracterização como território e lócus do fortalecimento da identidade quilombola. Entendi que seria importante trazer um elemento da atualidade que pudesse servir como explicação para o poder feminino em Mata Cavalo, pois


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vivemos momentos onde a mulher ganha mais espaço na sociedade, seja na política ou profissionalmente. Para Muraro: A entrada da mulher como sujeito maior da história começa a transformar, principalmente nos países desenvolvidos, não só a estrutura da força de trabalho como a da administração do Estado e do próprio mercado econômico. Além disso, implica ainda uma visão nova tanto das ciências humanas como também das exatas. (MURARO, HENDERSON, 2006.p.18).

Mata Cavalo se integra também ao contexto social de mudanças e renovações, nada mais coerente do que considerar na pesquisa como esses fenômenos ocorrem na comunidade. A liderança feminina tem um papel preponderante na luta pelo território quilombola e é circunscrita por ele e pela identidade em comum que cada mulher tem de ser herdeira daquele local. São movimentos que caminham juntos, a memória do território quilombola fortalece a identidade comum, que fortalece a liderança das mulheres. Para entender essa construção, utilizamos as considerações de Haesbaert (2002) que entende a constituição de um território em uma tríplice abordagem: jurídica, política, e cultural, salientando o caráter do poder tanto estatal como local, o aspecto humano da identidade social, bem como os aspectos econômicos. Esses três elementos não são mutuamente excludentes, mas integrados num mesmo conjunto de relações sócio-espaciais, ou seja, compõem efetivamente uma territorialidade ou uma espacialidade complexa, somente apreendida através da justaposição dessas três noções (HAESBAERT, 2002, p. 38).

Não pretendo trabalhar com o conceito de comunidade tradicional, mas acho interessante utilizar o aspecto que Paul Little (2002) faz sobre territorialidades em seu estudo sobre comunidades tradicionais, apontando como aspecto fundamental dessas comunidades a territorialidade humana e sua multiplicidade de expressões, produzindo uma diversidade de territórios socioculturais e que: No intuito de entender a relação particular que um grupo social mantém com seu respectivo território, ele utiliza o conceito de cosmografia definido como os saberes ambientais, ideológicos e identidades – coletivamente criados e historicamente situados –, que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território. A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele (LITTLE, 2002.p.03).


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Nas três hipóteses levantadas, o território historicamente construído como símbolo de liberdade está totalmente inserido como o elemento determinante para o papel que essas mulheres exercem no quilombo. É e nesse espaço que devem ser entendidas essas questões, seguindo o objetivo maior do projeto proposto pelo GPEA para Mata Cavalo e do qual a minha pesquisa faz parte. Por essa razão a Educação Ambiental é uma linha que devo utilizar como regente nessa caminhada pesquisadora. E sempre no sentido de valorizar a união entre o ser e o meio, entendendo suas dimensões sociais, políticas e naturais. Nesses termos nos apoiamos em Loureiro, entendendo que: A educação ambiental não se refere exclusivamente às relações vistas como naturais ou ecológicas como se as sociais fossem a negação direta destas, recaindo no dualismo, mas sim a todas as relações que nos situam no planeta e que se dá em sociedade – dimensão inerente à nossa condição como espécie (Loureiro, 2004: 79).

Quando apreciamos Mata Cavalo com esse olhar da Educação Ambiental, entendemos qual é essa interligação entre as dimensões sociais, políticas e naturais. O quilombo sofreu durante anos com invasões, tanto de fazendeiros quanto de garimpeiros, que acarretaram desmatamento, erosão e uma atual falta de água. O riacho que dá nome ao quilombo não serve para o abastecimento doméstico devido ao assoreamento ocorrido por causa da invasão do gado na mata ciliar, das constantes utilizações de mercúrio para a procura de ouro, e os poços perfurados são destruídos por tratores a cada despejo que ocorre (figuras 03 e 04). No quilombo não existe coleta pública de lixo, na maioria das vezes faz-se uso do fogo como uma alternativa para descarte dos resíduos, o que acarreta um ar mais poluído durante o período da seca que vai de maio a outubro nessa região de cerrado em Mato Grosso.


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Figura 3 e 4: Situação das casas e quintais depois de um dos despejos em junho de 2008. Observa-se que o trator destruiu o poço, impedindo que, mesmo que os quilombolas voltem a ocupar esse terreno, possam usá-lo outra vez.Foto: Rosana Manfrinate. Arquivo GPEA.

Mas o que é relevante entender é que, ligada a essa degradação ambiental, há o histórico descaso por parte das autoridades em criar políticas públicas que melhorem as condições de vida para a comunidade. “A desigualdade ambiental é uma das expressões da desigualdade social que marca a história do nosso país” (ACSELRAD, 2005.p.43). Essa desigualdade ambiental pode ser entendida também com o termo “racismo ambiental” que foi cunhado no bojo do ato corajoso do reverendo Benjamin Chavis que em 1982 tentou frear o descarregamento de uma substância tóxica, o PCB (plychlorinated-biphenyl), num bairro periférico do estado americano da Carolina do Norte, bairro onde a maioria da população era negra. Essa manifestação resultou nas prisões dos manifestantes. Entretanto, serviu para levantar essa questão e um mapeamento foi feito nos Estados Unidos da América para localizar e explicitar como a camada menos favorecida da sociedade americana era atingida pelos danos ambientais causados, tanto pela agricultura como pela industrialização” (SATO et. ali. 2008 p.03). As discussões sobre esse assunto não se encerraram, e quase uma década mais tarde o conceito de “Racismo Ambiental” se comunga com o novo termo “Justiça Ambiental”, o que o transforma num conceito mais amplo, mostrando os riscos ambientais aos quais a comunidade mais vulnerável sócioeconomicamente está exposta. Formando uma rede “multicultural, multirracial e internacional, articulando entidades de direitos civis, grupos comunitários, organizações de trabalhadores e trabalhadoras, igrejas e intelectuais” (ACSELRAD, 2005.p.45). No Brasil essa rede se materializa na Rede Brasileira


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de Justiça Ambiental (RBJA), criada em 2001 tendo como um elo, em Mato Grosso, o GPEA, que contribui aliando a pesquisa à militância, alicerçando-se no campo pedagógico que constrói conhecimento com diálogos de saberes sem esquecer-se do lado político. (SATO et. ali. 2008 p.05). Longe de ser apenas mais uma disciplina jurídica, a Justiça Ambiental é construída na vida social como considerado por Acselrad: A noção de justiça ambiental exprime um movimento de ressignificação da questão ambiental. Ela resulta de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social em sentido amplo. Este processo de ressignificação está associado, por certo, a uma reconstituição das arenas onde se dão os embates sociais pela construção dos futuros possíveis (ACSELRAD, 2004.p.219).

O conceito de Justiça Ambiental apresenta ainda um conjunto de princípios e práticas que apontam para caminhos por onde devem seguir os movimentos em defesa da equidade sócio-ambiental. São vários os princípios e todos muito importantes, porém tratarei aqui apenas de dois deles que acho essenciais para esta pesquisa, já que estão ligados ao tema pesquisado e à visão de Educação Ambiental que quero alcançar com este trabalho. Estes princípios demonstram que as lutas por justiça ambiental estão ligadas a: 1) Defesa

dos

direitos

a

ambientes

culturalmente

específicos

comunidades tradicionais situadas na fronteira da expansão das atividades capitalistas e de mercado; 2) Defesa dos direitos de acesso equânime aos recursos ambientais, contra a concentração das terras férteis, das águas e do solo seguro nas mãos dos interesses econômicos fortes no mercado. Escolhi salientar estes dois princípios por entender que eles refletem o que ocorre em Mata Cavalo. A comunidade tem dificuldades em conseguir água e o solo não é seguro no sentido de que eles ainda não têm garantia total sobre a terra, o que os faz mudarem de lugar constantemente. O quilombo também sofre pressão por estar na fronteira da expansão capitalista representada pelos fazendeiros de gado que precisam das terras para a formação de pastos. Suas heranças, cultural e histórica, são constantemente ameaçadas com os despejos, pois o que os faz serem quilombolas é a memória do local no qual


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vivem; o seu território de direito e pertencimento. E esse território deve estar em condição de oportunizar dignidade e cidadania a todos que lá habitam. Ao enveredar por esta pesquisa entendi que não encontraria os elementos que me ajudariam a compreender e a responder ao objetivo desse trabalho em documentos oficiais, pois as respostas que eu precisava estavam nas ações do cotidiano, nas conversas, reuniões da associação para se discutir sobre a questão da legalização da terra, nas visitas de comadres e, principalmente, repassada através da história e da memória das mulheres quilombolas. Para a pesquisa é mais importante ver o que não é mostrado, o que não é explicitado, entender por qual percurso histórico foi construída a liderança de Dona Tereza e até que ponto esse poder é aliado da educação como formação política para o reconhecimento cultural desse povo. Entenderemos aqui formação política e educação no sentido freiriano, onde não podemos mais pensar, após Paulo Freire, apenas numa Educação entre os muros da escola como “um universo preservado assim como não foi mais possível pensar a sociedade sem a luta de classe após a dialética de Marx” (GADOTTI,2003,p.05). Assim o dialógo é aberto sobre as histórias de vida, e não apenas nos seminários dentro da escola (op.cit,p.04), num ato político pedagógico dentro da comunidade com reflexões feitas sobre suas próprias histórias. Não estamos falando aqui de história oficialmente construída, com relatos em atas, mas de pessoas que vivem em seus universos ligadas à sociedade como um todo e que, às vezes, se encontram em universos isolados com características próprias de resistência e construção, que não são dissociadas das grandes questões globais, mas que não se explicam apenas por elas. Para cumprir o meu objetivo nesta pesquisa a opção de metodologia adotada foi História Oral, por meio de entrevistas gravadas. Busquei usar o tom da narrativa nesta pesquisa, não apenas por ser historiadora, mas por ser também educadora ambiental que reconhece que o mundo se reveste de fábulas, de crenças, de valores e de saberes direnciados; uma pesquisadora que entende que, embora a fala ou a tradição oral não tenha linguagem científica, encerra um mundo de conhecimento. Usarei uma


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metáfora grega para ilustrar a minha narrativa, associando-a ao contexto do quilombo Mata Cavalo. A das moiras fiadeiras do destino. Dessa forma apresento meu trabalho em seis capítulos. O primeiro capítulo é um breve apanhado que ora está sendo lido. O segundo capítulo aborda a contextualização do espaço e dos sujeitos da pesquisa e está dividido em tópicos. No primeiro tópico mostro os aspectos históricos de como vem sendo tratado o tema gênero e mulher, ao longo do tempo e no mundo científico, abro um pouco mais o debate para a situação específica da mulher negra. Apresento, ainda que brevemente, algumas mulheres que fizeram história nos movimentos quilombolas do período escravista, tentando assim destacar a importância da mulher nesse espaço. No segundo tópico desse capítulo achei necessário tecer algumas considerações sobre o quilombo de Mata Cavalo, um pouco de sua história, luta, descrição do ambiente e sua importância como território. Acrescento a este enredo o contexto maior que é o estado de Mato Grosso, na tentativa de mostrar como sua economia e política podem influenciar nos problemas que ocorrem no quilombo. No terceiro capítulo trabalho o caminho metodológico que foi utilizado na pesquisa. Para isso, aprofundo-me sobre a formação do sujeito cartesiano moderno que é apartado do mundo natural e de suas tradições, e de como a Educação Ambiental na atualidade tenta retomar esse sujeito mostrando a necessidade de sua interação com o ambiente. No bojo dessa discussão acrescento a concepção de História Oral e de qual maneira ela se une a pesquisa em Educação Ambiental. Evidencio, também, a realização do trabalho de campo realizado, seus passos, acertos, equívocos, interações e emoções que foram vividas junto a essas mulheres. No quarto capítulo apresento os trechos transcritos das entrevistas aliados às teorias, adentro pelo mundo de DonaTereza buscando responder aos meus questionamentos e hipóteses. No quinto capítulo encerro o trabalho com as considerações finais, e um debate sobre os resultados obtidos como processo formativo das mulheres de Mata Cavalo e exponho outros questionamentos que resultaram da pesquisa, mostrando que este trabalho se encerra, mas dá origem a outras indagações num processo dialético de conhecimento.


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Capítulo II História das Moiras

Baianas, Carybé 1957

Fadas Negras Nordestinas

As chaves dessas gavetas

Eu quero uma história nova

Dos arquivos trancafiados

Não este conto de fadas brancas e

Onde jazem meus heróis

ordinárias

Uma “nova” história velha

Donas de nossas façanhas

Cheia de fadas beiçudas

Eu quero um direito antigo

Fazendo auê, algazarras

Engavetado em discursos

Com argolas nas orelhas,

Contidos, paliativos

De cabelos pixaim

(cheios de maçãs e peras)

Engasgando príncipes brancos

Bordados de culpa e crimes.

Com talos de abacaxi.

Eu quero de volta, de pronto

Lepê Correia


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2.1.As moiras do quilombo No mundo mítico grego o destino de todos, fossem eles os mais simples dos seres, ou mesmo os poderosos deuses gregos como o próprio Zeus, não importava, deveria se curvar às moiras: as irmãs Cloto, Láquesis e Átropos, filhas de Nix, deusa da noite. Essas irmãs passavam horas a fiar na roca, num trabalho interminável, mas não fiavam um fio qualquer, com o fuso elas definiam o destino de cada um que já tenha pisado ou que ainda viria a pisar na Terra. Cloto é a que tece, seu nome significa, em grego, „fiar‟; ela detém o fuso, manipula-o e estimula o fio da vida a iniciar sua trajetória. Láquesis avalia os compromissos, as provas e as dores que caberão a cada ser, distribuindo assim entre os humanos seus respectivos destinos; ela também sorteava quem partiria para o reino da Morte, e Átropos tem sob sua égide o poder de romper o fio da vida com sua tesoura encantada; na Grécia seu nome tinha o sentido de „não voltar‟. As Moiras estão ligadas às etapas essenciais da existência – o início e o final da vida; nascimento, morte e o casamento. Descritas como velhas donzelas de aspecto sinistro e funesto tinham em suas mãos o destino das criaturas. Em alguns momentos são divindades una, mas em outros são adoradas em trio. Átropo, a mais velha e franzina das três, era a mais temida e poderosa, pois era a que dava fim ao destino de cada um4. Distante da Grécia, tanto no espaço quanto no tempo, existe um grupo de moiras que não são filhas de divindades, mas herdeiras de escravas, algumas são velhas outras novas, não tem aparência funesta e nem tão pouco são donzelas, entretanto partilham com as moiras gregas a mesma altivez de fiar o fio do destino. Mas não o destino de todas as criaturas que já passaram pela terra, longe disso, essas moiras fiam os fios dos próprios destinos. E com a permissão dos deuses e deusas gregas, lanço o meu olhar às mulheres de Mata Cavalo enxergando-as como moiras negras. Pois assim como Clotos elas dão início à vida e sua trajetória de luta pela sua cidadania, como que fazendo um parto de si mesma, dando à luz o 4

As referências mitológicas desse texto foram tiradas do livro de Karl Kerényi, “Os Deuses Gregos”. Cultrix, 1997.


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que elas têm de melhor: o reconhecimento de serem quilombolas. Como Láquesis, elas avaliam seus compromissos, assumem suas dores e definem o que gostariam de mandar para a morte: a opressão, a injustiça e a violência da qual foram vítimas. Cortam com as suas tesouras, tão encantadas quanto a de Átropo, todas as adversidades que encontram pela frente. Também podem, assim como as gregas, serem unas, mas ao mesmo tempo são várias. Com suas mãos habilidosas cuidam de todos os passos que levam ao fio da vida, dando forma aos novelos da cidadania no quilombo. Ao aproximar meu trabalho de um mito grego feminino com um poder tão grande sobre o destino, quis mostrar a importância dessas mulheres para a luta de resistência pela posse da terra no quilombo de Mata Cavalo, construindo o destino da comunidade com as próprias mãos. Tamanha força e superação de adversidades, tanto chama a atenção como merece um olhar mais atento, olhar de quem quer conhecer, entender e sentir. Mergulhar no mundo dessas mulheres por meio da pesquisa e tecer novos campos de conhecimentos é, para um pesquisador, a chance de poder contribuir tanto com a academia como com a sociedade que ainda tem dificuldades de reconhecer a diversidade dos grupos que a compõem. Um desses grupos sem dúvida é o Quilombo de Mata Cavalo que viveu uma situação problemática, pois sempre existiu forte contestação por parte dos fazendeiros da região em aceitar os descendentes quilombolas como os verdadeiros donos da terra e que, para espoliá-los, utilizaram-se de vários métodos como a violência e a intimidação usando até aparato policial para isso. Mas uma característica destaca-se nesse universo, a liderança das mulheres em Mata Cavalo. São elas que comandam os movimentos, que enfrentam os fazendeiros e que vão à justiça, quando necessário. Nesse contexto, o foco da pesquisa, sua parte viva e sentida, serão as mulheres de Mata Cavalo, as moiras negras, os sujeitos sociais pelas quais buscaremos entender como foi estabelecida essa liderança e o poder dessas mulheres que assumem a luta no quilombo. Especificamente faremos um trajeto pela vida de Dona Tereza que é a presidenta do quilombo, a nossa Átropo negra: “a mais franzina, poderosa e respeitada de todas as moiras”. Entendendo aqui que, sujeito da pesquisa é o ser histórico que age, interage, transforma-se e


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transforma, emociona-se e também se indigna com sua situação, o sujeito que vive o mundo e no mundo. Para Aleixo o termo sujeito deve: Revestir-se de um caráter profundo. O sujeito é o ser, dotado de qualidades, que, ao praticar determinadas ações, impõe o iniciar de um novo processo, revitaliza o que estava latente, instaura um pensar e um agir diversos dos predominantes (ALEIXO, 1995.p.17).

Para entender o porquê das mulheres negras e quilombolas serem os sujeitos principais da pesquisa é importante entender o movimento de mudança na pesquisa científica, não só no Brasil como no mundo todo, nos últimos anos no estudo sobre as mulheres. A mulher retratada pela história oficial escrita pelo movimento positivista do século XVIII era o estereótipo da mulher dentro dos padrões de ideal burguês, branca, mãe abnegada à criação dos filhos e à felicidade do lar sem influência na vida política, que era exclusividade dos homens burgueses. Em oposição a essa imagem feminina e doméstica, os positivistas descreviam outro tipo de mulher: a pública. Essa frequentava livremente os espaços públicos: ruas, bares, era a encarnação do mal, da infelicidade e davam ordens. Eram consideradas mulheres que queriam tomar o lugar que naturalmente seria dos homens. Gilberto Freyre (1997) nos dá uma amostra desse pensamento positivista, usando como exemplo as impressões descritas por um médico alemão naturalizado russo que organizou e chefiou uma expedição ao interior do Brasil entre os anos de 1824 a 1829, percorreu mais de dezesseis mil quilômetros fazendo registros dos aspectos mais variados de sua natureza e sociedade, constituindo o mais completo inventário do Brasil do século XIX. Langsdorff em sua expedição passa pelas terras de Mato Grosso e se espanta ao deparar-se com mulheres proprietárias de terras e de engenhos, se igualando aos senhores do nordeste. Langsdorff, nos princípios do século XIX, visitou uma fazenda no Mato Grosso, onde o homem da casa era uma mulher. Vasta matrona de cinco pés e oito polegadas, o corpo proporcionado à altura, um colar de ouro no pescoço. Mulher já de seus cinquenta anos, andava, entretanto por toda parte, a pé ou a cavalo, dando ordens aos homens com a sua voz dominadora, dirigindo o engenho, as plantações, o gado, os escravos. Era uma machona. Junto dela o irmão padre é que era quase uma moça. As senhoras de engenho, desse feitio Amazônico, embora mais femininas de corpo, não foram raras. Várias famílias guardam a


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tradição de avós quase rainhas que administraram fazendas quase do tamanho de reinos (FREIRE, 1997, p.95).

Entre desenhos e estudos da vegetação, animais e topografia, Langsdorff achou importante deixar registrado também essa característica peculiar das mulheres Amazônicas, que lhe chamou a atenção de forma tão perturbadora e negativa. Mas se por um lado esse registro demonstrava o preconceito de uma época, ele pode ser indício para estudos atuais de que nas fazendas de Mato Grosso, a situação feminina era um pouco diferente dos outros lugares do Brasil no século XIX. Para Joan Scott (1992.p.64), historiadora sobre o assunto, a forma modesta como a mulher sempre foi retratada na história sugere que os historiadores têm uma visão parcial e incompleta do passado. Ela questiona a prioridade que é dada à “história dos homens” em oposição à “história das mulheres”, como uma implícita forma de hierarquia social. No século XIX o marxismo contribuiu para as grandes mudanças na forma de pensar o mundo e, consequentemente, a história do mundo, porém para alguns teóricos sobre o assunto, não trouxe grandes contribuições para a forma de escrever sobre as mulheres, pois “na visão do estudo das estruturas, acreditava-se que as mulheres eram um componente de classe, sendo então já contemplado nesse tema” (Soihet, 1997.p.276). Entretanto, entendo ser pertinente trazer aqui considerações feitas por Marx e Engels em seus estudos que demonstram suas preocupações sobre as condições de exploração no trabalho em que viviam as mulheres da classe operária: As lojas de modas empregam um grande número de moças que habitam e comem na casa (...) o tempo de trabalho atinge quinze horas, se aparecem negócios com pressa, dezoito horas, trabalha-se esse tempo sem nenhuma fixação de horário, de modo que as moças nunca tem mais que seis ou, às vezes, duas horas para repousar e dormir, quando não são forçadas a passar toda a noite em suas tarefas. Essas infelizes moças, semelhantes a escravas, sob a ameaça moral dum chicote (que é o pavor de serem despedidas) são mantidas num trabalho tão teimoso e tão incessante que um homem robusto, mais forte, portanto, que as mocinhas de quatorze anos, não poderia suportar (MARX E ENGELS,1979.p.66).

E essas explorações continuavam e dificultavam as condições que as mulheres tinham em exercerem a maternidade:


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Que a mortalidade geral das crianças de pouca idade aumenta, por conseguinte, do trabalho das mães, é lógico e é atestado pelos fatos. As mulheres retornam à fábrica frequentemente no terceiro ou quarto dia após o parto e naturalmente abandonam o recém-nascido; nas horas de liberdade, devem correr as pressas para casa, a fim de amamentarem a criança, e acessoriamente, comerem qualquer coisa elas próprias (MARX E ENGELS,1979.p.68). M.E..., fabricante, fez-me saber que emprega exclusivamente mulheres nos seus negócios mecânicos; dá preferência às mulheres casadas, sobretudo, àquelas que têm uma família numerosa; estas são mais atentas e mais disciplináveis do que as mulheres não casadas, e, além disso, são forçadas a trabalhar até a exaustão a fim de obterem os meios de subsistência necessários. Assim que as virtudes que melhor caracterizam a mulher se voltam contra ela própria. Aquilo que há de ternura e de moralidade na sua natureza transforma-se no instrumento de sua escravidão e miséria (MARX E ENGELS,1979.p.91).

A visão de Marx e Engels (op. cit.) sobre a mulher se mostra por seus escritos, ainda reduzida a sua condição de operária, não tocando em pontos como a identidade feminina. Essas operárias, na descrição feita por eles, não demonstram resistência ao processo de exploração, mas sim passividade. Contudo, não podemos deixar de observar o momento histórico em que eles escrevem suas obras. No século XIX, ainda não havia sido feito nenhum estudo sobre as operárias, suas condições de vida e a de seus filhos. Não havia teorias que embasassem suas pesquisas ou que despertassem outras abordagens. Além do que Marx e Engels, mesmo que com pensamentos revolucionários, eram homens de seu tempo, vivendo numa sociedade machista com o ideal burguês. E para situar o estudo de Marx e Engels na atualidade, vale ressaltar que, ainda hoje, apesar de todas as lutas e conquistas das mulheres, é um tanto complicada a situação de mulheres que comungam a profissão com o desejo da maternidade. Em muitos casos algumas são obrigadas a adiar a maternidade em prol das conquistas profissionais. Assim, mesmo carecendo de mais elementos e discussões, a visão marxista sobre a condição da mulher trabalhadora ainda não foi superada, mas, aliada com outras teorias que tratam sobre a mulher, ser um ponto de partida para estudos e debates. Para Louro (2003.p.15) o entendimento sobre o real papel da mulher na sociedade começa a mudar com o movimento sufragista feminino (direito ao voto), da virada do século XIX ao XX, o que Louro apresenta como primeira


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onda do feminismo (op. cit.), que se espalha pelos quatro cantos do mundo, mas apenas para as mulheres brancas de um nível social médio a elevado, mesmo não tendo em todos os lugares o resultado esperado. Esse movimento fica conhecido como a “primeira onda Feminista”. Na final da década de 40, num mundo balançado pelo terror da violência vivida nos anos de guerra e por todas as rupturas sociais, políticas e morais ocorridas durante esse período, é lançada por Simone de Beauvoir a célebre obra “O Segundo Sexo”. Nessa obra, Beauvoir aplicou todo o existencialismo filosófico para explicar a feminilidade como um aprendizado cultural e social se utilizando da máxima “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade” (BEAUVOIR, 1987 p.06). As características que são consideradas pela sociedade como características femininas, como a passividade, a compreensão, a facilidade em dar carinho, são apresentadas por Beauvoir como características aprendidas desde criança no convívio, na sociedade, na educação, e não uma marca de personalidade já impressa na mulher biologicamente. A passividade que caracterizará essencialmente a mulher "feminina" é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trate de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade (BEAUVOIR, 1987 p.19).

Durante a década de 60, inflamadas por pensamentos como o de Beauvoir, inicia-se, o que Louro (2003, p.18) apresenta como a segunda onda do feminismo, a ampliação do debate no campo teórico, criando e problematizando o conceito de gênero, além das preocupações sociais e políticas. Em meados da década de 70 e por todo o período de 80 o termo gênero se consolida como uma nova metodologia que reavalia os critérios dos trabalhos existentes sobre as mulheres, rejeitando o determinismo biológico que servia de parâmetro até então, substituindo-o pelo entendimento de construções inteiramente sociais, e tratando também do aspecto relacional entre homens e mulheres (SOIHT, 1997.p.280). A mulher em seus mais diversos universos como na rua, nos hospitais, nas escolas, na religião e até nos movimentos sociais que era antes


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forçosamente ocultado dos registros, passa a ser mostrada. A entrada das feministas nas academias colocou as mulheres dentro do debate histórico não apenas como coadjuvantes sociais, mas como indivíduos que exerceram e exercem papeis importantes na sociedade (SOIHET, 1997.p.284). Michelle Perrot (1988), em seu trabalho sobre os excluídos da história mostra a importância feminina nos movimentos operários e de revolta urbana ocorridos no século XIX na Franç, devido à pobreza e a fome. Nesses motins, as mulheres intervêm coletivamente. Nunca armadas, é com o corpo que lutam (...). Mas usam principalmente a voz: suas “vociferações” levantam multidões famintas... Evitando roubar, reclamam apenas o preço justo, impondo-o pessoalmente diante da omissão das autoridades (Perrot, 1988.p.194).

A dicotomia ganha corpo no debate sobre gênero, de vítimas as mulheres se tornam rebeldes. É a Mulher versus Homem, em bases feministas, essencial para a mobilização que se fazia necessária à época, inclusive dando outro tom no campo da ciência e na maneira de compreender a essência feminina: Colocasse aqui, no meu entender, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu caráter político. Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se constituído, convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a lançar mão, cada vez com mais desembaraço, de registros pessoais, de diários, cartas e romances. Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questões eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetória histórica específica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questões tinha (e tem) pretenso de mudanças (LOURO, 2003, p.19).

Gênero também faz um contraponto como o termo “mulheres”. Para Scott (1992.p.67) mulheres se apresentam como um tema universal, sem possíveis enquadramentos ou mudanças, “na verdade o termo mulheres dificilmente poderia ser usado sem modificações: mulheres de cor, mulheres judias, mulheres lésbicas, mulheres trabalhadoras pobres, mães solteiras”. À categoria de gênero, entretanto estende a questão de entendimento da diferença dentro da própria diferença, fugindo da categorização de um movimento que revoluciona como o movimento inicial do feminismo, mas que tem como base apenas o pensamento branco de mulheres urbanas de primeiro mundo. É necessário entender a construção de gênero como uma construção


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biológica essencialmente cultural, uma determinação social num dado momento histórico e em uma determinada cultura com manifestações próprias de cada sexo (GOMES e SATO, 2003.p.116). Novos enfoques nos lembram que, muitas vezes, esquecemos que gênero se refere a outras construções sociais como homens e homossexuais. Gomes e Sato (2003, p.120) refletem que durante muito tempo a humanidade caminhou apenas se utilizando do olhar masculino, como se usasse um “tapaolho”, o que deixava a visão fragmentada. Quando foi possível enxergar o mundo com os dois olhares, o masculino e o feminino, a visão ficou mais clara, com mais beleza. Assim, os autores não acreditam em superioridade entre os sexos, mas na complementação e compartilhamento garantindo espaços aos dois sexos. Essa construção se apresenta em constante mudança e movimentação, formando novas identidades. É nessa amplitude cultural e social da formação das identidades, na construção e reconstrução de gênero que procuro estudar as moiras negras de Mata Cavalo e o ambiente em que vivem. Existem outras formas de se entender como o gênero se relaciona com o meio ambiente, o Ecofeminismo é uma delas. Supõe que as mulheres e a terra têm características em comum, pois foram ambas exploradas pela imposição masculina, acreditam na maior proximidade da mulher com a mãe Terra, no poder místico feminino (SATO e GOMES, 2003.p.117). Para Angelin (2009.p.02) o ecofeminismo caracteriza-se também pela postura crítica contra a

dominação,

pela

luta

antissexista,

antirracista,

antielitista

e

anti-

antropocêntrica. Além disso, atribui ao princípio da cosmologia a tendência protetora das mulheres para com a natureza. O movimento Ecofeminista, conforme descreve Regina Di Ciommo (2005,p.04), “surgiu na década de 80” (sic), no bojo das lutas feministas, mas com valores, práticas e ética específicas, pautadas no ativismo ambiental das mulheres, na defesa da saúde e segurança ambiental para suas famílias. Já no início da década de noventa, após a Eco92, acirrou-se o debate entre o movimento das mulheres e o movimento ecológico levando ao amadurecimento das reflexões sobre a importância do meio ambiente para a saúde do corpo e da mente e o bem-estar das gerações atuais e futuras. Ao mesmo tempo em


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que os movimentos sociais, reconheciam que, sem o despertar da cidadania feminina, e com a consequente conscientização de seus direitos, inclusive os reprodutivos,

não

se

poderia

chegar

a

uma

política

ambiental

e

preservacionista efetiva. E, continuando com o pensamento de Di Ciommo (op. cit.), as organizações ecofeministas enfatizaram a ligação entre mulheres e meio ambiente, destacando a necessidade de se pensar o papel das mulheres no desenvolvimento sustentável e na eliminação da pobreza, dentre outros fatores, do reconhecimento do sexismo, ou seja, da dominação do gênero feminino

pelas

formas

discriminatórias

da

cultura

masculina.

Mais

recentemente, as organizações ecofeministas vêm desenvolvendo projetos em que a ênfase é dada ao enfoque de gênero para a execução de políticas públicas efetivas de desenvolvimento que beneficiem comunidades nas quais o acesso e controle dos benefícios gerados pelos recursos naturais devam ser “inclusivos para homens e mulheres, quando se tem em vista o êxito das iniciativas” (DI CIOMMO, 2005.p.04). Essa é uma visão interessante, e acho difícil não utilizarmos alguns de seus elementos, pois em determinados momentos a Educação Ambiental se assemelha ao ecofeminismo. Optei por trabalhar com a visão de educação ambiental pautada na perspectiva de território, identidade, pertencimento, e que intrinsecamente, não deixa de falar dos cuidados femininos. Cuidados femininos que se misturam com os mesmos cuidados com os quais se preocupa a Educação Ambiental. Cuidado com o outro, com o ambiente, com o território, com o ser em construção de sua identidade. Elementos que se complementam e que recebem a identidade construída e circunscrita à territorialidade onde a mulher, por meio do cuidado, celebra a vida. Gerando e vigiando a vida com seus cuidados, em suas pequenas e grandes temporalidades e territorialidades, em suas formas cotidianas e nos longos tempos da história, elas estão também no mundo do trabalho, para além do espaço da casa, do labor doméstico, abertas ou escondidas (...) Nos espaços públicos da vida em comum: na escola, nas ruas, nos bares, nas praças, nos conventos, nas prisões, nos mercados, nos palcos, nos parlamentos, nos tribunais, nas estradas, nos hospitais, nos prostíbulos e em outros tantos e variados tempos e espaços do campo e da cidade, de ontem e hoje (TEIXEIRA e LOPES, 2008.p.29).


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Os cuidados, os tempos e a territorialidade constroem as identidades das quilombolas que vivem o seu cotidiano em Mata Cavalo. Entretanto, é oportuno não apenas considerar construção de identidade, mas também a desconstrução das identidades. Para Bauman (2005), em outros tempos a identidade das pessoas era definida pelo seu papel na divisão do trabalho e garantida pela solidez do Estado envolto no patriotismo. Mas, atualmente, contrapõe Bauman (op. cit.), a identidade perdeu seu ponto fixo frente a fluidez dos conceitos, da economia, e dos relacionamentos. Essa fluidez também movimenta nossa identidade, somos o eu capaz de se transformar em nós, temos multifaces por causa do ambiente fluido em que vivemos. A identidade então é e precisa ser algo inventado, construído para lidar com o novo que sempre aparece e por nós é consumido. No pensamento de Néstor Garcia Canclini (1997), a desconstrução da identidade está relacionada ao advento do rádio, pois este aparelho passou a difundir os hábitos e modismos da vida na cidade e em outros cantos do mundo, confrontando as várias identidades e formando outras. Para ele a identidade hoje é "poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas" (p.54), por isso ela não pode ser compreendida apenas por uma disciplina, mas precisa ser vista por diversas áreas dos diversos saberes. Stuart Hall (2006) também postula sobre a identidade do sujeito, para ele a identidade é construída pelos diversos elementos culturais que rodeiam esse sujeito. Não podemos dizer que existe uma identidade fixa, mas sim, com suas próprias palavras, identidades “descentradas”, pois ainda aparece em outro trabalho de Hall (2009) que por serem culturais, as identidades tem sua história, e nem mesmo essa história é fixa, ela também se reconstitui a cada vez que é recontada, nos apresentando várias outras histórias. Assim também as moiras negras de Mata Cavalo, se reconstroem a cada história que contam ou que participam formando e transformando suas novas identidades a partir de suas lutas. Dizer apenas que são mulheres e negras, não é suficiente, já não abarca o universo multicor do qual fazem parte.


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Sua identificação, como diria Michel Serres, não pode mais ser só a carteira de Identidade: Sua carteira de identidade, bem nomeada, comporta somente duas ou três de suas pertinências, dentre as que ficam fixas durante toda a sua vida, pois você continua macho ou fêmea e filho de sua mãe: na verdade, sua autêntica identidade se detalha e, sem dúvida, se perde em uma descrição da infinidade virtual de tais categorias, indefinidamente cambiantes com o tempo real de sua existência: ontem, você ingressou em um clube de ciclismo, por causa de seus talentos, amanhã, por opinião, você adere a um partido político, e esta manhã, vencedor em uma determinada prova, você foi aceito, por concurso, em um determinado grupo de peritos. Quem é você, afinal? A interseção, flutuante pela duração, desta variedade, numerosa e bastante singular, de gêneros diversos. Você não pára de tecer e coser seu próprio manto de Arlequim, tão matizado ou confuso quanto a carteira de seus constrangimentos (SERRES,1995. p.16).

A Educação Ambiental nos acompanha nessa caminhada na medida em que se entende que a construção de gênero e de suas identidades está ligada ao território em que essas mulheres vivem, a terra pela qual lutam, pela forma como se relacionam com o seu ambiente e no movimento de pertencimento ao lugar e reconhecimento do valor de ser quilombola. Nenhuma outra terra serviria como palco para essas atrizes, somente lá elas são as moiras negras. Ao incorporar a particularidade da sua história e o seu território a ser reconquistado como elementos constituintes da sua identidade, os quilombolas de Mata Cavalo assumem seu papel de integrantes de uma diversidade encoberta pelo discurso neoliberal. Diversidade que incorpora outras diversidades: a diversidade biológica de seu território, a diversidade de comunidades deste mesmo território, a diversidade das formas de uso da terra, as diversidades de espécies agrícolas cultivadas, as diversidades de opinião sobre seu próprio movimento (SIMIONE, 2008. 84).

Ter um território, pertencer a algum lugar, serem negras, características que formam a vida dessas mulheres e também seu passado. Um passado de escravas em um mundo de brancos. Se a vida da mulher branca era vista tradicionalmente por um viés positivista burguês que a colocava como “mãe e rainha do lar”, humanizada pela pureza cristã, ao contrário, a escrava negra sempre foi sinônimo de corpo animalizado para o trabalho duro, para a lascívia, disposto para o sexo (ALVES, 2010). Giacomini (1988), em seu trabalho argumenta que a escrava era explorada de duas formas, a escrava “ama-de-leite” e a escrava “objeto sexual”. Nessas duas formas de exploração ainda estava contida a servidão,


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fosse dentro da casa grande ou na lavoura. A escrava ama de leite, suscita uma ambiguidade de visões, era responsável pela criação da família branca, nesse momento era impregnada de nobreza, mas também era acusada de boa parte da má educação das crianças. Muitas vezes vista como criatura que poderia se tornar cruel ao cometer atentados contra as crianças as quais deveria amamentar. Muitos relatos em jornais do século XIX mostram assassinatos de crianças brancas cometidos por suas amas de leite, após estas terem seus filhos verdadeiros afastados para que pudessem amamentar melhor os filhos dos senhores. Já a escrava “objeto sexual”, se encontra dentro da lógica escravista como a coisa a ser utilizada, já que o corpo não era seu e sim uma mercadoria do senhor, e sobre a qual por ser mulher recaíam as determinações patriarcais da sociedade e legitimação da dominação do homem sobre a mulher. A escrava, para o senhor, era a sexualidade livre da obrigação, dos entraves morais, religiosos e familiares, comuns ao seu relacionamento com a esposa branca (Giacomini op. cit.). No decorrer da história, mesmo com a libertação dos escravos em 1888, não houve muita mudança em relação à condição das mulheres negras. De escravas elas passaram a ser trabalhadoras pobres sem muitos direitos. Depois da abolição os libertos foram esquecidos. Com exceção de algumas poucas vozes, ninguém parecia pensar que era sua responsabilidade contribuir de alguma maneira para facilitar a transição do escravo para o cidadão (...). A maioria tinha estado mais preocupada em libertar os brancos do fardo da escravidão do que estender aos negros os direitos da cidadania. O governo republicano que tomou o poder em 1889 excluiu os analfabetos do direito de voto, eliminando a maioria dos ex-escravos do eleitorado. Poucos foram os abolicionistas que continuaram a afirmar que a tarefa deles ainda estava incompleta (VIOTTI DA COSTA, 2008).

Economicamente, a mulher negra, depois da libertação, pôde usar de seus conhecimentos de mucamas das casas onde cuidava da cozinha, da arrumação e dos filhos dos patrões, para fazer disso seu sustento e de sua família, assim as amas-de-leite e as negras objetos sexuais passam a ser as empregadas domésticas (ALVES, 2010). Ainda hoje temos uma grande defasagem na condição em que a mulher negra vive resultado da sua história onde foi vítima da violência, do descaso e


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da marginalização, primeiro na sua condição de escrava e depois na condição de ex-escrava. Com pouco acesso à escola, relegada a serviços braçais e ao subemprego, o mapa da sua inserção no mercado de trabalho é considerado preocupante e desvantajoso. Em uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas- IPEA, em parceria com a Secretaria Especial de Política para Mulheres, que analisou dados socioeconômicos da população brasileira de 1993 até 2007 relacionando-os com a cor e o sexo, concluiu-se que o salário médio de uma mulher negra nesse período correspondeu apenas a 34% ou 39% (varia de acordo com a região do Brasil) do salário de um homem branco, sendo que, se um homem branco recebia em média 1.200 reais, a mulher negra recebeu 400 reais. Essa pesquisa mostrou também que, no que tange ao desemprego, ele atingiu 12,5% das mulheres negras, contra 5,7% dos homens brancos. As negras representam um contingente significativo entre as trabalhadoras informais sem acesso à Previdência, além disso, aproximadamente 75% das trabalhadoras domésticas infantis são meninas negras (IPEA, 2009). De acordo com Walkiria Santos (2009, s/p), mesmo com diploma universitário, muitas mulheres negras não conseguem exercer as profissões para as quais foram formadas e, quando se analisa a questão da saúde, é apontado um quadro mais problemático. Em 2004, 44% das mulheres negras não fizeram seus exames ginecológicos e de prevenção ao câncer de mamas, sendo que no mesmo período a incidência de casos de contaminação pelo vírus HIV subiu de 36% para 42%, enquanto que nas mulheres brancas essa taxa vem caindo a cada ano. Na análise dessa pesquisadora, muito disso devese a implementação de políticas de cunho genérico que, numa sociedade ainda racista e com desigualdades, não alcança os problemas que as mulheres negras enfrentam. A articulação entre o sexismo e o racismo incide de forma implacável sobre o significado do que é ser uma mulher negra no Brasil. A partir do racismo e da consequente hierarquia racial construída, ser negra passa a significar assumir uma posição inferior, desqualificada e menor. Já o sexismo atua na desqualificação do feminino (SANTOS. 2009. s/p).

Tudo o que foi apresentado aqui sobre a situação das mulheres negras, desde a visão histórica até o relatório dos dias atuais, é de suma importância e,


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por si só, justificaria uma pesquisa que elegesse esse tema. Entretanto, existe outro lado dessas mulheres que também não podemos deixar de fora, um lado muito pouco mostrado, o lado da resistência a todas essas agruras pelas quais elas passam. O lado da escrava que servia na casa grande e que levava informações dos patrões aos outros negros, fomentando rebeliões e fugas. O lado das negras de ganho que em algumas ocasiões compravam sua liberdade. Também o lado das mulheres negras do Brasil atual que, mesmo com desvantagem econômica e social, continuam lutando e procurando cada vez mais seu espaço, seja nas academias, na vida política ou brigando por suas heranças culturais e seus territórios como é o caso em Mata Cavalo. Mostrar a liderança e o poder dessas mulheres é mostrar que situações caóticas podem ser revertidas desde que através da consciência de si mesmo, de sua história e, através dessa história, se educar, mas não a educação opressiva das escolas ou bancária, como diria Paulo Freire, mas uma educação para viver a liberdade de sua cultura, seus direitos e cidadania. “A pessoa conscientizada tem uma compreensão diferente da história e de seu papel nela. Recusa-se a acomodar-se, mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo” (FREIRE, 1994.). As moiras tem tido muito trabalho em fiar seus fios, entretanto, não largam de seus fusos, e a cada hora aprendem a fiar de maneira diferente, esticam, fazem novelos e cortam os fios de sua própria história.

2.2. Breve História de Outras Moiras A mulher negra escrava, sua história, seu cotidiano, sua sociabilidade e sua resistência ainda é tema de poucos trabalhos acadêmicos no Brasil. Entretanto, acredita-se que ela tenha sido a protagonista de enfrentamentos diários contra a escravidão. Sua resistência histórica já se tornara evidente no embarque da África para o Brasil, depois de terem sido capturadas. Há vários relatos de pilotos dos navios negreiros que descreviam a necessidade de colocarem homens e mulheres separados nos porões dessas embarcações, pois segundo eles, as mulheres quando viajavam com os homens, os instigavam a se revoltar contra a tripulação (GOMES e PAIXÃO, 2008.p.951).


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A africana sempre chegava em menor número ao país em relação ao africano cativo. Seu preço era inferior ao dos homens, apesar de serem consideradas mais fáceis de dominar fisicamente e de administrá-las para o trabalho. Exerciam as atividades das roças e garimpos até as de damas de companhia, passando pelos serviços de domésticas alugadas e vendedoras de quitutes nas ruas das cidades. Tinham mais facilidade de conseguir a alforria, pois com seus serviços alternativos de vendas de comidas e trabalhos de ganho como eram chamadas as lavadeiras e engomadeiras, não era raro economizarem elas também, para a compra de sua alforria e a de sua família. Como exemplo disso tem-se a cidade do Rio de Janeiro onde de todos os alforriados no período de 1707 a 1812, 67% eram mulheres (ALVES, 2010.p.57). Na sociedade patriarcal descrita por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (1989), as escravas, principalmente as mais bonitas, eram vítimas do ciúme das senhoras, que não tinham poderes para controlar o ímpeto sexual do marido e filhos que caíam de desejos pela sensualidade das negras. As senhoras, muitas vezes por medidas de segurança da moralidade da casa, vendiam as meninas escravas logo que começavam a desabrochar na adolescência com seus 13 a 14 anos, para velhos mercadores que pelas fazendas passavam. Mas se caso já estivessem caído nas graças dos senhores, a vingança das senhoras conseguia ainda ser mais cruel, pois era usual segundo Freyre (op.cit. p.174) a esposa branca, mutilar seios e arrancar dentes das escravas preferidas do marido, afim de que desfiguradas, perdessem a sensualidade e ele, o desejo. A forma passiva como Freyre trata as escravas que são objetos e vítimas, ora do desejo do senhor, ora da ira da senhora, vem sendo contestada, apesar de sua obra nunca ter sido abandonada como base teórica pela riqueza de detalhes e documentação que Freyre usou no seu trabalho, e que, apesar de escrevê-lo em 1933, conta com elementos de discussão atuais que não foram superados pelas novas pesquisas. Baseada nos trabalhos de Freyre, a historiadora Adriana Reis Alves (2010), em sua pesquisa sobre as mulheres forras no século XIX na cidade de Salvador, argumenta que compartilha da tese de que a sensualidade negra era


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uma enorme tentação para os senhores de engenho, criados sob a rígida moral cristã herdada dos lusitanos e que comandava o recato sexual dentro do casamento branco. A senzala era o lugar onde o senhor deixava livre todo o seu arsenal de sadismo sexual, abusando ao seu bel prazer das escravas que quisesse. Nesse ponto, Adriana Alves, se propondo a ir mais além do pensamento de Freyre, argumenta que se o senhor era sádico sexual com as escravas como mostram as páginas de Casa Grande & Senzala, as escravas não eram assim tão masoquistas, pois muitas sabiam se utilizar desses momentos para conseguir favores de seus senhores. Como preferidas conseguiam melhorar um pouco sua vida, às vezes ganhavam a alforria para si e seus filhos naturais, (muitos deles sendo dos próprios senhores) e “algumas até mesmo conseguiam ser herdeiras de bens com a própria Chica da Silva nas terras de Minas e Luzia Jeje de Salvador” (ALVES, 2010.p.129). Com muito cuidado Alves faz essa argumentação, pois ela não interpreta isso como menos violência contra as mulheres negras escravas, isso mostra apenas uma forma de resistência à situação vivida, e uma maneira de sobreviver se utilizando das táticas que tinham ao seu alcance. Não quero dizer que não houve preconceito ou violência sexual contra as mulheres negras, consideradas mais vulneráveis, mas têlas como potencialmente sensuais abriam também várias brechas e possibilidades como fonte de ascensão para um grupo de escravos a ela ligados (ALVES, 2010.p.150).

Isso nos mostra como eram importantes as articulações e laços que as escravas estabeleciam com os senhores, que eram o centro do poder, e que de alguma

maneira

beneficiavam

suas

relações

de

parentesco.

Nas

considerações de Paixão e Gomes (2008.p.950), a escrava foi mantenedora da família negra, agindo na proteção da integridade física e psicológica de seus filhos e companheiros, assim como da comunidade que vivia nas senzalas. Muitas vezes, na tentativa de impedir que a família fosse vendida separadamente, recusavam-se a trabalhar e ameaçavam o senhor com o suicídio e o infanticídio. Num mundo cercado de opressão, construíam ambientes de autoestima e se tornavam decisivas, sendo a espinha dorsal na constituição do parentesco, a mulher tinha o papel-chave na transmissão oral das crenças e dos valores da comunidade negra em


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gestação. Ajudando assim a manter a integridade dos arranjos familiares, assim como a riqueza e a originalidade da cultura forjada em torno deles, elas foram os primeiros agentes da emancipação das comunidades afrodescendentes (PAIXÃO e GOMES, 2008.p.951).

A resistência da mulher negra escrava também ganhou lugar na fuga e nos quilombos formados por todo o Brasil até o final oficial da escravidão em 1889. Alguns são os exemplos que podemos citar5:  Alquatune: Mulher da elite negra do quilombo de Palmares no século XVII e avó de Zumbi. Sabe-se que foi filha do rei do Congo e por rivalidade de reinos, foi vendida pelos inimigos de seu pai para os portugueses, como escrava. Chegou a Recife e teve notícias de um lugar chamado Palmares, para onde os escravos iam quando fugiam das fazendas por ser de difícil acesso. Grávida e prestes a dar a luz, organizou uma fuga coletiva rumo a esse localidade e lá iniciou a organização do território negro de resistência que ficaria famoso, anos depois, sob o comando de seu neto Zumbi.  Dandara: Uma das líderes do quilombo de Palmares. Lutou lado a lado com Zumbi, participando inclusive do conflito interno no quilombo que destituiu Ganga Zumba, antigo líder, e passou o poder definitivamente para Zumbi. Era considerada uma grande guerreira, influente quando se tratava das resoluções políticas no quilombo. Foi assassinada no ano de 1694, um ano antes de Zumbi.  Felipa Maria Aranha: Na Amazônia, próximo ao rio Tocantins, existiu um quilombo no século XVIII chefiado por uma mulher chamada Felipa, que comandava um exército de 300 guerreiros e, por sua força e resistência, forçou os portugueses a aceitar a sua permanência como comunidade livre.  Zeferina: Em 1826, as tropas imperiais foram fortemente combatidas por guerreiros do quilombo Urubu, localizado no interior da província da Bahia, comandados pela líder Zeferina. A líder foi a última a ser aprisionada, sendo 5

Exemplos retirados da dissertação de: BARBOSA, Silvia M. S. O Poder de Zeferina no Quilombo de Urubu: uma reconstrução Histórica, Política e Social. Universidade Metodista, 2003


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que seu empenho em continuar lutando foi reconhecido até mesmo pelo presidente da província.  Tereza: No século XVIII, no estado de Mato Grosso, existiu um quilombo chamado Quilombo do Quariterê, que tinha como líder uma mulher chamada Tereza, provavelmente nascida no Brasil, mas de procedência de Benguela, um dos distritos de Angola. Essa mulher comandou um quilombo auto-suficiente, às margens do rio Galera, afluente do rio Guaporé, próximo à Bolívia. Essas breves histórias mostram que foi de grande importância a participação da mulher na sobrevivência dos quilombos. Aqui elenquei rapidamente as líderes, mas sabemos que muitas anônimas contribuíram nesse processo que buscava uma vida livre para os escravos. Atualmente, encontramos inúmeras pesquisas sobre o tema quilombo retratando suas lutas, seu reconhecimento jurídico, os caminhos percorridos para titulação, assim como sua cultura e história. Entretanto, ainda são poucas as pesquisas que trazem como tema o papel das mulheres nesses quilombos e qual a importância disso para as comunidades. Tentei contribuir com um pequeno passo no estudo sobre quilombos, trazendo a história de Dona Tereza.


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Cap铆tulo III A Hist贸ria do territ贸rio das Moiras


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3.1 Esticando o fio do território Antes de fiar, as moiras negras têm um trabalho mais árduo a executar, elas necessitam cultivar o elemento que se tornará o fio: o algodão. Só que aqui, diferentemente das grandes monoculturas envenenadas, o algodão dessas Moiras é cultivado com a docilidade de quem cuida de um presente raro e delicado. Elas se voltam para a terra, que será o elemento formador que proporcionará à semente o aconchego, mas também trará sofrimento, pois perderão sua dormência, se quebrarão para sobreviver e soltar sua pequena gema, que ultrapassará a linha da terra em busca do sol enquanto suas raízes se aprofundarão no chão, seguras para que seus brotos possam dar lugar aos chumaços lanudos de fibras macias que, por fim, se transformarão em fio. A terra sagrada de Mata Cavalo onde plantam o algodão delineia toda a vida e luta das moiras, pois é na terra metamorfoseada de território que elas erguem seus fusos. Os fios da história de Mata Cavalo vêm se desenrolando por longa data em coro com outros quilombos no Brasil que, para terem seus direitos garantidos, precisam passar anos em disputa pelas suas terras na justiça. Sua história começa quando o senhor Ricardo José Alves Bastos, proprietário da Sesmaria Boa Vida, deixou lavrado em seu testamento a alforria para alguns escravos de seu engenho. Entretanto, essa alforria somente seria efetivada após a morte de sua esposa Dona Anna da Silva Tavares. Segue o fragmento do testamento no qual consta essa alforria: Saibam quantos do público instrumento vir que, sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e setenta e quatro, aos cinco dias do mês de dezembro do dito ano, em as casas de morada do cidadão, Eu, abaixo assinado Ricardo José Alves Bastos, como cristão católico apostólico romano [...] Declaro, por conseguinte, e por não ter herdeiro algum necessário que instituo a mesma minha mulher Dona Ana da Silva Tavares minha universal herdeira do remanescente. Declaro que o meu funeral seja feito com simplicidade sem pompa alguma e desejo que por minha alma se celebrem dez missas e que no sétimo dia haja também missa. Declaro que a minha terça deixo para o senhor Francisco José da Silva (por morte de minha mulher) o meu sítio em que [...] denominado Boa-Vida com todas as suas benfeitorias. Declaro que deixo todos os meus escravos para servirem a minha mulher durante a sua vida e por seu falecimento gozarem de plena liberdade como se


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de ventre livre nascessem. (Testamento Ricardo José Alves Bastos fls17 e 17 v. 1875).

Dona Anna, por sua vez, em 1883 faz em seu testamento uma doação de uma porção de terras para esses mesmos escravos que deveriam ser alforriados por ocasião de seu falecimento, e de outros da fazenda que compraram sua própria alforria. A real liberdade e passagem para as terras de Mata Cavalo só ocorreu efetivamente em 1888, com a Lei Áurea. Dona Anna Tavares veio a falecer em 1889. Assim, consta nos documentos da época o assento da doação efetuada por Dona Anna, aos seus escravos, lavrado na Câmara Municipal de Livramento como: Saibam quantos esta escritura de doação virem que sendo, digo, no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos oitenta e três, aos quinze dias do mês de setembro, neste sítio denominado Boa-Vida, aonde eu escrivão de Paz e Notas vim a chamado de Dona Anna da Silva Tavares, sendo ela ali presente e reconhecida pelo próprio, de que faço menção e das testemunhas adiante nomeadas e assinadas em presença das quais por ela foi dito que sendo senhora possuidora de uma parte do ribeirão denominado Mata-Cavalo, com suas vertentes de cuja parte faz doação a seus escravos inclusive aos que se libertaram por ocasião do inventário de seu finado marido estimando no valor de cento e cincoenta mil réis podendo os doados tomarem posse quando quiserem, satisfazendo os ônus da Lei. Depois de escrito esta, eu escrivão. (Livro de notas n. 6 49 a fls. 8, 1883).

Vários detalhes chamam a atenção nesse processo de doação, um deles é a peculiaridade da escravidão mato-grossense, onde os senhores alforriavam seus escravos, mas ainda os continuavam mantendo como cativos através de cláusulas que deveriam cumprir para receberem a alforria. Ou mesmo usando de manipulações emocionais, onde o ex-escravo deveria continuar a servir seu antigo senhor em gratidão a sua libertação, criando um vínculo psicológico e emocional tão injusto quanto os castigos físicos, que ainda aconteciam, mesmo depois do documento da alforria. (Volpato 1993) Refletindo sobre essa situação, Genovese (1988), aponta que essa forma de tratar os escravos, lhes oferecendo uma pseudo alforria, com uma liberdade que ainda viria, era uma maneira de mascarar a opressão e a crueldade da escravidão, que vinha sendo combatida, principalmente nas suas 6

Estes documentos constam sob a guarda do Instituto de Terra de Mato Grosso – INTERMAT, porém apenas o translado das cópias, pois os documentos originais foram perdidos na Câmara Municipal de Livramento, o que para os quilombolas já é um sinal de má fé das autoridades diante do caso.


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décadas finais. Os senhores insinuavam compaixão e acreditavam estar tirando os escravos de um destino ainda pior, o de vagar sem fim pelo mundo, desamparados. Aos escravos cabia a gratidão pela consideração senhorial, assim estava selado o pacto de amizade entre proprietário e cativos. Sobre essa perigosa amizade Genovese revela que: Para tanto se tornava indispensável a doutrina de deveres recíprocos, implícita e às vezes explícita tanto em sua sustentação do regime como na defesa de suas próprias vidas. Tal doutrina continha, como não podia deixar de ser, as noções perigosamente ilusórias de “gratidão”, “lealdade” e “família”. Continha também certo grau de intimidade que transformava qualquer ato de insolência, insubordinação ou qualquer ato de auto-afirmação não permitida praticado pelos escravos, num ato de traição e deslealdade, explicando assim o fato dos senhores indulgentes e bondosos vez por outra demonstrarem uma feroz crueldade (GENOVESE, 1988.p.25).

Mata Cavalo pode ser um exemplo prático dessa reflexão feita por Genovese (op. cit.), pois, além da alforria que foi dada apenas no papel, um fato curioso chama a atenção, o nome da Sesmaria “Boa Vida”. Segundo a narrativa da própria Dona Tereza, esse nome se deve à maneira bondosa de como se tratavam os escravos nessa fazenda. Porém, a mesma Dona Tereza se recorda durante a entrevista, das mãos de sua avó Rita, que foi uma das escravas libertas. Tinham as palmas com grossas cicatrizes, ocasionadas pelas queimaduras de querosene, pois um de seus serviços era segurar em sua palma a lamparina para que Dona Anna se penteasse quando já estava escuro. Consta também que no interior do quilombo, até bem pouco tempo atrás, ainda se podia ver o pelourinho, poste de pedra onde os escravos eram amarrados para serem castigados a chicotadas quando eram considerados desobedientes. Durante a pesquisa de campo procurei encontrar este artefato, mas o lugar indicado foi destruído pelos tratores e hoje o que se encontra é um pasto formado. Esses relatos definitivamente demonstram que, em Mata Cavalo no tempo de escravos, se tinha na verdade uma noção ilusória de “Boa Vida” para os escravos. Assim como a alforria “concedida” com cláusulas a serem cumpridas, a doação das terras próximas ao riacho de nome Mata Cavalo, feita por Dona Anna aos seus escravos esbarrou em obstáculos que durariam mais de cem anos causando conflitos e exclusões para essa comunidade.


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Logo após a promulgação da Lei Áurea, o direito as terras de Mata Cavalo adquirido pelos ex-escravos começou a ser questionado, primeiro pelos parentes próximos de Dona Anna, como seus primos e sobrinhos e depois, pelos fazendeiros dos arredores do quilombo. A cobiça por essas terras era grande, por sua vastidão e, desde os tempos dos bandeirantes paulistas, por se ter notícias de que ali era uma região propícia à atividade garimpeira, pois existia um veio de ouro naquele local. (Bandeira, 2005) A doação das terras para os escravos de Mata Cavalo também esbarrou na Lei de n.º 60, de 18 de setembro de 1850, a chamada “Lei de Terras do Brasil”, que já em seu 1º parágrafo determina que: “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra” (TRECCANI, 2006.p.76). Excluindo assim qualquer possibilidade de acesso a terra que não seja pela forma da compra, monopolizando o direito a terra aos que já possuíam bens, fossem imigrantes europeus, brancos, pobres ou exescravos. E, por conseguinte, não reconhecendo a doação de terras feita por Dona Anna. É por isso que Martins afirma que: A Lei de Terras foi uma condição para o fim da escravidão (...), pois num país em que o trabalho se torna livre a terra tem que ser escrava, isto é, a terra tem que ter preço e dono, sem o que haverá uma crise nas relações de trabalho (MARTINS, apud TRECCANI, 2006.p.76).

Nessa situação, quando os escravos foram citados no testamento de Dona Anna como herdeiros de um pedaço de terra, outro detalhe interessante se constituiu, pois durante esses cinco anos, que vão da doação das terras à Lei Áurea e, consequentemente, à alforria (1883-1888), esses escravos viveram uma situação um tanto dúbia. Foram ao mesmo tempo cativos, propriedade de alguém sem direitos jurídicos e, por outro lado, proprietários de terras (MURARO-SILVA). Ser proprietário de terras era uma situação que poucas pessoas poderiam ostentar durante o Império Brasileiro devido a já citada Lei de Terras de 1850. Era um dos requisitos importantes para ser eleitor nas eleições das câmaras das províncias. Uma comunidade negra, com a propriedade coletiva de terras, coexistindo como vizinha de fazendeiros herdeiros de linhagens seculares, era uma situação sui generis, que colocava a prova os poderes


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locais da época que regulavam a estrutura hierárquica da economia, da política e também a sociedade da região. Além de todas essas considerações pesando contra o estabelecimento da Comunidade de Mata Cavalo, a documentação original de doação das terras do quilombo também foi extraviada do cartório em que foi lavrada, sendo um ponto a mais para a contestação dos fazendeiros (MURARO-SILVA). Desde então o quilombo sofre com as invasões e as expulsões. As migrações de sulistas trazidos a partir de meados do século XX pelos diversos programas de colonização do governo se tornaram um agravante a mais para Mata Cavalo. Programas como a Marcha para o Oeste, de Getúlio Vargas, e a Colonização da Amazônia da década de 70, provocaram uma busca desenfreada por terras em Mato Grosso, fossem elas ocupadas ou não. Com problemas de documentação para atestar a propriedade da terra, a comunidade de Mata Cavalo tem que provar na justiça seu direito ao território. Os interesses contrários aos direitos quilombolas, que se insurgem contra a identidade quilombola, lutam principalmente pela não garantia do direito às terras que as comunidades têm, uma vez que a titulação significa que a terra se torna inalienável, coletiva, contradizendo, dessa forma, os interesses do agronegócio, do latifúndio e da especulação imobiliária (SOUZA, 2008.p.104).

No passado, presos pela escravidão, no presente, “livres”, mas vivendo sob a opressão, a violência, a degradação ambiental e o próprio descaso do governo. Mas esse é um povo que ainda resiste em seu território (figura 05).

Figura 05: Pequeno córrego que dá nome ao quilombo Mata Cavalo.


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3.2. A característica do território das Moiras e suas histórias Para caracterizar o território de Mata Cavalo é interessante começar antes pelo Município de Nossa Senhora de Livramento. Este município está localizado no estado de Mato Grosso, pertencendo à zona fisiográfica do Pantanal, com uma extensão territorial de 5.331,57 km. Faz limites com os municípios de Cáceres, Jangada, Poconé, Barão de Melgaço, Rosário Oeste, Santo Antônio de Leverger e Várzea Grande, sendo quatro os distritos de sua sede administrativa: Sede, Faval, Ribeirão dos Cocais e Pirizal. É a terceira cidade mais antiga do estado com 280 anos, e de onde descendem os antigos coronéis que impunham o poder da capital. De acordo com o IBGE em 2007, a população total do município era de 12.386 habitantes, sendo que 70% dela se encontra na área rural (MORAES, 2005). Sua agricultura se enquadra principalmente na agricultura de pequenos proprietários e de subsistência. Como atividades econômicas principais o município tem as grandes fazendas de gado e as empresas mineradoras de ouro de médio porte. Atualmente o município tenta se adequar a rota do turismo de aventura e rural, sendo que existe até mesmo uma Área de Preservação Permanente (APA), Serra das Araras, criada em 2001 pela Lei Municipal n.447, com o intuito além da preservação da biodiversidade, de aumentar o turismo na região (MORAES, 2005). A sede do município é pequena, com poucos comércios, o mercado de trabalho local ainda não consegue abarcar toda a mão de obra existente, obrigando parte da população, principalmente os jovens, a virem para Cuiabá ou Várzea Grande em busca de emprego (MORAES, 2005). Nossa Senhora do Livramento é considerada a referência da tradição cultural mato-grossense, cultuando até os dias de hoje manifestações folclóricas como o cururu, siriri, danças de São Gonçalo, Congo, rasqueado e capoeira. As danças típicas são representadas fielmente através dos grupos folclóricos que reproduzem toda a arte preservada durante séculos, com destaque aos Grupos Bacuri Livramentense,

Cururu

Livramentense

e

Dança

consolidados em Mata Cavalo (MORAES, 2005).

do

Congo

que

são


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Assim faremos uma ponte entre o município de Nossa Senhora de Livramento, já que Mata Cavalo é a área rural do município, e passamos a contextualizar as características específicas do quilombo, figuras 06 e 07.


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Figura 06: Representa莽茫o de Nossa Senhora do Livramento e do Territ贸rio de Mata Cavalo. Fonte: SIMIONE, 2008

Figura 07: Territ贸rio de Mata Cavalo - Fonte: SIMIONE, 2008.


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Pelo aspecto fitofisiográfico, o quilombo está situado na região compreendida por duas zonas que se diferenciam: a morraria - a Serra Azul e a Serra das Araras -, e a baixada de planícies e pantanais mato-grossenses. A área da baixada é a depressão onde se encontra a bacia dos rios Cuiabá e Paraguai, com seus córregos e ribeirões perenes, e um local sujeito a inundações nos períodos das chuvas que vão de outubro a abril. Essas inundações, ao contrário de serem consideradas “problemáticas” e difundirem o caos como nas grandes cidades, são esperadas como natural fonte de renovação de fertilidade dos campos e responsável pela continuidade da reprodução dos peixes que desovam nas baías durante as cheias, o que é uma rotina sazonal para essa região. A paisagem (figuras 08 e 09) é formada por campos mais limpos e cerrado mais fechado. Onde o solo é mais rico são encontradas árvores de grande porte como aroeira, angico vermelho, paratudo e carandá, entre outras do cerrado. A fauna também é típica do cerrado com aves, como tucanos, jandaias, araras, tuiuiús; répteis, como jacarés e lagartos e mamíferos, como veados, capivaras, caititus e macacos (Bandeira, 2005). Os mamíferos de maior porte se encontram mais afastados, mas é fácil observar os pequenos animais como preás, macacos bugios e raposas rondando as casas e as plantações em busca de algum alimento. Eles entram e saem dos quintais sem muito alarde, rotineiramente.

Figura 08: Vegetação nativa do território quilombola. Arquivo GPEA 2008

Figura:09 Sinais de desmatamento recente para a retirada ilegal de madeira.Foto: Rosana Manfrinate, pesquisa de campo/junho de 2009


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Desde os tempos dos bandeirantes paulistas, no século VIII, sabe-se que o subsolo da região, inclusive o da área exata em que se situa o quilombo, é um veio de ouro, o que até hoje atrai garimpeiros que vêm em busca de sua extração, apesar dessa atividade ser proibida na região. Não existe uma vila central em Mata Cavalo com comércio ou serviços e as pessoas da comunidade precisam ir até a cidade de Nossa Senhora do Livramento para fazer suas compras ou irem ao médico, embora a ida ao médico seja sempre o último recurso procurado. Quando doentes eles geralmente se utilizam de chás de ervas encontradas na vegetação do próprio local, além de benzeduras e de rezas. Para resolver problemas mais graves de saúde ou situações em bancos ou em órgãos públicos, os quilombolas são obrigados a virem até Cuiabá (a capital do estado, que está localizada a 42 km de distância). Nesse caso precisam pegar o ônibus na “pista do asfalto”, como eles mesmo dizem. Não há uma parada específica e nem mesmo um abrigo para isso. Eles são obrigados a esperar no acostamento da rodovia MT-060 pelo ônibus que vem da cidade de Poconé, sem ter nenhuma idéia de que ele esteja no horário ou atrasado, ou mesmo se vai passar por ali. A dificuldade de transporte é sempre uma reclamação observada nas entrevistas (figura 10). O sentimento de comunidade nesse ponto pesa muito. Em uma emergência sempre aparece alguém que tem ou que consegue arranjar um carro para socorrer o mais desafortunado que esteja precisando.

Figura 10: A charrete ainda é usada como um meio muito comum de transporte em Mata Cavalo.Foto: arquivo GPEA/2008.


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Em muitos momentos ouve-se falar da importância da comunidade em Mata Cavalo: no momento dos despejos, das festas, quando se precisa ir pressionar o governo para resolver logo a posse da terra, e no momento de se comemorar o recebimento da escritura definitiva do Quilombo de Mata Cavalo, o que ocorreu no dia 20 de novembro de 2009. Segundo Bauman (2003) a palavra comunidade traz em si sensações que vão além do seu significado, ela nós dá sentimento de segurança, de prazer e compreensão. Ele demonstra como representamos essas sensações em nossa fala: muitas vezes usamos adjetivos negativos para caracterizar a sociedade que pode ser “cruel” ou as companhias que podem ser “más”, entretanto a comunidade está sempre relacionada a coisas boas. Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir, mas são discussões amigáveis, pois todos tentamos tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum podemos discordar sobre como fazê-lo (BAUMAN, 2003.p.08).

Viver em comunidade é muito importante para a força de resistência no quilombo, é o sentimento que os mantêm unidos em torno de um objetivo, é pertencer a algo maior que apenas à família. Na comunidade do quilombo eles deixam de ser pessoas comuns e passam a ser quilombolas, suas queixas individuais sobre a situação de tensão na qual vivem são ouvidas e compartilhadas, as histórias de vida são muito parecidas: trabalhar na roça na infância, fugir para a cidade devido a expropriação de terras, voltar ao quilombo por acreditarem que ainda tem esse direito, mesmo depois de todas as injustiças que já sofreram. Por meio de Bauman, conseguimos entender esse sentimento de alento que os quilombolas têm em viver na comunidade: Para nós em particular que vivemos em tempos implacáveis, tempos de competição e de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta a nossos pedidos de ajuda ouvimos advertências para que fiquemos por nossa própria conta (...) a palavra “comunidade” soa como música aos nossos ouvidos. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes (BAUMAN, 2003.p.09).


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O local de encontro de todos é o barracão da Associação, que fica no centro do Quilombo, e é onde ocorrem as reuniões mensais, os cursos para a comunidade, as festas, as discussões de interesse coletivo. No começo era um barracão construído apenas com palha, porém, em 2008, foi substituído por um de madeira e coberto com telhas, construído pelas mãos dos próprios quilombolas. A maioria das casas da comunidade foi construída com palha de babaçu (coqueiro natural da região), que são prensadas juntas, principalmente o telhado que recebe uma cobertura mais pesada e mais larga para evitar que a água da chuva entre como o que nos mostram as figuras 11 e 12. Por dentro, as casas são um tanto quanto mais escuras do que normalmente estamos acostumados, e ao entrarmos demoram-se alguns segundos para que olhos consigam se acostumar com a diferença entre a claridade de fora e a penumbra de dentro, nunca há luzes ligadas, a não ser à noite. A palha também deixa um cheiro característico ao ambiente, de mato misturado com terra. O material usado na construção das casas e o chão batido que forma o piso molhado diariamente para não levantar pó, ajudam a manter um conforto térmico, um refresco ao calor sempre muito forte comum nessa região de Mato Grosso.

Figura 11: Casa do Quilombo. Foto Rosana Manfrinate. Junho/2009

Figura 12: Casa do Manfrinate. Agosto/2009

Quilombo.

Foto

Rosana


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As mulheres gostam de enfeitar o entorno da casa com flores plantadas em latinhas, bacias velhas, ou qualquer outro recipiente que não utilizem mais. Por entre rótulos já esmaecidos de marcas de leite e tintas sempre podemos ver brotarem rosas, cravinas e algumas cebolinhas. A cozinha sempre fica no lado de fora da casa e em algumas se podem ver, além do fogão à lenha, o forno de barro (figuras 13,14 e15).

Figura 13: Fogão de Manfrinate. Junho/2009

lenha.

Foto

Rosana

Figura 14: Fogão de lenha. Foto Rosana Manfrinate. Novembro/2009

Figura 15: Forno de Barro no quintal. Foto Rosana Manfrinate. Junho/2009

Um detalhe curioso é que devido aos constantes despejos muitos moradores têm suas casas destruídas e, quando voltam a morar no quilombo


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por força de liminar de algum juiz, apesar de receberem auxílio do governo através de madeira e lona para reconstruírem as casas num lugar determinado pela justiça, eles não a consideram como o seu lar, mas sim como um “barraco”, dando a entender que é algo passageiro, imposto, mesmo que para facilitar as coisas. Com a construção de palha é diferente. Eles mesmos colhem o seu material, trançam e repetem o que aprenderam com os seus antepassados para construir o que, ao final, receberá o status de Casa. Ancorada em Certeau (2008), posso dizer que essa atitude de enfeitar as casas com latas de leite ou óleo transformadas em vasos e denominar as construções feitas com as madeiras doadas pelo governo de barracos, se inserem nas práticas comuns de alteração do consumo por parte dos subjugados, que moldam as suas formas de utilização, empregando-as de maneiras estranhas à original (figuras 16 e 17). Na realidade, diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, se posta uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como “consumo”, que tem como característica suas astúcias, seu esfacelamento em conformidade com as ocasiões, suas “piratarias”, sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?), mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (CERTEAU,2008.94).

Figura 16: Plantas dos quintais. Foto Rosana Manfrinate. Junho/2009

Figura 17: Plantas dos quintais. Foto Rosana Manfrinate. Janeiro/2010.

Algumas casas têm galinheiros, outras, chiqueiros. Geralmente ao redor encontra-se uma roça de mandioca, de abóbora, mangueiras, mamoeiros, cana-de-açúcar e abacaxizeiros (figuras 18 e 19). Por motivo dos constantes


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despejos e da incerteza da posse da terra, os quilombolas reclamam não poder plantar mais coisas ou criar algumas cabeças de vacas para melhorar o próprio sustento.

Figura 18: Roça de mandioca. Foto Arquivo GPEA/2008

Figura 19: Plantação de banana. Foto Rosana Manfrinate. Junho/2009

A disposição espacial das casas por entre o território do quilombo ainda não é a definitiva, pois precisam dos títulos para uma divisão mais exata, mas preliminarmente eles já se acomodaram em alguns pontos específicos, construíram suas casas num pequeno conglomerado em família: os pais e os filhos casados, distante alguns metros ou poucos quilômetros de outros conglomerados onde residem outras famílias. Eles se visitam bastante, principalmente as mulheres, e as visitas são sempre feitas a pé por entre os caminhos esburacados de terra vermelha que, na época da chuva, contam também com lama e poças, mesmo assim não deixam de frequentar um a casa do outro ao ponto de saber tudo o que ali ocorre: se estão bem, se estão em casa, se o fazendeiro está ameaçando; dessa forma constituem uma verdadeira rede de informações. No tocante a área do quilombo, de acordo com a fundação Palmares7, o conhecimento do território quilombola pela própria comunidade é o que delimita

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A Fundação Cultural Palmares foi instituída pela Lei n° 7.668, de 22 de agosto de 1988, vinculada à Secretaria da Cultura da Presidência da República, com sede e foro no Distrito Federal. Tem como finalidade promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos de influência negra na formação da sociedade brasileira. Entre outros, seus objetivos são o de “realizar a identificação dos remanescentes, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação”.


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seu território por meio de seu conhecimento tradicional, o que indica a demarcação de seu território, sendo respeitada por meio do Dispositivo Constitucional8. Inicialmente o Instituto de Terras de Mato Grosso (INTERMAT), havia, durante dez anos, demarcado 11 mil hectares, que seriam correspondentes as fazendas que na verdade ocupavam as terras quilombolas, entretanto, esse número foi contestado pela Associação de Mata Cavalo e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) teve que, a partir de 2007, fazer uma nova medição nas terras alterando para 15 mil hectares para as demarcações e desapropriações. Segundo o cadastro da Associação são 415 famílias que moram no quilombo, a grande pendência agora é a indenização aos fazendeiros e a retirada de alguns integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ainda insistem em ficar na região. É nessa rede que elas ancoram suas lutas por esse território, pelo direito de viver entre os que são de seu grupo: Ao considerarmos que o território é o lugar onde a identidade se consolida por meio da existência de indivíduos que se apropriam da natureza e dela fazem sua morada, os quilombolas, ao fazerem uso de terras – no passado, de uso comum –, criam significados culturais convertendo-as em territórios étnicos, ao mesmo tempo em que moldam uma identidade que dá sustento a suas vidas. Devemos também considerar que território e parentesco são elementos constituintes da identidade, pois aglutinam o sentimento de pertencimento ao grupo, que por sua vez relaciona-se nos diversos agrupamentos familiares a lugares específicos localizados (Simione, 2007.54).

A terra é decisiva para o futuro do novelo que se formará em Mata Cavalo, as moiras negras sabem que é nas suas terras e só lá que nasce o tipo de algodão do qual elas precisam para tecerem seus fios. Sem aquela terra elas não possuem aquele algodão, sem aquele algodão, elas não fiam o que precisam fiar, não formam o novelo que devem formar. Sem fios e sem novelos elas não são Moiras.

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O artigo 68 do Ato Federal dos Dispositivos Constitucionais Transitórios, de 1989, dispõe: "Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".


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Entretanto as Moiras não vivem numa terra isolada, livre. Elas estão cercadas, vivem num pequeno ponto da terra. Esse ponto se liga a outros pontos, outros novelos que vão se desenrolando em outras terras com outros deuses. Para iniciarmos o desenrolar desses novelos, é necessário descobrir em qual nó está amarrado o fio de Mata Cavalo e de que forma ele se junta ao novelo das terras e dos territórios. A ponta maior do fio sem dúvida é Mato Grosso. Estado com dimensões que comumente chamamos de continentais: aproximadamente 903.307 km², representando 10,61% do território nacional e localizado na porção norte noroeste. É formado por três grandes Biomas: Cerrado, Pantanal e Floresta Amazônica. Mato Grosso possui grande importância geopolítica por ser uma passagem natural das regiões sul e sudeste para a região norte, mais precisamente, para a Amazônia. Existe um projeto de Sistema de Integração Viária para Mato Grosso, com abertura de novas rodovias, linhas de trens e vias fluviais que ligarão Mato Grosso ao Oceano Pacífico facilitando o escoamento da produção para a Ásia, grande compradora de grãos do estado (SIQUEIRA, 2002). De acordo com os dados oficiais apresentados no Plano de Desenvolvimento de Estado de Mato Grosso MT+209, o estado representa uma das economias mais dinâmicas do País, com um significativo crescimento de 7,6% a.a., apontado pelos dados de 2004, frente ao crescimento dos outros estados da região que é de 4,0% a.a. Todo esse crescimento está ligado a vários fatores: solo de grande potencialidade, regime de chuvas regulares e uma avançada base tecnológica que favoreceu a expansão do agronegócio fortemente representada pelas culturas de soja, milho, arroz e algodão cujo plantio tem batido recordes de produção. A pecuária é também um setor de suma importância na economia, seguida pelo crescimento considerável no setor de geração de energia (levando em consideração seu grande potencial hidrelétrico – estimado em 17.220MW - por causa de suas bacias hidrográficas), indústria, turismo e serviços. Mato Grosso mostra força de 9

A opção por usar o manual do Plano de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso MT+20 como fonte oficial para os dados utilizados nessa Dissertação é explicada pelo fato de que esse plano representa uma política de Estado construída por vários setores da sociedade e coordenada pela Secretaria de Planejamento, onde foram definidas prioridades do desenvolvimento de Mato Grosso a médio e longo prazos, com metas para todo o planejamento e políticas públicas para os próximos 20 anos.


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participação no mercado externo, pois os valores dos produtos exportados (agronegócios, madeiras e carnes) em 2005 somaram a quantia de US$ 4.14 bilhões, mostrando a importante inserção da economia estadual no mercado internacional (MT, 2006). Indubitavelmente, Mato Grosso é um grande estado, porém quando desenrolamos um pouco mais o novelo, e deixamos passar o fio dos grandes investimentos econômicos para grandes investidores, conseguimos ver uma expansão capitalista em Mato Grosso pautada no agronegócio que deixa rastros devastadores na natureza. A monocultura toma cada vez mais espaço, trazendo consigo toda a estrutura de que necessita: apropriação de grandes extensões de terra (o que significa derrubada de matas nativas) uso de implementos agrícolas, corretivos do solo como o calcário, a uréia, adubos, fertilizantes e agrotóxicos que, inevitavelmente, acabam dentro dos córregos e rios, contaminando a água, o solo, afetando tudo a sua volta. Quase todos os anos, Mato Grosso recebe o incômodo título de campeão ou vice-campeão do país em queimadas ou desmatamentos (INPE, 2007). Devemos entender que esses problemas ambientais se refletem na sociedade, e esta passa a ter que conviver com um meio ambiente deteriorado e insalubre. Além disso, a própria dinâmica da expansão econômica do agronegócio é a causadora de inúmeras injustiças e desigualdades sociais. Assim, compreendemos que o modelo econômico utilizado em Mato Grosso é voltado para a exportação, é concentrador de riqueza, e até a década de 80 seu sistema produtivo foi baseado na soja. A partir da década de 90 houve o incremento da cultura do algodão. E, a cada ano, a Fronteira Agrícola em Mato Grosso apresenta áreas adaptadas para a expansão desta fronteira (VIEIRA. 2007.p.17). Levando-se em consideração essas reflexões, constatamos que essa expansão da fronteira agrícola evidencia a segregação das classes sociais, resultando também em problemas socioambientais que acabam até mesmo ultrapassando os limites municipais e estaduais. “Diante deste impactação do cenário, grande parte das tentativas de se solucionar os problemas decorrentes do avanço da fronteira agrícola como a precariedade das condições de vida de grande parte da população, a perda de gradiente dos solos e o assoreamento


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dos cursos d‟água, para citar alguns exemplos, não têm surtido grande efeito” (PICHININ & SOUZA, 2006. s/p). Para Mazzetto, o desenvolvimento agrícola modernizante destrói não só as formas tradicionais de viver e produzir, mas também “erradica a biodiversidade nativa, para a implantação dos sistemas homogêneos e simplificados das monoculturas modernas. Cria-se um novo ordenamento territorial, a partir de uma racionalidade externa ao lugar” (MAZZETTO, 2006.p.107). O Manual do MT+20 aponta que, mesmo com todo o capital que circula pelo estado, Mato Grosso tem indicadores de educação, saúde e expectativa de vida, baixos se comparados ao restante do país, déficit em saneamento básico, grande concentração de renda e alta taxa de pobreza. Com as palavras do próprio Manual: O forte dinamismo econômico não se mostrou, infelizmente, capaz de transbordar para o social, na mesma escala, de modo a melhorar a qualidade de vida da população do Estado (MT, 2006.p.27).

Se dirigirmos, entretanto, um olhar mais aprofundado sobre as questões sociais em Mato Grosso entenderemos que o problema é muito mais sério do que mostra o planejamento do governo. Não se trata apenas de não ter capacidade de “transbordar” para o social, mas sim de um dinamismo econômico que corrobore para a invisibilidade e não reconhecimento a que muitos grupos e comunidades são relegados quando se planeja políticas públicas para o estado. Para Milton Santos (2003) algumas formas de planejamento têm sido instrumentos de manutenção e agravamento das disparidades sociais nos países pobres, pois o planejamento geralmente representa a forma de pensar do capitalismo, vendendo aquilo que se convencionou a chamar de desenvolvimento: a ideologia do crescimento dos Estados e a imposição de uma ideologia de consumo à população, que induzem ao capital estrangeiro e à aceitação de uma só forma de economia, de sociedade, de cultura, de ética que, fatalmente, levam a dependência através da dominação. Ele mostra em suas afirmações como a ideologia de um determinado grupo pode se favorecer através de instrumentos de ordenação da sociedade.


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A pobreza, um fenômeno qualitativo, foi transformada num problema quantitativo e reduzida a dados numéricos. Forneceram-se números índices para provar as distâncias entre países ricos e pobres e para inferir que estes últimos deveriam imitar os primeiros se quisessem superá-las (SANTOS, 2003, p.15).

A consolidação dos estados, nessa lógica, acontece quando o planejamento se lança a grandes obras e programas de modernização que trarão consigo a presença de grandes investimentos lucrativos para o capital. Investimentos em comunicação, transportes, produção de energia, que, além de gerarem lucro direto na sua implantação, gerarão lucros para as empresas que serão beneficiadas. Milton Santos chama a atenção também para a modernização da área rural. Não quero que pareça aqui que relego apenas críticas ao planejamento ou ao Plano de Desenvolvimento do Estado MT+20. Não se trata disso, mas sim de tentar mostrar que Mato Grosso está inserido num contexto político e econômico do capitalismo, e isso se reflete em sua administração, em todo seu aparelho estatal, nos seus investimentos e na forma de se tratar dos assuntos de cunho ambiental e social. O problema não é o ato de planejar em si, que na verdade é muito importante para qualquer ação, mas quais são as bases ideológicas usadas para esse planejamento. Sobre isso Milton Santos também alerta: Minha visão não é uma profissão de fé antiplanejamento. Condenamos simplesmente aquele planejamento que é o capital. Desejamos vê-lo substituído por outro basicamente preocupado com a sociedade como um todo e não com aqueles já privilegiados (SANTOS, 2003, p.34).

Quando entendemos qual é a visão ideológica que predomina sobre a política do Estado, conseguimos fazer uma ligação mais ampla não só com o contexto nacional, mas mundial de organização, estamos em sintonia com a chamada globalização. Constantemente, vemos, pelos meios de comunicação, os mais diversos sinais de um mundo sem fronteiras, sem divisas, onde todos são, mesmo que teoricamente, ligados em uma só rede. Contudo, esse mundo globalizado tem um lado perverso que se fixa duramente na vida das pessoas: a imposição de um capital que não vê limite em sua expansão. Ultrapassa a fronteira da cultura, da tradição, da identidade e dos espaços.


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O Sociólogo Otavio Ianni (2004) apresenta a globalização como a expressão de um novo ciclo de expansão do capitalismo com um processo de grandes proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, classes sociais, economias e sociedade. Não é um fenômeno que nasce pronto e acabado, mas que tem raízes na Segunda Guerra Mundial e um crescimento estrondoso com o fim da Guerra Fria, firmando-se com a desagregação dos blocos soviéticos e a reforma dos regimes socialistas. O desenvolvimento econômico do mundo com a globalização acontece de forma extensiva e intensiva; por toda a parte expandem-se as forças produtivas que compreendem em si, o capital, a tecnologia, a força de trabalho, a divisão do trabalho social, o mercado e o planejamento, dinamizando-se em teias inter e intracorporações. As indústrias não são mais concentradas em alguns países e continentes, agora elas independem de fronteiras: As transnacionais planejam, tecem, realizam e desenvolvem as suas atividades por sobre fronteiras e regimes políticos, além das diversidades culturais e civilizatórias. Generalizam-se e intensificam-se as articulações e as tensões entre as mais diversas formas de organização social e técnica da produção material e espiritual (IANNI, 2004, p.35).

Para o historiador cultural Nicolau Sevcenko (2007), a globalização do nosso período neoliberal contemporâneo está também ligada à crise do petróleo dos anos 70 que obrigou o mercado mundial a tomar uma série de medidas para manter o dinamismo da economia. Diante desse novo dinamismo, os Estados Unidos decidiram abandonar o padrão-ouro como medida de câmbio, o que provocou um efeito de difusão de novos fluxos de capital nas demais economias consideradas desenvolvidas, livre das restrições exercidas pelos Bancos Centrais, superando os limites tradicionais das fronteiras nacionais. Os grandes beneficiados foram “os capitais financeiros que puderam especular livremente com as oscilações das moedas fortes do mercado internacional – as chamadas empresas transnacionais” (SEVCENKO, 2007, p.27). O historiador também aponta que a facilidade com que as empresas têm em multiplicar, instalar ou retirar suas filiais pelo mundo aumentou o poder de impor aos governos que estão interessados em receber seus investimentos as suas exigências referentes a isenções e garantias que


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acabam por tornar o Estado e a sociedade reféns das multinacionais (SEVCENKO, 2007, p.27). É importante entendermos todo esse processo mundial de rearranjo do capital e da organização da sociedade chamada de Globalização, para que assim se possa achar nessa meada o fio por onde se arrematam políticas e planejam futuros no contexto de Mato Grosso. O estado sempre esteve presente nesse ciclo de expansão do capitalismo, sendo a ocupação de suas terras para a plantação da monocultura nas últimas décadas do século XX a grande expressão da globalização em seu território. As terras de Mato Grosso, historicamente, sempre levantaram a cobiça de grandes empresários e governos. Podemos citar depoimentos até de viajantes do século XVIII sobre nossa região. Busca por ouro, índios, imposição de fronteiras com os espanhóis, borracha, cana-de-açúcar, (VOLPATO, 1987). Vários foram os produtos, cada um ao seu tempo e ao seu valor. O governo, fosse ele Monárquico ou Republicano, sempre respondeu na mesma medida que os investimentos que vinham para a região: organizavam expedições ou programas com o intuito de ocupar essas terras. Mato Grosso foi palco de alguns desses importantes programas. A chamada “Marcha para o Oeste”, política de ocupação do governo Vargas na década de 40, foi um desses programas. Tinha como objetivo integrar a Amazônia ao restante do Brasil, servir como bolsão de escape para os problemas da seca do nordeste, além de abrir caminho ao Intervencionismo do Estado Populista de Vargas. Houve também o governo de Juscelino Kubitschek com o plano de Metas (crescer 50 anos em 05), a construção de Brasília e da rodovia Belém-Brasília. Entretanto nenhum projeto de ocupação da Amazônia causou tanto impacto quanto o processo de colonização idealizado pelo governo da Ditadura Militar na década de 70 (MATSUBARA,1997). A ditadura se utilizou de uma estrutura já criada para favorecer a migração nos governos anteriores, mas adaptando-as às novas demandas ocasionadas pelos conflitos que exigiam a reforma agrária do sul do Brasil e à necessidade de se expandir o capital. O processo de ocupação foi fortalecido com a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa da Amazônia (EMBRAPA) e o Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), assim como com a criação


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de programas como PIN – Programa de Integração Nacional e PRODOESTE Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste (MARGULIS, 1991). Devido à forte propaganda, levas de migrantes, principalmente vindos do Sul, se instalaram em Mato Grosso, no que foi chamado pelo Governo de “Terra sem homens, para homens sem terras”. Porém, poucos foram os migrantes que conseguiram manter-se nas terras. Muito faltou entre o discurso do governo e as condições necessárias para a fixação dos pequenos agricultores como crédito agrícola, assistência técnica e benefícios sociais. Mas com a frente de expansão aberta pelos pequenos agricultores que acabavam tendo que abandonar suas terras por falta de condições, veio outro tipo de migração que não corria riscos: a dos grandes empresários de colonizadoras, que adquiriram enormes extensões de

terras para a

monocultura ou simplesmente para esperar sua alta capitalização, o que fez valer ao estado o apelido de reino dos latifúndios (MATSUBARA, 42, 1997). Foi o início da atual expansão agrícola de Mato Grosso voltada para o mercado externo, tendo a soja como carro chefe, fortalecendo cada vez mais o plantio com a alta tecnologia nos moldes da modernidade. Grandes empresas beneficiadoras de alimentos se instalaram e ainda estão se instalando por todo o estado e contam com total incentivo do governo. A parte da economia do estado que é alavancada pelo agronegócio está intimamente ligada à bolsa de valores de Nova Iorque e Tóquio, Mato Grosso faz comércio diretamente com a Ásia, por isso o interesse do governo em abrir corredores de rodovias e hidrovias para o Oceano Pacífico, e a atual integração à globalização mundial da economia. Entretanto, chegar à China com os produtos de Mato Grosso independentemente dos portos do Sul e Sudeste do Brasil pode ser um grande salto administrativo para o estado, e definitiva entrada na Expansão e Globalização da economia mundial. Mas isso não significa necessariamente, como já foi citado acima, melhoria na qualidade de vida da população. Entendemos isso a partir de Milton Santos (2007), que considera a globalização como o “ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista” (op.cit. p.23). Para ele, a Globalização é apresentada através do mito do encurtamento das distâncias, da homogeneização do planeta. Todavia


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o que acontece realmente é que as distâncias só diminuem para quem tem condições de viajar. O mundo, na opinião de Santos tem se tornado cada vez menos unido e as diferenças locais estão cada vez mais aprofundadas, a falta de emprego torna-se crônica em todos os continentes. E ele ainda pondera que se alastram os males espirituais e morais como o egoísmo, o cinismo e a corrupção (Santos, 2007). Opinião parecida é encontrada nas afirmações de Paulo Freire sobre a globalização: O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca (FREIRE, 2009. P.128).

Ao se multiplicar pelos campos formando apenas uma massa monótona, seja de soja, algodão, milho ou qualquer outro produto que esteja em alta no mercado, os grandes produtores arrasam qualquer forma diferente ou anterior de relação com o ambiente: Podemos dizer então, que o paradigma da adequação ambiental coloca o desenvolvimento (ao estilo industrialcapitalista) na frente do meio ambiente. Este deve ser tratado no sentido de não ser um impedimento à inexorabilidade e a necessidade absoluta do primeiro. Em outras palavras o desenvolvimento vence o ambientalismo, colocando-o a seu reboque. Não são os ecossistemas, suas características e especificidades ecológicas, sua história de ocupação, as relações que os povos dos lugares estabelecem com eles, que vão definir possíveis projetos emancipadores e sustentáveis para estes lugares/ecossistemas. É o desenvolvimento modernizador dos “de fora” (donos do capital ou às vezes, o próprio Estado), guiados pela fórmula sagrada da modernidade (prenha da colonialidade do poder) que vai sacramentar o seu destino (MAZZETTO, 2006.p.26).

Culturas, conhecimentos, identidades são relegados a instâncias de exóticos, antigos e improdutivos. Podemos observar que, em muitas regiões do estado, essa expansão, revestida de modernidade agrícola e alta produção tecnológica, criou e acirrou os conflitos e as injustiças com as comunidades, com os indígenas, com o meio ambiente e com todos os expropriados da monocultura e da especulação de terra. A gravidade desses conflitos que se multiplicam por todo o estado pode ser observada no relatório do estudo inovador elaborado pelo Grupo


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Pesquisador em Educação Ambiental por meio de um seminário, em outubro de 2008, que teve como objetivo mapear dentro do território mato-grossense as diversas comunidades, etnias, e identidades dos grupos sociais validados pela sua autodenominação em respeito a sua relação com o ambiente em que vivem (SATO, 2008). Estiveram presentes a esse seminário 250 lideranças das mais diversas lutas sociais, foram identificados 84 grupos sociais e etnias indígenas. Juntos a esses grupos foram levantados os dados referentes aos tipos de problemas e conflitos que eles enfrentam. Grande parte dos conflitos ocorre em virtude da posse de terras, seja ela dos quilombolas, índios ou assentados e à construção das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) que se instalam nos rios de Mato Grosso e dificultam a pesca e a sobrevivência nas aldeias indígenas. Na maioria dos casos esses conflitos acabam em agressões físicas e ameaças de morte, como relatado por diversos grupos. Dados impressionantes foram encontrados nos relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no que diz respeito ao trabalho escravo. Segundo os números de 2008 desse relatório foram resgatados em Mato Grosso 470 trabalhadores e o estado figura entre a chamada “lista suja” dos campeões de denúncia de trabalho escravo (CPT, 2008). Esses conflitos têm como fundo gerador a expansão do agronegócio e como já comentamos nesse trabalho, a produção do agronegócio de Mato Grosso é voltada para a exportação, e ligada à oscilação do capital internacional. A dinâmica do desenvolvimento capitalista no espaço mundial e da produção, segundo Boaventura Santos (2009), estabelece hierarquias por meio de “mais-valias distribuídas por todo o sistema mundial graças à divisão global do Trabalho” (op.cit. p.283). Ele vai mais além e argumenta que essa hierarquia se estabelece também entre várias instâncias do sistema mundial e social: Assim, elas também se convertem em hierarquia entre países, sociedades, regiões e povos. (...) essa dinâmica assenta numa contradição específica, numa relação entre entidades que tendem a negar-se entre si, e cujo desenvolvimento gera por essa razão, assimetria e desigualdades inescapáveis: entre sexos e entre gerações; entre patrões e trabalhadores e entre ambos e a natureza; entre a mercadorização das necessidades e a solvência; entre a inclusão na comunidade e no círculo de reciprocidade e a exclusão de ambos (BOAVENTURA SANTOS 2009.p.284).


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Conflitos, monocultura, desmatamento, estas questões ainda se constituem em um nó difícil de desatar, mesmo porque as mãos das Moiras são frágeis, com dedos ressequidos pela luta diária e o nó é bem apertado, amarrado em diversas situações de influência política e econômica que preferem mostrar um panorama do estado ameno e próspero que é usado para encobrir as injustiças sociais e ambientais em Mato Grosso. Não é também minha intenção negar o crescimento e o valor do estado; não se trata disso, mas de demonstrar que a luta que os quilombolas travam para obterem o direito absoluto de suas terras, de exercerem sua cidadania, está permeado de histórias em contextos que beneficiaram a acumulação de riquezas por poucos, o racismo e a injustiça em detrimento de muitos.


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Cap铆tulo IV Hist贸ria da Pesquisa


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4.1. História de Educação Ambiental e de História Oral Quando caminho na pesquisa em companhia dos princípios da Justiça Ambiental e amparada pela Educação Ambiental é porque acredito que os sujeitos do meu estudo - as mulheres de Mata Cavalo - estão inseridos em seu ambiente e fazem parte de seu território histórico original. É uma afirmação importante, pois ainda temos muitas dificuldades de nos sentirmos parte integrante da natureza, isto devido a séculos de pensamento moderno, quando o ser humano foi apartado do Meio Ambiente, passando a se considerar superior e que, como tal deveria subjugar a natureza e dominá-la. Esse tipo de pensamento, na compreensão de Boaventura Santos, foi influenciado pelas bases teóricas de Galileu Galilei, Francis Bacon e Descartes que firmaram os pressupostos do conhecimento científico moderno, criando Leis Gerais que salientavam a razão e a supremacia do ser humano em detrimento da natureza que deveria ser desvendada e entendida (SANTOS 2008. p24). Na mesma linha de pensamento segue Mauro Grün (2009, p.63) discorrendo sobre como Descartes influenciou a relação dos seres humanos com a natureza, pois ele foi o primeiro filósofo a propor uma física matemática, deixando assim a física de ser especulativa e contemplativa como na antiguidade e passando a intervir nos fenômenos naturais. Essa nova forma de pensar o mundo traria uma grande mudança para a nossa relação com o meio ambiente. Para Grün, “a objetividade cartesiana fez com que perdêssemos a possibilidade de pensar historicamente e colocou o homem europeu e branco na posição de Dono e Senhor da natureza, pois a modernidade parte de um esquecimento da tradição e do passado”. Entendendo aqui como tradição os elementos que constituem nossa historicidade e que desde o século XVII foram sendo aniquilados (GRUN, 2009.p.63). Para que as novas ciências baseadas em experiências provadas e quantificadas pudessem ganhar força, era necessário o abandono dos conhecimentos baseados na cultura e no costumes que

geravam,

na

concepção

de

Descartes,

mais

dúvidas

do

que


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conhecimentos. A rigor a cultura não serviria como prova de veracidade para nenhuma situação (GRÜN, 2009.p.66). No mundo moderno do século XVII, as causas dos fenômenos naturais, dentro do Cartesianismo, perdem o status de vontade divina, que predominou da Idade Média até o século XV, para se tornarem fenômenos com causas previsíveis, desde que estudados dentro do Método Cartesiano, dividindo, isolando e conhecendo as partes, enquadrando esses fenômenos em leis e regras. O que remetia a previsibilidade desses fenômenos naturais, levando a uma idéia de ordem e estabilidade para a transformação do real. Constituindo assim a idéia de determinismo mecanicista ou mundo máquina que irá embasar a ciência moderna (SANTOS 2008. p24). A determinação dos fenômenos, a previsibilidade das ocorrências, foi importante para o controle das situações e do ambiente. A sociedade tinha o conhecimento que precisava para se desvincular da tradição ancorada na cultura, no tempo, espaço e natureza. O ser humano sem ligação com seu espaço e sua tradição está pronto a ir a qualquer lugar. É o homem livre, que transforma à sua vontade o ambiente em que vive (GRÜN, 2009.p.71). Um exemplo de como esse pensamento influenciou e fundamentou a forma moderna de ver o mundo, temos na literatura mundial numa obra de grande sucesso, composta em 1719 pelo escritor inglês Daniel Defoe, intitulada “Robinson Crusoé”. Esta obra narra as aventuras de um náufrago que vive anos em uma ilha deserta, valendo-se de sua força e razão. Ele transforma o mundo que considerava selvagem10 em uma pequena réplica de civilização11. O personagem criado por Defoe, Robinson Crusoé, foi importante como apoio a

difusão

do

pensamento

moderno

da

época

porque

fortalece

o

antropocentrismo, justifica o uso da razão cartesiana e, dissemina a hegemonia branca européia, assumindo o caráter de símbolo do homem que enfrenta a natureza e se sobrepõe a ela (THOMAS, 2007, p.08).

10

No imaginário europeu do século XVIII o mundo selvagem era no novo mundo, além mar da Europa, um local de natureza densa e inóspita, ainda intocada pelos europeus, habitada por seres sem credo, falsos, por vezes fortes em batalhas, mas nunca confiáveis (FATIMA COSTA,1999). 11 A civilização citada aqui é o modelo de civilização europeia do século XVIII que os colonizadores tentavam levar para suas colônias (op.cit.).


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Saindo da literatura e pousando na vida real, essa sobreposição da vontade do ser humano criada pela ciência moderna em contradição à natureza, às tradições e às culturas, de certa forma mostrou, durante séculos, a capacidade inventiva da sociedade, entretanto tem mostrado também que o afastamento da subjetividade humana frente à natureza causa destruição, matança, injustiças sociais, políticas e ambientais. Segundo Grün (2009. p.70), este ser livre, cartesiano, sem tradições, forjado ao longo dos séculos representa, para o discurso ecológico atual, um desafio, pois é necessário, para nos sentirmos parte da natureza, que o sujeito tenha um local, pertença a algo e que essa “localização produza significados”. A essa altura, pode sugerir que o propósito dos discursos ecológicos é, portanto, o de conferir ao sujeito um senso de localização histórica. A não-localização, isto constitui a característica crucial da subjetividade cartesiana (GRÜN, 2009.p.70).

Aliada aos discursos ecológicos e, para além deles, a Educação Ambiental trabalha na tentativa de que os indivíduos voltem a se sentir pertencentes ao ambiente como sujeitos naturais e históricos levando-os à redescoberta das tradições, da sua cultura e dos saberes. Oportunizando a sensibilização para a conscientização ética que se faz necessária para a tomada de decisões e escolhas que impliquem em mudanças tanto na sociedade como no meio ambiente. No campo epistemológico a Educação Ambiental vem se firmando como um espaço que se amplia tanto quantitativa quanto qualitativamente dentro do cenário nacional de pesquisas. Até bem pouco tempo atrás as pesquisas em Educação Ambiental eram pontos difusos, sem um referencial teórico adequado, entretanto a partir da década de 90 houve um grande crescimento científico nessa área com o surgimento de trabalhos acadêmicos e formação específica de titulados tanto em lato como em strictu sensu. Esses novos trabalhos de pesquisas reformularam e ampliaram a visão da concepção de Educação Ambiental, que antes era muito focada na natureza e nos movimentos de “conservacionismos extremos” e no “mito da natureza intocada”, para uma percepção social e cultural adequada à dimensão ambiental (SATO, 2003.p.254).


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A partir dessa abertura de novos campos a professora Michèle Sato (2003) mostra um entendimento de Educação Ambiental como compreensão do mundo conectado com seu todo, ultrapassando seu caráter de disciplina das ciência biológicas. Portanto, se relacionam entre si o sujeito biológico, antropológico, histórico e sociológico, num diálogo aberto, com trânsito livre que circunda as diversas fronteiras das interações entre eu-outro-mundo. Com uma visão fenomenológica Sato afirma que a natureza nunca pode ser separada daquele que a percebe, ela nunca pode existir efetivamente em si, pois suas articulações são as mesmas de nossa existência, ela se estabelece no fim de um olhar ou término de uma exploração sensorial que a investe de humanidade(SATO, p.26, 2003).

Para Carlos Loureiro, a Educação Ambiental se apresenta como uma práxis educativa e social que tem a finalidade da construção de valores, conceitos, habilidades e atitudes que possibilitem o entendimento da realidade de vida e a atuação lúcida e responsável de atores sociais, individuais e coletivos no ambiente. Nesse sentido, contribui para a tentativa de implementação de um padrão civilizacional e societário distinto do vigente, pautado numa nova ética da relação sociedade-natureza (Loureiro, p.69. 2005).

Essas duas interpretações demonstram, em seu pensamento, a indissociação do indivíduo e natureza, levando em conta suas relações e pertencimentos. Buscando também essa concepção de Educação Ambiental, a sua fundamentação teórica no legado de Paulo Freire, apesar de que ele jamais tenha trabalhado sobre esse tema (FREIRE, 2003.p.11). Entretanto, o que a pesquisa e as ações pedagógicas que trilham esse caminho buscam é a práxis teórica de Freire para refletirmos sobre o ético, o político e o pedagógico no ato de ensinar e aprender. Afinal, como não trabalhar com a pedagogia do oprimido quando nos deparamos com a destruição da natureza e do ser humano, Evidenciando assim, a dimensão política da Educação Ambiental, que diz respeito ao entendimento da identidade social e cultural de uma comunidade e a luta por seu território, onde tem suas raízes, seus significados simbólicos, através do manejo de suas práticas com a natureza sendo impossível manter suas tradições sem o local em que vivem (Sato&Passos, 25, 2005).

Ao pesquisador que se propõe a estudar essas comunidades no campo da Educação Ambiental é importante ter definido o seu objetivo, no que ele


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acredita, pois é a partir dai que ele fundamentará o seu trabalho e isso será essencial para a definição de sua metodologia. A Educação Ambiental que embasa essa pesquisa em Mata Cavalo é pautada no reconhecimento dos movimentos sociais, que usa pressupostos da Educação Popular Freiriana e leva em consideração o dialogicismo, a diversidade ou diferentes saberes, que busca por meio da educação a transformação social, assim, nos ancorando em Loureiro, entendemos a Educação Ambiental “definida no Brasil a partir de uma matriz que vê a educação como elemento de transformação social (...) que se origina no escopo das pedagogias críticas e emancipatórias, especialmente dialéticas” (Loureiro, 2004: 67). Portanto, considero que a pesquisa em Mata Cavalo, à luz da Educação Ambiental como me propuz a fazer, deva escutar, conversar, reviver o saber e o conhecimento dessas mulheres que sofrem, mas que não se entregam a esse sofrimento e estão sempre dispostas a luta e aos embates, sem abrir mão dos seus pequenos prazeres: as festas dos santos, o cururu, o siriri e as festas de aniversário, as conversas com os companheiros. A História Oral será o direcionamento metodológico a ser seguido. A escolha dessa metodologia se explica pelo fato de querer mais que mensurar ou descrever e generalizar os dados levantados em campo. Mas há um desejo de explorar, mergulhar nos casos, sentidos e emoções. Lidar com dados inesperados e ao mesmo tempo tão enriquecedores para a pesquisa, reconhecendo as mulheres de Mata Cavalo como sujeitos da história que produzem sabedoria. Já vai longe o tempo em que, obrigatoriamente, uma pesquisa em história para se firmar como produção do pensamento científico deveria conter o embasamento do método Rankeano tradicional12, que considerava conhecimentos

históricos

científicos

apenas

os

dados

retirados

dos

documentos oficiais escritos. Essa posição tradicional negligenciou outros tipos

12

Leopold Von Rank (1795-1886), historiador alemão que defendeu, com muito sucesso, que a história deveria ser buscada apenas em registros oficiais emanados do governo e guardados com rigor em arquivos para que fossem preservados. Para ele a História era objetiva, e a tarefa do historiador era apresentar os fatos tais como eles aconteceram, sem tendências viciosas(BURKE,1992).


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de evidências e de fontes, relegou o período antes da invenção da escrita como “pré-história”, atribuiu à história da humanidade apenas o sentido político do poder elitizado, pois só eles tinham registros oficiais, e ignorou a vida cotidiana dos homens e mulheres simples (BURKER,1992.P.13). Ranke e seus postulados sobre as fontes históricas pertenciam à escola positivista do final do século XIX e faziam jus a entrada da história no rol do estatuto de ciências. A grande valorização do documento como garantia da objetividade excluía a noção de intencionalidade, tanto na ação estudada quanto no historiador. Até o nome “documento” foi recuperado do antigo Império Romano, que se remetia a “provas jurídicas”. Para os positivistas o sentido conservado foi o de prova, mas, neste contexto com sentido de prova científica (CARDOSO, 1997. p.14). As críticas a essa postura positivista tiveram início no começo do século XX e vários foram os motivos que levaram os historiadores a modificarem o modo de pensar e entender a história. Entretanto, podemos buscar as razões na grande crise que assolou o mundo no período entre 1914 e 1930, quando deflagrou-se a I Grande Guerra, conflito de proporções jamais visto no mundo, além da ocorrência da Revolução Russa (1917), que colocou fim a uma dinastia imperial implantando um governo operário, e a queda da Bolsa (1929), que mostrou que o capitalismo poderia ser falível. Tudo isso apontou para a decadência de uma visão histórica que, apesar de ser embasada em documentos oficiais, se interessar pela política e seus debates, foi incapaz de apontar para o futuro funesto pelo qual passaria o mundo nesse período (DOSSE, 1994). As grandes certezas do mundo eram contestadas, a Europa estava enfraquecida e ameaçada tanto no novo mundo quanto nas suas colônias na África e Ásia, a mensagem universal do eurocentrismo caminhava para a superação, mesmo que a passos curtos, mudando também o discurso dos historiadores, que se viram em um mundo de múltiplas culturas e situações as quais poderiam se voltar. Nas palavras de François Dosse foi o momento para a “Clio Revisitada13” (DOSSE, 1994.p.07). 13

Clio - Musa Grega (HOUAISS, 2001) que representa a História. O historiador francês François Dosse (1994) se utiliza da metáfora “Clio Revisitada” para fazer inferência às mudanças ocorridas no século XX,


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Essa mudança na forma de ver o mundo se refletia na forma de se pesquisar e escrever a história que continuava com o caráter de ciência, mas agora era uma ciência em construção. Isso mudava o foco de “história narração”, para uma “história-problema” havendo a necessidade de formulação de hipóteses de trabalho e pesquisa, assim como o intenso debate com as ciências sociais sem delimitar fronteiras entre elas. A síntese explicativa de história global social tem que mostrar a sua vinculação entre a economia, o poder e a mentalidade, entre preocupação com espaço e com a geografia humana e com a pluralidade dos níveis de tempo: curta, média e longa duração, e a história vista como “ciência do passado” e “ciência do presente” ao mesmo tempo, permitindo ao historiador (sujeito de seu tempo) entender melhor o conhecimento de outros períodos. E talvez um dos pontos mais importantes: uma menor ênfase nas fontes escritas, mesmo que elas continuem a ser as principais fontes usadas por esses historiadores, favorecendo a ampliação do uso da História Oral, da arqueologia, da iconografia etc. Dessa forma a História Oral se fortalece como fruto de debates que não apareceram ao acaso, mas por meio de discussões que foram feitas ao longo dos anos, passando por diversos processos sociais (revoluções, movimentos), erros e acertos teóricos e desafios acadêmicos. Atualmente existe a possibilidade da pesquisa que permite que as entrevistas realizadas com as mulheres de Mata Cavalo sejam consideradas fontes oficiais de estudo dentro da perspectiva da construção epistemológica da educação Ambiental no que tange a identidade cultural da comunidade. Elas falam por si e mostram suas preocupações, conflitos e memórias do ambiente e território em que vivem. Do ponto de vista da Educação Ambiental, parece fundamental que se possibilite a indivíduos pertencentes a segmentos sociais, geralmente excluídos da história oficial, voz e escuta, deixando registrada para a análise futura sua própria visão de mundo e aquela do grupo social a que pertencem. Oportuniza um movimento para que estes segmentos sociais falem por si mesmos, expressando a originalidade de sua visão de mundo. O depoimento oral assume e confere ao sujeito a livre expressão e seu papel de centralidade no ato de narrar história (RUSCHEINSKY, 2005.p.142).

de conceitos, sujeitos e fontes utilizadas até então pela historiografia mudando assim o foco da história, antes de história narração para história problema.


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O termo contido no texto como “voz” é “depoimento oral” e foi mantido por se tratar de uma citação direta sendo então necessário respeitar a escrita do autor. Entretanto, optei, no corpo do trabalho, por fazer a substituição desses termos por “audiência” e “entrevistas” respectivamente, por acreditar que esses termos ainda possuem resquícios do período da ditadura, como explico mais a frente. No Brasil a História Oral começa a ser utilizada na década de 70, inicialmente com alguma resistência por parte dos pesquisados. Segundo Meihy (2007), isso se deve ao fato de que nunca tivemos uma democracia plena e contínua. Num país com regime autoritário, que usava da censura e tortura para se prevalecer no poder, falar passou a ser algo arriscado, seria mais prudente o silêncio, entrevistas espontâneas que evidenciavam a memória e a interpretação popular dos fatos perderam lugar para os inquéritos policiais e depoimentos. Todavia, com a abertura política no começo da década de 80, há toda uma movimentação dos que sentem necessidade de falar, de registrar a memória dos tempos difíceis. A repressão militar, no intuito de silenciar,

deixou

latente

o

germe

da

História

Oral

vibrante

com

comprometimento político e contestatório. Muitos pesquisadores na área de Educação Ambiental, segundo afirmação de

Ruscheinski (2005.p.136), alicerçam seus trabalhos na

metodologia da História Oral, pois reconhecem que assim os sujeitos da pesquisa percorrem suas memórias em busca dos principais fatos de suas vidas, individual e social, atribuindo significados aos fenômenos sociais e ambientais. Neste ponto se apresenta o importante papel de mediador do historiador/entrevistador. Para Montenegro (2003), o historiador, ao se apropriar dos elementos vindos da memória, constrói a sua narrativa, a sua versão, o seu mosaico baseado no que foi vivido e falado. É também opinião de Santhiago (2008) que as narrativas vêm à tona através do historiador. Seu exercício de entrevistar não é apenas técnico, mas também um trabalho de interpretar. É ele que, dialogicamente, apresenta o tema com uma pergunta e inicia o afloramento da memória. A entrevista não é a história oral, e sim seu primeiro passo. O historiador tem a função de distinguir o que de individual tem relevância para o social na


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pesquisa, é ele, em última instância, que recriará a narrativa transformado-a em um texto escrito. Ele organiza sentidos, facilita a leitura e reagrupa fragmentos de história que até poderiam já ter sido contadas, mas nunca como o historiador faz. Assim, a cientificidade está na narrativa coerente e completa, com a interlocução das subjetividades do historiador. Fazer História Oral não é apenas dizer com outras palavras as falas dos entrevistados, mas estabelecer um diálogo possível com a ciência. Esse diálogo da pesquisa deve ser científico, mas não com o peso da cientificidade moderna14, e sim com a beleza e o respeito ao outro que narra, conforme vislumbra a Educação Ambiental. Em Mata Cavalo, as mulheres narram suas vidas, seus conhecimentos de quilombolas, dentro do seu território de origem, no momento crucial pelo qual estão passando: a dificuldade do reconhecimento do lugar como de sua propriedade legítima. O debate científico deve ser feito no entendimento das particularidades considerando que existe mais de um saber cultural, observando sua subjetividade, se desvencilhando de preconceitos e verdades preconcebidas. (...) reivindicamos um texto à Educação Ambiental, circunscrito e referenciado ao contexto de seus sujeitos. (...) A vida, os trabalhos, a pesquisa, a fala, enquanto textos, têm que ser um compromisso enfático com o “outro”, com o cuidado de não cair na tentação de reduzi-lo a nós mesmos, fazendo-o „à nossa imagem e semelhança‟. Admirá-lo enquanto outro: ele não é uma mesmice: uma extensão de nós mesmos. Respeitá-lo em sua singularidade, em sua temporalidade própria. Referir no texto escrito sua singularidade é referi-lo em sua diferença e em alteridade sem fagocitá-lo a uma pretensa entidade monádica. Compreendê-lo como ser-no-mundo na densidade do vivido, na necessidade e no desejo (PASSOS & SATO, 2005. p.216).

Ignorar os saberes dessas mulheres, das moiras de Mata Cavalo, a singularidade contida em suas narrativas, significa o mesmo que continuar relegando-as ao esquecimento. Impondo aos seus mundos o que Boaventura Santos (2007) entende como “a ausência de conhecimento”. Em seu arcabouço teórico Boaventura explicita que essa ausência de conhecimento é criada pela redução da diversidade da realidade, de que o que não existe na nossa realidade, no nosso mundo limite, é constituído como não existente, tornando-se uma alternativa não-crível. Para ele existem cinco 14

No sentido cartesiano do ataque permanente à tradição, eliminando a possibilidade de uma educação ambiental com uma dimensão histórica e ética-política (GRÜN, 2007,75).


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modos de produzir ausências em nossa racionalidade. Ele se utiliza da metáfora da monocultura para explicitá-los. A primeira é a “monocultura do saber e do rigor, e a ideia que só o saber científico é o verdadeiro saber”, desprezando os conhecimentos alternativos dos camponeses, indígenas, e das diversas comunidades. A segunda forma é a “monocultura do Tempo Linear”, é a ideia de que a história tem um tempo, sentido e direção determinado e que os países desenvolvidos é que estão à frente. A terceira monocultura é a da naturalização das diferenças, onde se acredita que quem é inferior o é pela própria natureza das coisas. A quarta monocultura é a da “escala dominante” que, historicamente, teve dois nomes: primeiro de universalismo e depois de globalização e coloca o universal sobre o local. A última monocultura é a do “produtivismo capitalista”, é a idéia de crescimento econômico mensurado no ciclo de capitalização determinado pelo trabalho humano. Para Boaventura Santos, essas formas de criar ausências deixam de fora muitas experiências sociais, por meio do que ele chama de Sociologia das Ausências e, como procedimento transgressor, propõe uma substituição das “monoculturas” nas ciências pelas cinco “ecologias” onde ele acredita inverter a situação criando a possibilidade de que os ausentes se tornem presentes. Na “ecologia dos saberes”, Boaventura Santos não se mostra contra a ciência, mas sim contra o poder hegemônico das ciências, e propõe uma nova visão onde o saber científico possa dialogar com o saber laico e o saber popular, com o saber místico ou o dos marginalizados. A segunda proposta é a “ecologia das temporalidades”, entendendo-se aqui que, além do tempo linear existem também outros tempos, como o sazonal, o dos antepassados, tempos que podem ser simultâneos, mas não contemporâneos, residuais ou avançados. A terceira ecologia é a do reconhecimento, na qual se propõe uma descolonização das mentes entre o que é diferença ou apenas hierarquia. A quarta ecologia é a da transescala; é a articulação entre as escalas locais, nacionais e internacionais, muito importante nos trabalhos nas áreas sociais; e a quinta e última é a ecologia das produtividades que consiste na recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção e organização econômica como cooperativas operárias, economias populares, que a ortodoxia capitalista ocultou ou desacreditou. As ecologias, para se fazerem presentes os que estão


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ausentes, tentam aterrissar num futuro com muitas experiências que sejam relevantes e com utopias que sejam suficientes para desafiar a realidade que existe, mas concretas para se manterem firmes. Nas próprias palavras de Boaventura: Não se trata de um futuro abstrato, é um futuro do qual temos pistas e sinais; temos gente envolvida, dedicando sua vida – muitas vezes morrendo - a essas iniciativas (...) o que estou propondo é um duplo procedimento: ampliar o presente e contrair o futuro, por meio de procedimentos e ferramentas que estão sendo discutidas. Não estamos ainda abertos: hoje dizemos que outro mundo é possível, um mundo cheio de alternativas e possibilidades (SANTOS, 2007.p.38).

Nesse ponto compreendo a ligação da História Oral com a Educação Ambiental, pois as duas tomam para si os princípios das cinco ecologias. No quilombo os diversos saberes convivem através da memória das pessoas, o tempo é o da luta, das festas de santos, mas também tem o tempo do mundo exterior. E as ecologias continuam, pois como pesquisadores devemos antes mudar nossas mentes de colonizadores, para que não sejam em nossas pesquisas, apenas projetadas de forma estereotipadas como “coitadas as quilombolas”, pois sofreram, mas a beleza do processo está na superação desse sofrimento através da sua luta. A ecologia da produtividade e da transescala se inclui na territorialidade e na forma de entendimento com o local em que essas mulheres vivem, a terra que pertence a elas e a qual elas pertencem. É isso que tentei entender e mostrar, por meio da História Oral, dentro da visão de Educação Ambiental, com as narrativas das mulheres de Mata Cavalo. As moiras que fizeram parte dessa pesquisa como colaboradoras das entrevistas não foram escolhidas ao acaso, conforme já relatei no início desse trabalho e, neste parágrafo, retomo esta explicação apenas para elucidar como foi elaborado e executado o levantamento de dados em campo. Existiu, antes da pesquisa realmente começar, um reconhecimento do terreno, por assim dizer, quando fiz parte como voluntária no Grupo Pesquisador em Educação Ambiental GPEA. Isso foi muito importante, pois oportunizou a minha entrada no quilombo e tornou mais fácil uma aproximação, pois fiquei conhecida dessas mulheres e identificada como parte do grupo pesquisador.


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Ao todo foram entrevistadas 16 mulheres, de idades variadas. Entre as mais idosas está a própria Dona Tereza com seus 72 anos; a mais jovem foi Andréia com 22 anos, três delas na faixa dos 35 aos 45 anos, quatro com idades de 46 a 55 e sete entre 56 e 70 anos de idade. As idades aqui se configuram como um símbolo das gerações que se encontram e se complementam. Como no meu trabalho levantei como hipóteses os resquícios de memória das antigas quilombolas e a emancipação feminina, é necessário entender como cada uma dessas mulheres pensa e sente o mundo, pois são de épocas diferentes, mas vivem no mesmo mundo, na mesma realidade que é o tempo linear como “ecologia das temporalidades”, mas que se concatena com o tempo sazonal, o tempo dos antepassados que só as mulheres mais idosas ainda guardam na memória, simultaneamente ao tempo da Andréia que, com seus 22 anos, se adentra na luta no tempo avançado, no tempo do reconhecimento. Quando olhamos pelo viés da monocultura do produtivismo capitalista como nos sugere Boaventura Santos, só as mulheres que estão com idades abaixo dos 46 anos exercem atividades remuneradas fora de casa nas profissões de balconistas a professoras. As que estão com idades acima de 46 anos, já não trabalham fora, ou são aposentadas oficialmente ou apenas donas de casa não tendo nenhuma fonte própria de renda mensal. Entretanto,

pela

ecologia

da

produtividade

e

da

transescala,

alternativamente, algumas dessas mulheres conseguem organizar seus orçamentos com seus trabalhos manuais, como crochês, pinturas em guardanapos e com a venda de doces caseiros típicos do estado de Mato Grosso, como furrundu, doce de mamão, doce de leite, de caju e de laranja. Em nosso mundo, vivemos sobre a égide da monocultura do saber e do rigor científico, e se assim considerarmos, poderemos apontar que o grau de escolaridade entre essas mulheres é bem variado. Das que estão acima dos 55 anos apenas uma seguiu os estudos e terminou o que, antigamente se chamava de curso normal, Dona Tereza, se tornando professora muito cedo. As outras mulheres pouco tempo frequentaram a escola na infância, algumas nem mesmo foram alfabetizadas. Hoje em dia frequentam as aulas do


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programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) na escola do próprio quilombo. As que estão na faixa etária entre 45 e 55 anos ou são professoras ou nunca estudaram e hoje frequentam o EJA. As que têm acima de 30 até 45 anos cursaram faculdade e são as professoras do quilombo. A mais jovem das entrevistadas iniciou uma faculdade, mas por engravidar-se parou os estudos, entretanto, é a que mais possui formação no que diz respeito às políticas quilombolas, pois participa de projetos para jovens quilombolas e já participou de estágios oferecidos pela Fundação Palmares nos Quilombos de Alagoas que serviram como troca de experiências. Esses dados são importantes de serem explanados, pois eles aparecem nos resultados da pesquisa como uma situação de grande relevância. Tanto o fato de Dona Tereza ter sido a primeira professora quanto hoje em dia as mulheres com mais idade voltarem a estudar, têm influência e é influenciado pela atuação das mulheres no quilombo, conforme será abordado no próximo capítulo mais profundamente. Aqui também observamos o diálogo com uma das ecologias de Boaventura: a dos saberes, pois essas mulheres vivem no quilombo e estudam no EJA oferecido pela escola do quilombo com professoras que são nascidas e criadas ali mesmo e que não deixam em seus currículos o mundo apenas das letras, mas também o da luta e da identidade negra quilombola, como o saber popular de quem resiste e continuará a resistir. Para fechar o ciclo das ecologias, elegi para a entrevista o princípio da ecologia do Reconhecimento para traçar o caminho que deveria seguir minha pesquisa, ressaltando as diferenças de mundo como as singularidades que deveriam ser respeitadas, no reconhecimento do próprio valor das histórias narrativas, não apenas como fatos contados, mas como fatos vividos. “Fazer a história é estar presente nela e não simplesmente nela estar representado” (FREIRE, 2005. p.40). No início das entrevistas a pergunta era: “a senhora pode me contar como foi a sua infância?” Depois ia perguntando sobre coisas que eu gostaria de saber, mas que não haviam sido contempladas na resposta. Nem sempre as perguntas foram iguais para todas as mulheres, porém a essência da pergunta era uma só, algumas vezes as conversas se desviavam para algum


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outro assunto também de relevância e elas tinham a liberdade de falar. Fiz um roteiro para entrevistar Dona Tereza e um roteiro distinto para as outras mulheres, pois existiam fatos sobre a liderança que gostaria que ela mesma respondesse. Os roteiros ficaram um pouco longos, mas não precisei fazer todas as perguntas, pois elas iam aparecendo no corpo das narrativas. As perguntas deveriam responder ao meu objetivo, dar pistas por meio da história de vida de Dona Tereza, de como as mulheres chegaram a serem líderes atuantes no quilombo. Segue o roteiro da entrevista feita com Dona Tereza: 1. Conte sobre a sua infância e adolescência, onde a senhora nasceu e cresceu; sobre os seus pais, seus irmãos e como era a sua vida nessa época. A intenção dessa pergunta foi traçar o perfil de Dona Tereza compreendendo como sua estrutura familiar e sua relação com a comunidade deram origem a mulher que ela é hoje, líder do quilombo. Para isso utilizo o conceito de habitus em Bourdieu (2007. p.22) como os princípios geradores de prática e de juízos, unificador, que apresenta as características intrínsecas de um determinado estilo de vida, suas ações e disposições no mundo. O habitus é diferenciado, mas também diferenciador. (No caso de Dona Tereza, verifiquei se a forma diferenciada como ela foi criada e o fato dela ser professora foi um diferenciador para que ela se tornasse líder no quilombo). Bourdieu (op.cit. p.64) pondera que a posição ou a tomada de posição do sujeito que ele nomeia como agente, não é um ato mecânico, mas sim um projeto construído dentro do projeto criado pelas percepções das possibilidades e apreciação inscritas em cada habitus. Concordando com o pensamento de Bourdieu (2007), a narrativa de Dona Tereza sobre sua família é importante, pois nela se constrói o princípio da realidade social, a realidade com a qual ela se depararia no quilombo e essa realidade transcende seus membros, atribuindo a um grupo as propriedades de um indivíduo, dotada de um espírito coletivo e de uma visão específica do mundo (BOURDIEU, 2007. p.125). As próximas perguntas: 2. A senhora pode contar como foi feita a formação do Quilombo?


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3. A senhora conhece a história das primeiras mulheres de Mata Cavalo?Como eram essas mulheres? Qual o parentesco delas com a senhora? Estas questões fazem menção ao histórico das mulheres no quilombo, o que nos remete, principalmente, à primeira hipótese levantada na pesquisa sobre a possível herança de uma personalidade guerreira e de líder, deixada pelas antepassadas africanas e pelas próprias escravas da antiga fazenda Boa Vida. Essa herança, que aqui se traduz como conhecimento e atitudes que possibilitam a resistência no dia-a-dia, exigida pela situação na qual vive o quilombo. E mais que isso, exige também a capacidade de liderar seus companheiros nessa luta. Essa herança deixada por essas antigas mulheres deveria então aparecer como marca indelével na educação de Dona Tereza, e estar presente na memorização e nas narrativas que seriam feitas. Uma educação que perpassa pela história vivida e pelo cotidiano como conhecimento para a formação de uma comunidade e é compartilhada entre homens e mulheres pela oralidade e, conforme as argumentações de José de Souza Martins, tem muito mais a mostrar da vida das comunidades negras, como suas crenças, os seus rituais, as regras de parentesco, as hierarquias, a memória mítica, os segredos e ocultamentos (MARTINS,2008,127). Se entendermos que a memória não é apenas a recordação verbalizada, então há muito mais a considerar. A memória do passado, isto é, das experiências sociais passadas e dos antepassados, se inscreve nos gestos, nos gostos, audição, nos sotaques, no paladar, no olfato, nos cheiros (MARTINS, 2008, 129).

A memória então está presente em tudo, no mundo que nos cerca e também pode ser uma forma de educar. Pois também se educa quando se apresenta

pela

memória

a

própria

cultura,

proporcionando

o

auto-

reconhecimento em sua história, a partir de sua própria comunidade e do seu povo. Sobre isso Brandão afirma que: “Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar” (BRANDÃO, 1985a, p. 7).


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Baseada na terceira hipótese que aposta na liderança como resultado da emancipação feminina (e isso não é um fato consumado pela sociedade, como explicado), entendi ser interessante perguntar a Dona Tereza sobre suas práticas cotidianas, familiares e profissionais para compreender a sua participação na comunidade em papéis considerados relevantes para a dinâmica do quilombo e que, obrigatoriamente, a colocaria em contato com todas as outras pessoas em momentos importantes. Assim as perguntas foram: 4. E a vida adulta da senhora: casamento, filhos, trabalho...  Com quantos anos se casou?  Quantos filhos tiveram?  Trabalhava fora de casa?  Exercia alguma atividade voluntária em Mata Cavalo (ex: festeira,

parteira,

benzedeira,

puxadora

de

novenas,

catequista etc.)? O casamento e o trabalho foram um ponto de partida para conhecer a vida adulta de Dona Tereza. Dependendo da importância que ela dava a sua atuação profissional em sua narrativa, poderia ter pistas sobre como ela se via no mundo, já que parte da emancipação feminina deve-se não só à entrada da mulher no mercado de trabalho, mas também a sua própria identificação como profissional efetivo (ALBARNOZ, 2008.p.15). Isso porque as atividades das mulheres fora de casa foram e ainda são assuntos de grande polêmica na nossa sociedade, principalmente para as mulheres casadas e com filhos pequenos (op.cit. p.17). Entretanto, dentro ou fora de casa, as mulheres sempre exerceram funções que ajudassem no sustento da família (LOURO. 2003. p.17). Embora, muitas vezes, essas atividades não fossem consideradas econômicas, apenas auxiliares, pois sempre foi creditado ao homem o papel de provedor-mor familiar, mesmo que na prática isso não se concretizasse. Essa situação é internalizada até mesmo pelas mulheres, que consideram seu trabalho menos importante que o dos homens (MAUÉS, 1999.p.379). Relegam-se assim, ao silêncio, as atividades femininas, mesmo quando estas contribuem substancialmente para a subsistência da comunidade. Isto significa que se ignora uma parte importante das atividades econômicas. Ignora-se também os agentes


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sociais dessas atividades, a metade feminina das comunidades (WOORTMANN, 1992.p.51).

Conhecer o trabalho voluntário que, supostamente, Dona Tereza pudesse

exercer

no

quilombo

como

parteira,

benzedeira,

festeira,

catequizadora ou mãe de santo, era relevante para a pesquisa, pois, baseada em Rose Marie Muraro (1998), desde a antiguidade as mulheres foram as curandeiras populares, cultivadoras de ervas, parteiras, as que conheciam os segredos do corpo, as que abençoavam na hora do nascimento e as que rezavam na hora da morte. Estavam sempre prontas a usarem seus saberes, recebidos de gerações anteriores, para ajudar os desvalidos, tornando-se imprescindíveis na vida das pessoas pobres e sem assistência. Assim também podemos entender o trabalho voluntário na comunidade, pois lá não existem postos de saúde, transporte de emergência, igreja, e as benesses das políticas públicas demoram a chegar. Alguém que represente algum conforto, tenha sabedoria para aconselhar ou traga a possibilidade de cura para um mau súbito, é sempre muito requisitado e tido em alta consideração por todos. Caso Dona Tereza fosse uma mulher que exercesse esse tipo de atividade, a alta consideração e a confiança que esses serviços geravam por parte da comunidade em relação à pessoa dela, poderiam, ao longo dos anos, se transferirem para um caminho aberto à liderança. Além do trabalho, existem outros pontos pelos quais poderia se entender a liderança feminina como fenômeno atual no quilombo, dentre vários privilegiei a narrativa de como Dona Tereza passa a representante oficial da Associação sendo eleita presidente da Comunidade. Ou seja, aqui se encontra o cerne da pesquisa que se materializa por meio da história de vida de Dona Tereza. Eis as outras perguntas: 5. Quando a senhora começou a encabeçar a luta por Mata Cavalo? 6. A senhora foi a primeira mulher nesse Quilombo a assumir o papel de líder da resistência ou já tiveram outras? 7. Sempre foi assim, as mulheres no comando ou houve uma época que quem liderava eram os homens? Por quê mudou? A esta altura da entrevista, as perguntas feitas anteriormente já me haviam apresentado o contexto do quilombo, o cotidiano de Dona Tereza. Com


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essas perguntas encerrei o assunto entendendo o passo seguinte de Dona Tereza para ser líder, numa duplicidade de identidade: uma mulher quilombola e também presidenta. A sutileza dos detalhes em sua narrativa, que aos poucos se agrupam, e que sobre um olhar teórico nos apresenta o mosaico epistemológico não apenas sobre a vida de uma pessoa, mas sobre a construção do papel social importante da mulher para a afirmação de gênero dentro da esfera das tomadas de decisões e participação política, mostra a tenacidade da mulher quilombola (LOURO, 2003.p.24). Essa transformação dos conceitos e costumes que possibilita a entrada da mulher no campo político de emancipação de acordo com ALBORNOZ (2008.p.14) “ainda acontece de forma lenta e complexa”. O papel social construído pela liderança de Dona Tereza é importante não só pela afirmação de gênero, mas também pela afirmação da identidade e a conquista da territorialidade como quilombola que luta pelo seu direito de herança e pela conservação de sua cultura. As perguntas finais da entrevista foram no âmbito da territorialidade. A comunidade já passou por várias expulsões então pretendi entender quais foram as influências que essas expulsões tiveram sobre a identificação com o território. 8. A senhora já morou fora do quilombo? Se sim, por quanto tempo? Quando e porque voltou? 9. O que representam essas terras para a senhora? Em seu trabalho sobre a diáspora do povo caribenho Stuart Hall (2009. p.409) entende que esse movimento é definidor de várias histórias pessoais e de tensões não resolvidas e, “por resultar de formações históricas específicas e repertórios culturais pode constituir um posicionamento que podemos chamar de

identidade”.

Entendemos,

no

contexto

do

quilombo,

que

esse

posicionamento que nos sugere Hall possa ser o posicionamento da identidade quilombola das pessoas de Mata Cavalo construída pela memória do território e da esperança de um dia poder retornar. Para Haesbaert (2006. p.354), os territórios da diáspora não estão vinculados apenas ao imaginário ou à identidade cultural, mas eles são concretos, o que entendemos ser o caso também de Mata Cavalo. A expulsão


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dos quilombolas do território poderia ter uma significação ainda maior de pertencimento para os que se foram, pois perderam seu local de identificação como comunidade e o local de sua subsistência. As terras de Mata Cavalo guardavam então a memória de ser a primeira e verdadeira casa, o que poderia ter servido de grande influência para que a volta fosse feita com o sentimento da decisão de manter a resistência e não sair mais de lá. O segundo roteiro da entrevista foi feito pensando nas outras mulheres, as que não estão na liderança do quilombo. Porém o roteiro continuou praticamente o mesmo, com algumas mudanças. Substituí as perguntas de números 5, 6 e 7 que havia feito à Dona Tereza por outras. 1. Qual a função da presidenta do quilombo? 2. Quais os momentos em que todas se juntam para lutar e quais os momentos em que a luta cabe apenas à presidenta da associação? 3. Está satisfeita com o caminho que a luta pela terra está tomando?(Em todas as dimensões: de políticas públicas, apoio das instituições, adesão dos moradores, conduta da presidenta) O que mudaria na luta? Com essas perguntas, busquei entender da liderança de Dona Tereza frente às outras mulheres, pois essa liderança está alçada na relação de poder interpretada pelo pensamento de Foucault (2008), onde o poder não se estabelece como posse de um signatário, mas sim por meio de rede e por meio de várias dimensões num microcosmo, sendo que o poder é atuante somente sobre indivíduos livres que podem opor resistência, “lá onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) este nunca se encontra em posição de exterioridade ao poder” (Foucault, 2009. p.91). O roteiro foi disposto de forma que as perguntas mais leves, como as informações sobre a infância e a família, ficassem no começo. Ao final, quando as entrevistadas já estavam mais a vontade, foram abordados os temas sobre a liderança e poder. Falar sobre o poder e a liderança, e até possíveis conflitos que isso possa gerar, nem sempre é fácil, principalmente porque são mulheres que se encontram e se relacionam constantemente como amigas, primas, comadres. Jamais foi a minha intenção saber de intrigas ou julgar frente às narrativas se a


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liderança seria boa ou ruim para o quilombo. Mas tenho sim, a intenção de penetrar nas memórias vividas dentro e fora de Mata Cavalo, entender como a liderança se relaciona com a afirmação de gênero e com a construção de identidade quilombola expressa pela natureza, pelo saberes e pelo território, percorrendo todas as possibilidades que a pesquisa fundamentada na Educação Ambiental pode nos oferecer, pois: Uma pesquisa em EA deve ter ecos, além mares, ares, terras e fogo. Tem que ser intensa em seus contrastes de formas, representações, volumes e composições. Só assim poderemos encontrar um plano dinâmico sob uma nova essência do conhecimento. Um conhecimento enraizado em sonhos, que permaneça no impulso criativo e crítico das diversas formas de existência e que, sobremaneira, consiga novas ultrapassagens às violências vivenciadas pela nossa era (SATO, 2003.p.53).

Depois do trabalho parcialmente pronto ainda faltavam algumas questões importantes a serem respondidas e que ficaram fora da primeira leva de entrevista. Sendo assim voltei mais uma vez ao quilombo agora para uma segunda fase já nos últimos meses de 2010. A Intenção era compreender como Dona Tereza percebia a dimensão ambiental, e como isso se incorporava no seu lado educador fazendo parte da luta pela resistência no quilombo. Outra questão importante era procurar saber se as mulheres percebiam o ambiente de forma diferente dos homens, e como isso ocorria. E mais uma vez na entrevista optei pelo caminho da história de vida, comecei pedindo para que Dona Tereza contasse como era a paisagem do quilombo quando era criança. Também aqui não esperava uma reconstituição fiel do espaço e natureza de 50 anos atrás, mas sim uma narrativa que oportunizasse situar sua visão de como interagia com o meio ambiente e como percebia as mudanças que ocorreram ao longo do tempo. Num diálogo com sua experiência histórica, numa tentativa de reviver a tradição de interação e historicidade com a natureza que já havia no quilombo conforme já foi discutido anteriormente, pois, “genuína é a experiência de nossa própria historicidade, assim a natureza não é dominada nem conquistada, mas vista e experienciada como parceira num diálogo mutuamente benéfico” (GRÜN, 2007, p.166). E onde sua experiência se mostrasse a base para uma educação vivenciada num conhecimento que a natureza e a cultura caminhassem juntas.


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Para registrar todas essas narrativas usei gravador digital, porém a tecnologia não foi suficiente para evitar os erros humanos. Uma das primeiras entrevistas, e em minha opinião a que mais me emocionou foi perdida por eu ter apertado um botão que não deveria, a entrevistada percebeu o erro, e o constrangimento e a decepção foram inevitáveis, tanto que, após esse fato, passei a redobrar os cuidados com a gravação. Nunca ia para campo sem antes trocar as pilhas do gravador, mesmo que elas ainda estivessem novas, passei a ler o manual de instrução, que antes era para mim um mero papel que vinha na caixa dos eletrônicos. Utilizei também o caderno de campo onde marcava e agendava as entrevistas, assinalava minhas impressões sobre elas, além de perguntas para serem feitas posteriormente por não terem ficado muito explícitas durante as falas. Pois as gravações só registram as expressões orais e deixam de lado as expressões faciais, os gestos e as mudanças de postura dos entrevistados (LÜDKE, ANDRÉ. 1986). Para MEIHY, o caderno de campo deve ser um diário íntimo onde são registrados até os problemas de aceitação de ideias dos entrevistados e deve ser exclusivo do entrevistador. Eu tentava não usar muito o caderno durante as entrevistas, pois ele chamava a atenção e, às vezes, a curiosidade das entrevistadas era muito grande, o que fazia com que desviassem os olhos tentando ver o que eu escrevia. Ao término das entrevistas e já no caminho de volta para casa, acostumeime a gravar minhas impressões sobre o que acabara de escutar. Gravava tudo o que achava relevante, mesmo que não tivesse nexo, levantava teses e pensava em como fazer a transposição científica do que havia sido ouvido. Isso me ajudou muito na compreensão dos dados. Sempre descarregava o gravador, mesmo estando apenas com uma entrevista; criei pastas datadas no computador nas quais arquivei todas elas, além de gravá-las em discos digitais como cópia de segurança para que não corresse o risco de algo se perder. Em relação às entrevistas, outra preocupação foi quanto à forma de transcrição das gravações. Meihy (2007) sugere que ao invés de transcrição seja feita uma “transcriação=trans e criação”, com o sentido da aproximação entre literatura e história oral; criar, gerar e não imitar, aplicando a prática da


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transformação do oral ao escrito, seguindo a ação quase sempre performática dos entrevistados, pois quem gosta de falar, fala com arte e engenho. Não esperei encontrar nos relatos a verdade “nua e crua”, pois não é isso o que importa, mas como essa verdade será construída pelas mulheres, de que modo elas, ao contarem suas histórias sobre a liderança e sobre a resistência no quilombo, recriam sua identidade. Não cabe aqui um julgamento de “honestidade da fala”. Quanto a isso Gabriel Garcia Márquez se sente muito a vontade em iniciar seu livro autobiográfico com a seguinte frase: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contála” (GARCIA MARQUEZ, 2003, p.04). Walter Benjamim em seu ensaio sobre o conceito da história segue por essa mesma linha de pensamento: Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‟como ele de fato foi‟. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo (BENJAMIN, 1993. p224).

As “transcriações” (passagem do oral para o escrito) devem conter esse desempenho, com a intenção de comunicar melhor o que foi dito e, principalmente, sentido. Colaboradores são seres que, ao narrar, modulam expressões e subjetividades e a transparência disso é relevante aos exames decorrentes do texto estabelecido em análise com os demais (Meihy, 2007. p.123).

Porém, qualquer “transcriação” deve estar de acordo com o contexto da pesquisa, com o que foi falado e, principalmente, deve ser permitida pelas narradoras. Em nenhum momento deverão ser expostas em situações constrangedoras ou de coação. São entrevistadas e não depoentes prestando esclarecimentos sobre os seus atos. Existe a necessidade de diálogo e de profunda interação com as mulheres, não cabendo a pesquisa fria e estática; vê-se o objetivo como um problema para o qual se quer encontrar uma solução científica. Para Brandão (2001), as ciências sociais muitas vezes transformam-se em meros instrumentos de controle social, pois percebe a população como o “problema social” a ser investigado, analisado e quantificado. À exigência da própria comunidade de Mata Cavalo, não será usado o termo “remanescentes do quilombo”, pois eles entendem esse termo como algo


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deixado para trás, ou como eles mesmo dizem “restos de quilombo”. O termo preferido por eles é descendentes dos antigos escravos. Outros termos como “dar voz” ou “resgate histórico” também foram preteridos nessa pesquisa, pois entendo que a fala de Mata Cavalo não precisa ser salva ou resgatada, mas necessita de audiência para que sejam explicitados seus saberes e angústias, lutas e desejos de mudanças. Ouvir o outro é essencial para respeitá-lo e compreendê-lo (FIELD apud MEDEIROS & SATO, 2006). É essencial também que as próprias mulheres de Mata Cavalo escutem a si mesmas, identificandose como sujeitos criadores de sua história e não apenas como atrizes dirigidas em suas atuações. Nesta pesquisa, quando do momento das interpretações das entrevistas, não foi possível utilizar todas as que foram feitas, foi necessário o meu olhar aguçado de pesquisadora para definir quais delas exemplificariam melhor o que eu escrevia. Infelizmente, algumas narrativas que me foram oferecidas com muita boa vontade não constam do trabalho, mas mesmo assim, foram muito importantes para a compreensão do objetivo da pesquisa.

4.2 O CONVÍVIO COM AS MOIRAS Minhas idas a Mata Cavalo, já com minha pesquisa definida e com o intuito de fazer as entrevistas, aconteceram de maio a dezembro de 2009, num total de 23 sessões com duas entrevistadas por dia. Algumas mulheres foram entrevistadas mais de uma vez devido às dúvidas que surgiram posteriormente, ao escutar as gravações. Pela proximidade do Quilombo com Cuiabá houve a tranquilidade de poder ir e voltar no mesmo dia, o que facilitava o trabalho. Já a segunda bateria de entrevistas aconteceu entre os meses de novembro e dezembro de 2010. Os primeiros contatos foram feitos pessoalmente, conversava com as mulheres, explicava a minha pesquisa e perguntava sobre a possibilidade de poder entrevistá-las, após o que agendava um horário. Porém mesmo marcando hora, algumas vezes a minha ida ao Quilombo era frustrada, pois ocorriam imprevistos e minha entrevistada precisava resolver algum problema, o que me obrigava a esperar por outra oportunidade.


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Por ser líder do quilombo Dona Tereza foi a primeira entrevistada. Ela, sem dúvida nenhuma, é um capitulo a parte no trabalho. Já passa dos 76 anos, baixa estatura, olhos desbotados pela idade, mas com uma vivacidade luminosa. Tem o tipo “mignon”, fala devagar, com a voz mansa, mas com um tom altivo quase de imposição. Entrevistá-la é vivenciar ”O narrador”, de Nikolai Leskov, conforme nos apresenta Walter Benjamim (1993): o bom narrador é aquele que sabe narrar devidamente, pois tem o intercâmbio de experiências já vividas, ou é viajante ou camponês nato que traz novidades ou conhece suas terras como ninguém, sabe dar conselhos, transmite as histórias que lhe passaram. Com seu dom da oralidade, ela encanta as pessoas com as quais conversa. Quando perguntei qual era o papel dela na presidência, já que agora ela dividia o trabalho com sua neta Gonçalina, ela respondeu-me que Gonçalina era quem cuidava de todos os documentos, e ela era a memória das histórias, mostrando a autoridade que os anos lhe concederam para falar sobre sua história e a do Quilombo. Bosi (1994), em seus estudos sobre as memórias dos velhos, argumenta que na sociedade em que vivemos as pessoas, ainda com preocupações de suas atividades diárias, (Gonçalina é professora, casada e com filha), exercem menos a atividade da memória, já as pessoas afastadas desses afazeres cotidianos (Dona Tereza é aposentada) se entregam mais a reviver seu passado. Ele afirma ainda que a memória social das pessoas idosas é bem mais desenvolvida, pois eles já atravessaram características e referências de uma sociedade, elas enxergam a atualidade sob um pano de fundo do passado, “haveria, portanto, para o velho uma espécie singular de obrigação social que não pesa sobre os homens de outras idades:a obrigação de lembrar e lembrar bem” (BOSI,1994.p.63). Entrevistar Dona Tereza, apesar de ela ser uma pessoa inteiramente acessível, não foi tarefa fácil, a cada meia hora ela recebia a visita de alguém procurando ajuda para resolver algum problema. Ela sempre atendia, conversava, aconselhava e mostrava quais as providências a serem tomadas dependendo do problema apresentado, “isso quando o povo não vem às 4 da manhã...” segundo suas próprias palavras, e ela também atende.


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Sua casa é sempre cheia de vizinhos e filhos (é mãe de 14 filhos, além de ter criado mais 5 crianças de outras pessoas), parada obrigatória também quando o quilombo recebe visita dos grupos de pesquisa, institutos de apoio à sua causa e, até mesmo quando a justiça vai fazer vistoria.O Procurador Federal já esteve no Quilombo. Dona Tereza é uma pessoa acostumada a contar e recontar toda a história do quilombo. Ao seu modo e ao seu jeito, sabe quais são os assuntoschave, e adora participar de pesquisa. Nas cadeiras de fio assentadas no chão vermelho do quintal conversamos bastante. Ela foi à responsável pela maior entrevista que fiz, foram quatro sessões. A movimentação que a rodeava foi ótima, pois assim pude observar também como era sua vida, seu dia a dia. Contudo, em determinados momentos da pesquisa precisei afastar-me um pouco dela. Ela sempre foi muito solícita e sempre me ajudava a encontrar a casa das outras entrevistadas, que ficam mais no interior do quilombo. No começo foi muito útil, entretanto, na hora da entrevista com as outras mulheres se ela estivesse presente, sempre acabava dando um jeito de “mudar o rumo da conversa” para ela própria. Por esse motivo comecei a andar sozinha pelo quilombo ou pedia ajuda de outras mulheres para chegar às casas mais afastadas. Nas outras entrevistas sempre fui muito bem recebida. As mulheres de Mata Cavalo gostam de falar, entretanto logo percebi que ter afazeres domésticos e receber visitas não era apenas privilégio de Dona Tereza. Quando eu chegava a suas casas, elas se mostravam ansiosas. Colocávamos as cadeiras no quintal e começávamos a conversar, ficavam entusiasmadas com as entrevistas, mas sempre perguntavam: “você não vai mesmo entrevistar os homens”? Muitas vezes, no meio da entrevista acontecia algo que a interrompia. Eu aguardava e quando elas eram liberadas, reiniciávamos o assunto. Sempre tentava retomar a última frase dita, para recuperar o pensamento de onde tínhamos parado. Às vezes o que nos interrompia não tinha como ser cessado. Era assim no caso da chegada dos netos que algumas cuidavam, e também das visitas das vizinhas que chegavam, sentavam e ficavam observando. Outras vezes eu chegava e elas ainda estavam em seus afazeres, lavando roupa, cozinhando ou arrumando o cabelo


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das amigas. Ocasionalmente eu esperava e conversávamos informalmente até elas terminarem. Como mulheres que são, as moiras estão sempre ocupadas e são muito requisitadas por seus dependentes, por seus cuidados, por sua ajuda. Eu tive que aprender a respeitar o tempo delas e a dividir com as suas outras necessidades o tempo que elas tinham comigo. Este tempo não era o linear

cartesiano,

mas

sim

o

tempo

das

práticas

cotidianas,

da

multitemporalidade, da relativização o qual já nos mostrava Boaventura Santos (2007). Apesar de todo o aspecto positivo e do aprendizado existiram momentos de dificuldade ao longo de toda a pesquisa. Entrevistas que eram esperadas e que nem sempre correspondiam à expectativa, respostas para perguntas mal formuladas que foram refeitas. Porém, talvez nisso consista o interesse pela pesquisa, no desafio de formular estratégias que nos desviem dos obstáculos e que nos ajudem a continuar nos lapidando como pesquisadores.


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CAPĂ?TULO V As identidades das Moiras


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5.1. OS FIOS DA IDENTIDADE Ao contrário das gregas do mito original, essas mouras negras não são sisudas e caladas atendo-se apenas a arte de em silêncio fiar e desenrolar o fio da vida humana. Ao contrário, gostam de falar, de rir, chorar, contar e partilhar experiências, crenças felicidades e infelicidades, ao mesmo tempo em que narram os fios de suas histórias na comunidade. E foi numa conversa animada que Dona Tereza (figura 20) e eu começamos nossa entrevista. Quando pedi para que ela falasse de si mesma e de sua infância ela já foi logo contando: 15

Eu já nasci na luta, já nasci nessa luta, mas não era eu, eram meus pais,

meus tios, e me criei nessa luta, quando se livravam de um fazendeiro, vinha outro

Figura 20: Dona Tereza em sua casa em Mata Cavalo. Foto: Rosana Manfrinate, pesquisa de campo maio/2009.

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Os fragmentos de entrevistas que ilustram o texto seguem as normas da ABNT 2010, para esse tipo de

citação, entretando, optei por incluir o caractere identificáveis no corpo do texto.

para tornar as entrevistas ainda mais visíveis e


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Entre tantas formas de se apresentar e começar a falar de si Dona Tereza escolheu a forma que deixa explícita sua identidade como quilombola e militante. Ela não se apresenta apenas com o seu nome, mas, com a sua história de vida. Mostra que a visão que tem de si é a de continuação de algo que os parentes não conseguiram completar, uma história herdada, construída desde que nasceu. Quando Dona Tereza faz referência, em sua narrativa, à presença sempre constante de um ou outro fazendeiro questionando os direitos dos quilombolas sobre a terra, ela mostra que passou por várias experiências na vida. Várias fases e acontecimentos que, junto à sua comunidade, foi preciso aprender a superar ao longo dos anos. Mas esses acontecimentos deixaram suas marcas em Dona Tereza na forma de agir, de se posicionar e de interagir com o mundo à sua volta. Para Brandão (1986), os acontecimentos da vida de cada pessoa e as experiências com os outros, constroem sobre ela, aos poucos, uma imagem de si mesma. Nesse sentido, também Hall (2009) argumenta que as identidades construídas são reflexos das experiências vividas em comum, e apresentam um quadro de referência uno em uma comunidade. Simultaneamente essas histórias partilhadas são responsáveis por construírem o que realmente somos individualmente, num movimento de constante transformação. Seguindo esse pensamento, podemos perceber que as experiências as quais Dona Tereza vivenciou desde pequena ficaram marcadas em sua história e na formação da imagem que ela nos apresenta como a identidade de um sujeito que se assume dentro da “luta”, herança que recebeu dos antepassados. O termo “luta” dito de forma enfática, mostra que nela está assentado algo digno que pertence ao seu povo, o devir do território, onde ainda não podem e não conseguem exercer o direito de propriedade tão sonhado. O “fazendeiro” por outro lado é o que ocupa o lugar que não é dele, é quem maltrata e quem tem que ser banido. A Identidade de Dona Tereza é assim verbalizada em sua narrativa, definindo de que lado se encontra, ou seja, deixa claro o seu posicionamento como quilombola. E para entender melhor essa intencionalidade na narrativa


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de Dona Tereza quanto a sua identidade é interessante nos aproximarmos de Canclini (1996), para quem a “identidade é uma construção que se narra. Estabelecem-se acontecimentos fundadores, quase sempre relacionados à apropriação de um território por um povo ou a independência obtida através do enfrentamento dos estrangeiros” (CANCLINI, 1997 p.139). Na primeira infância Dona Tereza se deparou com a luta, com os vários golpes de despejo, com os quais o quilombo foi vitimado, conforme ela narra: “Na década de 40, o Manequinho mandou fazer uma medição judiciária. Ele chamou os moradores do quilombo para ajudar a fazer a picada no mato para medir as terras e, depois que conseguiu fazer a medição, pôs um edital atrás da porta da câmara de Cuiabá, falando que quem não ajudasse a pagar a medição ia perder a terra. Era difícil ir ver as coisas aqui em Livramento, quanto mais ver edital atrás da porta da Câmara de Cuiabá, quando foi ver venceu prazo, e ele veio colocando todo mundo para fora, dizia que a terra era dele, ele se uniu com outros fazendeiros, disse que eles ajudaram a pagar a medição, nós não tínhamos pedimos medição nenhuma. Foram expulsando o povo, e tomou a terra de todo mundo. Alguns foram para Poconé, outros para Livramento, e outros foram para o Capão de Negro e outros foram para o Ribeirão do Lipa [bairro da periferia de Cuiabá, onde antigamente só existiam pequenos sítios], dois irmãos do meu pai foram, aqueles negros lá eram todos daqui. O meu pai encarou não foi, mas aquele que não ia embora o Manequinho mandava botar fogo na casa, morreu gente queimada, morreu criança queimada” (entrevista de D.Tereza, maio de 2009).

O “Manequinho”, das memórias de Dona Tereza, foi um dos primeiros fazendeiros a questionar a posse da terra do quilombo de Mata Cavalo. Ele escriturou os lotes de terras, como se elas ainda não fossem documentadas. Para mapear o terreno utilizou-se da ajuda dos próprios quilombolas que conheciam toda a extensão do território e andavam pelo local com mais facilidade. Após a medição feita, imputou-lhes uma dívida que eles nem sabiam que existia. “Manequinho” usou, posteriormente, o não pagamento da dívida como desculpa para o despejo. Esse período ao qual Dona Tereza se refere, diz respeito à política de integração da Era Vargas, que valorizou as terras do Centro-Oeste, pois incentivou a imigração através do projeto “Marcha para o Oeste”, entendendo


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como vazios demográficos espaços que não estavam ligados ao uso econômico exportador. Já sendo isso discutido no capitulo II. Mato Grosso não só fez parte desse processo como também passou a redefinir seus espaços e processos de produção, que ganhavam novos donos e valores. Nessa nova definição o território de Mata Cavalo e sua comunidade foram atingidos duramente e tornaram-se vítimas da expropriação de sua terra, da violência que constituía todo esse novo processo (Bandeira 2005). É o que podemos sentir nas narrativas das outras mulheres: “As pessoas daqui eram obrigadas a vender as terras em troca de sacola de pão, rolo de fumo, pedaço de guaraná... Os fazendeiros diziam que era isso que eles estavam precisando. Depois que ele entregava o objeto ele mandava até cavaleiro de carreira atrás” (Dona Natalina da Silva, maio de 2009).

As expulsões dos quilombolas conforme podemos observar nas narrativas ocorreu de forma extremamente violenta e as opções que eles tinham eram: reivindicar os seus direitos junto à justiça ou responder com a mesma violência com a qual estavam sendo ameaçados. Porém, nenhuma dessas opções pôde se concretizar, pois a comunidade não tinha estrutura para se lançar em uma “guerra”, haja vista não possuir o mesmo poder de fogo que os fazendeiros e ser composta por pessoas pacíficas. Reivindicar os seus direitos junto à justiça era outra situação muito improvável para a época, pois a comunidade era constituída de ex-escravos e seus descendentes, sem acesso à escola, ou a qualquer forma de política pública (devemos lembrar que esses fatos são da década de 40). Muitas vezes os próprios fazendeiros eram os representantes da justiça local e assim não existiam muitas alternativas para o povo de Mata Cavalo a não ser saírem das terras como se ali nunca tivessem vivido. A abolição não significou que a igualdade de direitos ocorreria, nem para os escravos e nem para seus descendentes. Isso porque a libertação não foi seguida de uma preocupação em relação ao destino do escravo liberto, a discussão do sistema escravista simplesmente saiu do centro das atenções com a Lei Áurea (VIOTTI DA COSTA, 2008). A escravidão, sob a ótica da


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política capitalista no Período Republicano, ficou entendida como um problema resolvido. E os quilombos antes perseguidos por serem redutos de resistência à escravidão, depois da abolição foram destruídos com a mesma intensidade, porém pelo motivo de os quilombolas não serem reconhecidos como donos da terra que ocupavam. A dimensão da invisibilidade, no período pós-abolição, é outro ponto importante do contexto que circunda as comunidades quilombolas. No imaginário nacional, quilombo é concebido como algo do passado que teria desaparecido do País com o término do sistema escravista (SOUZA, 2008.p.41).

Vivendo no mundo onde a justiça e a cidadania eram míopes em relação à comunidade de Mata Cavalo, esses quilombolas ficaram frente a uma situação de despejos e totalmente a mercê dos acontecimentos, pois não estavam preparados para a avalanche de injustiças que viria a seguir. Internamente também havia disputas e conflitos, por vários motivos, entre eles a disposição das roças e local das casas. Entretanto, essas disputas eram resolvidas sob seu próprio jugo, com suas próprias regras que se embasavam no costume cultural e tradicional de Mata Cavalo, o que conforme nos aponta Bandeira (2005) significa um modelo de Direito Consuetudinário. Essas regras embasadas em costumes e tradições tornam-se legítimas para uma comunidade à medida que se transparecem nelas as relações existentes e apropriações dos saberes acumulados pela comunidade (CHAMY, 2003). Em Mata Cavalo esse saber acumulado refere-se ao saber em relação ao ambiente em que viviam e ao conhecimento da natureza. Era, por exemplo, importante saber como plantar, onde plantar e entender até que ponto se poderia seguir com essa atividade para não esgotar a terra. Era primordial para a sobrevivência da comunidade saber interagir com a natureza, respeitando e interpretando seus ciclos e seus tempos de mudanças. E essa interação entre os quilombolas e a natureza podia ser apontada como o ponto de partida para quaisquer decisões em quaisquer disputas ou conflitos internos que poderiam surgir no quilombo. Para Sato (2003b) isso acontece, pois “as comunidades detêm conhecimentos próprios. Há a sabedoria que flui de uma relação que poderia envolver diversas formas de conhecimento, num entrelaçamento inseparável da biodiversidade com a cultura local”. Esse conhecimento aliado


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a cultura se fazia vivo em Mata Cavalo pela sua transmissão de uma geração para outra, por meio de uma educação não escolarizada, que dentro da comunidade também formava seus entendidos e mestres, como nos sugere Brandão (1985b): A seu modo e na fronteira de seus limites, essas gentes também têm os seus sacerdotes e educadores, os seus curandeiros, sábios e vigilantes, os seus agentes de política. Tal como os índios, os camponeses têm também o seu saber, criam as suas próprias estruturas de socialização, formam e consagram os seus próprios mestres e reproduzem, com os instrumentos e artifícios de sua própria educação, a sua sabedoria (BRANDÃO, 1985b. p.20).

Quando os fazendeiros invadem as terras de Mata Cavalo e iniciam o processo de expulsão dos quilombolas, esse conhecimento próprio da comunidade que alia a cultura à natureza e que é transmitido pela oralidade e pela ancestralidade, se dissipa como se cada um que estivesse partindo, fugindo para não ser morto, levasse consigo um pedaço do mosaico que é Mata Cavalo. Da justiça interna baseada no conhecimento da natureza, na tradição e na interação com o meio ambiente, a comunidade passa a ter que conviver com a injustiça de forças que agiam em nome de uma dinâmica de lucros e interesses. Não que nunca tivessem sofrido violência antes, afinal eles vinham de um passado de escravidão. Mas agora como descendentes de homens e mulheres livres que possuíam um pedaço de terra, a esperança de viver em paz parecia mais perto, fazendo parte do dia a dia. Todavia o que ocorria em Mata Cavalo não eram momentos de paz e sim conflitos pela posse da terra e atos explícitos de violência contra a comunidade. Os conflitos pela posse da terra, a exemplo do que sofreu e sofre Mata Cavalo, são comuns no Brasil devido ao modelo econômico capitalista, latifundiário e agroexportador adotado para a expansão, exploração e utilização dos territórios (JABER E SATO, 2010; GIRARDI, 2008). Podemos situar esses conflitos em duas linhas que são: os conflitos agrários e os conflitos ambientais, que estão ligadas pela dinâmica da expansão do agronegócio, mas possuindo cada qual a sua particularidade. Nas considerações de Fernandes (2005) em seus estudos sobre a questão agrária no Brasil, os conflitos agrários são inerentes a contradição estrutural do capitalismo e são necessários, pois


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são nessas contradições que ocorrem as resistências à exploração do latifúndio sobre o trabalhador rural. José Paulon Girardi (2008.p.293) assinala que “os conflitos no campo são resultados do enfrentamento entre o território do campesinato e o território do latifúndio e agronegócio”. Para ele o conflito é a diferença entre esses interesses e requer uma intervenção do Estado, pois os conflitos são passíveis de solução desde que por meio de uma mediação eficaz e mudança na lógica de divisão de terras, levando-se em consideração as reivindicações de grupos desfavorecidos. O entendimento do que é conflito agrário pousa quase que exclusivamente nas questões ligadas à agricultura e seu desenvolvimento, sejam elas questões que promovam a viabilidade da agricultura familiar ou a crítica aos grandes latifúndios. O viés utilizado para esse estudo é o viés econômico, que tem uma importância inegável. Contudo, quando tratamos de uma comunidade quilombola como Mata Cavalo, necessitamos de outros vieses de compreensão para os conflitos pela terra, além do econômico, pois temos que entender a dimensão cultural e a ambiental que estão ligadas a essa

comunidade,

conforme

afirmado

anteriormente.

Por

isso

para

entendermos os conflitos pela posse de terra em Mata Cavalo é pertinente percebermos o conflito ambiental, pois assim abarcaremos essas outras dimensões. O conflito ambiental, no entendimento de Acserald (2004), acontece quando um grupo social se apropria de um território já anteriormente ocupado e por meio dessa apropriação causa impactos indesejados no ambiente. Para Little (2006), o conflito ambiental é um embate complexo entre diversos grupos sociais divergindo entre os modos de inter-relacionamentos ecológicos, que podem ter dimensões e características geradas pelo controle sobre determinados bens naturais, como a água, por exemplo; ou outros como os impactos socioambientais gerados pela ação humana, como o desmatamento, queimadas e contaminação dos rios. Pode ocorrer em relação à alteração de modos de vida, dos rituais, assim como também forçando os embates políticos e econômicos intervindo nos elementos que marcam a identidade de um povo.


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Os conflitos ambientais existem e chocam-se paulatinamente no cotidiano das populações economicamente desfavorecidas. Acirradas pela era das incertezas, as forças antagônicas sobrepujam as lutas, dilacerando as identidades e os territórios pelo poder capital. Entram em choque valores e sentidos diferentes dados ao território, pois os hábitos, o modo de pensar, agir e sentir se diferenciam entre os habitantes. Afinal, o território não representa apenas um espaço físico, um pedaço de terra, vai além, é um espaço social e cultural constituído na convivência e na tensão entre diferentes modos de vida (JABER & SATO, 2010. p.445).

A violência observada nas narrativas das mulheres de Mata Cavalo é a reação contrária a qualquer resolução do conflito. Como podemos observar no relato de Dona Estivina: Eles foram saindo para não morrer aqui, saíram daqui “escramuçado”, saíram de noite, largaram tudo por conta, saíram só com a mala de roupa, eles saíram daqui a pé até Livramento (....) eles saíram escondidos, porque eles escureciam e não amanheciam(...) eles não podiam sair e era fazendeiro com jagunço atrás deles(...) Papai contou para mim que ele ficou amarrado cinco dias numa árvore com sede e com fome, e ai apareceu um carroceiro e tirou ele. Quiseram pegar mamãe, mas ela correu, foi avisar minha avó em Livramento, minha avó veio e puseram papai numa carroça e embrulharam como se fosse um saco de mantimento, para os homens não pegar (...) mamãe, se tivesse viva contava tudinho para você como que foi, olha filha que aqui foi uma dificuldade para os Negros, tinha dia que todo mundo dormia no mato (Dona Estivina, Mata Cavalo, novembro de 2009).

Para Girard (2008) essa violência que Dona Estivina nos apresenta pode ser “caracterizada pela destruição física ou moral; é a desarticulação do conflito por meio do controle da sociedade, por parte do Estado ou das elites do agronegócio. A violência tenta pôr fim ao conflito sem que haja a resolução dos problemas”. Para esse autor, a violência pode ser imputada tanto por particulares quanto pelo Estado, de forma direta e/ou indireta. De acordo ainda com Girard (2008), a violência na forma direta se trata da violência física, as ameaças de morte, os assassinatos de fato, os despejos e a destruição das casas conforme nos mostra a narrativa de Dona Tereza e Dona Natalina. Aqui o Estado também atua, pois muitas vezes promove os despejos por meio de ordens judiciais, que são executadas com tanta violência quanto os despejos realizados pelos fazendeiros. É considerada violência direta do Estado quando ele simplesmente se omite frente à violência praticada por particulares contra as comunidades.


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Já na forma indireta, ainda baseados no pensamento de Girard (op. cit.) a violência é praticada simultaneamente pelo Estado, fazendeiros e empresários tendo como condutora a ação política e lobbies que garantem o favorecimento das questões relativas à posse de terras, sejam elas para a agricultura ou qualquer outro empreendimento. Um exemplo disso é encontrado na narrativa de Dona Tereza quando ela afirma que o “Manequinho” afixou o edital da dívida da medição das terras de Mata Cavalo na Câmara de Cuiabá, com prazo para ser paga. O que mostra que ele tinha o respaldo dos juízes e dos cartórios da época para passar as terras para seu nome. Por essas narrativas percebemos todas as perdas que a comunidade de Mata Cavalo teve. Perda do ambiente, perda das práticas e dos saberes da comunidade. Compreendemos então como foi feita toda a desarticulação do mundo em que viviam e devemos enxergar dentro de um contexto maior que nos faça perceber toda a complexidade da situação, não só econômica, ou política, ou ambiental, ou cultural, mas um conjunto, já que entendemos o sujeito como um ser que interage em todas as dimensões. Para essa compreensão necessitamos da perspectiva da Educação Ambiental com seus múltiplos olhares para todas as direções, conhecimentos e interações sociais. Como nos afirma Loureiro (2004): A educação ambiental não se refere exclusivamente às relações vistas como naturais ou ecológicas como se as sociais fossem a negação direta destas, recaindo no dualismo, mas sim a todas as relações que nos situam no planeta e que se dão em sociedade – dimensão inerente à nossa condição como espécie” (LOUREIRO, 2004: 79).

Em Mata Cavalo a “luta” descrita por Dona Tereza é a luta pela terra, mas também é a luta pela natureza, pela cidadania, e até pelo direito à memória. A memória que narra momentos tão difíceis, como os que foram apresentados. Durante o tempo todo Dona Tereza fala devagar, cheia de reticências, mostrando os pensamentos que vem e vão. Em todas as entrevistas, principalmente quando falamos de infância e família, os casos tristes reaparecem na memória. São narrados, hora com emoção, hora com revolta e até com passagens engraçadas. São as memórias que elas


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compartilham como grupo em Mata Cavalo sendo apresentadas pela oralidade e que fazem parte da memória coletiva do quilombo. Paul Ricouer (2007) apresenta a memória coletiva como um elemento agregador da identidade de um grupo. Nela são guardados momentos importantes, como situações que incitam a comoção ou a solidariedade. Os despejos, no contexto do quilombo e sob o olhar dos quilombolas, são situações de comoção, nas quais a violência sofrida cria um elo de solidariedade entre a comunidade. Embasados ainda em Ricouer (2007), compreendemos que se recordar dessas situações traumatizantes vividas no quilombo e contar as suas histórias, são maneiras de se fazer justiça aos que sofreram. Ricouer chama isso de o “dever da memória”. Ou seja, a memória tem o dever de fazer justiça às vítimas que tiveram que fugir do quilombo. A memória não deixa que as esqueçamos através desse exercício contínuo de narrar, como se a violência que viveram fosse revivida a cada momento. As narradoras das histórias do quilombo sempre usam esses momentos para recordarem as situações de violência proferindo palavras como: “não me esqueço...”, “parece que estou vendo agora...”, “ainda escuto o povo chorando...”, como se a situação estivesse sempre se repetindo, num exercício de dever da memória. Montenegro (2008) atenta para o entendimento de que a memória é uma elaboração e não apenas um registro captado de um determinado acontecimento. Para ele as pessoas leem ou apreendem o mundo através da memória, usando seus sentidos e sentimentos, por isso a memória é fruto de uma construção entre o que trazemos de lembrança e o que vemos no presente se interagindo. Assim, memória se transfigura num aprendizado contínuo e ininterrupto entre as marcas do passado e do presente. Ao relembrar os pais, os outros parentes e os vizinhos despejados, perseguidos, essas mulheres construíram sua identidade como mulheres quilombolas vindas de um passado de violência e com um presente que busca justiça através da união de todas.


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5.2. FIOS DA EDUCAÇÃO

Dentro do seu mundo de quilombola Dona Tereza também viveu sua diáspora particular, o que marcaria sua educação transformando sua vida para sempre, mas que, por uma fatalidade, seguiu um caminho diferente das outras mulheres de Mata Cavalo. Dona Tereza ficou órfã de mãe aos seis anos. Então ela e sua irmã mais nova foram morar com uma tia, em Poconé (cidade próxima à Livramento), e depois num internato dirigido por freiras. Situação que abriu a oportunidade para que ela estudasse ainda criança.

Fui morar com minha tia em Poconé, mas ela viajava e saia muito, por isso ela deixou eu e a minha irmã no asilo das freiras, era internato. Eu gostava de lá, eu não tinha nada, não tinha mãe e meu pai saia muito. Entrei quando completei oitos anos. De lá eu sai quando terminei a quarta série, sai para fazer o curso de admissão (Dona Tereza, Mata Cavalo. Maio de 2009).

Ir para o internato separou Dona Tereza dos seus parentes e amigos do quilombo, mas oportunizou que ela fosse à escola, o que seria difícil caso houvesse ficado no quilombo quando pequena, uma vez que havia uma total exclusão dos quilombolas dentro do sistema de ensino escolarizado, tanto na cidade de Livramento quanto no próprio interior do quilombo. Para tentar resolver a situação da falta de escola o pai de Dona Tereza, “seu” Antônio Mulato, e mais algumas pessoas da comunidade, que mesmo não tendo estudo algum sentiram a necessidade de que seus filhos fossem a escola, encarregaram-se de reunir cerca de 60 crianças do quilombo para estudar. Com a autorização do prefeito de Livramento, tentaram formar uma pequena escola, se dispondo inclusive a abrigar a professora que viria de fora e algumas crianças que moravam mais afastadas. Entretanto, a escola acabou servindo apenas aos filhos dos fazendeiros, pois a própria professora fez uma seleção de 20 alunos brancos, dizendo que a escola não era para filhos de negros (SENRA, op.cit., p.86). ”Seu” Mulato e o povo quilombola haviam esbarrado em um problema cultural. A educação escolarizada para os negros, nas primeiras décadas da República no Brasil sempre foi de difícil acesso, mesmo que se referisse


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apenas às técnicas elementares da escrita e da leitura. Isso porque, conforme anuncia Faria Filho (2003), a educação proposta pela elite para as classes consideradas inferiores, revestia-se de uma proposta “autoritária e excludente do outro: os pobres, os negros, as mulheres e os povos indígenas” (op. cit. p. 171). Para Faria Filho (op. cit.), o projeto educacional que visava o desenvolvimento da nação brasileira criado ao final do Império e da escravidão era embasado nos princípios do positivismo e do evolucionismo advindos do Darwinismo Social. Nesse projeto de desenvolvimento as elites intelectuais brasileiras acreditavam que os negros seriam extintos no Brasil e vislumbravam os

mestiços

como

etapa

intermediária

necessária

ao

processo

de

branqueamento da nação, porém desapareceriam em no máximo um século. Isso explicaria o total desinteresse por qualquer inclusão social da população negra. Porém era preciso instruir o povo para garantir a ordem social como ideário da construção da Pátria. Isso, no entanto, não significava a garantia de acesso a uma educação de qualidade a todos; mas assegurar um mínimo de instrução, sem que isso implicasse em ascensão social às camadas populares, posto que as propostas de massificação da instrução elementar a todas as camadas populares se enraizavam em princípios de predestinação dos indivíduos ou grupos aos lugares de maior ou menor prestígio social (...) bem como a legitimação das hierarquias entre as raças; a naturalização das diferenças fenotípicas, como sinônimo de superioridade/inferioridade no imaginário social da nação, como um eficiente instrumento de controle social (FARIA FILHO, 2003, p. 172).

Para Silva e Araujo (2005), numa releitura das reformas educacionais do século XIX e início do século XX, a população negra teve presença sistematicamente negada na escola, pois a universalização ao acesso e a gratuidade escolar legitimaram uma aparente democratização, porém, na realidade, negaram condições objetivas e materiais para que os negros libertos e seus descendentes participassem de um verdadeiro projeto educacional. Isto posto, entende-se que a escola “apropriada” pelas classes dominantes perpetuava-se como vantagem competitiva das elites, preservando o status quo destas mesmas classes em detrimento da educação das populações negras rurais e/ou urbanas, cujas condições de trabalho e isolamento dificultavam - mas não eliminavam as manifestações de descontentamento (SILVA e ARAUJO,2005,p.71).


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A escola para as crianças de Mata Cavalo era apenas um sonho distante que o preconceito transformado em política não permitira que se tornasse realidade. O fato de Dona Tereza ter ido para um internato que oportunizou sua entrada na escola foi uma passagem de sua vida que a diferencia das outras mulheres da mesma faixa etária dela. A maioria das mulheres entrevistadas com mais de 50 anos, havia sofrido despejo quando crianças. Fora do quilombo, a vida continuou, nunca foi fácil, mas continuou. A comunidade era essencialmente formada de agricultores que trabalhavam em seus próprios sítios quando foram expulsos. Fora do quilombo não restaram muitas opções de trabalho a não ser o trabalho braçal. Trabalho braçal para os que vieram para Cuiabá e Várzea Grande, ou trabalho braçal para os que ficaram ao redor do quilombo, ironicamente para os mesmos fazendeiros que os expulsaram. Assim essas mulheres cresceram sem muitas regalias ou conforto e começaram a trabalhar cedo, praticamente não estudaram. Como nós saímos daqui, nossos pais mudaram daqui, e nós fomos criados assim para as fazendas e chácara dos outros (...) nós saímos daqui criança, nossos pais não colocaram a gente na escola. (Dona Edvirges, Mata Cavalo, agosto de 2009).

Nasci em Livramento, minha infância foi em Cuiabá, trabalhava como babá, depois começando a ficar mocinha fui trabalhar de doméstica, estudei pouco por que com quem eu morava, também não interessava que eu estudasse (...) essas meninas que eu fui babá, ontem eu até sonhei com elas, são dentistas, o dia das crianças eu estava pensando nelas, até os primeiros passinhos eu ensinei, agora ninguém olha para nós” (Dona Guilhermina, outubro 2009).

Eu acho que nasci na fazenda, mas me criei em Poconé. Nós, quando pequenos, ficávamos o tempo todo nas fazendas trabalhando. Quando eu cheguei em Poconé para estudar eu já tinha 12 anos, mas era difícil, minha mãe colocava a gente para trabalhar, cuidar de criança, ajudar na cozinha, a patroa ia para fazenda e a gente tinha que ficar o tempo todo lá. Quando eu tinha 24 anos eu não quis mais, e fui para Cuiabá. Lá eu estudava noturno, só que ai eu casei e logo vieram os filhos, não deu para estudar” (Dona Ana Maria, mais conhecida como Dona Preta, outubro de 2009).


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Trabalhar feito gente grande desde a infância, esse foi o caminho que muitas das entrevistadas tiveram que percorrer. As narrativas expõem também que as pessoas para quem trabalhavam tinham um total descaso em relação à educação delas quando contam que “ficavam nas fazendas cuidando das crianças ou ajudando na cozinha”. Refletindo o pensamento preconceituoso da educação de elite, na qual a escola era reservada para as crianças bem nascidas ou, no caso de Mata Cavalo, para os filhos dos fazendeiros. A falta da escola para essas meninas figurou-se ainda com uma distinção social, de uma cultura que domina e outra que é dominada, pois pressupõe uma cultura erudita, com suas próprias categorias de percepção, colocando aquelas pessoas que a receberam como diferentes daquelas que só tiveram acesso à aprendizagem dentro dos ofícios ou dos contatos com os semelhantes (Bourdieu, 2007). A escola, de acordo com o que nos sugere Coelho (2002), mesmo que com seus patamares de educação iluminista fundado na dicotomia do saber/ignorância, tem a obrigação de ensinar a expressão oral, a leitura, a escrita

e

as

operações

fundamentais

aos

filhos

dos

trabalhadores,

conhecimentos básicos sem os quais, é muito difícil uma participação políticosocial “e uma compreensão mais profunda da cultura que é coletivamente produzida por toda a sociedade” (op.cit., p.46). A negação do direito de estudar age como um elemento que dificulta qualquer promoção para se sair da situação de oprimido, sem a leitura é como se vivessem às cegas sem poder decifrar os códigos necessários à interação com o mundo, a interação necessária para se defenderem de abusos cometidos contra os seus pais ou elas mesmas. Paulo Freire lindamente comenta sobre a importância do ato de ler e a sua ligação com a conquista da cidadania: Esta é uma das violências que o analfabetismo realiza – a de castrar o corpo consciente e falante de mulheres e de homens, proibindo-os de ler e de escrever, com o que se limitam na capacidade de, lendo o mundo, escrever sobre sua leitura dele e, ao fazê-la, repensar a própria leitura. Mesmo que não zere a milenar e socialmente criada relação entre linguagem, pensamento e realidade, o analfabetismo as mutila e se constitui num obstáculo à assunção plena da cidadania. E as mutila porque, nas culturas letradas, interdita analfabetos e analfabetas de completar o ciclo das relações


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entre linguagem, pensamento e realidade, ao fechar a porta, nestas relações, ao lado necessário da linguagem escrita (Freire, 1997. p.4).

Expulsas do quilombo, sem poder estudar, e sem vislumbrar um futuro diferente para si, essas meninas que um dia se tornariam as mulheres de Mata Cavalo, estavam cada vez mais longe do território que herdaram de seus antepassados, num caminho que parecia não ter volta. Dona Tereza também estava longe como vamos observar nas narrativas a seguir, porém não demoraria a voltar a sua terra.

Eu fui para Cuiabá para terminar meus estudos, fui morar com Dona Laurinda dona da farmácia, trabalhava na casa e na farmácia e estudava a noite, eu fiz o normal e ai eu casei” (Dona Tereza, maio 2009).

Essa passagem da vida de Dona Tereza nos mostra um leque de informações que forjaram sua identidade individual dentro do quilombo. Formada no curso Normal, Dona Tereza fez parte da geração de mulheres que ingressaram na vida profissional por meio do magistério. No Brasil, no final do XIX, foi incorporado ao discurso político o pensamento de que só a educação seria responsável pela modernização do país, o que afastaria a imagem ainda persistente de uma nação atrasada, inculta e primitiva. Críticas à falta de escolas e o abandono da educação eram recorrentes nas câmaras, jornais e até em saraus da época. Atribuía-se, em parte, essa realidade aos poucos profissionais dessa área, a maioria dos professores eram padres e freiras em colégios específicos para os filhos da elite, ou nos asilos de órfãos. Existiam pouquíssimas escolas nas províncias e os professores, quase que majoritariamente, eram homens. Em resposta a esses clamores da época, em algumas cidades foram criadas as escolas normais, inicialmente tanto para homens como para mulheres, apenas com o cuidado de estabelecer que moças e rapazes estudassem em salas diferentes, todavia o que houve foi um aumento gradativo das mulheres nesses cursos e o abandono por parte dos homens. Uma das explicações da saída dos homens do curso normal é que no final do século XIX, com o crescimento dos setores urbanos industriais e de comércio, muitas e mais rendosas oportunidades se tornavam possíveis a eles (LOURO, 2003).


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A transição do espaço da sala de aula, de professor para professora, apesar de não ser feita sem resistência, aos poucos foi se consolidando (SCHAFFRATH, 2003). Evidencia o que algumas correntes de pensamento do período sugerem: que a mulher, por ser naturalmente mãe, tinha aptidões naturais para a educação das crianças e que o ensino primário era na verdade uma extensão da formação moral e dos cuidados maternos. O magistério nesse pensamento seria uma vocação natural da mulher. Para Louro (2003), dentro da concepção da época que via o trabalho do magistério ligado naturalmente à mulher pela aproximação com a maternidade, existia ainda a visão de que a mulher não deveria exercer atividades que fossem competitivas com o seu verdadeiro destino que era o do casamento. Sustentar a casa era ofício do homem, o salário da mulher era apenas complementação, o que justificaria em parte os baixos salários pagos às professoras. Nesse enredo também, segundo Louro, se entremeia uma maior intervenção do estado na educação no que diz respeito aos conteúdos, livros e didática, “estavam no fim de vez os preceptores particulares, é o estado ditando as regras da educação para a formação dos alunos, forjando uma nova sociedade e controlando a população” (LOURO op.cit. p.25). A professora dessa nova era deveria ser o exemplo de moral, disciplinadora, deveria desprender cuidados aos alunos, tinha a autoridade reconhecida na comunidade e, por sua identificação com a maternidade, era aquela a quem recorriam em momentos de problemas. Louro (2003) também faz referência à imagem das professoras que foi construída, como se elas fossem capazes de salvar cada um de seus alunos, os orientado por meio do carinho e compreensão, incutindo sabedoria e moral. Louro aponta que nessas representações estão sempre os jogos de poder, e que geralmente quem é representado às vezes não existe no mundo, mas ele tem que ser criado socialmente por meio das relações de poder, e usado por quem realmente utiliza o poder (LOURO, 2003). A formação das normalistas, também foi ancorada na chamada “Pedagogia Tradicional”, que se insere numa proposta de educação centrada no professor, cuja função é a de aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria. A transmissão dos conteúdos é feita oralmente e numa sequência fixa com


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exercícios repetidos, valorizando a memorização, mas não o contexto escolar. Os conteúdos do ensino correspondem aos conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações passadas como verdades acabadas. “No ensino dos conteúdos, o que orienta é a organização lógica das disciplinas, o aprendizado moral, disciplinado e esforçado” (MEC, 1997.31). Dentro deste contexto educacional foi formada Dona Tereza, nas rígidas disciplinas morais do curso normal. Mais tarde, já formada, casada, com alguns filhos e com menos de 25 anos, Dona Tereza voltou a viver no quilombo, numa chácara vizinha a de seu pai. E é nesse período que passa a exercer a profissão que, sem dúvida, seria a sua identificação na comunidade para o resto da vida: a de professora.

Morei dois anos em Cuiabá depois de casada, ai o meu pai operou, não tinha quem cuidasse dele. Nos mudamos para o quilombo outra vez Nessa época, por causa da briga dos fazendeiros, meu pai foi obrigado a comprar um pedaço de terra dentro do quilombo, nós [ela e o marido] compramos aqui, comprei o que era meu, mas comprei e paguei para ficar aqui.... Já faz 50 anos, naquele tempo eu dava aula aqui no quilombo, e tinha aluno! Eu dava aula lá embaixo... [aponta para o fundo do próprio quintal], ai mudei e dava ali [um quarto ao lado da sala que estávamos conversamos]...ali tinha uma salinha, dava aula na minha casa mesmo, era só aluno do quilombo. Teve ano de ter 40 alunos! Depois eu passei a trabalhar em Livramento, porque veio uma amiga minha e disse “Tereza você tem esse horror de aluno, dando aula pela prefeitura, e não vai ter direito ao salário família, com esse monte de filho, vamos passar a senhora para ser professora do estado”. Mas no sítio não podia dar aula pelo estado, só pela prefeitura então eu fui trabalhar em Livramento. Eu ia todo dia daqui ao Livramento de charrete, deixava o cavalo amarrado e meio-dia voltava. Quando me aposentei já estava trabalhando na secretaria. Aqui no quilombo eu fui a primeira professora, antes também teve a comadre Belmira que era professora, mas ela não era do quilombo. Do quilombo eu sou a primeira professora” (Dona Tereza. Mata Cavalo, maio de 2009).

Dona Tereza conseguiu tornar realidade o antigo sonho dos moradores do quilombo de abrir uma escola para suas crianças, já que a primeira tentativa foi frustrada, pois a própria professora não aceitou os alunos negros na escola. Dona Tereza em compensação era do próprio quilombo, conhecia a todos e


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abriu uma sala em sua própria casa. Ela fala com orgulho que chegou a ter 40 alunos em sua sala de aula, o que demonstra a preocupação dos quilombolas com a educação de seus filhos e a precariedade das políticas públicas para eles, pois eram obrigados a estudar provisoriamente num dos cômodos da casa de Dona Tereza. O espaço que Dona Tereza abre para a escola é um espaço dentro do território quilombola, um lugar diferenciado, em que eles se reconhecem e participam. As aulas, o ato de ensinar a ler e a escrever, representam uma transgressão à ordem vigente. Dona Tereza ensinava mesmo sem escola construída, mesmo sem merenda escolar, mesmo com seu baixo salário de funcionária da prefeitura. Nessas ações podemos entender que existiam pesos e atos políticos que incidiam na sua prática pedagógica e que por vezes marcavam a identidade de seu trabalho (Brandão, 2002,78). Porém a iniciativa de Dona Tereza não teve muita duração, pois sua salinha de aula não foi reconhecida pelo Estado, e para ter um salário compatível com a demanda de seu trabalho ela precisou passar a dar aulas na cidade, desarticulando mais uma vez, por forças institucionais, o ensino dentro de Mata Cavalo. A partir do momento em que passou a dar aulas na cidade de Livramento, Dona Tereza muda de uma perspectiva de professora quilombola que para a época era inovador, para a de uma professora dentro do sistema formal sem o reconhecimento da diversidade que era Mata Cavalo. A perspectiva de integrar-se ao sistema sempre vem em nome de uma execução de melhorias que propõe “organizar”, “motivar”, mas na verdade tem um objetivo intrínseco de controle tanto individual quanto coletivo (BRANDÃO, 1985c). No caso das aulas de Dona Tereza era mais interessante para o estado transferi-la para a escola na cidade do que melhorar sua condição de trabalho no quilombo. Todavia, mesmo com Dona Tereza parando de dar aulas no quilombo, ela já havia marcado seu nome como professora dentro da comunidade, isso com os anos apresentaria seus frutos. Ser funcionária da prefeitura e depois do estado também conferiria a Dona Tereza um status e uma ligação externa para suas atuações como líder mais tarde, principalmente para o conhecimento das articulações políticas e das regras burocráticas que, durantes anos, vão se


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emaranhando nos fios das moiras dificultando a luta pela terra, pela sua cultura e pelo seu território. A identidade de Dona Tereza também contou muito ao longo das suas falas. Percebemos sua construção como alguém com uma identidade, primeiro como a criança que sai do quilombo, vai estudar fora, volta casada e professora; a primeira professora que era realmente do quilombo, depois, passa a ter uma atividade fora de casa numa instituição de ensino. Talvez ela seja a única mulher do quilombo na sua faixa etária a ter estudado e a poder exercer outra profissão que não a de empregada doméstica. A única dona de sua terra dentro da comunidade e agora parte ativa da diretoria da Associação. De acordo com Hall (2006), a identidade é formada ao longo do tempo, em processos que se avolumam no inconsciente, não é algo inato e está em constante processo de transformação. Para Hall não se deve falar em identidade, mas sim em identificação. Podemos afirmar que os processos pelos quais Dona Tereza passou (ter suas raízes como escrava, ver os despejos, conviver todo o tempo em Mata Cavalo) a levou a ter uma identificação com o quilombo. Identificação que permitiu que ela, apesar de não correr o risco de sofrer despejo, não só encampasse a luta, mas tomasse parte dela como principal liderança. E é nesse território disputado, sofrido e de fios emaranhados que moiras, novamente as moiras, tentam viver. Com a expulsão dos quilombolas durante anos, muitas mulheres só voltaram a Mata Cavalo após a década de 80. Esta volta se deu pela movimentação da resistência que veio se formando com o passar do tempo. E que culminou com a criação de uma Associação para que a luta fosse institucionalizada. Em 9616 entramos de vez nessa luta, foi por causa de um fazendeiro que desmanchou a casa de um primo meu, Quirino, do compadre Pedro, e do tio Cesário. O fazendeiro foi cercando, tomando conta e expulsando eles. Daí um dia eu estava

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Existe um hiato de pesquisas durante a década de 60, 70 e meados de 80 na região do quilombo de Mata Cavalo, ao que tudo indica esse período, assim como as outras décadas, também foi marcada por despejos e violências, mas o período de 30 a 40 foi mais documentado em vista de quando se acirraram as expulsões e houveram as saídas em massas dos quilombolas e, já na década de 90, aumentaram muito mais o número de estudos por conta do final da ditadura, da nova Constituição que garantia o direito aos quilombolas e da própria movimentação das pessoas do quilombo, além de uma mudança do foco de pesquisa em ciências humanas em todo o país.


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trabalhando em Livramento, e fui para pegar o ônibus, nessa época eu já ia de ônibus para a escola, toda vez eu passava na porta desse meu primo, esse dia eu vi as coisas todas amontoadas na porta da casa e fui ver o que era. Ele me falou que tinha sido despejado... Nessa hora chegou o filho dele todo molhado com a roupa toda suja e descalço e disse que tinham descarrilado ele, e passaram a noite inteira atirando ao redor da casa e cedo tinham corrido

atrás dele e tinha chovido ele estava todo

molhado. Ai meu primo disse, olha vamos tomar essa terra, essa terra é nossa, vamos fazer um grupo e vamos tomar, a senhora que nunca saiu daqui, seu pai nunca saiu e vamos começar por ai. E assim ele fez, eu até pensei que era conversa, mas ele juntou o pessoal que morava aqui, e fizemos uma reunião nessa casa, sentamos aqui e levantamos uma associação, junto com os Direitos Humanos, com a CPT e os Conselhos dos Negros, todos nos ajudaram, fizemos um estatuto, registramos em cartório e daí não paramos mais de brigar. O presidente ficou Pedro Guilherme e o vice era o Quirino e eu era a Secretária. O Pedro saiu, e o Quirino também, e eu fiquei como presidente” (Dona Tereza, Mata Cavalo, Maio de 2009).

A luta pelo quilombo se personifica de movimento social a partir do momento em que eles fundam uma associação, registram-na em cartório e são reconhecidos pelas instituições atuantes na área. A indicação do primo de Dona Tereza é feita quando ele assume que é necessário formar um grupo e tomar o que é deles e isso foi muito significativo, pois não se trata apenas de embate físico contra a expulsão individual, mas sim de uma luta por algo maior, pelo grupo. Eles passam aos poucos a reivindicar os seus direitos, a se reconhecerem como pertencentes àquele local como seus legítimos donos. Isso se assemelha com o entendimento de Maria da Glória Gohn sobre o que são os movimentos sociais: Ações sociais coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.). Na atualidade, os principais movimentos sociais atuam por meio de redes sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais, e utilizam-se muito dos novos meios de comunicação e informação (...). A criação e desenvolvimento de novos saberes são produtos dessa comunicabilidade (GOHN, 2007.p.13).

Entre o final da década de 70 e início da de 80 o Brasil ficou marcado por um período caracterizado como de maior efervescência dos movimentos


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sociais devido aos protestos pelo final da ditadura, muitos deles de origem religiosa e cristã, baseados na Teologia da Libertação. Esses movimentos, que levaram milhares de pessoas às ruas, com o tempo foram perdendo a sua força de manifestação, de acordo com algumas pesquisas, porque seu alvo de manifestação era a Ditadura Militar, mas é incontestável a influência deles na Constituição Brasileira de 1988, pelos artigos e garantias democráticas que ela carrega. Já na década de 90 os movimentos sociais assumem uma nova face, e uma nova forma de ação, trabalham através da criação de entidades de grupos que antes eram dispersos e desorganizados projetando em seus participantes o sentimento de pertencimento social, os que eram antes excluídos passam a fazer parte de um tipo de ação ou de um grupo ativo (GOHN, 2007). Esse sentimento de pertencimento foi importante para a criação da Associação de Mata Cavalo (figura 21), pois voltou a unir a comunidade um tanto esfacelada e desagregada pelas expulsões e pelos sentimentos de impunidade e injustiça que carregavam.

Figura 21: Placa de entrada do quilombo, indicando a associação. Arquivo GPEA2008.

Para Bauman (2003), a sociedade da modernidade desde o advento da Revolução Industrial, vem trabalhando através do “processo civilizador”, procurando a liberdade individualizada, e essa liberdade se choca com a segurança que temos quando estamos em grupo, se opõem liberdade individual versus segurança do grupo. Mas, para continuar o processo


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civilizatório é inevitável colocar em risco a segurança para se obter a liberdade. Liberdade que viria pela quebra do trabalho comunitário e das rotinas autosustentáveis, libertando-os também da preguiça inata. Porém, Bauman acrescenta que essa liberdade individual emancipatória na verdade foi para poucos usufruírem, apenas a elite burguesa. O restante da sociedade sofreu com o rearranjo do capital que a desenraizou tirando a sua segurança no mundo em no qual viviam, facilitando assim a causa dos que ele chama de supressores, servindo de massa que seria o pilar que sustentaria a então liberdade. Os homens e mulheres deviam primeiro ser separados da teia de laços comunitários que tolhia seus movimentos, para que pudessem ser mais tarde redispostos como equipes de fábricas. Essa nova disposição era seu destino, e a liberdade de indeterminação não passaria de um breve e transitório estágio entre duas gaiolas de ferro igualmente estreitas. (...) O capitalismo moderno, na expressão célebre de Marx e Engels, „derrete todos os sólidos‟; as comunidades auto-sustentadas e auto-reprodutivas figuravam em lugar de destaque no rol de sólidos a serem liquefeitos. Mas o trabalho de fusão não era um fim em si mesmo: os sólidos eram liquefeitos para que outros sólidos, mais sólidos do que os derretidos, pudessem ser forjados. Destruídos os laços comunitários que a mantinha sem seu lugar, essa maioria viria a ser submetida a uma rotina inteiramente diferente, ostensivamente artificial, sustentada pela coação nua e sem sentido em termos de “dignidade, mérito ou honra” (BAUMAN, op.cit. p.33).

Bauman (2003) baseou seu estudo na nascente sociedade urbana e industrial do século XIX, entretanto esse foi um movimento contínuo na sociedade para além das fábricas. Aproximando esse entendimento da realidade histórica em Mata Cavalo, podemos perceber que o quilombo foi também desagregado enquanto comunidade. Visando à lógica do capitalismo moderno, destruiu-se sua auto-sustentabilidade, além da desvalorização da sua cultura e do seu saber. Saindo daquele território, os quilombolas, deixam de ser uma comunidade e passam a ser apenas indivíduos nas periferias das cidades, no que Bauman (2003) aponta como “gaiola de ferro”, sem dignidade, honra ou mérito. Para lutar pela terra foi preciso reverter o quadro de individualismo e restabelecer os laços com a cultura, tradição, parentesco, identidade e o pertencimento ao ambiente local. Essa noção de pertencimento utilizada aqui é a almejada pela Educação Ambiental, onde a relação entre os seres humanos


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e a natureza passa pelos diversos sentidos, construindo uma identidade do humano com o biológico, com posições humanísticas, referindo-se a ética e à sustentabilidade, transformando valores, comportamentos, atitudes com pessoas capazes de dar um direcionamento a um novo paradigma (MOURÃO, 2005). Além

da

união

da

comunidade,

ultrapassando

os

limites

da

individualidade, foi necessário também que Mata Cavalo estreitasse laços com outras instituições para tornar a luta mais visível e difundida; “sentamos aqui e levantamos uma associação, junto com os Direitos Humanos, com a Comissão Pastoral da Terra-CPT e os Conselhos dos Negros, todos nos ajudaram, fizemos um estatuto, registrou no cartório e daí não paramos mais de brigar” (Dona Tereza). Aqui Dona Tereza demonstra que eles se articularam, procuraram quem poderia ajudar em relação à burocracia existente para entrar na justiça. Os anos 90 conferiram aos movimentos sociais um sociativismo entre grupos com interesses não mais singulares, mas com objetivos plurais que lutam em defesa das culturas locais e contra os efeitos devastadores da globalização. Ter autonomia nesses movimentos não representa mais andar de costas para o estado ou isolado como nos anos 70, mas ter propostas, projetos que possam ser cobertos na forma de políticas públicas e é ter, também pessoal capacitado para as negociações, fóruns e debates que ocorrem em virtude de suas reivindicações (GOHN, 2007). Com a Associação criada e as articulações estabelecidas para tornar a luta ainda mais forte e legítima, faltava apenas impulsionar o movimento de volta e reconquistar os que estavam longe do território de Mata Cavalo. Aqui começamos a delinear mais a atuação efetiva de Dona Tereza na luta do quilombo. Se relembrarmos a narrativa transcrita anteriormente, Dona Tereza havia sido convocada pelo seu primo Pedro para fazer parte da Associação, pois a família dela nunca havia saído do quilombo, toda a sua vida de constituição familiar e de trabalho havia sido dentro do quilombo. Era inclusive uma das poucas pessoas que tinham estabilidade no lugar, ela e o pai compraram as terras em que moravam na comunidade no período em que estas terras estavam sendo contestadas e expropriadas pelos fazendeiros, não correndo o risco de ser despejada. A sua casa que já havia no passado sido a


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escola da comunidade, agora era uma coluna forte que poderia então servir de apoio à Associação, como se fosse uma parte do território já ganho, um espaço que poderia ser compartilhado com os demais ou, no sentido colocado por Certeau (2008), o espaço descrito como “lugar praticado”, que é o espaço construído pelos significados e acontecimentos. Devemos apenas lembrar que Dona Tereza já havia morado fora do quilombo, até mesmo se casado fora do quilombo com um não quilombola, mas ela era considerada como se nunca tivesse saído, pois a permanência no território é exigência básica para a posse da terra, dificilmente eles assumem que não moravam no quilombo. Nessa narrativa é interessante observar que ela faz inferência também à importância de “seu” Antônio Mulato, mostrando uma hierarquia familiar no quilombo definida pela permanência no território. São os realmente estabelecidos no território, nos aproximando assim de Elias (2000). Para ele os estabelecidos de Winston Parva são as famílias antigas. Para nossa pesquisa, Dona Tereza nos mostra que os estabelecidos do quilombo de Mata Cavalo são aqueles que nunca foram embora. São estes que formam as relações de poder em grupos já situados de longa data no quilombo sobre os que ainda deveriam chegar e se estabelecer. E mais, eram reconhecidos pela comunidade. Ademais, numa rede de velhas famílias, as pessoas geralmente sabem quem são em termos sociais. Em última instância, é isso que significa o termo „velhas‟ quando referido às velhas famílias; significa famílias conhecidas em sua localidade e que se conhecem há várias gerações; significa que quem pertence a uma família antiga não apenas têm pais, avós ou bisavós como todo mundo, mas que seus pais, avós e bisavós são conhecidas em sua comunidade, em seu meio social, e são geralmente conhecidos como pessoas de bem, que aderem ao código social aceito desse meio (ELIAS, 2000.p.171).

Dona Tereza quis mostrar em sua narrativa a importância de sua família para a formação da associação e a sua participação junto à presidência. Já a postos na Associação, faltava buscar e, principalmente, convencer os outros herdeiros da comunidade quilombola que haviam sido escorraçados de lá a voltarem. Essa missão ficou por conta de Dona Tereza, que procurou localizar parentes, conhecidos e antigos vizinhos.


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“Tinha gente em Poconé, tinha gente em São Vicente, tinha gente lá no Capão de Negro (Várzea Grande), juntamos esse povo e vieram para cá”. (DonaTereza, Mata Cavalo, maio 2009).

Podemos acrescentar as narrativas de outras mulheres para explicitar como foi a volta das pessoas ao quilombo: “Nós não tínhamos entendimento que nós éramos quilombola, ai através de Dona Tereza ela falou que a gente era bem próxima da terra, que nosso tronco era da origem do quilombo, que era para nós lutarmos porque era nosso... Isso foi uma benção de Deus, a gente ficava só enfiada naquele Cuiabá... Nós não tínhamos conhecimento da terra, nem dela mesmo (elas não conheciam DonaTereza). Mas ela procurou mamãe que é prima-irmã dela, ai logo que ela falou, minha irmã mudou para cá, então eu falei vamos todo mundo lutar juntos, ai veio minha irmã Paula, ai minha irmã Cecília, ai eu e a Lúcia. Voltamos ao lugar em que nascemos (Dona Guilhermina, agosto, 2009).

Foi preciso se ver como quilombola para, por meio dessa nova identidade de grupo, retornar às suas origens próximas ao tronco que formou o quilombo, significando ser descendente direto dos primeiros escravos, tendo um referencial, uma nova importância a partir da qual elas reconstroem seu orgulho. Para elas a volta ao quilombo e a luta representam novas identidades calcadas no passado. Elas narram que voltaram ao lugar no qual nasceram. Mesmo que muitas delas não tenham nascido no quilombo, pois os pais já haviam saído de lá na década de 40, elas o adotaram como o lugar de nascimento. O nascimento no quilombo passa a ser o símbolo da luta, onde elas nasceram não apenas mulheres, mas quilombolas, pertencentes a um grupo, e a representação desse nascimento dá cumplicidade com o ambiente do quilombo, nascimento como identidade e nascimento como Moiras. Para HAESBAERT (2009), essa identidade do grupo e todos os símbolos que as sustentam, como ter nascido em Mata Cavalo, por exemplo, são construídos através da própria luta pela terra. Ancorando-nos em Alfredo Wagner de Almeida (2004) podemos entender a mobilização que ocorre no quilombo de Mata Cavalo como “unidade de Mobilização” (op.cit., p.03). Pois ela não está ligando apenas a história local,


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mas incorpora a identidade coletiva que se redefine como um critério político organizativo. Uma unidade social (...) por seus desígnios peculiares, o acesso aos recursos naturais para o exercícios de atividades produtivas, se dá não apenas através das tradicionais estruturas intermediárias do grupo étnico, dos grupos de parentes, da família, do povoado ou da aldeia, mas também por um certo grau de coesão e solidariedade obtido face a antagonistas e em situações de extrema adversidade e de conflito que reforçam politicamente as redes de solidariedade (ALMEIDA, 2004,p.03).

Em suas táticas de luta se encontram também diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas como o poder, para Almeida (2004) essas unidades de Mobilização não podem ser apenas interpretadas como simples resposta a problemas localizados, mas sim como alteradoras de padrões tradicionais de decisões políticas com o centro do poder, que anteriormente eram espaços barganhados apenas pelos grandes proprietários de terras (op.cit. p.21). Se a luta externa contra os fazendeiros ganhava um corpo e uma dimensão mais ampla com a criação da associação, internamente a associação também apresentava suas próprias disputas. E é por causa de uma dessas disputas que Dona Tereza acaba sendo a presidenta vitalícia do quilombo. “O Pedro Guilherme que foi o presidente era genro do seu Cezário... O povo tirou ele porque ele estava fazendo muito safadeza com tudo mundo, ele mentia muito, ele não corria atrás, e ele brigava muito com alguns... Toda vez que fazia uma reunião ele exigia uma fotocópia de todo mundo e ele tinha um motorista, o motorista descobriu que ele nem usava as fotocópias. Ai tiraram ele é colocaram a DonaTereza, que tá até hoje” (Dona Branca, Mata Cavalo, setembro, 2009).

Pedro, meu cunhado, foi o primeiro presidente. Pedro, Quirino e minha irmã foram eles que deram parte dos fazendeiros daqui, e ai a Justiça Federal disse que precisava de uma associação. Mas quando ele pegava o dinheiro e não fazia o que tinha para fazer, ele pegou o dinheiro da associação e comprou o carro para ficar a disposição do povo, ai quando ele comprou o carro foi só uns dois meses que ele correu com o povo que tinha que ir em Cuiabá no médico, e com os aposentados que estavam aqui. Chegou uma hora que ela falava para o pessoal da associação :Ah vocês tem que colocar gasolina no carro, ai todo mundo falou Pedro nos pagamos associação para que? Nós ajudamos você pagar o carro para você correr com a gente


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quando precisar, só que toda vez nós temos que pagar você. Ai o povo revoltou contra ele... Pediram uma eleição, que queria que fosse tia Tereza, ai fizemos reunião com ela e fomos ao Tribunal de Justiça, e pedimos que queríamos tirar ele. Ele não quis entregar o livro de reunião para tia Tereza, lá no Tribunal a mulher abriu outro livro e disse que “esse vai ficar sob a responsabilidade de DonaTereza.” (Dona Estivina.Mata Cavalo, novembro,2009).

A exigência da saída por não estar cumprindo o que deveria ser o papel de um presidente da associação quilombola demonstra que ainda existia por parte de alguns as velhas amarras do autoritarismo e do uso do poder apenas em proveito próprio. Nem todos estavam imbuídos do sentido de pertencimento ou da identidade de grupo, conscientes de qual lugar falavam e de qual lugar era interpelado. Com suas atitudes de não respeito aos outros quilombolas o antigo presidente da associação entra no velho esquema de opressão, aproveitando-se das situações nas quais alguns são desfavorecidos. Representado assim, de acordo com Paulo Freire (2005), o oprimido que ainda hospeda o opressor, vive uma dualidade do que é parecer com o opressor. E não há ainda a superação concreta da situação em que é necessária sua libertação. “A única libertação que ocorre é apenas a do indivíduo se opondo aos interesses da comunidade. Para eles o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores dos outros” (FREIRE, 2005. p.34). A partir da saída de Pedro Guilherme na presidência, Dona Tereza é escolhida pelos demais como a pessoa que deveria ser a nova presidenta. A justificativa para a sua escolha está fundamentada no seu envolvimento responsável com a causa, embora o início de seu poder e liderança tenha sido de forma casual. Ela passa então a exercer o poder tanto de fato como de direito. A passagem da presidência de Pedro Guilherme para as mãos de Dona Tereza marca um período de maior atividade de resistência no quilombo. É o período em que as lutas passam a ter o reconhecimento da justiça e o apoio das instâncias federais. Outra pessoa que ganha destaque na presidência do quilombo é a neta de Dona Tereza, Gonçalina, que começa a exercer a função de secretária e tesoureira e, junto com a avó passa a organizar e responder pela associação. Gonçalina, como a avó, é professora, atualmente, uma das responsáveis pela escola existente no quilombo.


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“Desde pequena eu sempre acompanhei a minha avó na escola, em outros lugares. Aí na década de 90 ela começou a ficar a frente nessa questão pelo resgate das terras do quilombo Mata Cavalo, na época precisava de uma secretária e eu já tinha terminado meu segundo grau, daí eu aceitei o cargo, comecei a andar fui conhecendo, fui vendo a necessidade que tinha de lutar pelas terras e acompanhar o pessoal (Gonçalina. Mata Cavalo, junho de 2009).

A confiança depositada pelos quilombolas, tanto em Dona Tereza quanto em Gonçalina, não é à toa e exige algo em troca. Veremos aqui as perspectivas das mulheres entrevistadas, como se deu isso, e como elas se posicionam frente a isso.

5.3. Os fios do Poder Se Pedro Guilherme fora destituído do cargo por não ter consideração, cuidado e responsabilidade com os outros, isso era algo que Dona Tereza vinha exercendo desde cedo através de sua função de professora do quilombo. Formou-se em volta dela uma aura de “cuidadora” da comunidade. “A tia Tereza com a Gonçalina sempre estiveram no nosso lado, uma hora da noite os fazendeiros vinham, ela reunia o povo que não sabia da onde saia para ajudar aquela família que ia ser desabrigada. Nós chegamos a ficar três meses acampados na beira de estrada, Tereza chegava com comida toda semana, não deixava a gente. Se uma criança ficava doente ela chegava, a gente avisava, ela apanhava a gente e levava no hospital, se alguém morria, ela ajudava a conseguir o caixão. Se chegasse filtro pro povo e a gente não estava lá ela já separava o da gente e deixava com o nome pregado. O finado tio Dito [marido de Dona Tereza] já falava, Tereza já mora mais com o povo de Mata Cavalo do que comigo” (Dona Estivina. Mata Cavalo, novembro de 2009).

Com esse cuidado para com os outros as duas, avó e neta, estabelecem uma atitude ética e moral de reconhecimento do outro como seu próximo, pois


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o bem estar deles está ligado às suas atitudes e seus cuidados. BAUMAN, 2008, todavia, estabelece também uma relação de dependência, as mulheres do quilombo são as necessitadas e elas na presidência são as provedoras. Essas relações de dependência em situações extremas e até as do dia a dia se configuram relações de poderes: Dona Tereza é a presidenta e ela tem o cuidado e a preocupação necessários para com as outras pessoas, as mulheres enxergam nela alguém em quem podem confiar,

por isso a

respeitam enquanto presidenta, e dão a ela seu voto de apoio. O Poder não é algo que está estanque na presidência, mas é algo que vai se construindo com as atitudes de Dona Tereza frente à aprovação das outras mulheres. É uma troca entre a preocupação de Dona Tereza e a aprovação das pessoas. Isso vem ao encontro do pensamento de Foucault (2009) que, em seus estudos sobre o poder, mostra que a relação de poder acontece de forma não imobilizada; o poder em seu entendimento não pertence a alguém ou a uma situação, mas na verdade permeia o exercício da ação dos diferentes sujeitos. O poder, na concepção de Foucault, também não é apenas exercido de cima para baixo e nem é somente repressivo e violento, mas está inserido na rede social. O sujeito se constitui nas relações de poder e não é independente delas. O poder se trata de uma prática social sendo construído historicamente. No seu exercício de poder Dona Tereza não pode apenas ser uma presidenta que cuida da parte política do quilombo, ela também precisa encarnar o ser ético e moral de qual fala Bauman (2008), e se preocupar com as pessoas, pois só lhe é concedido o direito do poder se ela responder aos anseios da comunidade, e esses anseios vão muito além de fazer reuniões ou organizar uma associação. Quando perguntado para as entrevistadas quais eram as funções de um presidente de quilombo as respostas foram as mais variadas, saíram de funções estritamente burocráticas até funções de cunho particular.

"São elas que correm atrás das coisas, vão para Brasília, brigam pela gente, e aqui é difícil arranjar as coisas, arranjar lona para o barraco, bomba para o poço, elas arranjam tudo. Às vezes elas arranjam também doação de roupas” (Dona Branca).


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“Ela tem que fazer várias coisas, correr para os órgãos, contar o que foi falado, e qualquer coisa a gente corre nela. Ela resolve, por exemplo, em alimento, a gente fala “fulano chegou, onde ele pode ficar?”Tem que ir atrás dela e ver se pode ajudar” (Dona Preta). “Se as pessoas ficam doentes correm aqui na minha mãe, se faltava um sal corriam aqui na minha mãe, ela ajudou a aposentar um monte de gente, tanto que os fazendeiros acham que tudo é culpa da minha mãe” ( Ana Maria, filha de Dona Tereza, Mata Cavalo, outubro de 2009).

Dona Tereza foi escolhida como líder do quilombo, um cargo de poder, e segundo Foucault (2009.p.217) “o poder não se exerce sem que custe alguma coisa”, e para que seu poder fosse exercido no quilombo Dona Tereza teve que desdobrar-se em sua solidariedade em relação à comunidade. Foi necessário que ela desenvolvesse o perfil de conselheira e líder acolhedora herdado das mulheres escravas que eu procurava nas narrativas e que não encontrei aberta ou explicitamente, mas escondido nas ações diárias da liderança e que representam a sobrevivência simbólica desse mundo herdado com a atualização da tradição afro-brasileira de poder e liderança (Werneck, 2010, p.10). Gonçalina concorda que o que Dona Tereza e ela fazem, ultrapassam os limites da função da uma presidência comum. “O foco maior da Associação é o da tomada da terra, que sem as terras a gente não é nada além de tratar dos assuntos que tem a ver com isso. Porém têm outras funções, até apaziguar as brigas de vizinho, o pessoal vê a presidente como a pessoa que está para resolver qualquer questão do quilombo até as pessoais, mas como todo mundo é parente tem esse relacionamento mais íntimo a gente faz até isso” (Gonçalina, Mata Cavalo, junho, 2009).

Ao ter a disponibilidade de tratar das questões pessoais porque são todos parentes, Gonçalina mostra outro ponto de identidade entre o grupo. Acreditam que são todos da mesma família e em nome desse parentesco devem favores uns aos outros; nesse momento não se questiona qual o grau de parentesco, e nem mesmo se ele existe. O que importa é o raciocínio: está


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no quilombo é quilombola, se é quilombola é parente, se é parente devemos ajudar. Sobre esse assunto usaremos as considerações de Augé (2003): o que devemos entender aqui é que o termo parente se entende nesse contexto como o termo família extensa, da mesma forma que encontramos em algumas regiões da África. Essa tipificação de família é resultante da extensão de laços de casamentos, que podem ser transformados também em grupos de linhagens ou domésticos. Entre o grupo doméstico não necessariamente precisa existir um laço de parentesco, pois ele pode ser formado pela reunião de várias famílias. Assim, raramente uma família extensa forma um grupo homogêneo. Mas o que importa são as relações sociais que elas estabelecem como, por exemplo, as relações de solidariedade em Mata Cavalo. Sobre essa solidariedade familiar DEMO (2002) afirma que é mais fácil sermos cooperativos e solidários com as pessoas da nossa família, não no sentido nepotista de privilégios, mas da relação de confiabilidade e responsabilidade por eles. Para Demo, a família, em qualquer relação, sempre vem antes, e ocupa os primeiros postos e lugares. Para os quilombolas de Mata Cavalo, o termo parente tem a equivalência de parentela, o que remete aos habitantes antigos das sesmarias herdadas, expressa o sentido de tradição, pertencimento por meio da memória e relações de afinidade de cunho simbólico, compadrio e consanguinidade (SIMIONE, 2008). Cuidar da família de forma incondicional, tratar de seus assuntos íntimos, representa uma tática de preservação e exercício do poder. Conhecer o que, dentro da individualidade e da intimidade, incomoda a cada quilombola é saber como lidar com eles, é conhecer seus segredos e dificuldades, além de passar o relacionamento de presidente e associado para o nível mais afetivo, que é um laço mais fácil de aceitar e mais difícil de romper por causa das amarras emocionais que acabam existindo. Quando procuram Dona Tereza, para resolver os problemas pessoais, fica subentendida a necessidade de atenção de todo indivíduo, a necessidade que as pessoas têm de serem cuidadas e aconselhadas, ter alguém com mais experiência e com mais conhecimento que se importe com os seus problemas,


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que o encaminhe bem em seus propósitos. Sobre isso Foucault também fez suas observações: O cuidado de si implica também a relação com outro, uma vez que, para cuidar bem de si, é preciso ouvir as lições de um mestre. Precisa-se de um guia, de um conselheiro, de um amigo, de alguém que lhe diga a verdade. “Assim, o problema das relações com os outros está presente ao longo desse desenvolvimento do cuidado de si” (FOUCAULT, 2000.p.271).

Dona Tereza exerce o poder também aconselhando nas tomadas de decisões pessoais dos quilombolas. A função da presidência, no caso de Mata Caval, tem essa faceta pessoal que, caso não seja satisfeita, o pleno mandato de presidente não ocorre. As mulheres entrevistadas apontam ainda outra vantagem em ter uma presidenta: a facilidade que elas sentem em conseguir dialogar com ela. Algumas se sentiriam constrangidas em falar dos assuntos pessoais, em pedir os favores comuns, caso fosse um homem. Para elas homens são mais difíceis de conversar quase não dão atenção para os problemas cotidianos. Isso demonstra a visão sexista existente entre os quilombolas, onde o poder e a liderança masculina estão vinculados ao poder patriarcal, que não pode ser contestado ou importunado com coisas miúdas, corriqueiras. “O poder nessa visão patriarcal é exemplo de dominação, dominação não serve para ser partilhada ou conversada” (MURARO, 2003.p.57). Para Leonardo Boff (2004), o poder é uma característica fundamental do princípio masculino (não categoria masculino/sujeito

biológico),

mas

quando

desmedida

gera

dominação

produzindo uma grande influência sobre a sociedade na forma de machismo e patriarcalismo, reduzindo sua humanidade na medida em que se reduz seu princípio feminino ou sua dimensão anima. Dona Tereza representa a anima, ou o princípio feminino, que segundo Boff (op.cit. p.83) “consiste na capacidade de viver o complexo, de elaborar sínteses, de cultivar o encantamento do universo, de cuidar da vida, de venerar o mistério do mundo”. Entretanto, mesmo com todo o entendimento e o apreço dispensados a Dona Tereza como em qualquer relacionamento aparecem as rusgas entre uma fala e outra. Em algumas narrativas, dona Tereza foi apontada tentando privilegiar os filhos na hora da divisão das terras, concedendo-lhes as melhores


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porções das que estão sendo desapropriadas, as que já têm benfeitorias levantadas e onde as terras são mais férteis. “Aqui é a briga pela sede, quem não quer a sede?” (Ivone. Mata Cavalo, julho de 2009).

Para Boaventura Santos (2009), o poder sempre é uma relação que incita uma troca desigual, que abrange as virtudes da ação sobre a vida, os projetos sociais e pessoais. Para medir essa desigualdade proveniente das relações de poder é importante entender quais os elos que essa relação cria. Estes podem nem sempre ser desiguais, porém, muitas vezes nas trocas desiguais, ilusoriamente acabam assumindo uma máscara de igualdade. Entendemos que quando as mulheres revelam que Dona Tereza reserva as terras melhores para os próprios filhos, demonstra uma relação de poder que gerou uma troca desigual, pois no projeto social do quilombo ninguém deveria ser privilegiado individualmente, todos deveriam ganhar terras igualmente. Então o que faz com que essas mulheres, mesmo percebendo esse favorecimento, continuem acreditando em Dona Tereza como presidenta? Podemos interpretar o poder que Dona Tereza exerce à luz das reflexões feitas por Max Weber. Para Weber (1987) poder é a possibilidade de ter determinada ordem ou resolução obedecida mesmo que com certa resistência. Segundo Weber tantos nos governados como nos governantes o poder se assenta em condições e estruturas sociológicas que ele denomina de “razões de legitimidade do poder” (WEBER, 1987. p.102), que podem ser de três tipos: o poder legal, o poder tradicional e o poder carismático. O poder legal é o poder burocrático, estatutário, imposto pelas Leis, já o poder tradicional é o tipo de poder contido da dominação senhorial na fé, no costume de seguir o senhor, no patriarcalismo. Mas o que mais nos importa para essa pesquisa talvez seja o que Weber definiu como “Poder Carismático” (op.cit. p.134). Para ele o poder carismático vem da dedicação ou de “dons do próprio governante”. Dominação carismática em virtude de devoção afetiva às pessoas do senhor e aos seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a faculdades mágicas, revelações ou heroísmos, poder intelectual ou de oratória. O sempre novo, extra cotidiano, o inaudito e o arrebatamento emotivo que provocam constituem aqui a fonte de devoção pessoal. Seus tipos mais puros são a dominação do profeta, do herói guerreiro e do grande demagogo. A associação


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dominante é de caráter comunitário, na comunidade ou no séquito. O tipo que manda é o líder ( WEBER, 1987,p.135).

Quando fazemos a pergunta: “Então o que faz com que essas mulheres, mesmo percebendo esse favorecimento, continuem acreditando em Dona Tereza como presidenta?” A partir de Weber poderemos compreender que a liderança de Dona Tereza tem relação com o poder carismático, pois ele não estava imposto por Lei ou descendia de uma linhagem antiga, foi formando ao longo dos anos, pelo seu dom pessoal do discurso, seu heroísmo frente à formação da sala de aula e sua atuação frente à associação. As Leis ou a tradição ainda existem na administração do líder carismático, mas segundo Weber (1987), esses elementos são subjugados pelas chamadas revelações momentâneas instituídas pelo irracional, que seria: “Está escrito, porém eu lhes digo...” (op.cit. p.135). Assim podemos entender que as terras deveriam ser divididas igualmente, mas a palavra da líder tem mais força do que a Lei, e seu carisma, seu poder, seu heroísmo pessoal que são reconhecidos pela comunidade de Mata Cavalo, embora sejam aceitos, são questionados. Propositadamente ou não, já que não está no mérito de julgamento, há certa dependência simbólica entre essas mulheres e Dona Tereza. Para além do mundo das terras e toda luta de território, as identidades partilhadas conjugam igualdades e pertencimentos. Dona Tereza tornou-se porta-voz de desejos coletivos (outro), mas também de confidências, dores pessoais ou labirintos cotidianos (eu) que se interpretam e pulsam latentes no quilombo (mundo). Existem as narrativas que apresentaram disputas de poder e influência dentro da comunidade. Num dos episódios uma das mulheres conta que também tem acesso e transita sem problemas pelas mesmas instâncias de poder público que Dona Tereza: “Eu participo em reunião no Ministério Público, por umas tábuas que nós pedimos para o Dr. Mauro Lúcio17, ele me chama de Paula, abraça a gente. Nós vamos direto 17

Mário Lúcio Avelar- Procurador Federal de Mato Grosso que tem tido uma grande atuação em relação aos interesses das comunidades quilombolas e das comunidades indígenas, bem como em favor do meio ambiente.


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nele. O Ministério Público deu sempre o maior apoio para gente quando fomos despejados. Nós conhecemos ele uma vez que a gente ia ser despejados e dona Tereza não estava aqui. Ela estava viajando e nós precisávamos de alguém que não deixassem judiar muito da gente, e ele ajudou, por isso eu vou atrás deles” (Paulina. Mata Cavalo, setembro, 2009).

Ao falar que o Promotor Público Federal além de recebê-la em sua sala ainda a chama de um apelido, “Paula”, pois seu nome é Paulina, ela demonstra que existe uma amizade e uma cumplicidade com a autoridade que cuida do caso das terras, e que ela pode andar sozinha sem uma líder, apesar de quando questionada, ela ainda achar que Dona Tereza tem que continuar na liderança do quilombo. Paulina também demonstra liberdade para passar pela presidenta e ir resolver os seus problemas sem ajuda de ninguém, apesar de que eles só serão resolvidos junto com os da comunidade e por intermédio da presidência, não podendo Paulina sair, assim, da rede de relações de poder. Recorremo-nos mais uma vez a Foucault, e vemos que suas afirmações sobre o poder demonstram que a resistência de Paulina e a liberdade de ir até o promotor é um característica essencial para que o poder de Dona Tereza possa existir, pois, para Foucault, o verdadeiro poder só poderá ser exercido sobre sujeitos livres e com capacidade para agir. O poder é exercido somente sobre sujeitos livres e apenas enquanto são livres. Por isto, nós nos referimos a sujeitos individuais ou coletivos que são encarados sob um leque de possibilidades no qual inúmeros modos de agir, inúmeras reações e comportamentos observados podem ser obtidos. Onde os fatores determinantes saturam o todo não há relação de poder; escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (Foucault, 2009.p.).

O quilombo sem dúvida representa esse lócus de liberdade, que tem sua força de resistência no poder de Dona Tereza, porém faz mais força contra o poder vindo de fora. As mulheres, ao voltarem ao quilombo, aprenderam a lutar juntas, a sonhar juntas e a se enxergarem como membros atuantes da comunidade. Elas entendem que suas vidas mudaram quando retornaram e de uma forma que elas não esperavam. Voltaram a estudar, passaram a fazer parte de uma associação, participam de passeatas, são conhecidas na comunidade. Partilham histórias e feitos, tais como enfrentar os fazendeiros ou enfrentar a polícia. Algumas delas nos levam a entender como a vida vivida na


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comunidade de Mata Cavalo encheu de coragem, esperança e auto- estima quem desde criança teve uma vida dura e sofrida. “Eles xingavam de negra sem vergonha e de palavrão feio que esse eu só posso falar escrito...eu já tomei muito dos peões com cachorro com cavalo, mas é como a Dona Tereza fala para gente, não vamos virar as costas para esses fazendeiros, sem dizer a mesma coisa que eles. E assim a gente faz enfrenta eles” (Dona Branca).

Ao responder na mesma medida, mesmo que com palavras feias, ou com gritos, elas buscam seus destinos, agora elas falam a favor de sua cidadania, pois a primeira coisa que a injustiça e a dominação retiram do povo é seu poder de fala e contestação, “na nossa sociedade o exercício da palavra se transformou no direito do poder” (BRANDÃO, 1985c.p.10). O mundo delas se transformou a partir da volta para o quilombo; puderam ver outra realidade, vislumbrar outro futuro a partir de um passado de sofrimento. O contexto desse novo mundo serve para abrir as portas para o texto escrito, há muito tempo esperado. Muitas mulheres ao voltarem a morar no quilombo começaram a frequentar a educação de adultos. “Eu estou na terceira série, mas graças a Deus já sei ler e escrever, e esse fato de estudar foi como se eu tivesse acabado de nascer na minha vida, pois eu jamais sabia ler uma placa. Quantas vezes eu entrei em lugar que não podia, uma vez eu trabalhava no banco e entrei numa sala que não podia, meu chefe era bom ele me explicou que ali eu não podia. Hoje em dia eu me sinto honrada porque eu sei ler, ainda soletro mais eu sei ler. Isso porque eu estou aqui em Mato Cavalo, lá em Cuiabá eu lutei para estudar, não consegui não teve estudo para mim, eu morava rodeada de escola, O Panarotto, Nilton Alfredo, João Vitorino e todas essas escolas nunca tinha aula para nós. Então ficou difícil, mas eu toda vida quis estudar, quando falaram que aqui tinha escola, eu fui correndo me matricular, não falto aula, gosto da professora Eliane, que é a nora de DonaTereza” (Dona Guilermina, novembro 2009).


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Econômica ou profissionalmente, o fato de ser alfabetizada pouca coisa vai mudar para essas mulheres, mas melhora a vida em outros aspectos, como podemos observar na narrativa de Dona Guilhermina (figura 22).

Figura 22: As irmãs Paulina e Guilhermina moradoras do quilombo e estudantes do EJA. Foto: Rosana Manfrinate, pesquisa de campo 2009

Edson Caetano (2001) nos apresenta dados similares em sua pesquisa sobre os aspectos da alfabetização dos trabalhadores braçais da construção civil em São Paulo. Isso não propiciou ascensão profissional, ou melhoria salarial, ou mesmo a possibilidade de um dia deixar de trabalhar como pedreiro, mas representou pelo menos a realidade de poder, sozinho, preencher uma ficha em outra empreiteira elevando assim a auto-estima ao poder ler um letreiro, pegar ônibus, metrô, ler jornais ou revistas. Por último, mas de fundamental importância, é a contribuição da escolarização no sentido de desenvolver a criticidade e a cidadania dos trabalhadores, municiando-os com conhecimentos que lhes possibilitem compreender o mundo em que vivem, formularem críticas e possivelmente participarem de maneira ativa na construção de uma sociedade mais justa e solidária (CAETANO, 2001.p.196).

O poder de falar e se fazer ouvir, ser incentivada a não abaixar a cabeça, aprender a ler e escrever dentro do próprio quilombo com suas companheiras de luta, decifrar os códigos do mundo escrito, representa se educar no significado mais pleno que a educação pode ter: o de alcançar a


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cidadania. Compartilham o aprendizado da luta, e juntas criam a fama de mulheres fortes que enfrentam os fazendeiros. Fala-se muito dessas mulheres fortes do quilombo por causa das mulheres que enfrentam os fazendeiros, porém isso é usado apenas como uma tática, pois, segundo elas, quando os homens se envolvem nos embates os confrontos acabam em brigas físicas, porém quando são elas que se envolvem, acabam saindo apenas ofensas verbais. Com isso elas foram ganhando a frente de batalha, tomando gosto pela lutas e hoje elas são a maioria na liderança das associações menores em Mata Cavalo. No quilombo também ocorre o fenômeno de emancipação feminina comum no mundo, o que ajuda a dar mais um lugar de destaque para as mulheres. No quilombo o número de mulheres que estuda é bem superior ao número de homens, mesmo o dos mais jovens. Muitos são os motivos para que isso ocorra, alguns deles estão marcados pelo movimento feminista, que desde a década de 60 apresenta a face das mulheres insatisfeitas em apenas serem esposas e mães, além das acusações feitas às mulheres sem profissões. Com a valorização do mercado de trabalho para a mulher, se valorizou também o ensino e a formação dessas mulheres. Além do que, existem funções da indústria pesada que ainda não abrem as portas para o trabalho feminino, o que faz necessário que as mulheres tenham que competir por um número limitado de vagas no panorama de trabalho, importando uma maior formação acadêmica (Lipovetsky, 2000.218/219). De acordo com o IBGE/CENSO 2000, a participação das mulheres no mercado de trabalho e de 51,31%. Sendo que a escolaridade média das mulheres é de 7,3 anos e a dos homens de 6,3 anos (IBGE, 2000). As mulheres hoje, segundo Albarnoz (2008), são mais instruídas do que há um século, em comparação com os homens, e à medida que se instruem e se politizam as mulheres passam a reivindicar o direito ao trabalho. “O trabalho para a mulher tem sido uma forma de realização pessoal e promoção social” (ALBARNOZ. op.cit.18). Existe outro fenômeno atrelado a esse da emancipação feminina no quilombo, mas que o difere de outros movimentos sociais que reivindicam a posse da terra. Em Mata Cavalo, a condição para se receber terra é ser


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descendente dos antigos escravos, não importa se homem ou mulher. Em outros movimentos na América Latina, mesmo nos países que lutaram em guerrilhas pela reforma agrária, a posse não era efetivada apenas para a mulher; ela teria que ter um companheiro, e ele sim teria a posse da terra, para juntos cultivarem (DEERE e LEON, 2002). No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com grande expressão nacional no campo da reforma agrária, ainda tem amarras internas que dificultam a igualdade de gênero tanto na liderança do movimento, quanto na hora da distribuição da terra. Isso porque esses movimentos específicos colocam a produção agrícola, a agricultura familiar, como o principal objetivo de se obter terra, ou seja, o sustento, a subsistência das pessoas, e ainda persiste nas mentalidades, mesmo de quem reivindica igualdade de direitos, a visão do homem provedor, da masculinização do trabalho. A mulher representa uma auxiliar, mesmo fazendo esforço igual (GOHN, 2007). A mulher, em Mata Cavalo, sem dúvida experimenta um nível de prestígio e reconhecimento que muitas vezes não encontramos em outros lugares. Dona Tereza representa o poder, mas não lidera sozinha, ela precisa do apoio das outros quilombolas que a acompanham nessa jornada. Juntas elas constroem suas identidades em seu espaço reconquistado, o espaço da sua cultura, da sua história e do seu passado. A terra não serve apenas para ser a ferramenta de subsistência, mas serve de território para se formarem como mulheres negras e quilombolas, que encontraram o seu lugar de verdade. E aqui apresento uma narrativa de Dona Tereza que ilustra bem o sentimento de pertencer à história e ao território de Mata Cavalo. Durante a entrevista, quando ela disse que havia comprado as terras dela na década de 60, eu não resisti e perguntei: “Já que a senhora tinha dinheiro porque não comprar em outro lugar, porque escolher aqui que só tinha briga?” Ela respondeu:

Porque eu nasci aqui, quando eu vou lá para baixo, a tardizinha, lá onde fica a associação, era lá que eu morava, eu até posso ver as meninas que brincavam comigo lá, o rio que a gente banhava, meu avó tinha pé de laranja, e a gente ia


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chupar só que ele não gostava que cortasse a laranja ao meio se não o pé não dava mais... Eu aprendi a ler aqui... vivi sempre aqui, e aqui ainda tem o sangue e o sofrimento dos escravos...”

Nesse fiar e enrolar dos novelos das Moiras compreendemos, através de suas próprias narrativas, de seus próprios teares, de que forma se estabelecem as relações de poder no quilombo, percebemos também como é importante a presença de Dona Tereza, por meio de sua memória histórica, seu aconselhamento e a sua visão do território. E de que forma esse território é percebido e cuidado por essas moiras. Dona Tereza narra que: “Quando eu era criança usava enxada da para limpar o terreno as cercas eram de pau, não tinha cerca de arame, hoje eles derrubam com máquina. Antes era só corgo, Brumado, Mata Cavalo e Estiva, hoje eles fazem represa e o peixe não consegue subir, acabou o rio. O garimpo revirou todas as terras, antes a gente olhava para fora [aponta o fundo do próprio quintal] e era só babaçu, agora a gente olha e consegue até enxergar a luz das outras casas lá longe, destruíram todo o babaçu (Dona Tereza, novembro 2010).

Em sua percepção Dona Tereza mostra as mudanças ambientais que tem ocorrido no quilombo durante a passagem dos anos com pesar, apontando o que a incomoda. Hoeffel e Fadini (2007) caracterizam a percepção ambiental como uma atividade e um processo que: envolve organismos e ambiente, e que é influenciada pelos órgãos dos sentidos – „percepção como sensação‟, e por concepções mentais – „percepções como cognição‟. Desta forma, ideias sobre o ambiente envolvem tanto resposta e reações a impressões, estímulos e sentimentos mediados pelos sentidos, quando processos mentais relacionados com experiências individuais, associações conceituais e condicionamentos culturais. Deste modo, as diferentes maneiras como os seres humanos compreendem e valorizam a natureza estão profundamente influenciadas por seus contextos culturais e as formas de compreender a natureza e as relações estabelecidas com o mundo não humano diferem amplamente entre culturas e momentos históricos e conceitos de natureza de forma radicalmente divergente (HOEFFEL & FADINI, 2007.p.255).

Partindo desta reflexão acima, entendemos que Dona Tereza, narra o ambiente de acordo com seu contexto histórico, e dentro de suas relações estabelecidas e suas disputas com os fazendeiros. Ela aponta lembranças boas em oposição a realidades presentes que são ruins, como o passado dos quilombolas que limpavam o terreno com a inchada e, consequentemente, não


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desmatavam muito, os riachos que ela conhecia e a floresta de babaçu. Já a realidade presente que ela descreve é ruim como a cerca de arame, as represas, o garimpo, o desmatamento com máquinas. Ela sutilmente se refere aos fazendeiros, pois quando ela diz “agora eles derrubam com máquinas” significa que só eles têm condições econômicas de manter tratores, motoserra, garimpos e fazer represas. Dona Tereza apresenta ainda a percepção ambiental da natureza misturada com o Sagrado. Ela narra como antigamente se faziam orações para fazer chover. “Nós íamos rezar nos campos em setembro quando não tinha chuva, onde os homens estavam trabalhando, íamos com o santo, e cantávamos uma música de Nossa Senhora.” Topei com a Senhora na Beira do Rio Lavando os paninhos do seu Bento filho Senhora lavava São José estendia Menino chorava de frio que fazia Não chore meu Menino que a Faca que corta dá um talho sem dor. “Depois rezava o terço, às vezes a chuva pegava a gente no campo mesmo, e a gente voltava toda molhada” (Dona Tereza, novembro de 2010).

Ainda hoje no quilombo rezar para chover é uma prática comum: “Minha irmã faz novena para chover, quando está muito quente e empoeirado lá no final de agosto, mas se começa a chover demais ai faz novena para parar de chover. Eu já disse para ela que não pode rezar para tudo que quiser também” (IVONE, novembro de 2010).

Se aproximar da natureza pela forma sagrada é uma maneira de respeito e de mostrar que ainda existe o sentimento de pertencimento aquele território, pois as orações são ouvidas nas duas narrativas, na de Dona Tereza elas voltavam molhadas de chuva, e na narrativa da Ivone, sua irmã tem que fazer outra novena para parar de chover. Sem entrar no mérito das orações, já que não é esse o caso aqui, mas sim o sentimento de pertencer ao território, ele ganha o mérito de merecer que as orações sejam atendidas. Os campos por onde o Santo passa e faz chover, ou onde chove em demasia por causa da novena é a delimitação da terra dos quilombolas, as orações atendidas em forma de chuva limitam o território, se chove no terreno é porque foram orações quilombolas que foram feitas, o território onde está chovendo então é


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quilombola. Para Sá (2005. p. 252) “as mitologias e os rituais costumam expandir a capacidade da consciência ecológica que liga sociedade e natureza e assim os humanos pertencem a mundos físicos, mas ao mesmo tempo estão profundamente enraizados em outros universos culturais que abrem as portas para outros possíveis conhecimentos”. Almeida (2004. p, 25) lembra ainda que “existem fatores simbólicos de mobilização que dizem respeito aos seus valores evocativos”, e que em algumas comunidades de matriz africana, além do tombamento jurídico dos documentos do local, o santo protetor foi literalmente “plantado” no local, identificando como solo sagrado e para uso específico da terra para manter herbários medicinais e patrimônios dos recursos hídricos como cachoeiras usadas em cerimônias religiosas. Além da percepção do presente entre as disputas com os fazendeiros e do sagrado, nessas duas narrativas percebemos também a presença da mulher. Segundo Dona Tereza sempre eram as mulheres que faziam essas orações. Hoje em dia apesar de não saírem em procissão pelo campo carregando São Benedito, ainda é muito mais marcante a atuação feminina na preocupação com o meio ambiente do que a do homem dentro do quilombo, pelo menos no que diz respeito à vida doméstica. “Eu tomo cuidado com os sacolinhas pláticas, lavo e uso de novo, não jogo muita coisa fora, meu marido por qualquer coisa ele põe fogo em madeira e lixo” (Dona Ana Maria, dezembro de 2010).

As mulheres do quilombo são mais atuantes nos universos domésticos do que os homens, como na hora de fazer comida, cuidar da horta caseira, dos chás, da água e, consequentemente, da falta dela em casa, da lavagem de roupa e da limpeza da casa. Além de estarem mais presentes também no universo educativo, onde são debatidos temas referentes ao meio ambiente. E por causa de seus afazeres domésticos as mulheres são chamadas por diversas vezes para participarem de cursos de mães com o tema “meio ambiente e saúde”, onde se discutem problemas como água, os perigos de sua contaminação para a saúde das crianças, o perigo da fumaça das queimadas, reaproveitamento dos alimentos, e até mesmo curso com visão de retorno econômico como aproveitamento de sementes para se fazer bijuterias. Nesses


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cursos sempre há toda a contextualização ambiental acrescida de novos conhecimentos objetivando o papel do curso, assim relacionando com a percepção que elas já tinham do meio ambiente. Deste modo, elas têm chances de uma ampliação da dimensão ambiental, que não só a sagrada e histórica, mas também técnica, aumentando seu poder de discussão. Os homens por sua vez são chamados a participarem de cursos referentes a manejo de gado, formação de granja, melhoramento de roças. Atividades ligadas ao agronegócio, e com a visão desenvolvimentista, que no seu âmago apenas os transforma em “peões” de fazenda, não transmitindo valores que promovam sua autonomia como cidadãos. Sendo assim, a percepção ambiental que a mulher de Mata Cavalo tem em relação ao ambiente é diferente da do homem, pois ela já dispunha do seu antigo legado sagrado, e seus sentidos e sua história e agora mais uma vez apreende, acrescida por meio da educação, formas de relacionar-se com esse meio ambiente. Além de trazer também à tona as questões referentes às lutas pelo quilombo, as identidades e territorialidades. A equação gênero e meio ambiente trouxe, ademais, questões criativas e provocadoras para o debate contemporâneo sobre crise de paradigma, ou seja, sobre o conhecimento ocidental, como a reterritorialização do espaço e do meio ambiente, referindo-se ao corpo, à saúde, à sexualidade, ao prazer e ao telúrico. Tal educação questiona sentidos da economia política para a igualdade de vida dos indivíduos, considerando a pluralidade de ser/estar neste mundo, ultrapassa célebres dicotomias entre indivíduos e sociedades e entre natureza e cultura, dicotomias tão caras ao pensamento ocidental, defendendo o equilíbrio dos direitos dos seres humanos sem em sua diversidade, e o direito à casa desses seres humanos, o seu corpo e o planeta (CASTRO & ABRAMOVAY.2005,p.38).

Isso não quer dizer que os homens não sejam integrados às questões ambientais e também não tenham suas percepções sobre o ambiente, mas essas questões estão mais próximas as mulheres, antes por serem questões de referência muitas vezes consideradas assuntos de mulheres, como casa, filhos, plantas e rezas e por serem elas que no dia a dia, por lidarem com essas questões de saúde, carências de alimentos e água, quem primeiro sentem a necessidade de mudar de hábitos e tomar novas atitudes em relação à natureza. Esses novos hábitos e atitudes em relação à natureza, também permeiam a luta por melhores condições de vida no quilombo. E, sem dúvida


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alguma, um legado que Dona Tereza teria deixado como educadora, foi o caminho aberto para a formação de espaços de reivindicações para todas as causas, ela fez às vezes do que Paulo Freire chamou de “trabalhador social”, e que, junto a sua comunidade, é um agente provocador de mudança das estruturas sociais. É necessário que o trabalhador social se preocupe com algo já enfatizado nessas considerações: que a estrutura social é obra dos homens e que, se assim for, a sua transformação será também obra dos homens. Isto significa que a sua tarefa fundamental é a de serem sujeitos e não objetos de transformação. Tarefa que lhes exige, durante sua ação sobre a realidade, um aprofundamento da sua tomada de consciência da realidade, objeto de atos contraditórios daqueles de mantê-la como está e dos que pretendem transformá-la (FREIRE, p.26).

Alguns dos espaços nos quais as mulheres podem participar como agentes de mudança ou trabalhadoras sociais são os comitês e conselhos formados para assuntos referentes ao meio ambiente, isso porque em vista da Conferência Mundial das Nações Unidas e da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher em 1995, foi reconhecida e depois oficializada através de documentos que havia a necessidade da participação da liderança de mulheres nas medidas estratégicas para uma nova ordem do meio ambiente, solicitando dos países a participação efetiva da mulher na geração de conhecimentos e educação ambiental, e adoção de decisões e gestão em todos os níveis. Essa solicitação não só foi acatada pelo Brasil, como se transformou em obrigatoriedade nas instâncias de gestão de políticas públicas, sendo garantido o direito de assento para uma representante feminina nos comitês e conselhos gestores. No que tange ao meio ambiente, as Leis Nacionais de Recursos Hídricos são claras em relação a essas normas de representação, e exigem que se tenha um representante de organizações civis. Esse é um espaço, que sem dúvida, a mulher de Mata Cavalo pode ocupar, já que participa de sua associação em defesa de suas terras, de sua família, de seu território e de sua história, por que não também abrir a porta para um lócus de discussão do meio ambiente?

Pois,

relacionadas.

intrinsecamente,

todas

essas

características

estão


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A participação nesses espaços então passa também a ser um processo pedagógico que propicia não só a consciência ambiental, mas também a consciência de um ser pertencente ao mundo, pois “toda consciência é sempre consciência de algo, a que se intenciona. A consciência de si dos seres humanos implica na consciência das coisas, da realidade concreta em que se acham como serem históricos e que eles aprendem através de sua habilidade cognoscitiva” (FREIRE, 2001.p.171). A consciência das mulheres de Mata Cavalo foi construída em grupo, como quilombola, dentro de uma realidade de sofrimento, luta e esperança, e que muito ainda tem por fazer. Sem dúvida alguma Dona Tereza, foi uma moira que contribuiu muito para essa história.


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CAPÍTULO VI Considerações Finais

Iaôs – Mosaico Carybé 1957

FIANDEIRAS Fiandeiras que fiais a Deus a vida e a morte na velha roca da sorte salvaste a branca paz. Os filhos, a seus negócios. Os netos, a seus brinquedos. E entre os trabalhos e os ócios. o silêncio e vossos dedos. O novelo da oração. no fuso do coração.

Na enxuta perna caída todo o cansaço da vida. Na mão que nunca se cansa a Esperança, a Esperança... como já ficais tão pouca Mão, silêncios, linhas, rocas, Com Deus tudo, sem Deus nada Antes de ir-vos, derradeiras, Não nos deixeis, fiadeiras, Sem o fio da meada.

D.Pedro Casaldáliga


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Ir ao Quilombo, encontrar as Moiras e fazer as entrevistas trouxe-me momentos de intensas reflexões e uma nova visão de um mundo que, ao mesmo tempo, estava tão próximo e tão distante de mim. Igualmente à Dona Tereza, fui professora, sou mulher, tenho filhos e assumo responsabilidades. Consigo compreender o sofrimento causado por um despejo, posso imaginar a humilhação de ser obrigada a fugir de sua própria casa para não ser morta, posso me solidarizar com as pessoas que passam por esses pesares, mas não consigo sentir exatamente o que eles sentem, e ao ouvir as narrativas eu sentia-me uma estranha. Tudo isso me levou novamente a refletir e questionar o meu mundo e minhas convicções assim como o pensamento de Freire “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindose, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam” (FREIRE, 2006. p.23). Por mais que estivesse inteirada politicamente sobre o assunto que trata das

injustiças

sociais,

e

até

mesmo

engajada,

algumas

narrativas

surpreenderam-me e emocionaram-me pela violência que continham e pela injustiça que denunciavam. Uma pesquisa em EA pode ter tradição, mas também pode revirar pelo avesso toda a estrutura íntima de seus planos, pois no trabalho coletivo, encontramos possibilidades infinitas de versatilidade, dentro e fora de uma conjuntura analógica da vida. (...) O paradigma coletivo traz também angústias e crises. (...) A crise gerada implica em superação, é ela que constrói o indivíduo, destruindo-lhes todas as finitudes e gerando nele o senso de possibilidades (SATO).

A história pessoal de Dona Tereza conta muito para o exercício de liderança, mas a sua personalidade marcante é, sem dúvida, uma parte muito importante na formação da Associação do Quilombo, apesar de que, num primeiro momento, a liderança tenha sido de um homem. Como professora ela ganhou a confiança da comunidade e por ter passado por uma educação formal consegue lidar com as situações burocráticas e desvendar os códigos da escrita, qualidades necessárias para se estabelecer a verdadeira cidadania. A liderança de Dona Tereza não se dá por imposição, nem tampouco é algo que ela possua totalmente, é uma relação que vem se construindo ao longo da luta no quilombo. O poder está em todas as mulheres entrevistadas através do reconhecimento de sua importância na comunidade, cada uma


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delas é essencial para que realmente o quilombo possa existir. Num determinado momento, entretanto, elas delegam a sua parte de poder para a líder para que, no seu exercício da presidência, possa representá-las em outras instâncias. A relação de poder entre as mulheres em Mata Cavalo não é uma troca de favores do tipo: eu te reconheço como líder e você me concede favores, mas é o cuidado que Dona Tereza tem com todos, e uns com os outros. É o entendimento de que todos são parentes, e que não se deve deixar um parente sofrer ou penar. O poder é a identidade, é a cultura que os liga e os une também ao território, é o retorno ao seu próprio mundo depois de muito vagarem por lugares que realmente não lhes pertencia. É o vir a ser de esperança nesse velho-novo território ancorada na cultura, sobre isso Hall nos coloca que: A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma “arqueologia”. A cultura é uma produção, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (Hall, 2006.p.43).

Com esta constatação e alicerçada na cultura e na memória busquei responder às duas hipóteses deste trabalho. Tentei encontrar nas narrativas de Dona Tereza e nas das outras mulheres as figuras de algumas avós ou bisavós que remetessem às figuras das antigas guerreiras das quais elas disseram herdar tanto a coragem quanto a “braveza”. Mas consegui apenas a personificação da “vovó Rita” - Cecília Rita da Silva - liberta junto com os demais escravos. Foi a ex-cativa que mais tempo viveu e mais histórias contou, pois quase todas as entrevistadas de meia-idade lembram-se dela andando, velhinha e encurvada, pelo quilombo com seu “porretinho para apoiar”. A “vovó Rita” certamente foi uma grande influência para essas mulheres, porém a memória do quilombo não era dessa mulher ou de nenhuma outra que poderia ter existido ali. Essa memória diz respeito a uma figura etérea pertencente ao feminino que viveu em algum lugar na história, com representativas expressões, que tem em comum com as atuais mulheres do quilombo um passado de descendência africana, escrava; que agora são solicitadas a fazerem parte de Mata Cavalo. Podemos nos apoiar na


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hermenêutica fenomenológica de Ricouer e compreender que a memória pode ser a apreensão imaginativa afetiva que projetamos da vida do outro, preenchendo assim nossas lembranças. Que a memória dessas guerreiras fortes e corajosas nada mais é do que o que Ricouer (2007) chama de memória feliz, ou seja, o momento de ligação com o histórico, que é cognitivo por linguagem e atos, mas não é um fato e sim um voto. E como voto ele não precisa ser provado, e pode ser mudado. A afirmação de ser descendente de mulheres guerreiras pode ser entendida como demarcação de espaço social da mulher dentro do quilombo. Brandão (2009) mostra que em muitas comunidades negras esse espaço conquistado pelas mulheres acontece nos terreiros de Candomblé quando elas personificam as Mães de Santo alcançando assim a posição de comando e de chefe grupal. Em Mata Cavalo esse momento não existe, pois os terreiros de Candomblé não são uma tradição cultivada abertamente, sendo difícil encontrar alguém que se assuma participante dessa tradição. Em Mata Cavalo ao invés da mulher ganhar a posição social por ser mãe de santo, ela reivindica sua herança de guerreira. Porém tudo acaba sendo a mesma coisa, pois essas guerreiras que elas dizem ser, nada mais são do que as herdeiras das entidades ou orixás do Candomblé como Nanã, Iemanjá, Iansã, Oxum, Obá (WERNECK, 2010 p.05). Considerando que essa memória seja parte da cultura e ancorada na Educação Ambiental, entendemos que é uma possibilidade de identidade social da comunidade que oportuniza a que essas mulheres possam se interagir com seu território de maneira a manter a história local por meio de seus mitos (Sato p.80), os quais recriam diariamente. Assim, não existiu uma liderança feminina no quilombo anteriormente. Constatei que a liderança das mulheres é algo atual e está ligada a já comentada história de vida de Dona Tereza, a uma mudança de paradigma social e à emancipação feminina que é um fenômeno mundial. A liderança antes era exercida pelos homens. Era um poder disciplinar que estabelecia casamentos, as roças comunitárias, os horários em que deveriam ser feitas as festas. Aos poucos esse poder, em virtude da associação, passa para as mãos


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das mulheres e se transforma de disciplinar para político. A tendência no quilombo é cada vez mais aumentarem as líderes, pois são elas que frequentam, em maioria, a educação formal, e esse parece ser um requisito imprescindível para o exercício de cargos na associação atualmente. Dizer que as mulheres são a maioria com um nível mais alto de escolaridade é algo importante, mas implica em reconhecer que é necessário incentivar os homens, principalmente os mais jovens, para que também passem a estudar e a participar mais das decisões políticas do quilombo. Foi e continua sendo muito importante que as mulheres estudem, tomem posição de comando e sejam emancipadas, mas os homens precisam caminhar juntos nessa emancipação ou ela continuará gerando desigualdade. Devemos esperar que, no quilombo, essa emancipação seja a emancipação do ser humano em si, levando-se em consideração o território em que vivem e a sua cultura, almejando a construção de uma nova relação social que vise “garantir aos diferentes agentes sociais efetivas condições de participar e decidir, sob relações de produção que permitam a justa distribuição do que é socialmente criado, para que a nossa espécie alcance novos modos de viver e se realizar na natureza, não contra a natureza” (LOUREIRO, 2007.p.160). Atentando-se para o fato de que as grandes lutas atuais do quilombo se travam na esfera dos códigos escritos, é impossível pensar em uma resistência para Mata Cavalo que não seja por meio da Educação. Entretanto, não a educação meramente bancária, que reproduz a visão branca e urbana do mundo, mas uma educação transformadora e crítica. Não devemos cair no terreno movediço de que a educação pode tudo, porém entendo que, em Mata Cavalo, ela possa ser a formação política, desde que levada a refletir sobre os processos históricos, identificando seus contextos e práticas onde o saber opera. Ao longo de seu caminho Dona Tereza, professora experiente da vida, foi aprendendo e ensinando, e com a sua teimosia e a de suas companheiras vêm aos poucos retomando o que é delas por herança. “Quem pode ser em contrapartida o portador de um território/país sustentável e democrático senão


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sua gente teimosa, agarrada ao chão e engenhosa em extrair dele e de sua situação a construção de seu futuro?” (LEROY, 2010. p.52). Todavia existe um problema rondando o quilombo, além dos já conhecidos: é a sucessão de Dona Tereza. Se muito da liderança se deve a sua própria personalidade, quem então poderá substituí-la? Isso é algo que já causa preocupação nas mulheres do quilombo. Intimamente todos preferem que seja outra mulher forte, atualizada, que conheça os trâmites políticos, mas isso não é suficiente. É preciso também ter o poder de conjugar, a vontade de cuidar, o apego histórico e identificador com a comunidade. Isso parece difícil, pois apesar das pessoas no quilombo terem a identidade quilombola poucas têm uma história construída como foi a de Dona Tereza. Consequentemente é bem provável que não apareça outra líder igual. Com isso não queremos dizer que as que surgirem sejam melhores ou piores, só diferentes. O quilombo poderá encontrar novas formas de se organizar e de se administrar utilizandose das experiências vividas e dos conhecimentos acumulados. Dona Tereza atualmente, por causa de um problema renal, encontra-se longe do quilombo, afastada do território onde viveu, lutou e se transformou na Arthopo com sua tesoura encantada. Território aonde, durante décadas, ela tentava cortar os fios das injustiças para que pudessem esticar o fio da esperança de tempos melhores, com o reconhecimento do direito as terras conseguido pelo trabalho e sofrimento dos ex-escravos.


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Anexos Autorização de Publicação de entrevistas:


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