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Mais de 10.000 pessoas estiveram na sexta edição do interativo evento, que decorreu no Palácio da Bolsa, no Porto.

Viajar pelo mundo no mesmo sítio, trocar experiências e aprender mais sobre cozinha, numa espécie de vertigem sensorial, são apenas algumas das aventuras que se podem viver no Essência do Gourmet. A edição de 2012 juntou, mais uma vez, milhares no Palácio da Bolsa, para três dias de emoções sensitivas. Tateou-se que são tempos de mudança os que se vivem na gastronomia. Dezenas de chefes revelaram dicas, num encontro onde os produtos portugueses brilharam e onde novos conceitos de cozinha se deram a conhecer, da comida de rua aos blogueres ... Mas, sobretudo, desvendaram-se novas tendências e as grandes mudanças em curso na restauração. texto fátima iken fotos fabrice demoulin

veja esta reportagem em: www.essenciadovinhotv.com


VALORIZAR O QUE É SIMPLES Há um aroma a coentros e basílico no ar, misturado com pozinhos de caril. Uns laivos de gengibre e lima que nos envolvem do nariz à espinha dorsal. E, mais à frente, identificamos uma nuvem salgada de mar, a rebentar numa cataplana de peixe e marisco. Deixamo-nos levar instintivamente e abrem-se as portas do Pátio das Nações para mais uma edição do Essência do Gourmet, mais uma vez no espaço nobre do Palácio da Bolsa. De odor em odor hipnotizante, hesitamos onde parar primeiro. Mexem-se caçarolas, pica-se cebola, desbastam-se ramos de ervas aromáticas e uma euforia dos sentidos começa por nos bafejar algum alento mas também algum apetite. Por onde começar? Por um caril thai verde ou um Byriani? Codorniz com aipo ou grelos salteados em vinho tinto com morcela?... Cozinhar é uma espécie de alquimia. Reiventar a harmonia e contraste dos ingredientes, as técnicas de cocção, explorar a audácia. Regressar ao lar (fogo). Regressar às origens, à essência. Talvez por isso haja tanta gente interessada em saber mais sobre o assunto. Cozinhar com novos métodos de frio (sim, frio) ou gadgets artificiais, nota a nota, com efeitos especiais ou uma linguagem tecno aplicada à culinária... de tudo já vimos um pouco. Dos pães perfumados e de várias cores às pérolas com sabor a frutos. Dos restaurantes onde tudo é futurista e onde tanto ouvimos o som do mar em iphones como sentimos o cheiro falso da maresia ao encomendar um prato de peixe ou marisco. Mas as pessoas começam a ficar algo fartas dos efeitos especiais, dos Blumenthal ou Ronceros desta vida. Talvez por isso, as grandes cozinhas regressem à noção de simplicidade e de terra, à valorização do que cada nicho e região têm de melhor. Cozinha simples, saudável, em pouca quantidade e com equilíbrio na cozinha são as novas tendências. Daí a gastronomia confirmar a sua orientação para comer bem e saudável, bio, com menus equilibrados, mais light, menos gordura, menos açúcar e menores quantidades. Tudo está em mudança e esta edição do “Essência do Gourmet", a sexta, confirmou -o, uma das suas mais-valias, aliás. A chamada "street food", os "bentos", as tapas e as sanduíches saudáveis estão na moda. Porque para além do mais, já poucos têm dinheiro para gastar muito numa refeição. Opta-se pela "bistronomia", pelo snacking, não sendo de espantar a atual explosão da indústria de panificação no mundo. Cozinha-se mais em casa e dá-se largas à criatividade. Os restaurantes de topo começam a reequacionar menus e estratégias. A necessidade de fazer aproveitamentos configuram novos caminhos. As quantidades, receitas e tipos de produtos no prato mudaram. Há que ser criativo para ser sustentável. A nova vaga da cozinha francesa, por exemplo, é a chamada "cuisine santé". O prosélito é o mais antigo "estrelado" chefe francês, Michel Guérard (Les Prés d' Eugénie), um dos fundadores, recorde-se, da nouvelle cuisine, nos anos 60. O conceito desta nova cozinha "saudável" é conjugar criatividade com um prato equilibrado em matéria nutricional. Ou seja, pela primeira vez a preocupação com a dieta encabeça a principal tarefa que antecipa a criação de um prato. Uma espécie de comer sem pecado, se quisermos. Os gourmand dos quatro costados estão obviamente a marimbar-se para a manteiga ou gordura e açúcar que um prato contém, desde que o prazer encabece a refeição. Por isso, muitos são aqueles que se rebelam contra esta nova corrente, que vêem como uma espécie de iconoclastia contra os cânones sagrados da gastronomia. O certo é que muitos grandes chefes já aderiram a esta nova filosofia. Alain Passard, Pierre Gagnaire, Michel Bras, Thierry Marx, Yves Camdeborde, Anne-Sophie Pic (a única mulher detentora de três estrelas na França) ou Christophe Michelak são apenas alguns dos que aderiram de alma e coração a este conceito.

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Toda esta conversa para quê? Porque este é um dos méritos do "Essência do Gourmet". Põe-nos a pensar, a sentir o pulsar da gastronomia atual e a perspetivar as novas tendências da cozinha. Ajuda-nos a compreender atitudes e caminhos. Talvez por essa razão sejam já tantos os fãs deste evento organizado pela EV-Essência do Vinho. Porque esta acaba por ser uma enorme plataforma que une chefes e público de uma forma natural e próxima, possibilitando a vivência da cozinha em direto, a aprendizagem informal. Deixamo-nos levar pelo odor atrativo do caril verde, antes que ele se evapore, e vamos desembocar à cozinha de Paulo Morais (Umai, Lisboa), o primeiro sushiman português. Um precursor que abriu portas a um imenso mundo de paixão pelo sushi, pelo qual os portugueses têm demonstrado ser aficionados de gema. Paulo Morais, enquanto prepara um robalo em folha de bananeira, explica-nos o valor do evento como forma de criar "interação entre as pessoas e a cozinha". "As pessoas complicam muito, quando tudo pode ser bem simples. Uma das coisas mais importantes é cozinhar com produtos locais, mas por vezes isso até se torna difícil. Só para dar um exemplo, o molho de peixe fazia-se em Portugal no tempo dos romanos e agora é preciso importá-lo. Mas tento sempre usar produtos o mais locais possível” , conta-nos. Sobre as novas tendências da gastronomia, Paulo Morais, apesar de ser suspeito pela sua “paixão” asiática, propugna que a cozinha “coreana” ditará o futuro. “A tendência atual é voltar à cozinha de origem, mas não no sentido de voltar atrás. Creio, por exemplo, que a cozinha coreana será o próximo boom porque tem todos os ingredientes que funcionam atualmente: muitos grelhados, muita simplicidade, muitos condimentos. É leve e equilibrada. Os asiáticos não se alimentam sem razão. A razão são as necessidades do organismo e por isso acaba por ser uma cozinha muito saudável”. Continua. “Numa refeição surgem elementos doces, salgados, ácidos, picantes, amargos, porque tudo é importante para o corpo. Daí a importância do umami ser tão atual. Que, aliás, se pode encontrar também num queijo alentejano, nos enchidos ou no molho de tomate”, advoga o chefe de cozinha. Esta conversa fez-nos fome. Paulo Morais prepara agora um prato visualmente atrativo

com uma série de ingredientes aromáticos e efusivos. Malaguetas carmim destacam-se junto a folhas de limoeiro, gengibre e erva príncípe (lemongrass). E já uma legião de “alunos” se aproxima para a primeira aula interativa. Paulo Morais passa o caule de lemongrass pelo grupo, maioritariamente constituído por homens. Aliás, trata-se de um interessante fenómeno que todos os anos notamos em crescendo. Os homens são um grupo crescente em todas estas edições, algo significativo na apetência masculina pela cozinha. Arriscamos até a dizer que suplantam em número as mulheres no certame. De avental em riste e muita vontade de aprender, Fernando Morais tem 63 anos, é reformado, mas tem uma indómita vontade de aprender a fazer sushi. “Eu e os meus filhos adoramos sushi e quero conseguir executar em casa, até porque sou eu que cozinho diariamente para eles. Gosto muito deste evento e venho todos os anos. Já tenho aqui o meu grupo de amigos. E porque se pode aproveitar estar perto dos chefes de cozinha para tirar dúvidas, ver como se faz e aprender muito”, confessa. Também Jorge Leandro, de 49 anos, outro apaixonado por gastronomia, veio especialmente de Braga para o “Essência do Gourmet”. “Gosto imenso de cozinhar desde miúdo e sempre quis aprender mais coisas novas. Acho que a cozinha portuguesa está no bom caminho, não esquecendo as vertentes tradicionais e a ligação à cultura, mas também explorando novas técnicas e inovação”, lança, ao colocar o avental. Mas cozinhar exige muito, muito trabalho. Nem por isso deixa de ser um ato atrativo. Paulo Morais deixa um recado para os futuros chefes, sobretudo os mais novos, reterem bem: “As pessoas julgam que ser chefe é ser estrela mas há que desmistificar isso. Passamos muitas horas de pé, é bem cansativo e não é o glamour que se passa na televisão...”.

PORTUGUESES MAIS “MEDITERRÂNICOS” Seja como for, há por aqui muito quem queira avidamente participar nas aulas práticas. Pode ser para dar largas a uma fantasia, para cada um se tornar numa espécie de Paracelso dos fogões, para redescobrir um laboratório aconchegante que dá pelo nome de cozinha. Chamem-lhe um escape, uma evasão sensorial do dia a dia, uma cor num dia cinzento. A possibilidade de todos podermos, no fundo, ser artistas no reduto da

nossa própria cozinha é uma forma de partilhar e comunicar através de uma linguagem apaixonada e sinestésica. Esta enorme atração das pessoas pela cozinha poderá ter inúmeras razões que a razão desconhece. Nos tempos que correm, sobretudo “para poder ser criativo, aproveitar restos, ter novas ideias para receber amigos, num tempo em que a recessão económica não deixa muito espaço para comer fora. A própria moda das lancheiras vem demonstrar que as pessoas querem poupar, cozinhar em casa para levar para o emprego e comer de forma mais saudável com menos sal, mais legumes e menos carne”. E quem circula, no princípio de uma tarde de sexta-feira, por um Palácio da Bolsa com gente faminta de saber mais sobre cozinha fica irremediavelmente boquiaberto. Os portugueses estão a mudar as práticas alimentares, nomeadamente numa maior aproximação à dieta mediterrânica. Interessam-se mais por cozinha, por alimentos saudáveis e biológicos e por reconfigurar a alimentação tornando-a mais leve e apelativa aos sentidos, com mais legumes e influências da worldfood. Não será por acaso que conceito de “bistronomia“, worldfood e fingerfood vingou nos últimos tempos, contrariando, de alguma forma, a tendência da cozinha molecular ou tecnoemocional, considerada hoje muito “anos 80“. Um dos apaixonados pela cozinha do mundo é Chakall, que fomos encontrar a preparar um Byriani de camarão, prato indiano e paquistanês servido por alturas do Ramadão. Gengibre, pimenta chili, açafrão, folhas de hortelã, cardamomo, canela enchem o ar de inspiração enquanto um grupo se reúne à sua volta. “É muito positivo este tipo de eventos porque coloca em proximidade os chefes e as pessoas. Acho muito interativo e divertido. Eu sempre cozinho muito com os produtos locais e esse é o caminho mais natural das coisas. Nunca gostei da cozinha molecular porque não me identifico com esse lado frio e desinteressante que acaba por não saber a nada genuíno”, confessa. “A cozinha não pode deixar perder a identidade. Há que valorizá-la. Se estou em Portugal, gosto de fazer comida portuguesa e de usar produtos portugueses, mas claro que a viagem, a criatividade e a invenção fazem sempre parte da cozinha e é saudável misturar vários tipos de culinária”, sublinha Chakall, sempre com o seu turbante porque o marketing comanda. 

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A COZINHA “ONLINE” A preparar-se para abrir um restaurante em Berlim, Chakall advoga que “a cozinha é fácil, não é nenhuma ciência. Qualquer um pode ser cozinheiro, todos podem inventar e criar, é um campo de liberdade”. Para exemplificar, fala das invenções “em cinco minutos” que acabou de fazer. Ai é? “Sandes doces e salgadas”. De quê? “Bolachas de arroz com recheio de framboesas, chocolate, nutela ou de queijo creme e salmão”. Por falar em bolachas, algo de muito mais apelativo, porque feito à mão e segundo uma receita familiar, nos prendia agora a atenção na cozinha em frente. Sofia Salvador é outro exemplo de uma nova tendência no mundo da gastronomia. Blogues e até o facebook são plataformas que vieram aproximar e tornar cúmplices muitas pessoas em torno da cozinha. Autora do bogue “Pontos de Açúcar” e com uma legião de fãs no facebook - cerca de 1.400 seguidores -, Sofia deixou de trabalhar para se dedicar de alma e coração à sua culinária, mais propriamente bolos, bolachas e sobremesas. Deixou de trabalhar, tinha três filhos pequenos e mudou o rumo da sua vida. “Era webdesigner mas sempre gostei imenso de fazer sobremesas e bolos. Comecei de forma divertida e como uma brincadeira a fazer um blogue, o ‘pontosdeacucar.blogspot.com e depois passei para o facebook”, diz. Da net para os bolos foi um instante. Tornou-se cake designer. “Uso receitas caseiras da minha mãe e criei uma página no facebook. A partir daí foi sempre sem parar. Adoro tirar fotografias e as pessoas aderem imenso. Entusiasmei-me e agora não quero outra coisa”, revela Sofia Salvador, enquanto começa uma sessão de bolachas caseiras, esticando a massa fininha. “O facebook é uma informação que passa tão rapidamente que o feedback é quase imediato. Um bolo faz uma mesa, passo muitas horas na cozinha. Trabalho muito à noite também, mas é por gosto e quase não cansa”, diz-nos Sofia que se meteu há uma ano e meio nesta aventura. O mesmo se passa com Luísa Ginoulhiac, autora de “O Mundo de Luísa” e outra apaixonada por cozinha, que considera ser o seu mundo, aquele onde mais se sente realizada. Luísa Ginoulhiac é autora de um blogue através do qual gosta de partilhar as suas criações gastronómicas. A ideia é ajudar quando não há vontade de cozinhar ou quando se quer comer alguma coisa diferente.

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Deixamos a área da cozinha para ir descobrir alguns produtos gourmet. Começamos bem, pela marca Origem Transmontana, um conceito que se esforça por revitalizar os produtos genuínos locais de Trás-os-Montes, das cascas às castanhas, dos cuscos (sim, cuscos e não couscous, apesar a sua influência muçulmana). Trata-se de trigo barbela esfarinhado à mão, o que é feito apenas ainda por duas senhoras de Vinhais. “Recuperamos esta tradição que está em extinção e hoje os chefes de cozinha estão a usá-la já bastante de novo”, conta-nos Luís Portugal. Do fumeiro às amêndoas assadas com mel e canela ou flor de sal, do queijo Terrincho ao mel do Parque Natural de Montesinho. De tudo um pouco dos grandes sabores genuínos transmontanos por aqui se pode encontrar. Um conceito a reter. Mais adiante havia tentações para todos os gostos. Chocolates, queijos, conservas, compotas, bolachas, presuntos, chá, biscoitos, vinhos... centenas de produtos gourmet, a grande maioria oriunda de marcas portuguesas handcraft.

UM PROJETO DE COMIDA DE RUA Enquanto saboreamos um chocolate negro de framboesa, demos de caras com um dos mais originais projetos presentes no evento, que vem corporizar a tendência de que falávamos e que está ainda muito mal explorado em Portugal: a chamada streetfood. Chama-se diretamente “Comida de Rua” e é um novo conceito prestes a ser estreado em Portugal, a antever sucesso. Isto porque reúne todos os ingredientes necessários a uma equação que resulta. No caso, três amigos que se juntaram e decidiram dar dignidade à comida de rua. A base será a cozinha portuguesa para criar sandes diferentes com a “qualidade dos produtos nacionais”, como é o caso da sande de leitão da Bairrada, da cavala ou dos cogumelos. A ideia conta ainda com a parceria do chefe da Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, Elísio Bernardes. Aqui não há lugar a roulotes mas sim a um original triciclo Piaggio 400, uma Ape Classic, a

primeira a existir em Portugal, noutra parceria que nasceu, neste caso, com a "Street Food Mobile", pois trata-se de um conceito que já vem de Itália, mas aqui em Portugal com um novo formato. Vão ainda contar com bicicletas no verão e uma vespa sidecar para vender cachorros e bolas de Berlim. No projeto estão João Soares, 36 anos, farmacêutico, e a mulher, Isabel. Enquanto degustamos uma sande de leitão com compota de laranja, aquiescemos que esta ideia irá dar que falar. “Fui eu que desenhei e concebi o produto. Efetuamos uma parceria com a Confeitaria Real para a sua confeção. Vamos estar já em dezembro em Matosinhos, junto ao mercado, onde teremos também um espaço de take away e esplanada. Estaremos ainda junto à estação de metro da Senhora da Hora”, conta João. “Sempre fui um apaixonado pela cozinha, apesar de não ser a minha área, pois trabalho numa empresa farmacêutica. Lembrei-me que este projeto podia marcar a diferença. Para mim cozinhar era um hóbi, a minha mulher estava desempregada e juntou-se assim o útil ao agradável”. Mais uma vez, tudo começou no facebook, uma plataforma que acaba por ser rampa de lançamento para muitos projetos no âmbito da cozinha, como tivemos oportunidade de confirmar por estes dias. Blogues e facebook parecem ser uma espécie de janela aberta para as enésimas cozinhas que, de repente, pareciam fechadas à criatividade solitária de um epicurista nato ou cozinheiro amador e se abrem a uma legião de fãs e interessados de forma direta e simples. Pensem nisso...

PRODUTOS NACIONAIS… E DANÇA Mas há um cheirinho a mar que paira no ar. As nossas narinas levaram-nos até à cozinha de Arnaldo Azevedo, a primeira vez no evento, chefe do Palco, restaurante do Hotel Teatro. Claro, está-se por aqui a confecionar peixe na cataplana com produtos portugueses, um bom exemplo. O peixe é encharéu e o lingueirão e amêijoa dois moluscos bivalves soberbos que o nosso mar nos dá em abundância. “Fiquei surpreendido porque as pessoas aqui demonstram muito interesse em aprender mesmo, em conhecer as técnicas e produtos de

uma forma incisiva. E este tipo de proximidade é muito curiosa. Nota-se que revelam interesse e não vêm aqui só para comer e passear”. Prossegue. “Tentei apresentar coisas simples, para vários tipos de público, que as pessoas possam adaptar ao seu dia a dia, sem grandes complicações. Os peixes e mariscos são muito emblemáticos de Portugal e a minha cozinha aposta nos produtos portugueses. Noto aqui que as pessoas querem redescobrir a cozinha tradicional portuguesa e a crise vai obrigar a que as pessoas regressem à cozinha”, advoga. E para os mais novos chefes deixa o conselho: “Que queiram ser cozinheiros e não chefes, que sejam acima de tudo humildes e não tentem chegar lá muito depressa demais”, adverte Arnaldo Azevedo. Boas dicas de um jovem chefe que promete. Outro prato escolhido que mostra o gosto e valorização dos bons produtos portugueses seria o polvo com batata doce de Aljezur. As cozinhas iam enchendo. Na de Chackall, a animação era alta. Todos dançavam literalmente ao som de um samba enquanto descascavam cebolas, camarões e cenouras. Abanar a anca aos ritmos brasileiros e cozinhar não é propriamente fácil, mas com Chakall aos comandos tudo é possível. Mais uma vez os homens estão em força, de avental em riste. Um técnico de laboratório esforçava-se por picar cebola, não chorar e dançar ao ritmo de uma rumba. Pode? Pode. Noutra cozinha, os chefes Tiago Coelhoso e Carlos Silva preparavam um bacalhau com pimentos e broa de Avintes, ensinava-se a cortar presunto mais adiante e o chefe Francisco Ferreira (Vila Galé) dava dicas de como confecionar uma bela codorniz com aipo. Em mais de 50 cursos culinários diários, opções não faltavam. Uma paragem de descontração no espaço do restaurante Ferrugem (Famalicão), onde a simpatia da chefe Dalila propõe caldo verde e a broa de milho tostada com azeite, o célebre pastel de (bacalhau com) nata , um hambúrguer de rabo de boi com papel de tomate e tarte de pera rocha com geleia de Vinho do Porto. Optámos pelo pastel, como sempre uma aventura dos sentidos, entre o crocante da massa folhada quentinha e o bacalhau aveludado a desfazer-se na boca. Muito boa esta versão salgada do doce símbolo português. Para além do Ferrugem, espaços dos restaurantes Góshò,

Paparico e Pedro Lemos propunham também pratos para provar no recinto. Mas como a cozinha não vive sem vinho, havia que provar o Quinta dos Quatro Ventos 2008, o Quinta da Garrida Reserva 2008, Quinta da Bacalhôa tinto 2010 e Quinta do Carmo tinto 2009 e visitar os espaços Bacalhôa e Sogrape. Por que não, já agora, um wine cocktail para seguirmos viagem até ao Salão Árabe, onde Paulo Morais iniciava uma sessão de showcooking abordando a desconstrução do sushi? 

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SUSHI DESCONSTRUÍDO E O ADMIRÁVEL MUNDO DOS COGUMELOS O Salão Árabe estava à pinha. “A ideia hoje é brincar com os sabores do sushi e apresentá-lo de uma maneira diferente de modo a não parecer sushi”, disse Paulo Morais. Para isso optou por desconstruir o célebre Califórnia, dando novas roupagens e texturas ao arroz, nori, camarão, abacate, molho de soja, sésamo, ovas e pepino. Começou por uma espuma de arroz no sifão e um puré de abacate com soja. Do camarão resolveu confecionar uma tempura com nori e sésamo, um elemento presente para quebrar as outras texturas demasiado líquidas. E com o pepino fez uma emulsão com lecitina, montando um sushi de look bem diferente do clássico. De seguida foi preparada uma desconstrução de nigiri de choco. O arroz prensado na palma da mão com uma fatia de peixe cru por cima e um pouco de wasabi transformou-se. Com tinta de choco e seus fígados fez uma pasta com malagueta e uma espuma usando ainda as perninhas de choco e sua tinta para encimar o nigiri na nova versão. “O choco é pouco utilizado em Portugal e é pena. A utilização dos fígados e todos os aproveitamentos é uma forma sustentável de ver a cozinha, que me esforço por praticar, porque nada se deve deitar fora dos produtos que usamos. É preciso utilizar os recursos e diversificar ao máximo”, frisou. Finalmente, a desconstrução de um gunkan de salmão - uma pequena fatia de nori envolta que dá um sabor diferente e mais acentuado, além de aumentar a firmeza do conjunto transformou-se num mais arrojado jogo de salmão picado macerado em soja e citrinos, com cardamomo e pimenta, que fatiou em fatias translúcidas conferindo assim um novo look e sabor ao clássico. Claro que depois disto tivemos de nos deslocar até ao espaço do restaurante Góshò para degustar makimonos a acompanhar com um Quinta da Garrida Reserva branco 2008, mesmo a calhar. Mas do sushi passávamos a algo completamente diferente, porque cozinhar é mesmo isto. Viajar sem sair do sítio, por vezes. Os cogumelos seriam agora os reis da festa com o chefe Luís Américo (Mesa, Mercado, Forneria S. Pedro e Fado, em Macau) aos comandos. Luís Américo iria demonstrar

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algumas receitas simples para executar em casa, desvendando esse mundo mágico que cresce quase sem darmos conta quando caem as folhas e a chuva humidifica os bosques. Falamos do reino de uns peculiares fungos que ganham corpo sob a lua, numa profusão de espécies de cores, formatos, aromas e sabores únicos, sendo que Portugal possui os melhores cogumelos silvestres da Europa. Terra molhada, temperaturas amenas e folhas caídas são vértices de um triângulo que cria o tempo e cenário ideais para apanhar cogumelos. Os cogumelos acabam por ser muito gastronómicos já que a sua textura pode ser fibrosa, elástica, cartilaginosa e macia. Aqui, o terroir comanda o sabor. “Gosto imenso de cogumelos. Não vou fazer nada de muito sofisticado, mas apenas partilhar ideias e usar técnicas que possam utilizar lá em casa”, disse Luís Américo, que trouxe consigo, para esta sessão de show cooking, o produtor de cogumelos Pedro Capela. Pleurotus, cogumelos-ostra, boletos, trompetas amarelas ou cantarelos e pé violeta (lepista nuda) foram algumas das espécies exibidas. Luís Américo começou por eleger os boletos como os seus preferidos pela textura, odor e consistência, enquanto dourava chalotas em azeite, refrescando de seguida com vinho branco e juntando tomate concassé e cogumelos, flor de sal, molho inglês e molho de soja

para “soltar o umami”. Um cheirinho muito apetitoso inundava agora o Salão Árabe. Juntou ainda queijo da Ilha e propôs fazer também uns raviolis de forma muito simples, executados com massa won ton. Para além disso foram criadas várias versões de cogumelos Enoki em folha de alumínio com azeite, alecrim, tomilho, pinhões e flor de sal, e outra asiática, com teriaki, soja e saké. Uma forma de cocção fácil, ao permitir que os sucos dos cogumelos se mesclem com os temperos. No final, todos queriam provar os resultados para repetir em casa e como mais uma vez se abriu o apetite, era hora de ceder à tentação, terminando assim o primeiro dia do” Essência do Gourmet” em beleza.

“ALGO ESTÁ A MUDAR…” Sábado, ao início da tarde, era já mais complicado circular na zona das cozinhas. Grupos punham-se em pontas de pés para observar todos os movimentos de cada chefe nas cozinhas e outros degustavam alguns pitéus, entre provas de vinhos e harmonizações feitas a bel-prazer. No Salão Árabe, o show cooking arrancava pelas mãos do chefe Francisco Ferreira (Vila Galé) que exibiu a confeção de um taco de atum com batata doce e espinafres, sob uma chuva de molho frio de citrinos. “A batata doce é um produto que urge redescobrir na cozinha” ,disse, com razão. Assada

com casca a 170º por 70 minutos, neste caso, com azeite e alho emulsionados e algumas pedras de sal. Após bringidos os espinafres, era confecionado o atum, no sauté, de forma a deixar o interior rosado. O molho processado de sumo de laranja, lima, bacon picado, gengibre fresco, orégãos e vinho Xerez envolvia o prato no final. Atiçados os apetites, descemos até à área do Pátio das Nações, onde fomos encontrar Luís Américo a preparar uma tosta rústica de sardinha com espargos à Brás, num dia dedicado às conservas. Luís Américo dizia-se “impressionado com a qualidade do público”. “No princípio as pessoas vinham mais para comer, mas agora nota-se que evoluíram, fazendo perguntas muito pertinentes, que valorizam a origem das coisas, as técnicas, o ponto de cozedura. Nota-se também muito uma fidelização de públicos, de pessoas que se encontram todos os anos aqui”. Numa altura em que se atravessa uma fase profunda de reformulação da gastronomia, conceitos e atitudes na cozinha, Luís Américo, à conversa connosco, sublinhava o caminho da simplicidade como uma nova linha de futuro. “As pessoas não querem muitos elementos no prato, muitas misturas. Ficam confusas. Essa fase do chefe querer mostrar várias técnicas e sabores ao mesmo tempo já passou”. Seguidor da tradição inspirada em criações próprias Luís Américo - que está prestes a abrir mais um restaurante, o Fado, desta vez em Macau, propugna que a “cozinha deve ser dinâmica mas possuir uma âncora”. Outra das coisas que está a obrigar os chefes a uma reformulação mental e de postura na restauração é a própria recessão económica que manda trilhar novos caminhos. “Os chefes começam a engendrar novas soluções, até porque o conceito de partilha volta a estar na moda. Pratos mais simples, mais económicos. Acabou o tempo em que as pessoas gastavam 100€ num restaurante numa refeição”, alerta. Por isso, são agora obrigados a usar a imaginação e optar por conceitos como a “bistronomia”, “os cantinhos”, “as tasquinhas”. Luís Américo realça ainda a notória evolução da cozinha portuguesa nos últimos anos e o destaque que a gastronomia lusa começa a ter no mundo, “muito a reboque dos nossos vinhos”. “Noto que o Brasil, Angola e a Ásia começam francamente a descobrir e a apreciar muito a nossa cozinha, que acham exótica, a par dos produtos portugueses. É essa janela

que agora devemos aproveitar”, frisa. A conversa estava boa, mas era hora de começar mais uma sessão de cozinha, desta vez para a execução de um risoto de ovas de sardinha e costeletas de cavalas. Ao mesmo tempo, subíamos até ao Salão Árabe para mais um show cooking, mas pelo caminho perdemonos de amores, na área do delicatessen, pelas flores de hibiscus em conserva. Uma delícia australiana da “Despensa Gorda”.

O BRILHO DE ALEXANDRE SILVA Estava criado o clima para um dos pontos altos do “Essência do Gourmet”. O chefe Alexandre Silva, responsável pela cozinha do futuro hotel Marmòris Hotel & Spa (Small Luxury Hotels of the Worl), em Vila Viçosa, ex-chefe do extinto lisboeta Bocca, ia levar-nos por um impactante e coerente trilho sensorial, onde quase tudo o que podia ser dito no âmbito da gastronomia o foi. “A cozinha é algo que vem de dentro, é memória e paixão. É o que vocês gostarem que seja”. Alexandre Silva iniciava assim um percurso pela nossa identidade coletiva, traçando de forma simples mas intimista a sua filosofia na cozinha. Baseando a sua intervenção na readaptação de duas receitas com produtos locais alentejanos, optou por variar, introduzindo outros consoante a sazonalidade. Assim, peixes de rio, como a carpa ou o achigã – tradicionais no verão - iriam dar lugar a um produto de inverno. Neste caso, a carpa iria dar lugar ao porco preto em versão leitão. A receita inicial - cabidela de achigã - readaptava-se assim a uma cabidela de leitão feita a partir da barriga e cabeça do suíno. Mas, “surprise, surprise”, a cabidela não seria de sangue mas sim de sumo de beterraba e vinagre, numa redução a que acrescentou um espessante (xantana). Uma barriga de leitão cozinhada a 75º durante 12 horas iria ser a base, com que a frescura de beterraba combinava na mouche. “Se não sentirem um alvoroço quando tiverem um

prato à frente é porque não vale a pena o que lá está”, afirmou. “Houve um momento em que a cozinha deixou de ter a identidade que tinha, mas pode-se voltar atrás e remediar o mal que se fez. Por exemplo, acabaram os desperdícios na cozinha e tudo se reutiliza” , realçou, chamando a atenção para a necessidade de “se aproveitar tudo e com imaginação criar, respeitando os produtos”. Os dois filmes que apresentou – belíssimos registos da produtora “makinamarela” - ao som dos Sigur Rós, deixaram-nos numa melancolia boa a pairar na sala, a mostrar que aquilo que comemos pode e deve ser poesia e arte, identidade e memória. O segundo prato seria carne de porco à alentejana sem carne, apresentado de forma original, num lindamente melancólico balão de café. A carne à alentejana foi quase tudo menos carne mas só sabor. As amêijoas, essas sim, estavam lá, plenas em pujança, apenas atiçadas ao de leve por um caldo onde ferveu entrecosto de porco e espargos, cebola e soja, para sublinhar o umami, como Alexandre Silva sublinhou. Na parte cimeira do balão, colocaram-se os bivalves, hortelã da ribeira e coentros. Posteriormente, o caldo subiu depois de aquecido, indo abraçar as amêijoas, descendo de novo, clarificado. Um prato que, apesar da subtileza, seria para comer “com as mãos”, como convém, com pão a acompanhar. Um excelente tributo à gastronomia que todos deviam ter visto neste “Essência do Gourmet 2012”. Alexandre Silva disse ser um cozinheiro “a descobrir o que quer ser”. Por nós, pode ficar sempre assim. Tempo para recuperar, com um copo de vinho Santa Vitória Reserva tinto 2010. Depois de tanta poesia no prato, só mesmo um bocadinho na varanda, de copo na mão, a observar a noite a cair sobre os telhados e as claraboias. Encontramos pelo caminho mais um jovem chefe, Igor Martinho, que elogiou o evento “pela dinâmica criada entre chefes e público” e “sobretudo, por ser muito educativo”. “Os portugueses comem sempre o mesmo e esta é uma forma de dar novas ideias e de fazer crescer na cozinha. 

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o chefe na cozinha

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Este acaba por ser um evento de inspiração”, disse-nos. “Já conheço muitas das caras que todos os anos passam por aqui e nota-se sempre uma evolução na qualidade dos públicos, o que é muito bom”, complementou. Igor Martinho,chama a atenção para um assunto recorrente. Mais uma vez, a crise comanda. “As pessoas estão ávidas de usar as suas cozinhas pois já não podem tantas vezes ir jantar fora e convive-se muito mais em casa. Tudo mudou”. Prestes a abrir um novo restaurante em Rio Maior, Igor Martinho defende a “cozinha tradicional portuguesa”, usando “novas técnicas e inovação”, realçando que a tendência e “o regresso às origens”, depois do boomda cozinha molecular. “Volta-se a abrir as tascas, os bistrôs, porque têm de se fazer ementas com pratos mais baratos, evoluem-se as receitas, reformula-se com base na tradição. Ninguém paga mais 50€ por uma refeição completa. Isso acabou”, vaticina. Sustenta, por isso, que Portugal tem bons produtos que devem ser mais usados com orgulho. “Por exemplo, o arroz carolino é ótimo e único no mundo”. Com toda a razão. No entanto, se o carnaroli é famoso no mundo, do carolino poucos sabem ainda. Mas com o tempo lá iremos. Do arroz para o bacalhau. Vítor Sobral aproveitou o “Essência do Gourmet” para lançar o seu novo livro com 500 receitas de bacalhau. E claro, sendo que o fiel amigo era a estrela, há que apresentar no show cooking uma receita de bacalhau, a calhar com o Natal à porta. “As minhas receitas de bacalhau” (edição Casa das Letras, Grupo Leya), é um livro que revela “receitas base”, “sopas”, “saladas e petiscos”, “receitas de família” e “receitas de autor”. A obra nasceu depois de uma viagem do chefe à Noruega e apresenta ainda uma componente informativa em torno da história, pesca, espécie, tradição, utilizações e conselhos culinários relacionados com o bacalhau. A propósito, Vítor Sobral acabou por apresentar um prato simples, mas que tem muito que se lhe diga na sua aparente facilidade. E apesar de muito confecionado pelos portugueses, acaba por sê-lo, na maioria dos casos, mal. Falamos, claro, do célebre “bacalhau com todos”, um prato soberbo mas muito dependente de perfeitos pontos de cozedura. Aí, e na boa matéria-prima, está o busílis da equação.

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BACALHAU SEM SEGREDOS Mas se pensam que Vítor Sobral ia mergulhar o bacalhau em água, tirem o cavalinho da chuva. Fez algo bem mais prático e com resultados empíricos. Meteu as postas altas num tabuleiro com azeite e colocou papel de alumínio por cima, para o peixe largar os sucos e cozer na sua própria água e gelatina. Uma espécie de papillote, mas sem fechar. Colocou o bacalhau a 150º durante 25 minutos no forno. E aí saiu ele, em lascas suculentas, húmido mas sem água a pingar, pois foi cozido nos próprios sucos. No ponto. Se por acaso forem fãs de o mergulhar em água a ferver, façam-no “mas retirem o bacalhau mal a água recomece a ferver”. Depois, “deixem-no cinco minutos apenas na água, mas fora do disco do fogão”, alertou. “Só existem dois tipos de bacalhau: o bom e o mau; o pescado a anzol e à rede”. “Escolham o primeiro, sempre”. A cura é outro fator muito importante. “Escolham uma cura de seis meses e quando o bacalhau tiver cor palha é o melhor. Esqueçam o 'branquinho', que não presta, não o comprem”. Quanto aos legumes, foram cozidos juntos com alho e sal, exibindo no final um belíssimo “bacalhau com todos” que nos deixou com vontade que fosse já Natal. Mas a chefe Justa Nobre já se preparava para apresentar as suas propostas de entradas, “fáceis de executar em casa”. Ovos grati-

nados com molho bechamel e cebola, tártaro de atum e alheira desconstruída com grelos envolta em massa brick foram as sugestões. Uma sobremesa de arroz doce em versão de cuscos de Vinhais remataria a sequência. Na sessão fomos encontrar Marina, uma psicóloga que não falta a uma edição do “Essência do Gourmet” por ser apaixonada por cozinha. Tanto que hesita em mudar de profissão para seguir os instintos da sua paixão pela alquimia dos tachos e panelas, das ervas e condimentos. “A cozinha é um verdadeiro laboratório e tem uma alquimia muito própria. Invento imenso na cozinha e acho que essa é uma das facetas que mais aprecio. Por aí se pode ser criativa e dar largas à imaginação. É uma arte”, confessa. Palavras certeiras que encerravam este segundo dia cheio e divertido onde, acima de tudo, se aprendeu muito.

PRECONCEITOS LIBERTADOS Dia cinzento. Uma neblina glauca debruava o ambiente cá fora, mas dentro do Palácio da Bolsa as coisas aqueciam. Hermínio Costa (Egoísta, Póvoa de Varzim) ensinava como fazer maravilhas com uma pescada poveira. E que pescada. Repousava ela, cor de prata, na bancada da cozinha no Salão Árabe, inspiradora e a mostrar “o valor dos produtos portugueses”, como sublinhou o chefe, definindo a sua cozinha “como

simples e respeitadora do produto nacional”. Seria confecionada em escabeche com cebola roxa e puré de batata doce, a par de uma sopa de pescada com pão transmontano e ovos mexidos, onde se aproveitou lindamente a cabeça da pescada. Finalmente, lombos de pescada cozidos a vapor com milhos de presunto, a terceira proposta. Pratos que povoaram o Salão Árabe de um aroma contagiante. A clássica rabanada poveira encerrava em beleza as propostas com sabor a mar. Seguirse-ia o mote marítimo, mas desta vez com bacalhau, como quase não podia deixar de ser, vindo presentemente de Vitor Sobral, entusiasmado com o seu novo livro. Mais uma vez, explorou a temática dedicada ao gadídeo, mas agora sob o capítulo “Escuro com sabor”. Numa sessão de show cooking-relâmpago - onde quase foi mais rápido que a própria sombra - deixou à plateia uma proposta de bacalhau cozido em tinta de choco com trompetas. Cá por baixo, chamou-nos a atenção o espaço onde Luís Américo ensinava a cozinhar com morcela, junto muitos adeptos. Ao lado, o aroma de um peito de frango recheado com queijo Roquefort em risoto de pera com balsâmico atraiu-nos à prova. Finalmente, o ponto alto do dia era corporizado por Dalila e Renato Cunha (Ferrugem, Vila Nova de Famalicão), ao explorar o tema “porco bísaro: depurem-se de preconceitos”. Renato realçou a importância “de conhecer melhor as potencialidades dos subprodutos, tantas vezes esquecidos, mas com grande poder gastronómico”. Neste caso, havia que esmiuçar o porco bísaro, ou melhor, as suas peças menos nobres, mas nem por isso menos interessantes para um comensal ou um chefe de cozinha. Uma temática atual, interessante e bem explorada, onde criatividade, técnica e paixão se cruzaram de forma simples. Neste caso, a “provocação” de Renato, conforme o próprio definiu, seria usar “a língua e orelha” do suíno para confecionar propostas gastronómicas curiosas. E Renato não se inibiu de mostrar as ditas peças ao vivo e a cores, para completo “horror” e gáudio de outros dos presentes que torceram o nariz ao ver em direto no ecrã gigante uma descomunal orelha e língua de um animal que muitas vezes ultrapassa os 130 quilos de peso. Muito curioso. “Sou minhoto, tenho um restaurante no Minho e por isso quis apresentar um produto que

fosse um ícone da gastronomia minhota”, declarou e bem. O empratamento seria feito numa base original, ao usar uma pedra de sal de Loulé, fósseis com mais de 150 milhões de anos. A língua, em formato de uma espécie de lingote - cozida, em vácuo, a baixa temperatura durante 18h e frita de seguida para ganhar crocância - foi apresentada com puré de favas com chouriço, processado em creme. O mesmo procedimento seria aplicado à orelha, que encimaria em formato de rabiosque de porco sobre o lingote, num prato interessante e desafiador para os mais preconceituosos. Para apaziguar os ânimos, o momento doce mais uma vez radicou na coerência da apresentação, ou seja, o açúcar abraçou umas migas de toucinho do céu com chila e amêndoa, caramelo com aguardente vínica de laranja e gelado de Pudim Abade de Priscos, inspirando-se nos doces de raízes minhotas, sendo que o pudim em causa é feito com toucinho. E com este momento inspirador minhoto chegava ao fim mais uma edição do “Essência do Gourmet”, onde como sempre se aprendeu, partilhou e, acima de tudo, viveu-se intensamente a festa da cozinha. 

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