Peregrinação
Guião para um filme de João Botelho A partir do texto de Fernão Mendes Pinto Ilustrações de Miguel Lima Produção de Alexandre Oliveira Ar de Filmes - Outubro 2015
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CENA 1 – EXTERIOR DIA – GENÉRICO Uma nau portuguesa no alto mar enfrenta uma tempestade, raios no céu, altas vagas no mar e uma legenda: NO MEIO DO ATLÂNTICO, Março de 1537
O título do filme, o nome dos actores e técnicos principais serão inscritos no céu terrível de nuvens negras, rasgadas por grossos raios que ziguezagueiam até ao mar, ouvindo trovões que ensurdecem, nas sucessivas paredes de água que a chuva intensa forma, no mar encrespado de ondas tão altas, que de quando em vez, saltam as amuradas para varrer o convés, nas pipas e nas arcas, que apesar de rijamente atadas ao mastro do traquete e mastro real, deslizam e batem com estrondo umas nas outras, nas velas de cruz de cristo em vermelho sangue, demasiado enfunadas e que começam a ser arreadas para não rasgar, nas mãos rudes e esfoladas dos marinheiros que trabalham as cordas, nos rostos em pânico de outros agarrados às amuradas, ou às escadas dos castelos da popa e da proa, rezando ladainhas, de Pais Nossos a Salve Rainhas, que se não ouvem abafadas pelos medonhos barulhos vindos do céu e vindos do mar.
Ao longe, debatendo-se na tempestade, as quatro outras naus da armada, sem capitão-mor, a São Roque, a Flor do Mar, a Santa Bárbara e a Galega e ao perto a nau Rainha onde um homem esguio de olhos muito abertos, espantado, atravessa com muita dificuldade, escorregando, quase caindo, o convés inclinado e alagado, passando pelos muitos que na tolda estão a descoberto, porque não tiveram vinte e cinco mil e duzentos reis para pagar o “agasalho” das cobertas da proa e da popa. Avança resistindo ao vento e a água escorrendo-lhe pelos cabelos, torna-lhe a barba negra pontiaguda e luzidia. É Fernão Mendes Pinto, no meio dos seus vinte anos, jovem mas homem feito, que depois de admirar o espectáculo de uma natureza, tão fascinante com ameaçadora, vai resguardar o seu entusiasmo e o seu medo no espaço coberto da proa, que o mestre do navio, em pé à porta, controla com o seu apito de prata.
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CENA 2 – INTERIOR DIA Nas trevas do interior da coberta da Nau Rainha, Fernão Mendes encontra D. Pedro Silva, capitão do navio, que segura uma lanterna fechada a cadeado onde arde uma grossa vela. Esta única luz vai iluminando e escurecendo à vez o rosto dos dois homens. FERNÃO MENDES Que Deus nos conceda a sua misericórdia divina. Pois se isto é muito belo, é igualmente muito medonho, coitados dos de lá de fora.... D. PEDRO SILVA (cortando) É mais honra ser marinheiro vulgar numa nau, do que contra-mestre num navio meão... Eles não têm medo, são tão fortes quanto honrados. FERNÃO MENDES Que tomem os homens motivo para não desanimarem com os trabalhos da vida, para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino. D. PEDRO SILVA E o Senhor Fernão Mendes, porque quer ir nesta aventura? FERNÃO MENDES O que se paga hoje em casa de príncipes não basta para aminha sustentação. Então determinei embarcar-me nesta carreira da Índia, ainda que com poucas ilusões, disposto a toda a ventura, má ou boa que me suceda... D. PEDRO SILVA (desconfiado) Só isso não basta para quem não é marinheiro e é moço de palácio! FERNÃO MENDES Bem, Senhor D. Pedro, meu capitão, é verdade que me sucedeu um caso que me pôs a vida em risco e que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de Lisboa, fugindo com a maior pressa que pude. D. PEDRO SILVA Ah! E pode saber-se a coisa?
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FERNÃO MENDES Não posso Senhor contá-la. Prometi. Só sei que corri tanto até que parei no Cais da Pedra, onde achei uma caravela, que ia com cavalos e fatos de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava resguardado ElRei D. João III, que Santa Glória haja, por causa da peste que havia em Lisboa e em muitos lugares do reino,. Mas cuidando escapar de perigos, fui encontrar outros maiores. A caravela foi atacada por um Corsário Francês pelas bandas de Sesimbra, que nos roubou tudo, feriu muitos e quase me matou. Depois recuperei e estive ao serviço de D. Jorge Mestre de Santiago. D. Pedro Silva encolheu os ombros e o piloto, de bússola na mão, veio chamá-lo, e ele saiu. Fernão Mendes aproveitou para se sentar na arca, que tinha os seus pertences. Na semi-escuridão abriu um sorriso enigmático nos lábios finos, suspirou profundamente e os seus olhos iluminaram-se com se estivesse a lembrar-se de qualquer coisa extraordinária, qualquer provocação excitante que lhe tivesse marcado a sua jovem vida. CENA 3 – INTERIOR NOITE Chuva batendo nas portadas de madeira mal fechadas, na janela alta do quarto amplo de um palacete. A água entra pelas frestas e escorre pelos cortinados de veludo azul, inundando a madeira do chão. Na poça de água que vai crescendo, uma legenda... LISBOA Inverno de 1533, CASA DE D. FRANCISCO FARIA
Um candelabro com as chamas das velas muito inclinadas pela ventania é a única luz daquele quarto amplo de paredes de pedra polvilhadas de quadros religiosos e onde se destaca um grande crucifixo. Na cama alta de dossel, com pés de madeira torneados, cabeceira com inocentes e dourados anjos esculpidos, uma bela mulher à volta dos trinta anos, ricamente vestida e ostentando um decote largo, que lhe mostra muito o colo, de seios a arfar vai despindo devagar um jovem entre os doze e os catorze anos, ao mesmo tempo que lhe beija o rosto, o pescoço e depois as costas nuas. O jovem tão inquieto, como excitado e ela, enquanto o acaricia, vai-lhe sussurrando ao ouvido... D. JOANA DA SILVA Gostas mesmo de mim? FERNÃO MENDES (em jovem) Sabe bem que sim, senhora minha.
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D. JOANA DA SILVA Farias tudo por mim, Fernão Mendes? FERNÃO MENDES Tudo, tudo o que vossa senhoria quiser e mandar! D. JOANA DA SILVA (apontando-lhe) Sem ninguém saber, entregas aquela carta a D. Manuel Freire, o cavaleiro de El-Rei de quem também muito gosto? Sabes guardar um segredo? FERNÃO MENDES Senhora, sim! Então ela procurou-lhe a boca e ele desajeitadamente abriu um pouco a dele. Em seguida agarrou-lhe com força a mão para a meter entre as pernas dela e a boca gritou e mordeu com violência o ombro do jovem Fernão Mendes. Os sons que os dois emitiram começaram a sobrepor-se ao da chuva e do vento, os corpos agitaramse. Mas, a crescer vindos do corredor de chão de pedra, os sons de vozes e passos fortes, o tilintar de metais e a luz das tochas a crescer, para atravessar as frinchas da porta, interromperam o acto amoroso. D. JOANA DA SILVA D. Francisco, meu marido! E vem com o mouro assassino! Meu Deus, foge! Vai, vai Fernão Mendes! Ele mata-te! Ele mata-nos! Então Fernão Mendes, nu, salta da cama e numa rapidez estonteante agarra nas roupas, nas botas e atira-se pela janela. Uma rajada de vento dobra e apaga as velas. Na obscuridade, com rosto cheio de aflição, a bela e jovem mulher de D. Francisco Faria, amarfanha a carta e cobre o corpo meio despido com a manta escura de pêlo de seda. Correria louca de Fernão Mendes Pinto, com corpo nu recebendo a chuva forte, arrastando a roupa, os pés enlameados escorregando no chão de terra da alameda que sai do palacete. Som muito alto de cães a ladrar. CENA 4 – EXTERIOR DIA No coberta da Nau Rainha, Fernão Mendes ergueu-se para espreitar pela vigia a tempestade a afastar-se, por de trás do comboio das naus. Sorri e sai para o convés. Num mar calmo a proa da Nau Rainha rompe as vagas. Nas cordas dos mastros e no convés a azáfama dos marinheiros, que agora cantam... CORO Ah mas que ingrata ventura Bem me posso queixar da Pátria a pouca fartura
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Cheia de mágoas ai quebra-mar Com tantos perigos ai minha vida Com tantos medos e sobressaltos Que eu já vou aos saltos Que eu vou de fugida Sem contar essa história escondida Por servir de criado essa senhora Serviu-se ela também tão sedutora Foi pecado Foi pecado E foi pecado sim senhor Que vida boa era a de Lisboa VOZ de Fernão Mendes Demorou mais de um ano esta viagem, mas prouve a Nosso Senhor que todas as naus chegassem a salvamento, não a Goa, mas à fortaleza de Diu, por suspeita da vinda da armada do turco, que se esperava na Índia, por causa da morta do Sultão Bandur, Rei de Cambaia, que o governador tinha morto no verão anterior. Dezassete dias apenas permaneci na fortaleza de Diu. Duas fustas se faziam prestes para irem ao estreito de meca saber a certeza da armada do turco. O Capitão de uma delas mostrou-me muito fácil, sair eu da viagem muito rico em pouco tempo, que era o que eu mais pretendia que tudo. Voltam a cantar... CORO Vou no espantoso trono das águas vou no tremendo assopro dos ventos vou por cima dos meus pensamentos arrepia arrepia e arrepia sim senhor que vida boa era a de Lisboa
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CENA 5 EXTERIOR E INTERIOR DIA Uma janela ampla dá para um jardim meio selvagem. Árvores altas a ladear arbustos cortados em sebes que formam uma espécie de labirinto. Uma criança com menos de sete anos aparece e desaparece a correr à frente de uma ama gorda e esbaforida. Vozes e gritaria. Sentada num banco de pedra, perto de um canteiro amontoado de rosas vermelhas, uma jovem mulher a sorrir, com uma criança de um ano ao colo.
Uma legenda: QUINTA DE VALE DO ROSAL, ALMADA, Primavera de 1570 Recuamos para o interior de um salão para se ouvir melhor a voz do homem que está a ler o que escreve. É um homem no início dos seus cinquenta anos, magro, de cabelos compridos e grisalhos, assim como grisalha é a farta barba. Tem os olhos vivos, mas encovados e está sentado a uma mesa repleta de livros e de mapas com um grande castiçal de velas apagadas ao centro. Um raio de sol vindo da janela ilumina a mão esguia e ossuda que sustenta a pena. O que se ouviu sobre a cena do jardim e o que se ouve agora saindo dos seus lábios, quase sem cor... FERNÃO MENDES PINTO Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor, tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da Ventura, que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratarme, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande
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glória. Porque vejo que não contente de me pôr na minha pátria, logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da índia, onde, em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas, por outra parte, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre em salvo e pôr-me em seguro, acho que não tenho tanta razão de me queixar por todos os males passados, quanta de Lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu podesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos. Em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macaçar, Samatra, e outras muitas provindas daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, équios, nomeiam nas suas geografias por “pestana do mundo”. O som das últimas frases começa a desaparecer ao ser substituído pelo som de uma batalha no mar. CENA 6 – EXTERIOR DIA Numa nau turca capturada junto ao Mar Vermelho a primeira grande violência a que Fernão Mendes Pinto assiste. Um mar de corpos de turcos, trocos nus ensanguentados saídos das calças largas e rotas. No chão vermelho de sangue, toucas, bandeiras, terçados (adagas) e o capitão turco ferido, torturado a gemer e a responder. CAPITÃO PORTUGUÊS De onde vens? Como o Capitão Turco, de mãos atadas atrás das costas e de tronco nu inclinado, não responde, sofre pancadas que lhe abrem mais feridas nas costas e que lhe levam a cabeça a bater no chão e depois geme desalmadamente. CAPITÃO TURCO De Judá onde nasci. CAPITÃO PORTUGUÊS E a grande armada? CAPITÃO TURCO (depois de outras pancadas) Já partiu do Suez.
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CAPITÃO PORTUGUÊS E vai para onde? CAPITÃO TURCO Tomar Aden. Construir uma fortaleza antes de atacar a Índia. (E depois entusiasmando-se com a possível vingança para o seu actual tormento). O Baxá do Cairo que vem como Capitão Mor, cumprindo a ordem que o turco lhe mandou de Constantinopla vai acabar com os Portugueses. CAPITÃO PORTUGUÊS Tu que falas assim, não és português? CAPITÃO TURCO Sou Cristão renegado, maiorquino de nação, natural de Sardenha, filho de Paulo Andrés o Mercador. Já fez quatro anos que me tornei mouro, por amor de uma grega moura, a quem me liguei por casamento para a vida inteira. CAPITÃO PORTUGUÊS (estendendo-lhe um crucifixo) E não queres voltar a ser cristão? O turco maiorquino nas últimas forças gritou e atirou o corpo de braços atados para cuspir no cristo. Olhar de Fernão Mendes Pinto e depois a sua voz enquanto decorre a acção, em que o turco é agarrado, amarrado por grossas cordas. Ao pescoço dele é atada uma enorme pedra e assim o corpo é atirado ao mar. VOZ de Fernão Mendes Parecia que tinha nascido e sido criado sempre naquela maldita seita. Cego e desatinado, estava este mal aventurado, no conhecimento da Santa Católica verdade de que agora lhe falavam, ele que tinha sido cristão há tão pouco tempo. Os Capitães encheram-se de cólera, com zelo santo da honra de Deus. Mandaram-lhe atar os pés e mãos e vivo foi lançado com uma grande penedo ao pescoço, de onde o diabo o levou a participar nos tormentos de Mafamede em quem tão crente estava. A nau dele com os mais vivos e mortos foi metida ao fundo por ser a fazenda fardos de tinta do género do pastel, que não nos servia para nada, tirando algumas peças de chamalote, que os soldados tomaram para se vestir.
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CENA 7 – EXTERIOR DIA Num dourado e extenso campo de trigo, uma comitiva de marinheiros portugueses arrastam mulas carregadas, conduzidas por um jovem de dezassete anos, filho do Barnagais, governador deste império da Etiópia, montado num cavalo ajaezado à portuguesa, com arreios de veludo roxo e franjas de ouro. VOZ de Fernão Mendes Nas terras do mítico Preste João, que ninguém vê mas todos temem e respeitam, este nosso aliado na guerra da cristandade contra o turco, para quem levávamos uma carta de António Silveira, dois dias e meio demorámos a chegar à fortaleza Gileytor onde Henrique Barbosa e quarenta portugueses nos receberam com muita alegria acompanhada de grande cópia de lágrimas, porque embora em tudo sendo senhores absolutos de toda a terra em volta, não se sentiam satisfeitos nela, por ser aquilo desterro e não pátria sua. No dia seguinte não vimos Preste João, mas fomos recebidos por sua mãe, a princesa que nos mandou entrar na capela onde já estava para ouvir missa. CENA 8 – INTERIOR DIA Igreja Cristã no reino de Preste João, actual Etiópia.
A princesa mãe com a pele de um negro muito azulado, olhos vivos e um sorriso franco benevolente, está vestida com roupas coloridas, enfeitada com colares de ouro e um chapéu de penas, recebe Fernão Mendes Pinto e a embaixada de Henrique Barbosa. Todos de joelhos diante dela, beijando-lhe um a um o abano.
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O grupo de portugueses senta-se depois em umas esteiras, quatro ou cinco passos afastados dela. PRINCESA MÃE A vinda de vós outros, verdadeiros cristãos é para mim agora tão agradável, e foi sempre tão desejável, e o é todas as horas por estes meus olhos que tenho no rosto, como o fresco jardim deseja o fresco da noite. Venhais em boa hora, venhais em boa hora, e seja em tão boa hora a vossa entrada, nesta minha casa, como a da Rainha Helena o foi na Terra Santa de Jerusalém. Nas paredes enfeitadas com imagens de Cristo, no altar onde reluz uma cruz de ouro. Depois, no rosto dos portugueses e também no da Princesa.... VOZ de Fernão Mendes Com a boca cheia de riso, perguntou-nos pelo Papa, como se chamava, quantos reis havia na Cristandade, porque se descuidavam tanto os portugueses na destruição do turco, se era grande o poder que El-Rei de Portugal tinha na Índia, quantas fortalezas havia lá e em que terras. Nove dias vivemos com todas honras no seu palácio e quando finalmente nos despedimos e lhe beijamos as mãos, depois de nos entregar a carta de resposta ao governador e uma arca cheia de oiros, ela disse-nos com as lágrimas a caírem-lhe do rosto: “Que na Índia, os vossos vos recebam como o antigo Salomão recebeu a Rainha do Sabá na casa admirável da sua grandeza.” CENA 9 – EXTERIOR DIA Fernão Mendes Pinto encostado à amurada da fusta Silveira, o barco espião de vela triangular e com mais de trinta remos, em que os portugueses navegavam entre o Mar Vermelho e a Índia, tem na mão um saco de couro, para onde despeja moedas de ouro depois de as contar. VOZ de Fernão Mendes A cada um de nós quatro nos mandou dar vinte oqueás de oiro, que são duzentos e quarenta cruzados e ao Vasco Martins Seixas entregou um presente muito mais rico, de muitas peças de oiro para o Governador da Índia, mas tudo se iria perder no caminho... UM GRITO Além, Além! Três naus turcas, maldição!
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HENRIQUE BARBOSA (desesperado) Remem, remem a toda a força que o raio do vento amainou... Santo Deus, já nos viram! Gritaria algazarra longínqua, cada vez mais audível, quando as três mosquetas turcas com velas quarteadas de cores e muitas bandeiras de seda, ficam cada vez mais nítidas. Agora são os poucos marinheiros portugueses da fusta, atarantados e com medo a transformar-lhes o rosto, esperando o ataque desenfreado dos turcos. E cantam o seu desespero.... CORO O mar das águas ardendo o delírio do céu a fúria do barlavento arreia a vela e vai marujo ao leme vira o barco e cai marujo ao mar vira o barco na curva da morte e olha a minha sorte e olha o meu azar e depois do barco virado grandes urros e gritos na salvação dos aflitos estala, mata, agarra, ai quem me ajuda reza, implora, escapa, ai que pagode rezam tremem heróis e eunucos são mouros são turcos são mouros acode! Aquilo é uma tempestade medonha aquilo vai p’ra lá do que é eterno aquilo era o retrato do inferno vai ao fundo vai ao fundo e vai ao fundo sim senhor que vida boa era a de Lisboa Fundido ao negro...
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CENA 10 – EXTERIOR DIA Abertura de fundido para uma rua estreita e poeirenta que termina no largo de uma cidade árabe. Nove cativos portugueses esfarrapados e ensanguentados, atados e arrastados por correntes por soldados turcos, que empunham adagas e fustigam com vergas de couro as costas dos prisioneiros. Gritaria acompanhando os tangeres de instrumentos musicais. VOZ de Fernão Mendes Ali, em Moca desembarcamos os nove que ficámos vivos. Até as mulheres encerradas, os moços e os meninos nos lançavam das janelas muitas panelas de urina em insulto e desprezo do nome Cristão e era já quase sol posto quando nos meteram numa masmorra já quase debaixo do chão e na qual tivemos dezassete dias na maior desventura e sofrimento, sem que em nenhum desses dias nos darem mais do que um pouco de farinha de cevada e algumas vezes grãos crus que molhávamos em água. E uma manhã, dois da conta dos nove amanheceram mortos, um de nome Nuno Delgado e outro André Borges que vinham feridos com golpes profundos na cabeça. Não tiveram no cárcere beneficio da cura e isso foi a causa de acabarem tão depressa. Era o dia 6 de Novembro 1538. CENA 11 – INTERIOR DIA Masmorra, uma luz coada vinda das grades do tecto, que não eram mais que umas barras de ferro a tapar uns furos no chão da rua, bate no rosto muito magro, os olhos tão fundos que parecem desaparecer, de Fernão Mendes.
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Ele está sentado de tronco nu, as calças não são mais do que bocados de farrapos e os seus pés feridos a esfregar a terra. Movimento em volta, ratos e baratas correm no chão. VOZ de Fernão Mendes Por a minha parte fui posto em leilão e comprado por um grego renegado, o mais desumano e cruel inimigo que jamais se viu no mundo. Estive tentado em matar-me com peçonha, mas Nosso Senhor fez mercê de o impedir. Muitos dias depois deste meu padecimento, um judeu de nome Abraão Murça, natural de Toro, a duas léguas e meia do Monte Sinai, comprou-me ao Grego a troco de uma quantidade enorme de tâmaras no valor de doze mil reis e me levou com ele até Ormuz. CENA 12 – EXTERIOR DIA Pátio de uma casa nobre, do outro lado do Tejo diante de Lisboa e uma legenda sobreposta: ALMADA MEADOS DE 1577
Um grupo de provedores do Mosteiro, Francisco Sousa Tavares, Brite Castello e João Lobo, ouvem Fernão Mendes Pinto, sentados entre as arcadas de pedra que recortam ao fundo e ao longe a Lisboa de sec. XVI. FERNÃO MENDES Eu era novo e robusto, não havia nada que me quebrasse, mas dei muitos louvores a Nosso Senhor pela mercê de continuar vivo. Em Ormuz, D. Fernando de Lima, capitão da Fortaleza e o Doutor Pêro Fernandez, ouvidor geral da Índia, comovidos da minha desgraça por esmolas que recolheram casa em casa naquela terra e pelo que me deram das suas próprias casas juntaram duzentos pardaus, que deram por mim ao judeu, com o que ele se deu por muito bem pago. E dezasseis dias depois me embarquei para a Índia, numa nau que transportava cavalos para Goa. JOÃO LOBO (desviando a atenção) Olha quem vem, o senhor Cronista-Mor do reino. Fernão Mendes interrompe a narrativa para correr para o recém chegado. FERNÃO MENDES (reverente) Francisco Andrade, conseguiu? Sua Alteza recebe-me?
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FRANCISCO ANDRADE Tenha calma, não agora. Ainda não terminou em ouvir Luís Vaz e está muito entusiasmado. FERNÃO MENDES (abanando a cabeça) Ah, Camões! Mas que verdade há em poemas? FRANCISCO ANDRADE Os Lusíadas caro senhor, a maravilhosa epopeia dos portugueses. FERNÃO MENDES Poemas.... FRANCISCO ANDRADE E os seus relatos desmedidos são verdadeiros? FERNÃO MENDES Tão verdade como eu existir. FRANCISCO ANDRADE (afastando-se para cumprimentar os provedores que já o esperavam em pé) É tão difícil acreditar. Por momentos uma mágoa atravessou o rosto de Fernão Mendes, mas logo de seguida os seus olhos abriram de um brilho intenso. CENA 13 – INTERIOR DIA Palácio do Vice-Rei da Índia D. Garcia de Noronha em Goa. Uma legenda: Novembro de 1538
Encostado aos cortinados de seda vermelha bordada a ouro, com enfeites de verdes brilhantes, um Fernão Mendes convalescente de feridas da última batalha, ao lado de um padre seu amigo, espreita pela janela. O porto está ocupado por uma “assaz grande e formosa armada, em que haveria duzentos e vinte cinco barcos, dos quais só oitenta e três eram de alto bordo, entre naus galeões e caravelas, sendo as demais galés, bergantins e fustas, onde se afirmavam que iriam dez mil homens limpos e trinta mil criados, do serviço de marcação e escravaria cristã”.
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FERNÃO MENDES (para o padre) Santo Deus, tantos! PADRE É o que o Senhor Vice-Rei acha todo o necessário para derrotar e fazer fugir o turco. (Limpa o suor da testa com a manga da batina negra). O maldito Baxá cerca Diu há mais de um mês e a sua pólvora tem feito muitos estragos na fortaleza e muita morte de cristãos. Mas vai pagá-las. Louvado seja Nosso Senhor que nos vingará de Mafamede. De repente um grito interrompe a ladainha... VICE-REI Malditos, malditos! Fernão Mendes olhou na direcção do cadeirão real, onde D. Garcia de Noronha se tinha posto em pé. A seu lado estava um catur de Diu que lhe tinha acabado de entregar umas cartas. Muitos outros fidalgos se tinham aproximado do Vice-Rei. VICE-REI (batendo fortemente a mão nos pergaminhos) Diz aqui o António Silveira que os turcos abalaram.
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Na confusão dos movimentos que se seguiram, e que muito contrastavam com os sorrisos e a delicadeza dos homens e mulheres indianos que serviam no palácio, ouvimos... VOZ de Fernão Mendes Todos foram tomados por uma notável tristeza, pelo desejo que todos tinham para se haver com esses inimigos da nossa Santa Fé. PADRE (segredando-lhe ao ouvido) Goa está cheia de espias secretos, gentios e mouros. O Baxá tem sido avisado todos os santos dias por cartas do Hidalcão e do Samorim, Rei de Calecute pelo Inezamaluco e pelo Acedecão. E soube destas nossas forças, fugiu de medo! Enquanto D. Garcia de Noronha distribuía ordens pelos seus fidalgos que se inclinavam diante dele no vasto salão, ouvimos.... VOZ de Fernão Mendes Então o Senhor Vice-Rei ordenou que duas naus partissem imediatamente para o reino de Portugal, uma capitaneada por Martim Afonso de Sousa e outro por Vicente Regado, e que nela fosse Doutor Fernão Rodrigues de Castelo Branco, vedor da fazenda, para que recolhessem em Cochim a carga de pimenta e atendessem o anterior governador D. Nuno da Cunha, que já estava há muitos dias na Nau Santa Cruz, mal disposto e um tanto descontente por não lhe terem o respeito que esperava e que tinha para si que merecia, pelos serviços prestados. PADRE (passando da ironia ao tom sério) D. Garcia de Noronha quer governar o mundo em seco! Mas tu serve bem Pêro Faria, o Senhor Capitão de Malaca, que é fidalgo honrado e que seguramente te dará toda a amizade possível, mas também honras e proveitos. CENA 14 – INTERIOR DIA Salão principal da Fortaleza em Malaca. Uma legenda: MALACA, Junho de 1539
O novo capitão, Pêro Faria, tem a seu lado Fernão Mendes. Estão ambos rodeados por soldados portugueses com lanças erguidas e com as bandeiras do Reino. Sentado num cadeirão de madeira escura, Pêro Faria recebe
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os embaixadores dos reinos vizinhos. Destaquemos um, cujos criados depositam no chão um extraordinário presente de paus de águila e calamba, cinco quintais de benjoim de boninas. O Embaixador lê uma carta escrita em folha de palmeira, que o intérprete traduz de malaio para português. INTÉRPRETE Cobiçoso mais que todos os homens do serviço do Leão coroado no trono espantoso das águas do mar, assentado por poderio incrível no assopro de todos os ventos. Príncipe rico do grande Portugal teu senhor e meu, ao qual em ti, varão de coluna de aço, Pêro de Faria, novamente obedeço por verdadeira e santa amizade, eu Angeessiry Timorraja, Rei dos Batas. Para que os frutos desta minha terra enriquecer os teus súbditos, me ofereço por novo trato, de ouro, pimenta, cânfora, águila e benjoim encher essa alfândega do teu Rei e meu, com tanto que na firmeza de tua verdade me mandes um cartaz de tua letra para minhas lancharas e jurupangos navegarem seguros com todos os ventos. Enquanto o embaixador continua a ler, aproximemo-nos de Pêro Faria para ouvir o que segreda aos ouvidos de Fernão Mendes... PÊRO FARIA O Rei dos Batas, o Rei dele, habita a Ilha de Samatra do outro lado do oceano onde se presume que jaz a Ilha do Ouro que El-Rei Nosso Senhor D. João III já por várias vezes tentou mandar descobrir por informações que destas partes alguns capitães lhe escreveram. Tu Fernão Mendes, vais levar-lhes o que eles pedem, o meu agradecimento e acima de tudo saber da ilha. Se fores, eu terei nisso muito gosto. INTÉRPRETE (acabando a leitura) E te peço, que dos esquecidos de teus armazéns me socorras com pelouros e pólvora, de que ao presente me acho muito falto, para castigar os perjuros Achéns, inimigos cruéis dessa tua antiga Malaca, com os quais te juro de em quanto viver nunca ter paz nem amizade, até tomar vingança do sangue de três filhos meus, que este cruel tirano matou nas povoações de Jacur e Lingau, como mais particularmente em nome de minha pessoa to dirá Aquarem Dabolay irmão da triste Mãe destes filhos, que de mim te envio por nova amizade. De Panaju aos cinco mamocos da oitava Lua.
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CENA 15 – EXTERIOR DIA Os animais fabulosos que Fernão Mendes Pinto nunca tinha visto enquanto descia um rio na costa do Reino de Aaru, encostado à morado convés da embarcação, chamada de Jurupango, uma espécie de pequena caravela.
Nas margens do rio uma sucessão de animais de aspecto inacreditável, no rosto de Fernão Mendes e dos companheiros a completa estupefacção, que não são mais do que os dragões de Komodo e salamandras gigantes. VOZ de Fernão Mendes Então eu vi, num pequeno rio de sete braças de fundo, a que chamavam Guateannguin, por entre o arvoredo do mato, muita quantidade de cobras e de bichos de tão admiráveis grandeza e feições, que é muito para recear contá-lo, pelo menos a gente que viu pouco, porque esta, como viu pouco, também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram. Um traveling para o outro lado, mostrando lagartos que parecem serpentes, alguns do tamanho de uma almadia (canoa), mas com uma concha por cima do lomba, com bocas com mais dois palmos, soltos e atrevidos no ataque com movimentos de cauda tão poderosos que podem despedaçar barcos e com a bocarra engolir homens por inteiro. VOZ de Fernão Mendes E também uma muito nova maneira e estranha feição de bichos, a que os naturais da terra chamam «caquesseitão», muito pretos, conchados pelas costas, com uma ordem de espinhos pelo fio do lombo do comprimento de uma pena de escrever, e com asas da feição das do morcego, c’o pescoço de cobra, e uma unha a modo de esporão de galo na testa, c’o rabo muito comprido pintado de verde e preto, como são os lagartos desta terra.
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CENA 16 – INTERIOR DIA Panaju, metrópole do Reino Bata. Palácio. Fernão Mendes diante de El-Rei dos Batas faz o acatamento, isto é põe três vezes o joelho no chão antes de lhe entregar a carta de Pêro Faria. A seu lado, vários marinheiros portugueses depositam nos tapetes do chão o presente dos portugueses que consiste em algumas panelas de pólvora, rocas, bombas de fogo e outras armas. Sons de sinos, gritaria chusma e estrondo de atabaques (espécie de tambor parecido com um barril). O Rei dos Batas muitos contente, ergue-se do bailéu, que é a tribuna em que estava sentado, para se pôr de joelhos diante de uma caveira de vaca, depositada numa prateleira ou cartideira, muito enramada de ervas de cheiro, com os cornos ambos dourados e levantado as mãos para ela, quase chorando disse... REI DOS BATAS Tu, que sem obrigação de amor maternal a que a natureza te obrigasse, recrias continuamente todos aqueles que querem o teu leite, como faz apropriada mãe ao que pariu, eu te peço de coração, que nesses prados do sol onde com a grande paga e galardão que recebes estás satisfeita do bem que cá fizeste, conserves comigo nova amizade deste bom Capitão, para que ponha em obra isto que agora acabei de ouvir. OS SÚBDITOS (dizem três vezes) Pchy parau tinacor! (o que quer dizer “Oh quem o visse e logo morresse” e foi isto que o intérprete traduziu para Fernão Mendes) El-Rei limpou os olhos das lágrimas, que a eficácia da oração lhe tinha feito derramar. VOZ de Fernão Mendes E as lágrimas também eram pelo sentimento da morte dos seus três filhos, à mão dos turcos, que sempre com mostras de muita tristeza se enxergou neles. E eu prometi-lhe toda a ajuda de Pêro Faria e dos Portugueses contra o Rei Achém aliado dos turcos. REI DOS BATAS Ah Português, Português, rogo te que não faças de mim tão néscio, já que queres que te responda, que cuide que quẽ em trinta anos se não pode vingar a si, me possa socorrer a mim, porque como o Rei de vós outros, e os seus Governadores, não castigaram este inimigo, quando vos tomou a fortaleza de Pácem e matou mais de mil de vós outros, fora a presa riquíssima que tomou nelas, logo foi para ele me destruir a mim e eu ter muito poucas esperanças em vossas palavras, basta-me ficar como fico, com três filhos mortos e a maior parte do meu reino tomada, e vós na vossa Malaca não muito seguros.
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VOZ de Fernão Mendes Com esta resposta dita com tanto sentimento confesso que fiquei tão corrido e embaraçado, que nunca mais lhe falei em socorros nem ousei repetir as promessas que antes lhe fizera, por nossa honra. REI DOS BATAS E assim te digo que digas de minha parte ao Capitão de Malaca, inda que já lho tenho escrito, que se vigie continuamente deste inimigo Achem, porque em nenhuma outra coisa imagina, se não em como vos há de lançar fora da Índia e meter nela o Turco. El-Rei fez um gesto brusco, bateu com o estrondo o bastão e estendeu o braço numa ordem firme. Por detrás de um enorme reposteiro de seda apareceram servos carregando presentes para o Governador de Malaca. Estendeu também um pergaminho a Fernão Mendes, que o recebeu, dobrando os joelhos e baixando a cabeça. Por três vezes o fez. VOZ de Fernão Mendes (descrevendo os presentes) Seis azagaias com os alvados de Oiro, doze cates de calambuco, com uma buceta de tartaruga guarnecida de ouro, cheia de aljofre grosso, dezasseis pérolas de bom tamanho e a mim fez-me mercê de dois cates de oiro e um terçado pequeno guarnecido do mesmo. E despedindo-me dele com muita abundância de honras me vim embarcar acompanhado do seu cunhado Aquarem Daholay, que regressava de Malaca como embaixador e de um mouro que se dizia convertido chamado Coja Ale, que era feitor do capitão, mas que era falso e ladrão perigoso. CENA 17 – EXTERIOR DIA O Jurupango, o pequeno navio malaio de vela e remos, deslizando no mar calmo entre ilhas. Uma pequena ilha ao fundo e uma enorme a aproximar-se. Depois navegando ao longo de um rio de águas calmas. VOZ de Fernão Mendes Do ilhéu Apefingau ao porto de Juncalão, com ventos bonaçosos em dois dias e meio fomos surgir no Rio de Parlés do Reino de Quedá, onde algo de muito estranho tinha acontecido e coisa ainda mais estranha me iria suceder.
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CENA 18 – EXTERIOR AMANHECER Fernão Mendes, vindo do interior do jurupango, foi cercado por sete malaios armados com terçados, copos e lanças, o que o pôs em grande confusão. Agarrado, amarrado, esbracejou e gritou. Os seus gritos foram traduzidos quase em simultâneo pelo marinheiro malaio seu intérprete. FERNÃO MENDES Dou-vos quarenta cruzados de oiro, dou-vos quarenta cruzados se me deixarem em paz! Os malaios que lhe agarram os braços riem-se, enquanto sobem a bordo outros quinze ou vinte “daqueles armados” até que o que parece ser o que comanda, lhe grita na cara, e já com o intérprete de cabeça baixa e com os braços atados por fortes cordas a repetir em português INTÉRPRETE Nem que nos desses todo o dinheiro que há em Malaca. Se tal fizéssemos nos mandaria El-Rei cortar as cabeças. E não te matamos já, como fizemos ao mouro Coja Ale, porque El-Rei quer ver-te. CENA 19 – EXTERIOR DIA Terreiro interior de um palácio. El-Rei de Quedá em cima de um poderoso elefante enfeitado de sedas valiosas que lhe caiem do lombo, está rodeado por guardas armados e muitos outros homens. Fernão Mendes apavorado e de mãos atadas nas costas, com o intérprete malaio a seu lado na mesma situação, mas com o tronco ainda mais curvado e a cabeça pendente, os olhos no chão, nunca se atrevendo a olhar para o rei.
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Um vozeirão vindo do alto, caiu até eles... REI DE QUEDÁ Jangão tacor! Jangão tacor! INTÉRPRETE (sussurra) Não tenhas medo, não tenhas medo! Então o Rei apontou com a mão para um sítio onde os guardas abriram uma clareira e para onde Fernão Mendes deveria olhar. De bruços no chão, havia muitos corpos mortos, todos metidos num charco de sangue. Fernão Mendes foi empurrado para aquela carnificina onde reconheceu o mouro Coja Ale. Pasmado, confuso, desatinado arremessou-se ao chão junto às patas grossas do elefante. FERNÃO MENDES (chorando) Peço-te Senhor que antes me tomes por teu cativo do que me mandares matar como a esses que aí jazem, porque te juro, que à lei de cristão, que o não mereço, E lembro-te que sou sobrinho do capitão de Malaca, que te dará por mim quanto dinheiro quiseres, e aí tens o Jurupango com muita fazenda, que também o podes tomar se fores servido. REI DE QUEDÁ (gritando do alto) Valha-me Deus! Como? Tão mau homem sou eu que isso faça? Não tenhas medo de coisa nenhuma, senta-te e descansa, que bem vejo que estás afrontado. Depois que estiveres mais em ti, te direi porque mandei matar esse mouro que trouxeste contigo, porque se fosse português ou cristão, eu te juro por minha lei o não faria, ainda que me tivesse morto um filho. Deu uma nova ordem. Um panelão com água fresca é trazido até Fernão Mendes. Com as mãos libertas das cordas, ele pôde beber uma grande quantidade enquanto dois homens abanaram sobre ele ramos de palmeira. Sentiu-se calmo, saciado e então sorriu. REI DE QUEDÁ Muito bem sei Português que já te terão dito como há uns dias atrás matei eu o meu pai, o qual fiz porque sabia que me queria ele matar a mim, por mexericos que homens maus lhe fizeram, afirmando--lhe que minha mãe era prenhe de mim, cousa que eu nunca imaginei. E para evitar murmurações de maldizentes mandei lançar pregão que ninguém falasse mais neste caso. E porque esse teu Mouro que aí jaz, ontem estando bêbado, em companhia de outros cães tais como ele, disse de mim tantos
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males que eu tenho vergonha de tos dizer, dizendo publicamente em altas vozes, que eu era porco e pior que porco, a minha mãe cadela saída. FERNÃO MENDES (aliviado) Vossa Alteza ao mandar matar aquele mouro, fez muito grande amizade ao Capitão de Malaca, porque ele era um ladrão manhoso e até a mim já me quisera matar com peçonha. E continuamente bêbado falava quanto lhe vinha à vontade, como cão que ladra a quantos vê passar na rua. Fernão Mendes espreitou para o alto para saber o efeito que a sua resposta tosca tinha provocado no Rei. E viu-o rir-se satisfeito e ordenar que lhe trouxessem a escada para descer do elefante. Veio contente abraçar-se a Fernão Mendes Pinto. REI DE QUEDÁ Certo que nessa tua resposta conheço eu seres muito bom homem e muito meu amigo, porque por o seres não te parecem mal as minhas coisas, como a esses perros que aí jazem. Tirou da cinta um cris que trazia guarnecido de ouro e entregou-o a Fernão Mendes. E também uma carta para Pêro Faria com desculpas pelo que tinha feito. VOZ de Fernão Mendes Despedi-me então dele do melhor modo que pude e a dizer-lhe que havia ainda de estar dez ou doze dias por ali, me fui logo embarcar e me fiz à vela muito depressa, parecendo ainda que vinha toda a terra atrás de mim pelo grande medo e risco da morte em que me vira em tão poucas horas.
CENA 20 – INTERIOR DIA Forte de Malaca. Salão Nobre. Uma enorme mesa de madeira repleta de mapas. Fernão Mendes Pinto relata os “achamentos” de novas terras ao seu capitão Pêro Faria, descrevendo com a mão o contorno das cartas geográficas. FERNÃO MENDES Toda esta costa e portos e rios, em graus, arrumados em suas alturas, os seus nomes e medição dos fundos! (muito excitado pega noutro pequenos mapa e mostra a Pêro Faria) Aqui é o surgidouro da baía de Pulo Botum, onde antigamente esteve a nau Biscainha, que foi de Magalhães e que se perdeu no boqueirão do fundo, ao querer atravessar a Ilha de Java.
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Pêro Faria coloca-lhe um braço em volta dos ombros e debruça-se para a mesa, contente para espreitar um novo e grande mapa, onde desliza a mão de Fernão Mendes. E sobre o mapa... VOZ de Fernão Mendes Dei-lhe também conta das muitas e varias nações de gentes que habitam ao longo daquele oceano e do rio Lampom, donde o ouro de Menancabo vai ter ao reino de Campar, no qual os naturais desta terra afirmam, que estivera uma casa de contrato da Rainha do Sabá, donde alguns presumem que um seu feitor de nome Nausem lhe mandara uma grande soma de ouro, que ela depois levou para o templo de Jerusalém, quando foi ver a El-Rei Salomão, donde dizem que veio prenhe de um filho, que depois lhe sucedeu como Imperador da Etiópia, ao qual cá o vulgo chama Preste João e de que esta nação Abexim se honra muito. CENA 21 – EXTERIOR DIA Marinheiros portugueses apinhados entre os mastros e no convés do navio malaio, cantam enquanto o barco sobe o rio.
CORO Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei
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Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também meu bem Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima CENA 22 – INTERIOR NOITE Fortaleza de Malaca, a mesma mesa dos mapas, agora iluminada por tochas e candelabros com velas. Muitos em volta da mesa onde reina Fernão Mendes num entusiasmo das suas descrições a rodopiar como um bailarino, provocando a crescente alegria de Pêro Faria. FERNÃO MENDES E lhe trouxe também por escrito a informação da ilha do ouro, que me ele muito encomendara, a qual, segundo todos dizem, jaz ao mar deste rio de Calandor em cinco graus da parte do Sul, cercada de muitos baixos e de grandes correntes, e que pode distar desta ponta da ilha Samatra, até cento e sessenta léguas pouco mais ou menos. Fernão Mendes orgulhoso senta-se num cadeirão e bebe num grande trago vinho de um cálice de metal. Movimento sobre os portugueses entusiasmados em volta dos mapas.
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VOZ de Fernão Mendes Mas de então para cá se não tratou mais deste descobrimento, que tão proveitoso parece que seria para o bem comum destes reinos, se Nosso Senhor fosse servido que esta ilha se viesse a descobrir. CENA 23 – EXTERIOR DIA Temporal ao largo da Ilha de Samatra. Vagas altas, trovoada de noroeste atingindo a “lanchara” uma pequena embarcação oriental com duas velas em losango parecida com um junco. Perto de uma qualquer costa tratada como estúdio. Tempestade artificial como é conveniente quando um coro canta. Velas a rasgar mastros a cair, três rombos junto à quilha estrondos e gritos. E os marinheiros que vão morrer cantam, todos em planos aproximados... CORO O mar das águas ardendo o delírio do céu a fúria do barlavento arreia a vela e vai marujo ao leme vira o barco e cai marujo ao mar vira o barco na curva da morte e olha a minha sorte e olha o meu azar e depois do barco virado grandes urros e gritos na salvação dos aflitos estala, mata, agarra, ai quem me ajuda reza, implora, escapa, ai que pagode rezam tremem heróis e eunucos são mouros são turcos são mouros acode! Aquilo é uma tempestade medonha aquilo vai p’ra lá do que é eterno aquilo era o retrato do inferno vai ao fundo vai ao fundo e vai ao fundo sim senhor que vida boa era a de Lisboa Enquanto se ouvem os últimos versos, num plano largo, a “lanchara” ao longe, despedaça-se, vira-se e afunda-se.
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CENA 24 – EXTERIOR NOITE Cinco marinheiros esfarrapados, um deles é Fernão Mendes, lamentando com muitas lágrimas o triste sucesso da desventura, que mais uma vez lhes tinha sucedido. Sentados, perto um dos outros num rochedo...
VOZ de Fernão Mendes Tudo correu mal quando regressava do reino de Aaru, onde Pêro Faria me tinha enviado armas e pólvora ao nosso fiel aliado na luta contra o mouro do Reino de Achém. E da fazenda que trazíamos em troca nada salvamos nem os tesouros e muito pouco as vidas, porque das vinte oito pessoas que nelas íamos vinte e três se afogaram em menos de um credo, e os cinco que escapamos somente pela misericórdia de Nosso Senhor, e assaz feridos passámos o que restava da noite, postos sobre penedos. CENA 25 – EXTERIOR AMANHECER Metidos na água até ao pescoço, ao longo do rio com muito de tormento e trabalho, por parte dos atabões (insectos que picam muito) e mosquitos do mato, que os atazanavam de tal maneira, que não havia nenhum dos cinco que não estivesse banhado em sangue. Um deles um velho mouro convertido, muito ferido e muito fraco a desfalecer. FERNÃO MENDES Não haverá aqui ao derredor nenhuma povoação?
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VELHO A povoação, senhor, que tu e eu agora temos mais perto, se Deus milagrosamente não nos socorre é a morte penosa que temos diante dos olhos e a conta dos pecados que antes de muito poucas horas havemos de dar. (chegou-se e abraçou-se muito a Fernão Mendes) Senhor faz-me cristão! Vou morrer e só assim me poderei salvar, e peço perdão ao teu Deus, por ter vivido até aqui na seita de Mafamede. Então Fernão Mendes, também muito ferido e com chagas muito visíveis nas costas e a escorrer sangue, agarrou o velho pelos ombros, olhou-o fixamente e os olhos de ambos ficaram rasos de lágrimas. Depois, debruçou-se para, com as mãos em concha, lhe despejar na cabeça toda aberta por uma ferida, os miolos pisados, quase podres, com sangue seco da ferida antiga e sangue fresco das picadas dos mosquitos e dos atabões, a água fresca, mas suja do rio. FERNÃO MENDES Eu te batizo em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. E antes de terminar estas palavras viu que o mouro arrependido tinha morrido nos seus braços. CENA 26 – EXTERIOR DIA Uma campa rasa com uma cruz improvisada por dois paus atados. Fernão Mendes e os outros três sobreviventes afastam-se depois de se benzerem. Avançam pela margem porque no rio escuro pode ver-se o movimento de uma diversidade de animais, como cobras capelo e outras de sardas verdes e pretas tão peçonhentas que só com o bafo podem matar. Olhares de nojo e de pavor dos quatro homens. FERNÃO MENDES Temos de sair daqui. (agarrou-se ao intérprete que era mais novo e estava menos ferido)Este fica para me ajudar a sustentar. Sinto-me cada vez mais fraco. Vocês os dois vão adiante, encontrem alguém que nos socorra, que Deus queira! Então um e depois o outro atiraram-se ao rio para alcançar a outra margem que era muito menos agreste. De repente grande agitação nas águas do rio. O rosto de Fernão Mendes sem voz, sem pinta de sangue, paralisado. VOZ de Fernão Mendes Chegando eles a pouco mais do meio do rio arremeteram contra eles dois lagartos muito grandes e em muito pequeno espaço fizeram a cada um
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deles em quatro pedaços, ficando toda a água cheia de sangue e assim os levaram ao fundo, com a qual vista fiquei eu tão assombrado que nem gritar pude. Nem sei quem me tirou fora nem como escapei, porque neste tempo estava eu metido na água até aos peitos. Com o malaio que me tinha pela mão, o qual estava tão cheio de medo que não sabia parte de si. O rio vermelho de sangue e depois vindo ao longo da corrente um banco de nevoeiro, uma névoa esbranquiçada, que desliza, para tapar os vestígios do massacre. CENA 27 – EXTERIOR ENTARDECER Almada, Claustros do Mosteiro, envolvido numa névoa espessa, Fernão Mendes com chapéu e vestes de juiz, diante de um padre jesuíta, que ouve desconfiado o relato alucinado do outrora aventureiro, agora juiz da vila de Almada. Uma legenda... ALMADA, MOSTEIRO DE SÃO LAZARO E ALBERGARIA, Outubro de 1562
FERNÃO MENDES Um barco turco passou, e de novo fui cativo, e de novo passei tormentos. A mim e ao Malaio nos ataram com cordas dobradas ao pé do mastro e que nos fizeram sangrar muito. Ao meu pobre companheiro deram-lhe uma beberragem feita de caldelída e urina o que logo lhe fez vomitar os fígados, do que morreu dali a uma hora. A mim que estava mais morto do que vivo, ensalmonaram-me as feridas dos açoites com essa mesma beberragem, mas quis Nosso Senhor que eu não morresse delas, mas foi a dor em mim tão excessiva que de todo estive à morte. Fernão Mendes levantou-se do banco de pedra onde se sentava, deu alguns passos e regressou. Continuou em pé, falando com grandes gestos. FERNÃO MENDES Ninguém me quis comprar por três vezes em leilões, tal era o estado em que eu estava. Abandonaram-me numa praia onde trinta e seis dias passei deitado na areia, como sendeiro sem dono, até que um mouro natural da ilha de Palimbão se condoeu de mim e da minha desventura e me levou para Malaca. Recebeu sessenta cruzados de Pêro Faria o que o deixou muito satisfeito e contente. Estive deitado para cima de um mês e prouve a Nosso Senhor que de todo recebi perfeita saúde.
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PADRE JESUITA Difícil de crer, difícil de crer, mas louvado seja o Senhor! FERNÃO MENDES Fui enviado várias vezes como embaixador a El-Rei de Aaru para o apoiar contra os seus e nossos inimigos de Achém. Das duas havia de ser uma, ou destruíamos este Achém ou por sua causa virmos nós a perder toda a banda do sul, como é Malaca, Banda, Maluco, Sunda, Burnéu e Timor, fora o norte da China, Japão, Léquios e muitas outras terras e portos. E perder a maior parte do seu rendimento, fora a droga de cravo, noz e maçã que de lá se traz para o nosso reino. PADRE JESUITA (abrindo a boca sonolento) Na verdade, na verdade... FERNÃO MENDES Tanto que eu fiz e não entendo, não aceito. Quatro anos e meio à espera! Nenhum reconhecimento... Os documentos que tudo provam na gaveta. Tudo o que eu fiz para a grandeza deste reino em nome de Nosso Senhor, o Salvador. E nada, nada... Nem da parte de sua Alteza D. Catarina, nem do agora Rei, Cardeal D. Henrique! PADRE JESUITA (acordando) Fernão Mendes a inquisição, a inquisição leva o seu tempo, a ver, a analisar.... FERNÃO MENDES (alterado) Mas eu entreguei tudo, tudo autentificado pelo senhor Vice-rei da Índia, com certificados comprovativos dos meus serviços no Oriente... Oh, injusta pátria que não recompensa os seu filhos que por ela dão trabalhos e até a vida. PADRE JESUITA (levantando-se) Cuidado com o que diz Fernão Mendes, os tempos estão perigosos (meteu-lhe o braço). E como conheceu António Faria, o Corsário? FERNÃO MENDES (volta a entusiasmar-se) Havendo já vinte e seis dias que eu estava em Patane acabado de aviar uma pouca fazenda que viera da China para me ir embora logo, chegou uma fusta de Malaca, de que vinha como Capitão um tal António de Faria de Sousa, o qual, por mandado de Pêro de Faria, vinha a fazer ali fazer certo negócio com El-Rei, e assentar com ele de novo as pazes antigas que tinha com Malaca...
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CENA 28 – EXTERIOR DIA Porto de Patane. Pequena embarcação de Cristóvão Borralho, feitor de António Faria. Alguns marinheiros entre os quais Fernão Mendes carregam roupas para o interior da embarcação. No cais em pé tudo orientando está o capitão António Faria, que estranhamente é fisicamente idêntico a Fernão Mendes Pinto, os mesmos olhos fundos e negros, os cabelos também negros e a mesma barba pontiaguda, só as roupas são diferentes.
Em plano aproximado, podemos ver que António Faria será interpretado pelo mesmo actor que representa Fernão Mendes Pinto. Cumprindo a teoria de Aquilino Ribeiro, que enriquece fantasticamente a ficção, por afirmar que Fernão Mendes Pinto se escondeu em António Faria, criando um heterónimo, para relatar o lado cruel e violento das descobertas na conquista dos mares das terras e das gentes, escapando à possível perseguição da Inquisição. A partir da cena 33 até à cena 62, onde o terrível Corsário desaparece num naufrágio, para nunca mais aparecer na Peregrinação, apenas a voz de Fernão Mendes ficará para relatar os acontecimentos de uma forma omnipresente, o que é muito evidente no livro, sendo António Faria o centro da narrativa. VOZ de Fernão Mendes Este António Faria trazia uns dez ou doze mil cruzados em roupas da Índia que em Malaca lhe emprestaram, as quais eram de tão má digestão naquela terra, que não havia pessoa que lhe prometesse nada por elas. Foi aconselhado que as levasse Lugor que era uma cidade do reino de Sião, mais abaixo para o norte cem léguas, por ser porto rico e de grande escala e que a troco de pedraria e oiro costumavam comprar bem aquelas fazendas... Ele não quis ir e fez seu feitor um tal Cristóvão Borralho, homem bem entendido no negócio da mercancia, com o qual foram dezasseis homens, chatins e soldados, dizendo-lhes que pelo menos fariam de um, seis ou sete, tanto no que levassem, com no que trouxessem, na qual ida, o pobre de mim acertou de ser um dos desta companhia.
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CENA 29 – EXTERIOR DIA A pequena embarcação de Crist´0vão Borralho desliza ao longo da costa de Sião (actual Tailândia), num mar calmo e com ventos bonançosos. VOZ de Fernão Mendes E as novas que ali achamos foram tão boas, que no negócio esperávamos de dobrar o dinheiro quase seis vezes, e no mais havia para todos, com liberdade e franquia por todo aquele mês de Setembro, conforme o estatuto do Rei de Sião, por ser o mês das Zumbaias dos Réis. E para que isto melhor se entenda, é necessário saber se que em toda esta costa do Malaio e por dentro do sertão domina um grande Rei, que por título famoso sobre todos os outros se chama Prechau Saleu Imperador de todo o Sornau, que é uma província de treze reinos a que vulgarmente chamamos Sião, ao qual são sujeitos e pagam tributo cada ano catorze Réis pequenos, que são obrigados a ir a Odia para pagar tributo e fazer-lhe a zumbaia, que era beijar-lhe o terçado que tem na cinta. CENA 30 – EXTERIOR ANOITECER E NOITE Um novo ataque turco junto à costa e à entrada da boca de um rio no Mar da China. Em fundo uma grande quantidade de embarcações, iluminadas por tochas, gritarias, algazarras, música e tambores. Um enorme junco, aproxima-se da pequena embarcação de Cristóvão Borralha, dois arpéus atados em duas cadeiras de ferro muito compridas, sulcam o ar até embaterem e prenderem o barco, que é arrastado até ficar metido debaixo “da gorja dos esconvéus da proa”. A abordagem dos turcos é imediata e enquanto vemos pormenores do violento assalto ouvimos... VOZ de Fernão Mendes Saindo então da tolda, onde até então estiveram escondidos, obra de setenta ou oitenta Mouros, entre os quais havia alguns Turcos de mistura, deram uma grande grita e após ela foram tantas as pedras, os zagunchos, as lanças e as chuças de arremesso sobre nós, que parecia chuva que caia do Céu, com que logo em menos de um credo, dos dezasseis Portugueses que éramos, doze foram mortos com mais trinta e seis moços e marinheiros. Os quatro que escapámos nos lançámos ao mar, onde se afogou logo um deles e os três fomos ter a terra bem escalavrados e saindo por uma vasa onde nos atolávamos até a cinta, nos metemos pelo mato. Os Mouros do junco, entrando logo na nossa embarcação, acabaram ainda de matar uns seis ou sete moços que no convés acharam feridos, sem a nenhum quererem conservar a vida. E metendo no junco com a maior pressa que puderam toda a fazenda que acharam na embarcação, a esta lhe fizeram um rombo, com que a meteram ao fundo.
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CENA 31 – EXTERIOR DIA Dentro de um mato alagadiço, com vegetação cerrada e os pés enterrados em água e lodo onde se passeiam lagartos e cobras, muito feridos, muito sujos e muito desesperados, “os três companheiros que escaparam daquela desventura vendo-se sem remédio, choram e gritam dando bofetadas a si próprios desassisados e pasmados”. Depois de algum tempo desta violência masoquista separam-se, cada um para seu lado por uns instantes e depois juntam-se de novo porque um deles se deixou cair como um morto. VOZ de Fernão Mendes Continuamos mais cinco dias sem poder ir atrás ou adiante e neste tempo nos faleceu um dos companheiros, de nome Bastião Henriques, homem muito honrado e rico que na lanchara perdera oito mil cruzados. Os outros dois que ficámos somente, que éramos Cristóvão Borralho e eu, nos pusemos a chorar à borda do rio em cima do morto mal enterrado, e já tão fracos que nem falar podíamos. Havíamos de ser salvos por uma honrada mulher, que por ali passou, num barco que carregava sal. CENA 32 – EXTERIOR DIA Prevedim na Ilha de Java, reino do Quaijuão, no interior de um junco. Um rosto bom de mulher de meia idade, envolvido num lenço azul que lhe cobre os cabelos e de quando em vez, ouvindo, enquanto comem sofregamente, os rostos de Fernão Mendes e Cristóvão Borralho.
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MULHER (do Sião, actual Tailândia) Comei vós outros pobres estrangeiros e não vos desconsoleis por vos verdes dessa maneira; porque aqui estou eu, que sou mulher e não tão velha que passe de cinquenta anos e há menos de seis que me vi cativa e roubada de mais de cem mil cruzados que tinha de meu e com três filhos mortos e um marido a quem queria mais que aos olhos com que o via e todos assim pai como filhos e dois irmãos e um genro vi despedaçados nas trombas dos elefantes de El-Rei do Sião e com a vida cansada e triste coei todos estes males e desgostos, e outros quase tamanhos, quais foram ver pela mesma maneira três filhas donzelas e minha mãe, e meu pai, e trinta e dois parentes meus sobrinhos e primos, metidos em fornos acesos, dando tamanhos gritos que rompiam o céu, para que Deus lhes valesse naquele tormento tão insofrível, mas foram meus pecados tamanhos que cerraram as orelhas à clemência infinita do Senhor de todos os senhores, para que não ouvisse esta petição que a mim parecia ser justa, mas na verdade o que Ele ordena isso é o melhor. FERNÃO MENDES (interrompendo a sofreguidão da comida e chorando) Será também por pecados nossos que Deus permitira ver-nos desta maneira! MULHER Bom é, sempre em vossas adversidades justificardes os toques da mão do senhor, porque nessa verdade confessada de boca e querida de coração, com constância firme e limpa, está muitas vezes o prémio de nossos trabalhos. CRISTÓVÃO BORRALHO E saberás que gente era aquela do junco grande e negro e porque nos atacaram daquela maneira? MULHER Do Pirata Coja Acém, um mouro guzarate, que nessa manhã passou por este rio, no seu junco carregado de pau brasil... CRISTÓVÃO BORRALHO E porque nos fez inimigo tão mortal?
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MULHER (Batendo no peito) Da geração de vossos homens de Malaca, gaba-se ele de ter morto uma grande soma, e quer-vos tanto mal que prometeu ao seu Mafamede matar muitos mais. FERNÃO MENDES Porquê o seu ódio? MULHER Conta ele que um vosso grande capitão de nome Heitor da Silveira, lhe matou o pai e dois irmãos em uma nau, que lhe tomarão no estreito de Meca, vindo eles de Judá para Dabul. Assim, o grande ódio por vós. CENA 33 – INTERIOR DIA Casa senhorial em Patane. A revolta do futuro corsário António Faria, quando Cristóvão Borralho lhe relataram as suas desventuras. ANTÓNIO FARIA Toda a fazenda? Tudo perdido? Os homens todos mortos? Coja Acém! Coja Acém! Hei-de degolá-lo, esquartejá-lo! Nem que seja a última coisa que faça neste mundo. CENA 34 – EXTERIOR DIA Porto de Patane, carregamento apressado de um navio comandado por António Faria, que é uma lorcha equipada com algumas peças de artilharia, uma legenda: PATANE, 9 de Maio de 1540
VOZ de Fernão Mendes A pressa era tal que o navio não ía tão bem provido do necessário, que não houvesse mister de refazer-se de muitas coisas, principalmente de munições e de mantimentos. “Pelo caminho dos mares encontraremos o que for preciso!”, gritou António Faria.
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CENA 35 – EXTERIOR DIA Pescaria farta de peixes e de informações na Ilha Ainão, actual Hainan, na China. Uma infinidade de cestos carregados de sargos e corvinas, são transportados para o interior da lorcha fundeada na foz do rio Pulo Chambim que divide o senhorio de Camboja do Reino de Champá (Actual Vietnam) defronte de uma povoação chamada Catimparu. No convés António Faria reúne os seus marinheiros. ANTÓNIO FARIA Soube que a origem deste rio, procede de um lago chamado Pinator, que dista a leste deste mar duzentas sessenta léguas no Reino de Quitirvão, rodeado de grandes serranias e ao pé delas, ao longo da `água há 38 povoações, das quais 13 somente são grandes. (muito excitado, com os olhos faiscando de cobiça) Só uma destas grandes, chamada Xincaléu, há uma mina que se tira a cada dia dela um bar e meio de oiro. Há quatro senhores cobiçosos, que se guerreiam continuamente para saber qual deles a há-de senhorear toda e só um, de nome Rajahitau, tem no pátio de suas casas em jarras metidas na terra até ao gargalo, seiscentos bares de oiro em pó! Bastam trezentos homens, dos da nossa nação, com cem espingardas para o acometer e ficar donos daquele tesouro! FERNÃO MENDES E Coja Acém? ANTÓNIO FARIA No tempo certo, no tempo certo! Vai ter de esperar a sua sorte maldita. Muito aproximado sobre a inquietação de Cristóvão Borralho e igual aproximação ao rosto de António Faria, cujo olhar exprime ganância e ódio. CENA 36 – EXTERIOR AMANHECER No horizonte do mar três coisas pretas, rentes com a água e vindas de um grande junco em silhueta ao fundo, aproximam-se da lorcha, o barco médio de António Faria, onde dezenas de marinheiros estão deitados imóveis ao longo do convés. ANTÓNIO FARIA (sussurrando) É ladrão que nos vem acometer. Julgam que somos seis ou sete, que é quantos que costumamos andar nestas lorchas. Escondam bem o morrão para que não vejam o fogo. Com as panelas de pólvora e às cutiladas vamos desfazê-los. Nosso Senhor nos proteja!
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CENA 37 – EXTERIOR DIA No convés do grande junco acabado de conquistar por António Faria, quarenta marinheiros chins, de joelhos dobrados, sob a ameaça das espingardas e das espadas dos marinheiros portugueses. Três mouros e um turco, que é o capitão, amarrados e seguros diante de António Faria.
ANTÓNIO FARIA É este o perro do Similau que matou o teu senhor e te fez escravo? UM MOURO ESFARRAPADO (cuspindo no rosto do capitão turco) É... é! E também matou o teu Gaspar de Melo e outros vinte seis portugueses fazendo-lhes estoirar os miolos com uma tranca. ANTÓNIO FARIA (dando uma enorme bofetada em Similau) Agora, os teus miolos também vão saltar fora com uma tranca. (ordenou) Façam-no! UM MARINHEIRO E aos Chins? ANTÓNIO FARIA Poupem-nos! São necessários para a mareação deste junco, que é grande e alteroso.
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Os marinheiros que seguravam os quatro prisioneiros estenderam-nos à patada no chão. Um outro marinheiro de grande envergadura aproximou-se com uma enorme tranca de ferro. Sobre o rosto enojado e aflito de Cristóvão Borralho, o som terrível de várias pancadas e urros. Pormenores de crânios e miolos ensanguentados e das peças do saque expostas no convés do junco. VOZ de Fernão Mendes Seis mil taéis em prata do Japão, que valem cinquenta e quatro mil cruzados e sedas e perfumes e muita sorte de fazendas. Encadeado para... CENA 38 – EXTERIOR NOITE O junco de António Faria e a lorcha, agora comandada por Cristóvão Borralho, assaltam um outro junco de mercadores, defendido por pouca gente, aos gritos “por Deus e por Santiago!”. Alguns chins mortos e um velho estendido, agarrado a um jovem. Nenhum deles é mouro ou chinês, são de pele branca. O VELHO Não mates o meu filho! Leva tudo, leva tudo ainda que este ofício que agora andas, não seja muito conforme à lei cristã que no baptismo professaste! ANTÓNIO FARIA (irritado) Quem diabo és tu? Que andas a fazer nesta terra? O VELHO (em lágrimas) Sou cristão do Monte Sinai, onde está o corpo da bem aventurada Santa Catarina. Era mercador, como tu o dizes ser, mas agora sou escravo de um (falou muito baixo) que está escondido com mais sete lá em baixo na proa, junto ao paiol das amarras. ANTÓNIO FARIA (espantado) O que dizes? Quem? O VELHO Quiay Taijão! ANTÓNIO FARIA Esse perro? O que matou o Capitão Sardinha? Às armas! Às armas! Por Deus e por Santiago! Correu com os seus homens na direcção da proa, mas antes que lá chegasse, abriu-se uma escotilha e oito homens de armados de cutelos arremeteram-se aos nossos que passavam de trinta e mais quarenta moços. Violenta luta corpo a corpo. Dois portugueses e sete moços mortos e o capitão António Faria com duas
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cutiladas na cabeça e outra no braço a sangrar. Os oito mouros mortos e despedaçados no chão molhado de água tingida do vermelho do sangue. Encadeado para... CENA 39 – EXTERIOR DIA Enseada da Ilha de Ainão. Mergulhadores extraem ostras do fundo do mar. Uma quantidade de ostras abertas e um amontoado de pérolas, muitas pérolas algumas de cinco quilates, outras médias e outras do aljofre mais pequenas, separadas em cima de um saco de ráfia e guardadas por um velho. Vindos do mato, um grupo de seis marinheiros comandados por António Faria agarram e subjugam o velho. Levam as pérolas. Encadeado para... CENA 40 – INTERIOR DIA Acumulação de riquezas no interior do junco. As mãos de António Faria depositam num cofre forrado a veludo vermelho as pérolas roubadas. Encadeado para... CENA 41 – INTERIOR E EXTERIOR DIA No porão do junco, António Faria rasga com violência as luxuosas vestes de uma jovem e bela chinesa até a desnudar por completo.
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Submissa e em lágrimas silenciosas, soltando pequenos gritos agudos, a noiva chinesa é violada pelo terrível corsário. Ao mesmo tempo no convés um velho e duas crianças todos de raça chinesa estão de joelhos com as mãos atadas atrás das costas. Enquanto decorre a violação ouvimos a voz de Fernão Mendes, que a noiva chinesa enviou ao noivo, para que se juntasse a ela. VOZ de Fernão Mendes Se a fraca e mulheril natureza me dera licença para daqui onde fico ir ver a tua face, sem isso ser nódoa no meu honesto viver, crê que assim voaria meu corpo a ir beijar esses teus vagarosos pés, como o esfaimado açor no primeiro ímpeto da sua soltura; mas já, senhor meu, que eu de casa de meu pai até aqui te vim buscar, vem tu daí, donde estás, a esta embarcação onde eu já não estou, porque só em te ver me posso eu ver, mas com me não veres na escuridão desta noite, não sei se na brancura da manhã me poderás enxergar entre os vivos; A leitura da carta continua, enquanto podemos ver o velho e desgraçado tio da noiva, com lágrimas a escorrer pelo rosto, ao lado das duas crianças, que também choram. VOZ de Fernão Mendes Meu tio Licorpinau te dirá o que meu coração em si cala, tanto porque já não tenho boca para falar, como porque minha alma me não sofre estar tão órfã de tua vista quanto a tua estéril condição o consente. Pelo qual te peço que venhas, ou me dês licença que vá e não me negues este amor que te mereço pelo que sempre te tive, para que Deus por sua justiça, em castigo de tal ingratidão... Uma comitiva das três lanteas (embarcação chinesa) engalanadas, onde vem o noivo para quem a carta tinha sido escrita e, que sem saber o que está a acontecer, passa no mar ao largo... VOZ de Fernão Mendes Te não tire o muito que herdaste de teus antigos parentes neste princípio de minha mocidade, em que agora por matrimónio me hás de senhorear até a morte, a qual Ele, como Deus e senhor por quem é, afaste de ti por tantos milhares de anos quantas voltas o Sol e a Lua têm dado ao mundo desde o princípio do seu nascimento. Encadeado para...
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CENA 42 –INTERIOR ENTARDECER Convés do junco de António Faria ao largo da Ilha Ainão. Dois mouros de mãos postas e de joelhos diante do “corsário”, que está sentado em caixotes de onde se podem ver roupas e predarias de um saque recente. UM DOS MOUROS Senhor confessamos a tua grandeza! OUTRO MOURO Tão proveitosa nos seja a todos a alvorada da fresca manhã, quão bem assombrada parece esta tarde na presença do que temos diante dos olhos. O rosto triunfante de António Faria, admirado com as riquezas acumuladas e com a submissão. Atrás dele um pôr do sol esplendoroso, cortado por colunas de fumo negro vindas das várias almadias (pequenos barcos quase canoas) incendiadas. Encadeado para... CENA 43 –EXTERIOR AMANHECER Ao largo do Porto de Lailó, os restos de um pequeno junco, que mais parece uma jangada, com um mastro partido e metade da proa desfeita, onde um amontoado de corpos se estende. António Faria em pé, desafiando as vagas alterosas, tenta recolher informações de um moribundo. Homens, moços e crianças mortos, alguns degolados, formam um conjunto sinistro e muito mais trágico que os náufragos que Delacroix imortalizou. Atrás de António Faria o casco do grande junco e uma escada de corda por onde ele desceu. ANTÓNIO FARIA Oh, bem dito sejais, Meu Senhor Jesus Cristo, por quão piedoso e misericordioso sois em sofrerdes ofensa tão grave como esta. VELHO MORIBUNDO Coja Acém! Ali no porto, hoje de madrugada... Vinga-nos senhor!
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ANTÓNIO FARIA (erguendo os olhos para o céu) Senhor Jesus Cristo, assim como tu meu Deus és verdadeira esperança dos que em ti confiam, eu mais pecador que todos os homens te peço com muita humildade em nome destes teus servos, cujas almas tu remiste com teu precioso sangue, que nos dês esforço e vitória contra este inimigo cruel matador de tantos Portugueses, o qual eu, com teu favor e ajuda, e por honra do teu santo nome determino de ir buscar como até agora tenho feito, para que às mãos destes teus servos e fieis soldados pague o que há tanto tempo nos deve. Na amurada do junco, um grupo numeroso de marinheiros observa a cena e grita em uníssono...
MARINHEIROS A eles, com o nome de Cristo, porque o perro pagará nove vezes o que deve, tanto a nós como a esses pobres companheiros. CENA 44 –EXTERIOR AMANHECER O Combate com Coja Acém. Início na boca de um canhão, um estrondo e um disparo. Depois, panelas de pólvora que são despejadas, rocas de pedra, setas, lanças e bombas de fogo que são atiradas. Cortando os ares, zargunchos com pontas de ferro, arpéus de albarroar com fateixas ligadas em cadeias de ferro e artifícios de fogo, inventados pelos chins. Um berro tremendo de António Faria comandando a abordagem ao junco do terrível Coja Acém.
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ANTÓNIO FARIA (aos gritos) Eia, senhores irmãos meus, a eles com o nome de Cristo! Antes que as suas lorchas lhe acudam! Por Santiago! O salto de António Faria, balanceando na corda, de um junco ao outro. Os saltos dos outros marinheiros. Saindo do interior do junco, o “perro” Coja Acém, armado com uma cora de lâminas de cetim carmesim franjadas de oiro, que com evidência deveria ter sido roubada a um nobre português, também grita. COJA ACÉM Lah hilah hilah lah Muhamed roçol halah! Ó Massoleimões e homens justos da santa lei de Mafamede, como vos deixais vencer assim de uma gente tão fraca como são estes cães, sem mais ânimo que de galinhas brancas e de mulheres barbadas? A eles, a eles, que certa temos a promessa do livro das flores, em que o Profeta Noby abastou de deleites aos daroeses da casa de Meca. Assim fará hoje a vós e a mim, se nos banharmos no sangue destes cafres sem lei. VOZ de Fernão Mendes O diabo esforçou os mouros de tal maneira, que era espanto como eles se metiam nas nossas espadas, como se todos eles fizessem um corpo. Pormenores de combates violentos, espadas rasgando as roupas e entrando nas carnes, levando que os corpos de portugueses e muçulmanos fizessem um só. António Faria vendo a dificuldade do combate, faz um última apelo às forças. ANTÓNIO FARIA Ah, cristãos e senhores meus, se estes se esforçam na maldita seita do diabo, esforcemo-nos nós em Cristo nosso Senhor posto na Cruz por nós, que nos não há-de desemparar por mais pecadores que sejamos, porque enfim somos seus, o que estes perros não são! Descrição do combate, segundo Fernão Mendes Pinto, o que se fará... E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu com ambas as mãos, com uma espada que trazia, uma tão grande cutilada pela cabeça, que cortando-lhe o barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão e tornando-lhe com outro revés lhe decepou ambas as pernas de que se não pode mais levantar, o qual sendo visto pelos seus, que deram uma grande grita e arremeteram a António de Faria e se igualaram com ele uns cinco ou seis com tanto ânimo e ousadia, que nenhuma conta fizeram de trinta Portugueses de que ele estava rodeado e lhe deram duas cutiladas com que o tiveram quase no chão.
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VOZ de Fernão Mendes Os nossos, acudiram logo com muita pressa e esforçandoos ali Nosso Senhor, o fizeram de maneira que, em pouco mais de dois credos, foram mortos quarenta e oito, e dos nossos catorze somente, de que só cinco foram Portugueses e os mais moços escravos muito bons Cristãos e muito leais.” CENA 45 –EXTERIOR DIA Barcos a arder: um junco, três lorchas e alguns pardaus. Um grupo de marinheiros de António Faria vitoriosos no junco do turco, páram a acção de combate e, de espadas e lanças ensanguentadas, saindo dos rolos de fumo, cantam: CORO Seja bendito De todos o mais enfeitado Olha p’ra mim o mais guerreiro Ao vivo Olha p’ra mim o teu amado E o céu a arder Ó Ana vem ver Ó Ana vem ver Ó Ana vem ver Barcos em chamas Erguidas Parecia coisa sonhada Queimados Os gritos horrendos da besta Ferida E lá dentro ardiam homens Encurralados E cá fora à cutilada Decepados P’la calada Pelos peitos já desfeitos Chora por mim ó minha infanta Escorre sangue o céu e a terra Ah pois por mais que seja santa A guerra é a guerra Foge saloio Eh parolo Aguenta António de Faria
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E a fidalguia Todo o massacre E todo o desconsolo Que já lá vem o Coja Acém E o mar a arder Ó Ana vem ver Ó Ana vem ver Ó Ana vem ver Diz-nos adeus o pirata O labrego De cima daquele mastro Trocista e airoso Mostrando o traseiro cafre Preto escuro de um negro Levando-nos coiro e tesouro Rindo de gozo Perdeu-se o resto na molhada Pelo estrondo Na quebrada No edema da gangrena Chora por mim ó minha infanta Escorre sangue o céu e a terra Ah pois por mais que seja santa A guerra é a guerra CENA 46 –EXTERIOR DIA
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Funeral e despojos de Coja Acém. Enquanto o corpo do corsário turco, ainda vestido e armado, é despedaçado em quartos e atirado ao mar “para buchos de lagartos que andavam em grande quantidade a rondar o junco à carniça dos mortos que se lançava”. António Faria em vez de lhe rezar pela alma, disse: ANTÓNIO FARIA Andar muiti eramá para esse inferno, onde a vossa enfuscada alma agora estará gozando dos deleites de Mafamede, como ontem com grandes brados pregáveis a essoutros cães tais como vós. No outro lado do junco, movimento descrevendo a fazenda que liquidamente se achou: VOZ de Fernão Mendes Tirando o que se deu aos Portugueses, tudo foi avaliado em cento e trinta mil taéis em prata do Japão e fazendas limpas, como foram, cetins, damascos, seda, retrós, tafetás, almíscar e porcelanas de barça muito finas, porque então se não fez mais receita do mais que este Corsário tinha roubado por toda aquela costa da China do Sumbor até ao Fuchéu. CENA 47 –EXTERIOR ANOITECER Saindo do rio de Tinlau em direcção a Liampó, ao largo da ponta de Micuy. Uma frota de dois juncos grandes, e algumas lanteas com velas e remos enfrentam uma tempestade violenta. VOZ de Fernão Mendes Depois de haver já vinte e quatro dias, que António Faria esteve neste rio de Tinlau, dentro dos quais os feridos todos se convalescenram e ganharam forças para cometer a viagem para as ricas minas de Quãogeparu, o tempo carregou sobre a tarde, com chuveiros e mares tão grossos que aconteceu o desastre. Tudo o que se tinha ganho se ira perder. “o mar tão grosso, a noite tão escuro o escarcéu tão alto, o cheiro tão forte, o ímpeto do vento tão incomportável e de refregas tão furiosas, que não havia homem algum que as pudesse esperar com o rosto direito. Em menos de uma hora toda a fazenda foi lançada ao mar, nenhuma coisa ficou a que se pudesse por nome, tudo para alijar os juncos e salvar-nos a nós. Fustigado por bátegas de chuva e por vento impiedoso.... ANTÓNIO FARIA (grita) Senhor Deus misericórdia! Permite por castigo da tua divina justiça, que só pague eu as ofensas, que eu e estes homens te fizemos.
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Os marinheiros em pânico despejam a preciosa carga ao mar, despejam tudo o mais que podem, e depois agarram-se às cordas, aos mastros e cantam o seu desespero... CORO O escuro é muito grande O tempo é muito frio O mar é muito grosso O vento é muito rijo As águas são cruzadas As vagas levantadas Eh bruto corta-me esses mastros Aguenta a popa e vira a proa Ajusta-me esses calabretes Baldeia fazendas à toa Descarrega esse convés Saltam braços Voam pés Vomitam pragas num estardalhaço Os corpos atirados em pedaços Dão à costa Pela encosta Choramos a nossa perdição Dando muitas bofetadas Em nós próprios sim senhor Metidos num charco de água Gritamos uma reza ao salvador Um grande estrondo interrompe a canção, o junco despedaça-se contra as rochas e o que resta dele começa a adornar e depois afunda-se.
CENA 48 –EXTERIOR NOITE E AMANHECER Um pequeno grupo de náufragos sobreviventes, esfarrapados e molhados arrastam-se pela costa, entre eles António Faria e Cristóvão Borralho, caminham até um montão de pedregulhos junto ao mar. Sentam-se esgotados e depois de alguns instantes começam a cantar.
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CORO Livra-me da fome que me consome, deste frio; Livra-me do mal desse animal que é este cio; Livra-me do fado e se puderes abençoado Leva-me a mim a voar pelo ar! (...) Andamos nus e descalços, amantes, sedentos Se o véu da noite se deita na curva do tempo. Ai lua nova de Outubro, Os medos são medos das chuvas e ventos, Da alma a segredar, da boca a murmurar Adeus CENA 49 –INTERIOR NOITE Iluminado por tochas e candelabros, o salão da casa de Fernão Mendes Pinto na Quinta do Vale de Rosal em Almada. Ele aos sessenta e dois anos lê em voz alta para sua mulher, Maria Correia de Brito, trinta anos mais nova do que ele, que está sentada à mesa onde apoia um cotovelo, o rosto largo e oval também apoiado na mão aberta, com um ar sonolento e os seios a arfar no decote aberto, esperando com ansiedade o final da leitura.
Fernão Mendes aproxima-se de quando em vez de uma das tochas que saem da parede ou do candelabro pousado sobre a grossa mesa de madeira, para ler. Mas outras vezes, no seu entusiasmo, diz de memória o que está escrito.
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No início da cena, uma legenda: ALMADA, 15 de Março de 1571
FERNÃO MENDES Magnífico Senhor Bernardo, Pensando depois de que me parti de vossa senhoria nisso que vos prometi acerca de escrever ao sereníssimo Grão-Duque, certifico-vos que não sinto em mim habilidade nem arte para o poder fazer, porque pegando como peguei por algumas vezes a pena na mão para pôr em efeito o desejo vosso, no que eu tanto em fazê-lo ganharia, vos afirmo que realmente que, representando a desigualdade da minha pessoa à majestade e grandeza de tão alto príncipe... D. MARIA CORREIA DE BRITO (interrompendo) Mas quem é esse tão alto príncipe? FERNÃO MENDES Cosme I de Medicis, Grão-Duque da Toscana. Enviou como embaixador este Bernardo Néri, para saber as cousas que do oriente eu sei. D. MARIA E vossa senhoria vai contar a um estrangeiro as cousas que deviam ficar nossas? FERNÃO MENDES (irritado, levanta a voz) D. Maria Correia de Brito, minha senhora! Os nossos reis e governantes estão mais interessados em credos e fantasias do que na verdade daquele extraordinário mundo. D. MARIA Acalme-se vossa senhoria, não vá acordar os seus filhos, e terei eu... FERNÃO MENDES (mais calmo) Esteja descansada senhora minha, os nossos filhos não vão acordar e eu, ao excelso príncipe, digo-lhe cortesmente quase nada. (sorri) Porque destas terras e reinos vou escrever largamente no meu livro. Ouça... (e continua a ler) Na nossa costa da Índia, no Reino de Cambaia, quaisquer
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duzentas léguas por terra, habita um grande rei, que por nome se chama Xiah Olam, que de pouco tempo há, se fez senhor do Reino de Bengala. Põe em campo trezentos mil homens a cavalo e um milhão a pé, e é senhor de muito grande tesouro e renda e de mais quatrocentas léguas de terra, toda muito populada e rica e é mouro da seita de Mafamede. E além do Reino de Aracão e Pegu, há outro rei pela terra a dentro que se chama Siammon. Este põe no campo cento e oitenta mil a cavalo e oitocentos mil a pé, mas melhor gente e mais buliçosa que a do outro e cinco mil elefantes armados... O rosto febril de entusiasmo de Fernão Mendes, que agora diz de memória, saindo do negro e entrando na luz dos archotes repetidas vezes. A sua mulher ouve espantada, agora com o corpo perfeitamente erguido. FERNÃO MENDES E quanto, Senhor Bernardo, às coisas da China, vos rogo que dessa obrigação me desobrigueis, porque são as coisas tão grandes que para dizer pouco preciso de escritura bastante, e será exemplo disso o meu livro que vou fazendo, o fundamento do qual é sobre essa monarquia conforme aquilo que vi, soube e li das crónicas dos reis passados da China. Só vos direi que a principal metrópole se chama Pequim e a segunda Nanquim e a terceira Pocasser. Em cada uma reside um grande imperador, principalmente na de Pequim, que é a maior, insigne e rica de quantas se edificaram debaixo do sol. Só o circuito da casa do rei é de sete léguas, e na qual habitam cem mil homens castrados e trinta mil mulheres que servem a casa do senhor. E daqui não me determino passar mais adiante, porque o meu livro que vou fazendo com um valor de tal diamante terá mais alto, o preço do meu trabalho.... E despeço-me beijando mil vezes as mãos. (ri-se) D. MARIA (também se ri) Agora que é tão tarde e me acordou, não quer vossa senhoria vir deitar-se? CENA 50 –EXTERIOR DIA Saindo da povoação de Liampó em direcção à Ilha de Calemplui, que fica algures no meio do Rio Nanquim, duas panouras, que são como galeotas (barcos a vela e remos), são agora a pequena frota refeita do corsário António Faria. As embarcações no mar com ventos bonançosos. Uma legenda: 14 de Maio de 1542
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VOZ de Fernão Mendes Depois de um salvamento milagroso, graças ao Nosso Senhor e de uma invernia de vários meses, a António Faria em Liampó foi lhe inculcado um corsário chin muito afamado que se chamava Similau. O qual lhe contou muito grandes cousas de uma ilha por nome Calemplui, na qual estavam dezassete jazigos dos Reis da China em uns presbitérios de ouro, com muito grande quantidade de ídolos do mesmo, em que dizia que não havia mais dificuldade nem trabalho que só em carregar os navios. Também lhe disse outras muitas cousas de tamanha majestade e riqueza, que deixo aqui de as contar, porque temo que façam dúvida a quem as ler. E como António de Faria era naturalmente muito curioso e não lhe faltava também cobiça, se abraçou logo tanto com o parecer deste Chin, que só por este seu dito, sem outro mais testemunho, determinou de se pôr a todo o risco e fazer esta viagem. No convés de uma das palouras os corsários António Faria e Similau. SIMILAU Em juncos de alto bordo seriamos logo sentidos e também há que ter respeito pelas grandes correntes e pelo peso das águas que descem da enseada do rio Nanquim. Neste tempo que vamos, navios grossos não podem romper, nem com as velas dadas, por causa das invernadas da Tartária e de Nixiunflão, que correm para esta parte com grandíssimo ímpeto. Marinheiros no remo, outros na mareação das velas, portugueses, escravos, alguns chins e um padre sacerdote de missa, que vai curioso e a rezar ao longo do convés.
CENA 51 –EXTERIOR DIA Ao longo da baía de Buxipalém, mais a norte da China num clima um tanto mais frio e que se sente pela reacção dos marinheiros, que tremem e apertam muitas vezes a roupa contra o corpo. Na galeota da frente que Similau pilota... VOZ de Fernão Mendes Já navegaram o dobro do tempo que Similau prometera, na viagem que os levaria até aos tesouros do rei. Os marinheiros inquietos e desconfiados estavam prestes a amotinar-se.
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SIMILAU (para António Faria) Te torno a dizer que estou tão certo nesta via que levo, que não recearia em dar-te mil filhos como reféns como te prometi em Liampó. Se faço esta viagem mais comprida é para que possamos navegar sem receio dos muitos perigos a que estamos sujeitos. Razão que te dei e tu aceitaste. Mas se crês no que os outros te dizem de mim continuamente à orelha, manda o que quiseres! Ou então aquiete-se agora o teu coração, porque verás quão proveitoso fruto vais tirar deste trabalho.
António Faria ia a ficar convencido, mesmo a colocar-lhe o braço nos ombros quando gritos histéricos de marinheiros que corriam para as amuradas lhe desviaram o gesto e a atenção. E ele correu também e viu o que os marinheiros viram ao largo da baía que se chamava Buxipalem: peixes de feições de raías mas muito maiores, de mais de quatro braças em roda, a que os chins chamavam mantas, o focinho rombo de boi e a saltarem no mar. Na margem, outros parecidos com grandes lagartos pintados de verde e preto, com três ordens de espinhos no lombo, da grossura de uma seta e quase três palmos de comprido, muito agudas nas pontas e o mais corpo todo cheio delas. Viram também outros peixes muito pretos da maneira de enxarrocos, mas tão disformes na grandeza que só a cabeça era de mais de seis palmos de largo, e quando nadavam estendiam as barbatanas e ficavam redondos de mais de uma braça. CENA 52 –EXTERIOR NOITE Os marinheiros, os chins e os escravos deitados no convés a céu aberto, sem conseguirem dormir apavorados com os sons assustadores emitidos por fantásticos animais.
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VOZ de Fernão Mendes Somente direi que em duas noites que aqui estivemos surtos, nos não dávamos por seguros dos lagartos, baleias, peixes e serpentes que de dia tínhamos visto, porque eram tantos os uivos, os assopros e os roncos, e na praia os rinchos dos cavalos marinhos, que eu me não atrevo a podê-lo declarar com palavras. CENA 53 –EXTERIOR DIA Ao longo da costa do Rio Nanquim, na terra de Gangitou, António Faria encontra uma disforme gente que se chamava os Gigaunhós. O barco encostado à margem e, no mato em frente, um moço estranho, comprido, sem barba e de cabelos longos a pastorear umas vacas. SIMILAU Não saias em terra senhor, como até agora tens feito. Porque estes Gigaunhós, pela sua natureza robusta e ferina, por não mamarem no leite, inclinam-se a alimentar-se de carne e sangue como qualquer bicho do mato. ANTÓNIO FARIA (entusiasmado) Prezo mais o que estou a ver do que todos os tesouros da China, mas quero ver mais. Atirem-lhe uma peça de tafetá verde! E um marinheiro assim o fez. O estranho e disforme moço, de beiços grossos, de nariz baixo e aparrado, as ventas grandes e disformes na grandeza do corpo, estava vestido com umas peles de tigre com as felpas para fora, descalço e sem coisa nenhuma na cabeça. Aproximou-se aos gritos para receber o tecido. Cheirou-o e beijou-o. MOÇO Quiteu parau fau fau! Ninguém percebeu o que ele disse, nem o Similau que lhe fez uns acenos. António Faria atirou-lhe duas peças de porcelana que o selvagem agarrou com ambas as mãos, de dedos muito compridos. MOÇO (aos saltos) Pur pacam pochy pilaca hunangue doreu! Desapareceu a correr pelo mato dentro e ficaram todos no barco a rir-se às gargalhadas. Pouco depois, tornou a vir com um veado vivo às costas e em sua companhia treze pessoas, oito homens e cinco mulheres, e bailando todos ao som de um atabaque em que, de quando em quando davam cinco pancadas. Davam também, outras
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tantas palmadas com as mãos, e diziam alto e muito desentoado, “cur cur hinau”. As mulheres traziam nos buchos dos braços umas grossas manilhas de estanho e tinham os cabelos cheios de umas flores como de espadana, a que nesta terra chamam lírios, e ao pescoço traziam uma grande trambolhada de conchas vermelhas do tamanho de cascas de ostras. E os homens traziam nas mãos uns paus grossos forrados até o meio das mesmas peles. Eram todos de gestos grosseiros e robustos, tinham os beiços grossos, os narizes baixos e apartados, as ventas grandes. VOZ de Fernão Mendes Disformes na grandeza do corpo, era gente muito rústica e agreste, fora de toda a razão que quantas até agora se tem descoberto, nem nas nossas conquistas, nem em outras nenhumas. CENA 54 –EXTERIOR MANHÃ Nevoeiro cerrado, no meio do Rio Nanquim. À procura da Ilha de Calemplui, a ilha dos tesouros sagrados dos antigos reis Chins. Parecem fantasmas as duas pequenas embarcações, como fantasmas os seus tripulantes, que se não vêm uns aos outros a mais de três palmos de distância. Enfrentamento violento entre António Faria e o corsário Similau. SIMILAU Confesso senhor, como homem que sou que perdi a estimativa por onde temos navegado e não sei onde estamos. ANTÓNIO FARIA Que dizes? SIMILAU Confesso senhor, que nos sinto perdidos. ANTÓNIO FARIA Eu mato-te! Mato-te já! António Faria ergueu a faca para o despedaçar, mas os seus homens, mais vultos do que homens, intrometeramse para lhe agarrar o corpo e o braço erguido. Gritaria. DOIS HOMENS Senhor, será pior! Ficamos todos para sempre perdidos e sem fazer o que fazer. António Faria embainhou a adaga na cintura acalmou os gestos, mas não a cólera.
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Similau enfim respirou, mas desviou o olhar e mal que pôde desapareceu na névoa. ANTÓNIO FARIA (revoltado) Juro por nosso Senhor, se em pouco tempo não me mostrares o engano ou desengano das tuas mentiras, te mato às punhaladas! Dias, meses de viagem para nada. Fundido ao branco e abertura para.... CENA 55 –EXTERIOR NOITE Os bancos de névoa a começam a dissipar-se e no escuro da noite, aparece o rosto de um marinheiro, dos que estavam de vigia depois do quarto rendido, completamente pasmado. Depois, corre esbaforido para acordar António Faria e todos os outros que dormem. MARINHEIRO Senhor, o Similau fugiu e com ele levou trinta e dois, dos quarenta e seis marinheiros chins que vinham connosco. Senhor, senhor, o Similau fugiu! António Faria e todos os mais que se achavam com ele ficaram pasmados e apertando as mãos e pondo os olhos no céu, emudeceram de maneira tal, que só as lágrimas eram as que falavam e davam testemunho do que os seus corações sentiam. Depois de algum tempo em silêncio... ANTÓNIO FARIA (em voz muito baixa e depois aos berros) Acabou tudo. Vamos descer o rio, ao sabor da corrente, para encontrar a foz do Nanquim e o mar por onde viemos. Não há outro remédio! Mal tinha pronunciado estas palavras, um pequeno estrondo foi sentido vindo da proa. Correram para ver. Tinham batido numa barcaça surta “dentro da qual, pelo grande aperto e necessidade em que estávamos nos foi forçado entrarmos sem reboliço algum, e nela tomámos cinco homens que estavam dormindo”. Sobre a acção do aprisionamento e do interrogatório que se lhe seguiu, em linguagem muito estranha ouvimos claramente... VOZ de Fernão Mendes António Faria inquiriu cada um por si, a ver se concertavam todos nas respostas que davam. A terra ali perto chamava-se Tanquileu, e só distava dez léguas para sul da Ilha de Calemplui. Estes cinco chins levou António de Faria consigo presos a banco e seguiu por sua derrota mais dois dias e meio, no fim dos quais prouve a Nosso Senhor que dobrando uma ponta
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de terra que se chamava Guinaytarão descobrimos esta ilha de Calemplui, a qual havia oitenta e três dias que andávam buscando com tanta confusão de trabalhos e medos, quantos atrás ficam contados.
CENA 56 –EXTERIOR AMANHECER Saindo do meio da bruma, o esplendor da fantástica Ilha Calemplui, e os dois barcos em viagem lenta em volta dela. António Faria e seus homens encontram uma coisa tão grandiosa, que ali mostrava um aparato e majestade
tamanha, que eles nunca imaginaram pudesse existir. Um Deus descomunal saindo da rocha, com a altura da ilha toda, ladeado por duas estátuas de mulheres de um terço do tamanho, mas mesmo assim mediam mais de cinquenta palmos. E o que viram a seguir e de que se aproximaram cada vez mais, será filmado de acordo com a descrição de Fernão Mendes Pinto... “Era esta ilha toda fechada em roda de cantaria de jaspe de vinte e seis palmos em alto, feito de lajes tão perfeitas e bem assentes, que todo o muro parecia uma só peça. Este muro vinha criado de todo o fundo do rio até chegar acima em altura de outros vinte e seis palmos. Havia ídolos de mulheres com uma bola redonda nas mãos e dentro uma fileira de monstros de ferro coado, que a modo de dança com as mãos dadas de uns aos outros fechavam toda a redondeza da ilha, que seria de quase uma légua em roda. Apareceram uns edifícios, todos de alto abaixo, quanto a vista podia alcançar, cozidos em ouro, com suas torres muito altas, que segundo o que parecia, deviam de ser campanários cozidos em ouro, pelo qual de todos se julgou que devia isto de ser algum templo muito sumptuoso e de grandíssima riqueza.” O espanto de todos, no rosto de António Faria ,a cobiça e no rosto do padre Diogo Lobato, uma apreensão admirada.
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PADRE DIOGO LOBATO Coisa igual nunca vi! Louvado seja Deus, mas espero eu, que esta grandeza não seja arte do demónio. ANTÓNIO FARIA Vamos lá dentro às ermidas ver se há o que Similau disse que havia. Talvez lhe perdoe. O Senhor Padre Diogo Lobato fica aqui como capitão das duas palouras. PADRE DIOGO LOBATO (benzendo-se) Eu? Fico aqui? ANTÓNIO FARIA Consigo ficam os suficientes. Mandará disparar um foguete chin se alguém de estranho por aqui aparecer. CENA 57 –EXTERIOR DIA António Faria acompanhado de quarenta soldados, todos armados de lanças e arcabuzes, vinte escravos e dois chins intérpretes. Todos avançam no maior silêncio até uma porta de uma ermida. Bate duas vezes com estrondo na porta. UMA VOZ (em chinês que o intérprete traduz de imediato) Seja louvado o Criador que esmaltou a formosura dos céus. Dê a volta por fora, entre na pequena porta que está aberta e saberei o que quer. CENA 58 –INTERIOR DIA As mãos de António Faria retirando de um pequeno baú peças de ouro e outras pedrarias. Na ermida, António Faria remexe sem parar o tesouro encontrado e disponível, diante de um tropel de gente armada e cobiçosa. De “focinho no chão”, tremendo de pés e mãos, gritando palavras agudas que o intérprete vai traduzindo, um velho que parece ter mais de cem anos, está com uma vestidura de damasco roxo, muito comprida. Nas paredes uma série de ídolos em ouro ocupam nichos e altares. Paus de incenso ardem por toda a parte, tornando a atmosfera tão irreal quanto violenta. António Faria, com a cobiça estampada nos olhos esbugalhados e nos seus lábios que espumam alegria. Ainda no chão, desenhando um grande circulo, caixões de madeira vermelha enfeitados de figuras em baixo relevo. Neste conjunto trágico e fascinante um intérprete vai traduzido às catadupas os impropérios o que o velho ancião, que guarda o templo, grita.
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INTÉRPRETE O sulco da tua cegueira, como piloto do inferno te trás a ti e a esses outros à côncava funda do lago da noite. Em vez de dares graças a Deus por tamanha mercê vens roubar! António Faria, sem lhe responder, ordena aos seus soldados que abram os caixões, o que eles fazem usando as pontas das suas lanças. E então vêm esqueletos repletos de pulseiras e colares de prata. INTÉRPRETE Bem dito sejas Senhor, que sofres a ver na terra homens que tomem como remédio de vida ofensas tuas... Na dificuldade de arrancarem a prata dos esqueletos, com gestos bruscos e modos violentos, alguns marinheiros separam e arrancam os ossos para tornar mais fácil a pilhagem. INTÉRPRETE Oh, meu Deus! Manda esta toda gente que torne a recolher os ossos dos santos para que não fiquem desprezados na terra. VOZ de Fernão Mendes António Faria ergueu o ancião nos seus braços e chegando-se muito a ele começou a animá-lo e afagá-lo com palavras brandas de muito amor e cortesia, dizendo que se arrependia do que estava a fazer, da viajem que tinha cometido e em segredo contou-lhe que a isso tinha sido obrigado para que os seus não o matassem. O ancião olhando muito para ele, de olhos molhados de lágrimas balbuciou. INTÉRPRETE Ao menos não terás tantas penas, como esses outros ministros da noite, que como cães esfaimados me parece que toda a prata do mundo os não poderá fartar. No chão, um amontoado de ossos; nas bolsas um amontoado de pratas. E quando um dos de António Faria de nome Nuno Coelho se aproximou de uma imagem em ouro para lhe cuspir antes de a arrancar, num esforço extraordinário o velho correu e deu um salto ágil. Interpondo-se gritou. INTÉRPRETE Não isso não! Se queres acabar de encher o farnel do teu infernal apetite, nessas outras casas que aí estão, acharás a prata com que bem te enchas até rebentares! Já que, por essa que tens tomado, hás-de ir para o inferno,
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vai também por essas outras, quanto mais peso levares sobre essa cabeça, tanto mais depressa irás ao fundo. Por Deus! Por Deus! Como num rebate de consciência, António Faria impediu a blasfémia. ANTÓNIO FARIA Nós também andamos pelo mundo para espalhar a verdade do nosso Deus. O intérprete que parecia calmo e resignado, grita com veemência. INTÉRPRETE Nunca cuidei que visse, nem ouvisse maldade por natureza e virtude fingida, que é furtar e pregar! Grande deve ser a tua cegueira, pois confiado em boas palavras, gastas a vida em tão más obras. Não sei se o teu Deus gracejará contigo no dia da conta. ANTÓNIO FARIA Que gente há em todas essas ermidas da ilha? INTÉRPRETE (traduzindo o ancião) Trezentos e sessenta talegros, somente um por cada ermida. Uma ermida e um santo, por cada dia do ano. ANTÓNIO FARIA Trezentas e sessenta ermidas? E não há gente armada? INTÉRPRETE Aos que precisam de caminhar para o céu, não lhes são necessárias armas que ofendam, se não paciência para sofrer. ANTÓNIO FARIA E toda esta prata nos caixões de mistura com os ossos? INTÉRPRETE São as esmolas que os defuntos levam consigo, para que lá no céu da lua se valerem nas suas necessidades. ANTÓNIO FARIA E os reis da China vêm a este lugar algum ano?
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INTÉRPRETE Nunca. O rei, por ser filho do sol, pode absolver a todos, mas ninguém o pode condenar a ele. ANTÓNIO FARIA E não há mulheres por aqui? INTÉRPRETE Aqui não se gasta o tempo nos deleites da carne. No favo doce do mel cria-se a abelha, mas ela pica, escandaliza e magoa os que o comem. VOZ de Fernão Mendes António Faria, abraçou o velho ancião e pediu-lhe perdão pelos seus pecados, quase de lágrimas nos olhos. ANTÓNIO FARIA (grita, mudando a atitude) Vamos! Temos muitas outras ermidas para acometer. CENA 59 –EXTERIOR FIM DO DIA Fila numerosa de marinheiros e escravos de António Faria carregam grande quantidade de pratas, alguns ídolos de ouro, candelabros e pedrarias para o interior de ambas as embarcações.
De repente o som de um gongue, depois de outros, de muitos gongues ecoaram nos ares e assustaram todos o rebate tinha soado, António Faria ordenou com uma fala gritada que mal se ouvia no meio de tamanha toada.
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ANTONIO FARIA Vamos daqui para fora! À vela, a remos, pelo o rio abaixo, que Deus Nosso Senhor nos proteja! CENA 60 –EXTERIOR FIM DO DIA O velho ancião, correu até ao sítio onde as duas embarcações carregadas pelo saque estavam prestes a largar as amarras. Cansado, esgotado, reuniu as suas últimas forças para gritar uma maldição na direcção das duas panouras. VELHO ANCIÃO (em chinês e voz fora de campo do intérprete) Oh gentes tristes e ensopadas na bebedice do sono da carne! Estas gentes estrangeiras do cabo do mundo com barbas compridas e corpos de ferro entraram na casa dos vinte e sete pilares, para roubar nela o tesouro dos santos. Botaram com desprezo seus ossos no meio da terra e os contaminaram com escarros podres e fedorentos, dando muitas risadas como demónios obstinados e contumazes no primeiro pecado! No interior da panoura, o intérprete traduz ao ouvido de António Faria. INTÉRPRETE É melhor vos pordes em salvo, porque vos afirmo que a terra, o ar, os ventos, as águas, as gentes, os gados, os peixes, as aves, as ervas, as plantas, e tudo o mais que hoje é criado, vos há-de empecer, e morder-vos tanto sem piedade, que só Aquele que vive no céu vos poderá valer. CENA 61 –EXTERIOR NOITE E AMANHECER Na enseada de Nanquim um terrível temporal vai desfazer as embarcações e atirar tudo e todos ao mar. Na panoura de António Faria, uma grande grita: “Senhor Deus! Misericórdia!”, entre os planos largos do temporal e os muito aproximados para mostrar a agonia e o desespero dos marinheiros. Enquanto a chuva grossa e o vento terrível fustiga as embarcações até à sua destruição, ouvimos... VOZ de Fernão Mendes Lhes deu um tempo do sul, a que os Chins chamam tufão. Os mares ficaram tão cruzados e tão altos na vaga do escarcéu, que era coisa medonha de se ver. Com este medo começaram a alijar quanto trazíam e foi tamanho
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o desatino neste excessivo trabalho, que até o mantimento e os caixões da prata se lançaram ao mar e após isto cortamos também ambos os mastros, porque já a este tempo as embarcações iam abertas, e correram assim o que mais restava do dia, de modo que sem nenhum remédio se iam ao fundo, por onde já então presumiram que era Nosso Senhor servido que tivessem ali fim tanto as vidas como os trabalhos. CENA 62 –EXTERIOR DIA Nos pedregulhos da costa, os sobreviventes sentados, esfarrapados, contentes com a sua salvação mas desesperados com sua desgraça. O mar continua alteroso, mas o céu acalma-se fazendo surgir o sol entre as nuvens escuras. VOZ de Fernão Mendes Dos vinte e cinco portugueses que eram, salvaram-se somente catorze e onze ficaram ali afogados, e mais dezoito moços cristãos e sete chins marinheiros. Logo que o dia foi de todo claro, e descobrindo já todo o mar, não viram António Faria e acabaram todos de pasmar, de maneira que nenhum teve mais acordo para nada. Esta desventura sucedeu a uma segunda-feira, 5 do mês de Agosto do ano 1542, pelo qual Nosso Senhor seja louvado para sempre. CENA 63 –INTERIOR NOITE Salão da casa de Fernão Mendes Pinto, na quinta do Rosal em Almada. Os enviados de sua Alteza Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal), o italiano João Pedro Maffei e o português Gaspar Gonçalves, ambos padres jesuítas, acabam de visitar o escritor aventureiro para obter informações sobre a China e o Japão. Sentados em cadeiras de madeira escura forrados a veludo vermelho, as duas filhas de Fernão Mendes, a mais velha quase nos vinte anos, a outra nos seus quinze. A mulher, Maria Correia de Brito, de vestido escuro e cabelo apanhado, está em pé, esboçando um sorriso de agrado. Fernão Mendes, velho de 73 anos, acompanha os dois padres jesuítas, em passos lentos, até à porta de saída. Antes que ele, fale uma legenda. ALMADA, Outubro de 1582
FERNÃO MENDES (subserviente e engraçado) Padre Maffei, Padre Gaspar Gonçalves informai sua alteza D. Filipe, que terei muito gosto em contar todas as minhas demandas nessas terras do Oriente, todo o meu saber dessas gentes, a El-Rei que domina toda a terra onde o sol jamais se deita! Os dois jesuítas sorriram, fizeram uma reverência e saíram. Fernão Mendes Pinto regressou apressadamente
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para o interior da sala, para abraçar muito a mulher e lhe dizer. FERNÃO MENDES Por fim! Será neste tempo que El-Rei me vai conceder a tença que há vinte cinco anos peço, que sempre me negam e que muito mereço? CENA 64 –EXTERIOR NOITE No jardim, de buchos trabalhados, antes de entrarem na liteira, que está junto ao portão, atrelada a dois cavalos, um branco à frente e um castanho atrás, os dois padres comentam o encontro. PADRE GASPAR GONÇALVES Que mente tão extraordinária e cheia de febre. Pedimos-lhe factos e ele conta-nos histórias. Poderemos acreditar em tanta fantasia? PADRE MAFFEI (rindo-se) Muita coisa me há-de servir para a História das Missões ao Oriente que Sua Majestade me ordenou fazer. El-Rei D. Filipe muito preza as fábulas e os recitativos. CENA 65 –EXTERIOR DIA Algures no interior norte da China, num caminho de terra e grossas pedras, ladeado por encostas áridas e com muitas cores, em Zhangye Danxia (rainbow mountains).
Um grupo de nove cativos portugueses ligados por cordas, que lhes atam os pulsos e os tornozelos dos pés esquerdos, escoltados por uma guarda armada de soldados Chineses que os empurram e fazem andar, atrás de
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um cavaleiro, também armado, de lança erguida e sobre um cavalo negro enfeitado com panos vermelhos e doirados. Entre os cativos, Fernão Mendes Pinto e Cristóvão Borralho. VOZ de Fernão Mendes Depois de outro naufrágio, que nos atirou para as costas da China, caminhámos dias e meses, sem saber o sentido por terras pequenas e por terras grandes no interior do Reino Chin, primeiro como pedintes, depois tomados por ladrões. Fomos capturados e entregues a uma guarda, que agora nos leva para o “Auditório de gente estrangeira no grande tribunal de Pequim”. Dos catorze salvos do naufrágio, já tinham morrido cinco e restávamos apenas nove, com os pés em sangue, quase sem roupas, muito maltratados. Rostos esquálidos, que mostram fome e sede, um caminhar vagaroso, que por vezes é castigado com pancadas, pontapés e gritaria em chinês. Mas os cativos cantam... CORO Abranda Senhor A pena dos mortos P’ra que te louvem Com sono quieto No cortejo Os penitentes Bebem tragos da bebida amarga Da urina que depois vomitam Pela noite mal aventurada No cortejo Os penitentes Comem postas de sangue coalhado Da sangria dos outros romeiros Suavemente mutilados E cantam louvores Ao Deus CENA 66 –EXTERIOR DIA Numa pequena cidade no interior da China, os prisioneiros são obrigados com pancadas e pontapés a ajoelharem
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diante de um monumento, uma estátua enorme de um guerreiro em ferro coado, onde na base está uma lápide com texto escrito em caracteres chineses. O intérprete chin de Fernão Mendes traduz... INTÉRPRETE Aqui jaz Trannocem Mudeliar, tio de El-Rei de Malaca, a quem a morte levou, antes que Deus o vingasse do Capitão Albuquerque, leão dos roubos do mar. CORO (continuando) Abranda Senhor A pena dos mortos P’ra que te louvem Com sono quieto CENA 67 –EXTERIOR DIA Algures em Pequim. Uma pequena cidade tradicional chinesa, poderá simular a grande metrópole no século XVI. Da canção da cena anterior ainda se ouvem as percussões metálicas, que coincidem com o som dos bombos e dos pratos grandes de cobre, batidos por maçanetas do mesmo metal. Nos ares uma chinfrineira ritmada, no rosto dos prisioneiros, o terror. Eles são agora conduzidos em fila indiana, tendo cada um deles os braços atados atrás das costas em grossos paus que lhes fazem dobrar o tronco. Passam pelo pátio das execuções, onde os carrascos empunham grandes facas afiadas na espera impaciente do resultado do julgamento. Muitos chins estão apinhados junto ao estrado e abrem uma ala estreita para ver aqueles estrangeiros de nariz comprido e barba pontiaguda, que são cuspidos na cara e insultados com uma grande grita. Fernão Mendes inclina a cabeça para evitar mais escarros e olha de baixo para o cadafalso, tremendo de pavor. Riso dos algozes, que apontam as facas para a grossa tábua, onde os condenados são executados de um modo não muito diferente de carneiros num açougue. E também olham com desdém para aqueles pobres desgraçados que entram no pátio do tribunal. CENA 68 –EXTERIOR DIA Pátio do tribunal. Dezenas de chineses ocupam uns, o amplo pátio, e os que não cabem, espreitam pelo portão. Sentados a uma mesa coberta com um enorme tecido de seda carmim e franjas de ouro, onde se acumulam livros e papéis, onze Conchalys (ou juízes), todos com a mão direita apoiada no queixo, ouvem com atenção o que o Chaém Pitau Dilacor (presidente do tribunal) deliberou como sentença na Mesa dos Doze do Grande Tribunal da Gente Estrangeira de Pequim. Estão todos com umas vestes de cetim branco muito compridas e de mangas largas, para com isso mostrarem a largueza e pureza da justiça. O Chaém está em pé ao lado de uma
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pequena mesa descoberta por ser de prata e que não tem mais do que uma pequena almofada de brocado, onde pousam um tinteiro, a pena e um pequeno monte de poeira. Diante dele, inquietos e descrentes na salvação, os nove cativos portugueses. O Chaém fala numa voz alta e num timbre muito agudo e um intérprete grita quase no mesmo tom, perto dos cativos.
PITAU DILACOR / INTÉRPRETE Pitau Dilacor, novo Chaém neste Santo Auditório da Gente Estrangeira, por vontade do filho do Sol, leão coroado no trono do mundo, ao qual todos os ceptros e coroas de todos os Reis que governam a terra são sujeitos e postos debaixo dos seus pés, por graça e vontade do mais alto dos Céus. Aos nove dias da sétima lua dos quinze anos da coroação do filho do Sol me foram apresentadas as culpas que destes me mandou o Chumbim de Taipor, nas quais dizia serem eles ladrões roubadores das fazendas alheias, no qual ofício havia muito tempo que gastavam as vidas, com ofensa grave do Alto Senhor que tudo criou, e que sem temor seu se banhavam no sangue dos que lhe resistiam com justa razão, pelo qual crime foram condenados a pena de açoutes, e dedos cortados, de que nos açoutes se fez logo execução, e querendo se também fazer no cortar dos dedos, vieram alegando por parte deles os procuradores dos pobres, que eram mal condenados, visto não haver prova nenhuma do que fora posto contra eles. E como a santa justiça, de respeitos limpos e agradáveis a Deus, não aceita razões de partes contrárias, sem haver prova clara do que dizem, pareceu-me não ser justo aceitar o libelo do promotor, porque não consegue provar o que nele dizia.
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Neste momento, depois de um tremor, Fernão Mendes exausto caíu por terra, como que desmaiado. Da assistência elevaram-se gritos de espanto, que foram logo interrompidos pelo soar forte de um gongue, acompanhado de movimento de vários guardas e da fala gritada por um Juiz Assistente. JUIZ / INTÉRPRETE Calar e ouvir com prontidão humilde, sob pena do castigo, que pelo Chaéns do Governo está determinado, aos desinquietadores do silêncio da Santa Justiça. E de novo se fez o silêncio. Sobre o rosto encostado na terra de Fernão Mendes, onde caiem gotas águas que lhe fazem abrir os olhos, sobrepõe-se o rosto do Chaém, que continua a ditar a sua sentença, da qual Fernão Mendes ouve apenas algumas frases, em som distante como num sonho. PITAU DILACOR / INTÉRPRETE No quinto livro da vontade do filho do Sol, que pela sua grandeza e realidade, se inclina mais ao clamor dos pobres que ao bramido dos inchados da terra, mando que estes novos estrangeiros sejam soltos de tudo que contra eles requereu o Continão Prometor de Justiça, sem lhes dar castigo da pena de crime de morte, e somente os condeno a um ano de degredo para as obras de Changcheng na terra de Quansy. E findo esses trabalhos, mando eu ao Chumbim, aos Conchalis e aos Monteus, que lhes passem carta segura para que livremente possam ir a sua terra ou onde for mais sua vontade. Fernão Mendes ergueu o corpo com grande esforço e o seu rosto iluminou-se de alívio, para gritar frases que os outros cativos repetiram e o intérprete traduziu para chinês. FERNÃO MENDES / OS OUTROS / INTÉRPRETE Confirmada é em nós a sentença do teu claro juízo, assim como a limpeza do teu coração apraz ao filho do Sol. PITAU DILACOR / INTÉRPRETE Haverá alguma alma justa e misericordiosa que acolha em sua casa estes pobres estrangeiros, durante dois meses, para que eles recuperem o espírito e fortaleçam o corpo, podendo depois cumprir os trabalhos que a minha sentença determinou? E das primeiras filas da assistência ergueu-se um venerável e altivo chinês, que pelo modo como vestia e andava fez com que, os que estavam em redor de si, inclinassem a cabeça em sinal de respeito. Era na verdade um homem bom, honrado, poderoso e amigo dos pobres.
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PITAU DILACOR / INTÉRPRETE Liu Xugang! Muito bem. Ao lado Chaém, dois meninos chineses, que representavam a justiça e a misericórdia, tocaram as suas insígnias e disseram em simultâneo com sua suave voz infantil. MENINOS / INTÉRPRETE Sejam livres e soltos, conforme a sentença que justamente se deu. À medida que são libertados dos troncos, das algemas e das amarras, os nove desgraçados, agora salvos, abraçaram-se e ainda de joelhos ergueram as mãos para tecer louvores a Deus. CENA 69 –EXTERIOR/INTERIOR NOITE A vida em casa de Liu Xugang é um paraíso. Atravessemos o jardim de árvores pequenas e de arbustos muito bem aparados, de onde pendem várias lanternas cobertas de balões feitos de finos papéis vermelhos entrelaçados, que descrevem o caminho até à porta principal da casa comprida de dois sobrados e muitas janelas, de onde sai o som mavioso de uma voz de mulher a cantar. Entremos na casa. Num salão grande de portas abertas para outros salões mais pequenos, de ante de mesas baixas repletas de
iguarias, de chás e de vinhos, sentados no chão em almofadas, os cativos portugueses, já muito curados das mazelas, estão encantados a ouvir a canção que a filha mais velha de Liu, chamada de Zhou, entoa enquanto as suas finas mãos cor de neve dedilham o erheu, uma espécie de viola de arco de duas cordas. Celebra-se, como em todas as casas chinesas, o duplo sétimo – sétimo dia do sétimo mês lunar – onde se fazem ofertas de frutos
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e doces a Bodrisattva Guaiyn de mil braços, a deusa da misericórdia. E ao lado de uma estátua dourada que a representa, o anfitrião e a sua esposa estão sentados, sorrindo para os seus “hóspedes”, embebecidos com a beleza da canção que acompanham com delicados movimentos de cabeça. Na sala contígua, nas costas deles, duas outras jovens filhas do casal, uma de extraordinária beleza e brancura que troca repetidos olhares com Fernão Mendes, enquanto borda uma pequena toalha de seda branca. A canção da filha mais velha de Liu, é traduzida em voz baixa por Fernão Mendes, que já sabe um pouco de mandarim. ZHOU Insidiosa todas as noites A saudade persegue O espírito do peregrino Se não o proteger um suave Sonho, num sono profundo: A lua cheia – alto pavilhão solitário – “Não te encoste ao balcão! ...” E o vinho, no coração despedaçado, Transforma-se então em lágrimas Carregadas de mágoas sem fim. Todos batem palmas, demasiado ruidosas as dos portugueses, muito suaves a da família chinesa. Zhou inclina a cabeça, agradecendo, depois ergue um sorriso, que aquece a alma dos exilados. ZHOU É um tzu muito antigo, um poema de Fan Tchong- Yen. LIU XUGANG Esta canção merece mais vinho. Bebamos! E os portugueses não se fazem rogados. Bebem e riem-se muito. Mas não Fernão Mendes, que a melancolia tomou conta dele. FERNÃO MENDES Prefiro chá se vossa senhoria não achar mal. Então a filha mais nova de Liu, que se chama Meng, pousa o bordado e avança com os pezinhos muito pequenos, calçados de meias brancas, andando como pequena ave saltitante. Serve o chá a Fernão Mendes, trocando olhares. A cara de pele alva de Meng, ganha um rubor rosa acentuado.
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FERNÃO MENDES Oh, Meng muito obrigado! CRISTÓVÃO BORRALHO Chá? Vinho, mulheres! Oh, o que eu dava para ter aqui agora um mimo, que me mitigasse o sofrimento... De mãe! De irmã! De mulher ou de noiva! LIU XUGANG (rindo-se e percebendo) Vocês estrangeiros estão aqui há mais de um mês, começam a recuperar forças e eu percebo muito bem do que vocês precisam. Bateu fortemente as palmas, um criado apareceu e ele deu-lhe uma ordem curta muito rápida, que nem Fernão Mendes percebeu. Quase de imediato o criado apareceu com uma bolsa de veludo, atada por um cordão de ouro. O anfitrião abriu-a e na mão de cada um dos portugueses depositou quatro taéis de prata, enquanto lhes foi dizendo. LIU XUGANG O marido é o sol, a mulher é a lua. O Yang dá vida às coisas, o Yin junta-se a ele e completa-as. Vocês vão a um sitio chamado Mercado dos Cavalos Magros, que é decente e tem moças gentis e belas, ou então ao Jardim das Flores, ou ao Bairro das Lanternas Vermelhas, mas aí tem de agir com muito mais cuidado. Riu-se com uma gargalhada forte e curta, enquanto a sua mulher e as suas filhas inclinaram a sua cabeça para o lado e para baixo, fingindo pudor. Todos se levantaram entusiasmados, excepto Fernão Mendes que agradeceu os taéis e trocando de novo um forte olhar com Meng disse. FERNÃO MENDES Prefiro ficar. Não me sinto muito bem com pessoas desconhecidas. Tenho de as conhecer, tenho de gostar muito. Os outros ficaram perplexos.
CENA 70 –INTERIOR NOITE Bordel, no Jardim das Flores. No aposento interior, decorado com cenas eróticas, candeeiros vermelhos e flores, uma prostituta chinesa ensina ao português Cristóvão Borralho, podre de bêbado, enquanto ele se despe com
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dificuldades evidentes, como deve ser o sexo. Ela redonda, branca, nua, mas de cara muito pintada de branco e os lábios e os olhos muito marcados de cor. Ele esquálido, aflito.
PROSTITUTA Os homens costumam cometer erros na cópula. As mulheres conquistam o homem, como a água conquista o fogo. Os conhecedores da arte do amor são os que sabem que o modo Yin e Yang deve misturar os cinco prazeres da vida, homens e mulheres são como o céu e a terra, cuja eterna natureza jaz na sua unidade. CRISTÓVÃO E se eu não conseguir? PROSTITUTA Tal não deve acontecer! Os seres humanos devem seguir os ritmos do Yin e do Yang, tal como seguem as mudanças das estações.´ CRISTÓVÃO E como se chega aí? PROSTITUTA Para o homem o elemento essencial é reter o seu fluxo para evitar o enfraquecimento da sua força. Para a mulher é o orgasmo, nem muito
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depressa nem muito devagar. A função do orgasmo da mulher é manter o equilíbrio das energias, acalmar o coração, fortalecer a vontade e desanuviar a mente. Assim, ambos vão experimentar uma profunda sensação de bem estar, sem sentir nem calor nem frio, fome ou saciedade, desfrutando no corpo o seu prazer em paz. CRISTÓVÃO (olhando para si e para baixo) E agora? PROSTITUTA (rindo-se e levantando-se para o acalmar) Um pouco de âmbar, é o melhor para uma boa cópula com homem ou mulher. Fortalece o ímpeto amoroso, aproveita o coração, o cérebro e o estômago. CRISTÓVÃO (agarrando-a) Dá-mo! PROSTITUTA (soltando-se a rir) São outros dois taéis de prata! Como te chamas? CRISTÓVÃO Cristóvão. E ela ri-se muito. CENA 71 –INTERIOR NOITE Aposento de Fernão Mendes Pinto, um dos muitos quartos separados por tabiques, situado numa espécie de pavilhão, um pouco afastado da casa principal de Liu Xugang, no lado direto do grande jardim. Pela janela larga entra a luz vermelha de um dos candeeiros e Fernão Mendes está deitado numa cama muito baixa, mantas sobre um estrado de madeira, rente ao chão, incapaz de dormir, inquieto, olhos no tecto, pasmados. Passado um tempo ele ouve o som discreto de passos, um ruído da porta de correr a abrir-se e fica espantado com uma visão que o entontece. A silhueta de uma mulher entra no seu quarto. Carrega uma pequena selha de madeira, com água fumegante, e nos braços umas pequenas toalhas de cor branca. Então Fernão Mendes, ergue o corpo e diz com entusiasmo.... FERNÃO MENDES Meng!
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Na obscuridade vermelha do quarto, Fernão Mendes vê o sorriso suave de Meng e fica encantado quando repara numa enorme quantidade de pétalas de rosas a cobrir por completo a superfície de água quente. Meng ajoelha-se para lhe erguer a camisa larga e ele fica em tronco nú. Ela molha as pequenas toalhas macias e lava-lhe suavemente as costas, marcadas com cicatrizes de maus tratos anteriores, das chicotadas e do tronco de madeira que durante horas lhe rasgaram a pele. As cicatrizes entumeceram e avermelharam-se, como se ganhassem vida. Então ela tocou-lhe ao de leve com os dedos e depois percorreu com beijos delicados. Fernão Mendes fechou os olhos com volúpia, mas pouco depois, não se contendo, voltou-se para a beijar sofregamente e despi-la atabalhoadamente. A bela jovem soltou pequenos gritos abafados e ele possuiu-a. Ela suspirando, entregou-se e perante esta dádiva maravilhosa, o desterrado chorou de gratidão. CENA 72 –INTERIOR NOITE No mesmo apartamento, deitados, nus, depois de alguns momentos de silêncio em que Fernão Mendes olhava para os enfeites que pendiam do tecto e ela olhava para ele. FERNÃO MENDES E os teus pais? Nosso Senhor misericordioso! Eu vou falar com eles, eu caso-me contigo, eu fico aqui.... Não! eu cumpro a pena e depois volto... eu fico... eu fico... para sempre! Como Fernão Mendes falou muito depressa em chinês muito atabalhoado, ela pouco percebeu, mas repetiu risos baixos como resposta. FERNÃO MENDES (em português, depois de a beijar) Oh, Meng! Possuí-te o corpo, mas não tenho a certeza que possa possuir a tua alma. CENA 73 –EXTERIOR DIA Junto ao portão da casa senhorial de Liu Xugang, uma carroça puxada por dois cavalos negros, no interior da qual estão apinhados os nove condenados portugueses para os trabalhos forçados em Quansy, rodeada por dois soldados a cavalo e uma dúzia em pé. Ao longe a família Liu Xugang perfilada nos degraus da porta principal acenam repetidamente. A jovem Meng corre até perto do portão. FERNÃO MENDES (em chinês) Um ano passa depressa. Espera por mim, espera por mim, eu volto!
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A uma ordem de um dos soldados a cavalo, a carroça arrancou, afastando-se da casa do senhor Liu Xugang, que durante dois meses os tinha acolhido e tratado com grande humanidade. VOZ de Fernão Mendes Era um sábado de muito sol, do dia 13 de janeiro de 1544, quando nos levaram desta cidade de Pequim para o nosso degredo em Quansy. Mas os Fados resolveram interferir de novo e destruir a promessa, que eu de verdade e de coração tinha feito. Nunca mais voltaria a ver a bela Meng, por quem me tinha tomado de amores. CENA 74 –EXTERIOR DIA Pedreira nos arredores de Quansy. Armados de lanças e de varapaus, Fernão Mendes, Cristóvão Borralho e os outros sete portugueses fazem parte da guarda dos alabardeiros, que vigiam os pobres forçados chins e outros escravos, que de sol a sol trabalham na construção de Changcheng, a Muralha Comprida da China. Das mãos de um chinês carregando uma pedra em plano picado, para um plano muito aberto em contrapicado de um pedaço da monumental construção da muralha a desafiar o céu.
VOZ de Fernão Mendes Como vínhamos bem recomendados, nos mandou o Chaém de Quansy ir diante dele e depois de nos fazer algumas perguntas e de ficar agradado com as nossas respostas, quis que o servíssemos na guarda dos oitenta alabardeiros, que El-Rey lhe dava, e nós tivemos por merecimento muito
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avantajado e, apesar de pouco pago, também tínhamos mais liberdade. Havia quase um mês que aqui estávamos, mais contentes do que esperávamos, apesar dos violentos trabalhos que aqueles muitos condenados faziam diante dos nossos olhos, o que nos causava grande sofrimento. CRISTÓVÃO BORRALHO Mas para que serve esta loucura, maior do que tudo o que no mundo foi construído? FERNÃO MENDES Para o Reino Chin se defender do Reino dos Tártaros, que é muito poderoso em homens e armas. CENA 75 –EXTERIOR DIA Vistos do alto e de longe, ao lado das carroças carregadas de pedra, os guardas portugueses parecem insectos imóveis e espantados. De repente, agitam-se, movem-se e estranhamente lutam entre si. Quando nos aproximamos podemos ver uma inesperada e violenta zaragata. Uma faca empunhada rasga a cara de um, que apesar de ferido pega numa alabarda e decepa a um outro um braço. Os outro sete portugueses, que estão armados intrometemse para os separar, mas acabam todos envolvidos num feroz combate. Muitos já estão feridos, quando uma guarda a cavalo de uma dezena de chins, galopa até eles para os dominar e prender. CENA 76 –INTERIOR DIA Masmorra de chão de pedra, com os nove portugueses todos feridos e acorrentados. Algemas nas mãos, correntes que os ligavam entre si e colares de metal nos pescoços. Gemem, mas não trocam palavras. VOZ de Fernão Mendes Vendo o demónio quão conformes vivíamos todos os nove, repartindo entre todos a miséria que cada um tinha, ordenou-se semear entre dois de nós uma contenda assaz prejudicial para todos, nascida da vaidade que a nossa nação portuguesa tem consigo, que tem como natureza ser mal sofrida nas questões de honra. “Quem sois vós? Mas quem sois vós?” Gritaram os dois em baixos termos de regateiras. Mas que importa, em terras tão longe, se os Madureiras são mais importantes que os Fonsecas?
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Travelling muito lento descrevendo o estado miserável dos presos. VOZ de Fernão Mendes Acabámos a levar cada um de nós trinta açoites de que sangrámos mais do que as feridas do combate, e o Chaém decidiu que eramos brutos como animais, porque do mesmo sangue, da mesma carne, da mesma terra, do mesmo reino, da mesma língua, nos feríamos e nos matávamos tanto sem piedade e sem razão alguma. De acordo com a lei do terceiro livro das brochas de oiro da vontade do filho do Sol, atirou-nos para as masmorras dos montes Chabaqué, para que nós ouvíssemos de noite as feras silvestres, que eram da mesma nossa progénie e vil natureza. Para o Chaém e os seus juízes, nós éramos apenas servos da Serpe Tragadora da Casa do Fumo. Combalidos, zangados, os cativos cantam... CORO Eu cá sou dos Fonsecas Eu cá sou dos Madureiras De ferro e puro sangue O que me corre nas veias Nasci da paixão temporal Do parto dos vendavais Cresço no fragor da luta Numa força bruta P’ra além dos mortais Mas tenho muitas saudades Certas penas e desejos E aquela louca ansiedade Como um pecado Meu amor se te não vejo Olha o fado Ora é tão vingativo Ora é tão paciente Amanhã é comedor Hoje abstinente Mentiroso alcoviteiro Doce e verdadeiro Uma vez conquistador
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Outra vez vencido Amanhã é navegante Hoje é desvalido Sensual aventureiro Doido e bandoleiro Somos capitães Somos Albuquerques Nós somos leões Os lobos do mar De olhos pregados nos céus De cima dos chapitéus Somos capitães Somos Albuquerques Nós somos leões Os lobos dos mares E na verdade o que nos dói É que não queremos ser heróis No final dos dois lentos movimentos circulares, que acompanham o texto e a canção. Aproximação ao rosto de Fernão Mendes, muito marcado de feridas e sujidade. VOZ de Fernão Mendes Sem roupa, sem cama, cobertos de piolhos e mortos de fome, sarámos entretanto todos das feridas e dos açoites, durante mais de um mês em que passamos daquela maldita masmorra, mas prouve a Nosso Senhor que acontecesse um milagre. Ouvem-se correrias, choques e gritaria desesperada. FERNÃO MENDES (traduzindo para os outros) Santo Deus, os tártaros!
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CENA 77 –INTERIOR DIA Enorme tenda de panos verde de Mitaquer, um comandante tártaro. Os nove portugueses estão estendidos no chão de terra em semi-círculo, com os rostos mordendo o pó. Sentado num cadeirão de pano e metal, o Mitaquer está rodeado por “quatro moços pequenos muito formosos, vestidos de umas marlotas (opas) compridas de girões (barras de enfeites) verdes e brancos, e as suas xorcas (manilhas) de ouro nos pés, que tiram os terçados, que seguravam nas cintas e os puseram no chão, numa cerimónia de cortesia”.
QUATRO MOÇOS (repetiram três vezes) Faly hincane midoo patinau dacorem. VOZ de Fernão Mendes Aquilo queria dizer: “Cem anos viva o Senhor de nossas cabeças”, como nos foi dito pelo intérprete que nos ensinava, que também nos informou do que um dos moços nos disse a seguir e da resposta que devíamos dar. MOÇO Alegrai-vos, homens do cabo do mundo, por ser chegada a hora do vosso desejo, que vos será concedida a liberdade que o Mitaquer (apontando), que aí está, vos prometeu. Erguei vossas cabeças do chão e levantai as mãos ao céu, dando muitas graças ao senhor que esmaltou as estrelas na noite quieta do nosso descanso, pois permitiu por si só, sem merecimento de carne nenhuma, haver neste desterro quem, em seu nome, libertasse vossas pessoas.
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Um a um, os portugueses ergueram-se do chão, mas mantiveram-se de joelhos, levantaram as mãos juntas para o céu e disseram em uníssono. CATIVOS Chega nossa ventura, o seu pé trilhar as nossas cabeças. QUATRO MOÇOS Conceda-vos Senhor, esse dom de riqueza. CENA 78–INTERIOR NOITE Taberna em Almada. Em volta de uma comprida mesa, onde ardem já a meio duas grossas velas coladas ao tampo pela cera que escorre, amigos de Fernão Mendes Pinto ouvem incrédulos o relato do cerco a Pequim, pelo exército do Rei do Tártaros. Uma legenda: ALMADA, Outubro de 1564
FERNÃO MENDES Depois dos longos seis meses e meio do cerco a Pequim em que houve muitas batalhas e muitas mortes dos dois lados, sem que os chins tivessesm capitulado, e visto já ser a entrada do inverno e os campos começarem a se alagar, e as águas de ambos os rios virem com tanto ímpeto e força, que lhe tinham já desfeito a maior parte das valas e trincheiras de todo o arraial e juntamente ser-lhe já morta muita gente de doença - não havia dia em que não morressem quatro a cinco mil homens - e a falta de mantimentos ser tamanha que nem para os cavalos a ração havia, a El-Rei dos Tártaros era forçoso levantar o cerco, e ir-se antes que corresse todo o risco de tudo perder. E mandou logo embarcar a gente que estava viva, com todas as munições que ainda restavam, e dar fogo ao arraial. E das muitas centenas de milhares que trouxera, levou menos setecentos e cinquenta mil, quatrocentos e cinquenta mil que morreram de peste, fome e guerra, e trezentos mil que se lançaram para o lado dos chins, a troco de grande soldo, fora muitas vantagens e honras e isso não é de espantar porque as mercês de dinheiro tem muito mais força que todas as outras coisas, quantas cá na terra podem obrigar os homens. Partiu o Rei Tártaro nesta cidade de Pequim uma sexta-feira, dia 17 do mês de Outubro, faz agora vinte anos.
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Os cinco que ouvem, trocam olhares entre si, uns com muitos sorrisos incrédulos, outros entusiasmados com a narrativa, mas todos excitados com a mortandade de tamanha dimensão. UM DOS OUVINTES Há assim do outro lado do mundo, tantos tártaros e tantos chins? FERNÂO MENDES Muitos mais do que alguém aqui possa imaginar. OUTRO OUVINTE (rindo-se) Se viessem para cá engoliam a nossa terra! FERNÃO MENDES (indiferente) Durante todos esses meses, aprendemos a estranha língua deles, o que muito agradou a El-Rei dos Tártaros. E aconselhamos muitas vezes os seus capitães da forma portuguesa de tomar alguns castelos com sucesso, o que lhe agradou muito mais. E antes de partir chamou-nos à sua presença, na tenda real. CENA 79 –INTERIOR DIA Nos quatro cantos da enorme tenda de panos dourados, havia troços em ouro verdadeiro da largura de um braço e espalhadas pelo chão em cima de um tapete largo, com muito belos desenhos, grande soma de peças de prata de toda a sorte, feitas ao torno. E ao centro um cadeirão vermelho onde se sentava El-Rei dos Tártaros. Ladeado por muitos guardas e por quatro cantores jovens, cada um exibindo uma caldeirinha, que entoavam uma canção assaz pouco agradável. El-Rei seria da idade de quarenta anos, de estatura comprida, de poucas carnes e bem assombrado. Tinha a barba curta e com bigodes à turquesa, os olhos um tanto achinados, vestido em um quimono roxo a modo de opa, recamado de pérolas, e nos pés umas alparcas verdes, lavradas de ouro de canotilho, guarnecidos das mesmas pérolas, que assentavam numa almofada de chão, franjada de ouro e roxo, e na cabeça uma celada de cetim roxo, com uma borda de diamantes e rubis entrecruzados uns pelos outros. Fernão Mendes e todos os portugueses, beijaram três vezes o chão, em cortesia, antes de dizerem: PORTUGUESES Hi pausinafapó lagão campanoo ducure vidai hurpane marcutó valem. O rei sorriu agradado e murmurou qualquer coisa para um príncipe a seu lado. VOZ de Fernão Mendes O que todos dissemos queria dizer: “Sobre mil gerações, descansem teus pés, para que fiques Senhor de todos os que habitam na terra.” E o que ele murmurou ao príncipe foi: “Falam como gente que se criou entre nós”.
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Um a um, os nove portugueses vão beijar de novo o chão perto da almofada onde El-Rei coloca os pés, e receber dele um toque amigável com dois dedos nos ombros. Fernão Mendes continuou... VOZ de Fernão Mendes Um de nós, também chamado Mendes, porque não era casado, nem tinha filhos que o chorassem, nem vontade de voltar, decidiu ficar a servir sua alteza a troco de bom pagamento. Mas todos os outros oito queríamos voltar a Malaca e aos nossos. Cada um de nós recebeu por ordem de El-Rei dois mil taéis e passado cinco dias embarcamos no junco do seu embaixador, onde também seguia um embaixador do Reino da Cochinchina para a cidade Uzangué, do mesmo reino, bem mais perto da terra dos nossos. E eu impedido de voltar à China, levei no meu coração o olhar doce da bela Meng.
CENA 80 –EXTERIOR DIA Ao longo de rios desde a cidade de Tuymicão até à cidade de Uzangué, no Reino da Cochinchina. Cenas curtas, cada uma das quais com finais encadeados para as cenas seguintes, descrevendo algumas muito estranhas terras nas margens.
Dois juncos, num dos quais seguem Cristóvão Borralho, Fernão Mendes e Diogo Zeimoto, com os dois embaixadores, e no segundo os outros cinco portugueses, com a tripulação e a carga. De um lado Fernão Mendes e os Companheiros, do outro o que se vê nas margens.
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VOZ de Fernão Mendes Durante esta longa viagem de muitos dias, que sucedeu calma e bonançosa, encontrámos terras e coisas tão estranhas, que ninguém poderá imaginar ter visto. No primeiro dia chegámos a uma cidade de nome Puxanguim, bem fortalecida de torres e baluartes ao nosso modo, e cavas largas e pontes de cantaria muito fortes e grande soma de artilharia de pau, como bombas de navios. E os embaixadores nos disseram que era uma gente chamada alimanis, que ali chegara com uma mulher viúva, expulsa do Reino da Dinamarca, vinda ali fugida com três filhos, a quem o Rei da Tartária casara com parentes suas, e fizera deles senhores daquele império. Encadeado para... CENA 81 –EXTERIOR DIA Os rostos espantados dos três portugueses no interior do junco e do outro lado casas muito compridas e largas, forradas até ao telhado de caveiras e muitos ossos espalhados em pilhas ao lado das casas e no centro o mais espantoso monstro em ferro coado, que alguém pudesse imaginar. VOZ de Fernão Mendes Três dias depois, o Embaixador da Tartária acalmou o nosso espanto e disse, que aquele monstro, que víamos, era o santo tesoureiro de todos os ossos de quantos nasceram no mundo, para que no derradeiro dia de todos os dias, quando os homens tornarem a nascer de novo, dar a cada carne os ossos que deixou na terra. Era melhor fazer honra e dar-lhes esmolas, para que ninguém nasça de novo manco, aleijado ou torto. O nome dele era Pachinarau Dubeculem Pinanfaqué, e tinha nascido havia cinquenta e quatro mil anos de uma tartaruga de nome Miganga e de um cavalo marinho de cento e trinta braças de comprido, que se chamava Tibrenvucão. Encadeado para... CENA 82 –EXTERIOR DIA Outros dias mais tarde, nas margens de outro rio, eles vêem com grande admiração, alguns sacerdotes de vestes muito compridas correndo atrás de mulheres nuas. VOZ de Fernão Mendes Aos sacerdotes daquela diabólica seita, era permitido quebrar a castidade apenas uma vez por ano, mas fora dela as vezes que quisessem e tinham
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muitas mulheres reservadas para isso, as quais, com a licença das suas libangus, que são as priorescas, se não negavam a eles. Encadeado para... CENA 83 –EXTERIOR DIA No interior do junco que desliza num rio muito largo e muito calmo, muitos dias depois, os três portugueses surpreendidos com uma cerimónia que nunca tinham visto. VOZ de Fernão Mendes Num pagode dourado que era enfeitado em redor de muitos palanques toldados de panos de seda coloridos, a seguir a uma terra chamada Quanginau vimos e ouvimos o Talapicor de Lechune, que é entre eles, como o Papa é entre nós, pregar aos berros para uma pequena multidão – “Faxitinau hinagor datirem, voremidáne datur nitigão filau impacur coilozas patigão...” – que queria dizer, “assim como por natureza a água lava tudo e o sol aquenta as criaturas, assim é próprio em Deus por natureza, fazer bem a todos. E a nós imitá-lo.” E pedia na sua língua, para que todos fizessem ofertas aos sacerdotes que rogavam por eles, para que eles não morressem à míngua, o que seria diante de Deus tamanho pecado, como se matassem uma vaca branca estando mamando na teta da mãe em cuja morte morrem mil almas, e o povo respondia “Taximida”, que queria dizer “assim o cremos”. Encadeado para... CENA 84 –EXTERIOR NOITE Muitas lanternas espalhas pela encosta íngreme da margem, Fernão Mendes e os outros dois portugueses que dormitavam ao relento no chão do junco, sob um céu muito estrelado, são despertados por uma algazarra de vozes e sons musicais feitos por pratos metálicos. VOZ Fernão Mendes E quatro dias depois chegámos a uma cidade chamada Lechune, que é a cabeça da falsa religião desta gentilidade, como é Roma para a nossa religião verdadeira, onde num templo muito sumptuoso estão sepultados vinte sete reis ou imperadores, desta tártara monarquia, em capelas muito ricas, todas forradas de prata, com uma enorme quantidade de ídolos de diferentes natureza, também feitos em prata.
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CENA 85 –EXTERIOR DIA Os dois juncos são minúsculos porque estão ao centro de um lago gigantesco. Movimentos sobre os juncos e movimentos sobre as margens em redor. VOZ de Fernão Mendes E ao cabo de mais dez dias, chegámos ao grande lago de nome Singapamor, que a natureza por obra admirável abriu na terra e que segundo informação do embaixador tinha em roda trinta e seis léguas. Daqui saiam quatro rios muito largos e fundos e que se têm que são os maiores de quantos agora se sabem. O de nome Ventrau, que faz entrada no mar pela barra de Chimtabu no Reino do Sião, o de nome Jangumá que entra no mar pela barra de Martavão no Reino de Pegu, o terceiro de nome Punfileu que entra no mar em Cosmim junto de Arracão, e do quarto rio não nos souberam, os embaixadores de dar razão, mas presumo que é o Ganges de Salejão, no Reino de Bengala. CENA 86 –EXTERIOR DIA Travelling sobre três rodas de prata de uma carroça, a que se seguem patas de elefantes, enfeitadas de fitas de ouro e borlas de seda vermelha. VOZ de Fernão Mendes E ao cabo de mais de um mês de viagem, fomos todos recebidos com grandes honras e muitas cortesias pelo rei Cochinchina na cidade de Uzangué.
CENA 87 –INTERIOR DIA El-Rei estava numa tribuna de oito degraus, a modo de altar, a qual tinha por cima um tecto que descansava sobre uns balaústres e este tecto e os balaústres eram todos forrados de pastas de couro. Junto dele estavam seis meninos em joelhos com cetros nas mãos, e mais afastada um pouco estava uma mulher já de dias que o abanava de quando em quando, a qual tinha um ramal de contas grossas ao pescoço. Ele seria de idade de trinta e cinco anos, bem assombrado, os olhos grandes, a barba bem posta e loura, o rosto grave, a fisionomia severa e o aspecto de príncipe grandioso, assim no estado como no mais que representava.
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EMBAIXADOR DA TARTÁRIA Oh, Otinão cor Valirate, prechau companó das forças da terra, o bafo do alto Deus que tudo criou prospere o ser de tua grandeza para mil anos as tuas alparcas sejam cabelos de todos os Reis, com te fazer semelhante aos ossos e carne do grande príncipe das serras da prata, por cujo mandado aqui sou, vindo a te visitar em seu nome ,como por esta mutra do seu real selo podes ver. EL-REI No seu desejo e no meu, conforme o Sol com a doce quentura dos seus claros raios, seja este verdadeiro amor até o último bramido do mar, para que o Senhor seja louvado na sua paz para sempre. TODOS Assim o conceda, O que dá ser ao dia e à noite. E tocando então as mulheres os instrumentos que antes tangiam, El-Rei por então não falou mais, e algumas meninas a seu lado cantaram. VOZ de Fernão Mendes E como o Embaixador da Tartária intercedeu por nós e lhe contou as nossas desventuras, El-Rei da Cochinchina nos mandou dar embarcação
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para a costa da China, onde nos pareceu que acharíamos navios nossos em que fossemos para Malaca e daí para a Índia, e então aos doze dias do mês de Janeiro nos partimos desta cidade de Uzangué numa lorcha, que um necodá navegou por ordem de El-Rei da Cochinchina. CENA 88 –EXTERIOR DIA Porto de Lampacau. Uma discussão muito acesa e violenta entre os oito marinheiros portugueses, diante do olhar incrédulo do necodá (comandante) da lorcha, que pouco depois, farto de ver aquilo, larga as amarras e veleja para o mar passando por entre dois juncos fundeados ao largo. VOZ de Fernão Mendes Ao fim de treze dias chegámos ao porto da Ilha de Sanchão, no Reino da China e não achando ali, já a este tempo, navio para Malaca, por haver nove dias que eram partidos, nos fomos a outro porto mais adiante sete léguas, de nome Lampacau, onde achamos dois juncos da Costa de Malaca, um de Patane e outro de Lugor. Mas houve entre nós oito, tanta diferença e desconformidade de opiniões, que quase nos houvera de vir a matar uns aos outros, de maneira que por ser assaz vergonhoso contar o que se passou, não direi mais senão, que o necodá da lorcha se partiu muito enfadado, dizendo que não nos levava a mais lado nenhum e que antes queria que El-Rei da Cochinchina lhe mandasse cortar a cabeça, que estar ali vendo aquelas ofensas a Deus. E foi forçoso ficarmos naquela pequena ilha mais nove dias, metidos no mato, arriscando muitos e grandes perigos.
CENA 89 –EXTERIOR DIA Dois Juncos no porto de Lampacau. No interior de um deles, Fernão Mendes Pinto, Cristóvão Borralho e Diogo Zeimoto, empunhando espingardas. Junto a eles o capitão do junco, um corsário chin de nome Samipocheca. Enquanto acertam com o corsário a viagem, enquanto os outros cinco portugueses entram no segundo junco e quando finalmente, os barcos se afastam do porto, ouvimos...
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VOZ de Fernão Mendes Constrangidos pela necessidade, nos foi forçado acertar partido com um corsário famoso, de nome Samipocheca e partir com ele para onde quer que ele fosse, embora ele nos tivesse dito que nos levava a Malaca. E como estávamos muito enfadados uns com os outros, três de nós íamos no junco do corsário e os outros cinco no junco que vinha a trás e de que era capitão um sobrinho de Samipocheca. Trazíamos todos os três espingardas e pólvora compradas por metade dos nossos taéis, a um português que as havia recuperado em bom estado de um naufrágio de uma nau portuguesa, onde por milagre de Nossa Senhora só ele se tinha salvo. Ele vivia em Lampacau, sem vontade para nada, escondido em trajes chins para que não reconhecessem, e contente com os nossos taéis que por ventura lhe podiam servir para comprar um lugar numa nau, e que se Deus o permitisse, o fizesse regressar a Portugal, onde tinha filhos e mulher.
CENA 90 –EXTERIOR DIA Batalha em alto mar. Um ladrão com sete juncos ataca a pequena frota de dois juncos do corsário Samipocheca. Perto de nós, o junco do corsário onde os seus marinheiros fazem manobras arriscadas, aproveitando a viração de noroeste para fugir do ataque. Ao longe, três juncos a arder e quatro outros juncos que navegam na perseguição de Samipocheca. VOZ de Fernão Mendes Por nenhuma via podíamos ser bons para o junco onde iam os outros cinco portugueses, que se incendiou e foi ao fundo, como foram outros dois do ladrão. E prouve a Nosso Senhor, que nós lhe fugimos, lhe escapássemos das suas mãos. Três dias depois um temporal de vento esgarrão, por cima da terra, tão impetuoso nos atirou para uma ilha grande, que defronte nos apareceu, e onde nenhum português antes tinha estado. Era o reino do Japão, para onde na verdade o corsário chin nos quisera sempre levar, porque dos dois mil e quinhentos taéis de fazenda que levava, fez trinta mil, com que ficou largamente reparado do junco que perdera.
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CENA 91 –EXTERIOR DIA Pátio do Reino do Bungo, em Fucheú, com casas baixas alinhadas, de portas de correr, árvores pequenas carregadas de flores e a curiosidade mútua de gente es tranha. Se os portugueses até aí nunca tinha estado no Japão, os habitantes desta ilha nunca tinham visto um português. Mulheres e crianças espreitam nas portas, soltando gritos de admiração, homens vestidos de seda e com espadas muitos compridas, penduradas na cinta, que se aproximam e quase tocam nos três portugueses, que vão acompanhados pelo corsário que lhes servirá de intérprete, seguindo o Nautaquim, um príncipe de Tanixumá, sobrinho de El-Rei do Bungo. Ele à frente, ufano com a novidade, sobre um guarda sol de bambu e panos bordados, que o protege do sol, erguido nas mãos de um moço, há-de mostrar a seu tio El-Rei, esta estranha raça de gente. (Referência, biombos Namban no Museu de Arte Antiga).
CENA 92 –EXTERIOR DIA Sentados no chão, em almofadas de seda, com as pernas cruzadas e tentando imitar, com dificuldades evidentes, a posição e os modos do príncipe, os três portugueses recebem das mãos de mulheres jovens, com a cara muito pintada de branco e com os cabelos muito negros, apanhados como trouxas volumosas e seguros por dois pequenos paus de madeira clara, pequenos vasos de porcelana, com chá muito fumegante. PRÍNCIPE (traduzido pelo corsário) Que me matem, se estes não são os chenchicogis, de que está escrito em nossos volumes, que voando por cima das águas, têm senhoreado ao longo delas os habitantes das terras onde Deus criou as riquezas do mundo, pelo que nos cairá em boa sorte se eles vierem a este reino com o título de boa amizade.
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Os três portugueses, ouvindo o corsário, olharam entre si e baixaram a cabeça em simultâneo, confirmando a sua concordância na boa amizade. PRÍNCIPE Amanhã, El-Rei do Bunco, meu senhor e meu tio, com muita prolongada doença e má disposição, pede muito para receber um de vocês. Ouçam a carta que ele me enviou (estendeu-a ao corsário). CORSÁRIO Olho direito do meu rosto, sentado igual a par de mim como cada um dos meus amados, Hyascarão goxo Nautaquim de Tanixumá, eu, Oregendó vosso pai no amor verdadeiro de minhas entranhas, como aquele de quem tomastes o nome e o ser de vossa pessoa, Rei do Bungo e Facatá, senhor da grande casa da Fiancima, e Tosa, e Bandou, cabeça suprema dos Reis pequenos das ilhas do Goto e Xamanaxeque, vos faço saber filho meu pelas palavras de minha boca ditas a vossa pessoa, que os dias passados me certificaram homens, que vieram dessa terra, que tínheis nessa vossa cidade uns três Chenchicogins do cabo do mundo, gente muito apropriada aos Japões. FERNÃO MENDES Beijo as mãos de sua Alteza, pela mercê que nos faz. CENA 93 –EXTERIOR FIM DE TARDE Num paul ao pé de um lago, onde havia grande soma de aves de toda a espécie, Diogo Zeimoto, exímio atirador, mata uma série de marrecas (patos selvagens), perante a estupefacção do príncipe. Ao longe espreitando entre as árvores, um moço entre os dezasseis e dezassete anos, ricamente vestido, de olhos arregalados, estava maravilhado apesar de tremer a cada disparo e de tapar os ouvidos com ambas as mãos. CENA 94 –INTERIOR DIA O quarto de El-Rei estava ricamente mobilado com muitos vasos vermelhos lacados e estátuas de ouro e de prata. Paus de incenso ardiam por tudo o que era sítio. Alguns homens, figuras importantes do seu reino, estavam ali, ao lado de El-Rei do Bungo, meio deitado, meio encostado em grossas almofadas de seda, numa espécie de camilha rente ao chão. El-Rei, com um aspecto doente e muito agasalhado em roupas de seda, sorriu para Fernão Mendes, aquele homem estranho, que pelas barbas, pelas diferenças de rosto e com um nariz comprido não era com certeza um chin. A seu lado, também muito curiosas, a rainha, as suas filhas e as aias todas de cara branca muito pintada.
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EL-REI A tua chegada a esta terra de que eu sou senhor, seja ante mim tão agradável, como a chuva que do céu cai no meio do campo dos nossos arrozes. Fernão Mendes, de joelho no chão e pouco curvado, ficou embaraçado com a novidade daquela saudação que o corsário lhe traduziu ao ouvido e não lhe respondeu coisa alguma. EL-REI (para os conselheiros) Sinto muita turvação neste estrangeiro. Estará desacostumado a ver tanta gente a olhar para ele desta maneira? Será bom deixarmos isto para outro dia, para ele não estranhar ver-se no que agora se vê. FERNÃO MENDES Não, Vossa Alteza, não é isso. É que, ver-me diante dos vossos pés, basta para eu ficar mudo cem mil anos, se tantos tivera na vida. Deus fez vossa alteza, em tão alto grau avantajado a todos, que eu sou formiga pequena em comparação com vossa grandeza, que temo que vossa alteza não me veja. Apesar desta grosseira e atabalhoada resposta, todos os que estavam presentes bateram palmas e a modo de espanto, um deles disse a El-Rei... CONSELHEIRO Vê vossa alteza como ele fala a propósito? Este homem não deve ser mercador que trate em baixeza de comprar ou vender, senão bonzo pregador, que ministre sacrifício ao povo, ou um homem que se criou para corsário do mar. Tudo isto traduziu o corsário para Fernão Mendes, tal como traduziu a fala seguinte de El-Rei. EL-REI Tendes razão, e a mim assim mo parece, mas já que largou os fechos à covardia, vamos adiante com nossas perguntas e ninguém fale nada, por que eu só quero ser o que lhe pergunte, que vos afirmo que tenho gosto de falar com ele, em tanto que quiçá comerei daqui a um pouco qualquer bocado, porque não sinto agora nenhuma dor em mim. A rainha e suas filhas, com grande contentamento, ajoelharam-se e ergueram as mãos ao céu, para dar muitas graças a Deus por aquela mercê que lhes fizera.
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El-Rei (surpreendendo todos) Agora é minha vontade ficar a sós com o estrangeiro, ficando somente o intérprete. Bateu as palmas, o que lhe causou o esgar de dor, mas todos saíram. CENA 95 –INTERIOR DIA No mesmo quarto, conversa de El-Rei com Fernão Mendes através do intérprete. EL-REI Rogo-te que não te enfades de estar junto de mim, porque eu folgo nisso e preciso que me digas se sabes de alguma mezinha lá dessa terra do cabo do mundo, para esta enfermidade, que me tem aleijado há tanto tempo e vai para dois meses que sinto muitas dores e não posso comer coisa alguma. FERNÃO MENDES Vossa alteza, eu não sou médico, nem aprendi essa ciência, mas no saco que trouxe e deixei lá fora, tenho uns paus cuja água cura muito maiores enfermidades do que essas de que tanto se queixa. EL-REI Vai buscá-los, rogo-te, que as muitas dores estão a voltar. CENA 96 –INTERIOR NOITE Casa japonesa. Num quarto, deitado numa esteira no chão, dorme Fernão Mendes Pinto. A seu lado duas garrafas de aguardente de arroz, uma das quais, porque inclinada, verte gota a gota o resto do líquido. Pequenos copos de porcelana, também espalhados. Na parede, pendurada de um prego, a espingarda e o saco de couro que contem a pólvora. A luz do luar atravessa o fino papel das portas, desenhadas em madeira quadriculada. VOZ de Fernão Mendes A mezinha de água a ferver, com os paus de sabugueiro, teve o efeito de curar a gota a El-Rei, que havia muito estava entrevado e sem bulir, ou mexer os braços, e El-Rei foi são em menos de trinta dias. E de contentamento não parou de me ofertar muitas festas a meu gosto. Mas o que eu queria mais era voltar a Malaca, para junto dos nossos, que não via há mais de uma ano. Muito embriagado, eu dormia e sonhava com eles.
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Sem qualquer ruído, a porta do quarto abriu-se e o moço de dezasseis anos, que era o segundo filho de ElRei, de nome Arichandono, acompanhado por outros dois moços fidalgos, entrou no aposento para tirar a espingarda e o saco de pólvora de onde eles estavam e saíram de novo, fechando a porta de correr com cuidado.
CENA 97 –EXTERIOR NOITE Pátio contíguo à casa. Os três moços em volta da espingarda. Arichandono, sem saber a quantidade de pólvora que havia de lançar, enche o cano em comprimento de dois palmos, e lhe mete o pelouro, a põe no rosto e aponta para uma laranjeira que estava defronte. Um dos moços que tinha um morrão aceso, deu-lho, e ele pôs o fogo na espingarda. Um grande estrondo, acompanhado de gritos dos dois moços fidalgos, que taparam a cara com as mãos e de seguida, quando as retiraram, ficaram numa aflição enorme. No chão, a espingarda partida em três e ao lado o filho de El-Rei, que parece morto. Pormenores de uma grande ferida na cara e do dedo polegar da mão direita, meio decepado. MOÇOS (gritando) A espingarda do estrangeiro matou o filho de El-Rei! Repetiram tantas vezes até que muitos guardas acorreram. E também da casa onde estava, saiu Fernão Mendes, que atordoado se ajoelhou para abraçar o corpo do jovem príncipe todo ensopado em sangue.
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CENA 98 –INTERIOR NOITE Salão no palácio. El-Rei do Bungo no palanque, rodeado por guardas de lanças em riste. Três bonzos (sacerdotes) do lado esquerdo. E do lado direito a rainha em pé desvairada, abraçada a duas mulheres, e ambas as filhas da mesma maneira, em cabelo caído e não arranjado. Fernão Mendes de joelhos com as mãos atadas atrás das costas e três algozes (carrascos) com espadas desembainhados em ambas as mãos. BONZO (presidente de justiça) Para quê senhor ouvir mais? Dê-se-lhe logo cruel morte. E como El-Rei hesitasse, o bonzo que se chamava Asquerão Teixe, com os braços arregaçados e as mãos mostrando um pano tinto de sangue, vociferou... BONZO Eu te esconjuro como filho do diabo, culpado neste crime tão grave, como os habitadores da casa do fumo metidas na côncava funda do centro da terra! Que feitiçaria fizeste na tua espingarda, que matasse este inocente menino, que todos tínhamos por cabelos de nossa cabeça? Os algozes levantaram as espadas para desferir os golpes. FERNÃO MENDES Deus sabe o que aconteceu e só a ele eu tomo juiz nesta causa. Então vindo de uma porta, surgiu o príncipe moço ensanguentado na cara e com a mão direita também pingando sangue e com grande coragem disse... PRINCIPE ARICHANDONO Calem-se! Não digas mais Asquerão Teixe! Esperem, não chorem, não demandem a ninguém a minha morte. Só eu fui a causa dela. Pelo sangue em que me estão a ver banhado, soltem-no! Se não torno a morrer de novo. E Fernão Mendes fica aliviado.
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CENA 99 –INTERIOR NOITE À luz de grossas velas, fazendo, como se diz, das tripas coração, e por ver como não tinha ali outro remédio, fez de tudo o que achava ser necessário para a cura do príncipe. Como cirurgião improvisado, coseu com sete pontos o dedo polegar e o príncipe, mordendo o pano na boca, não soltou um único grito. VOZ de Fernão Mendes Na ferida da testa, porque era mais pequena, só lhe dei cinco pontos e lhe pus em cima uma estopada de ovos. Depois atei-lhe muito bem a cabeça com uma faixa, como eu vira fazer na Índia. CENA 100 –EXTERIOR DIA Pequeno porto na cidade de Fuchéu. El-Rei do Bungo e toda a sua comitiva nas despedidas. Tristezas e muitas cortesias de Fernão Mendes e dos seus companheiros. Depois de muitos carregamentos para o funce a remos que, vinte criados sobre as ordens de um homem nobre como capitão, iria conduzir até ao junco do corsário chin Simipocheca, Fernão Mendes foi retirar das mãos de Cristóvão Borralho a espingarda dele e o saco de pólvora para, com uma reverência, entregar tudo nas mãos do príncipe.
FERNÃO MENDES (utilizando as mãos) Menos de um palmo, senhor! Menos de um palmo! Riu-se o príncipe e também sua alteza o Rei. E no resto das despedidas e também enquanto o barco a remos se afasta, ouvimos....
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VOZ de Fernão Mendes Quis Nosso Senhor que em menos de vinte dias o príncipe foi são, sem lhe ficar mais mal que um pequeno esquecimento no dedo polegar, e a partir daí me fizeram sempre muito gasalho e muita honra. E na partida me deram muitas peças de vestido de seda, terçados e abanos, e seiscentos taéis, de maneira que ainda a cura me montou a mais de mil e quinhentos cruzados que de lá trouxe. CENA 101 –EXTERIOR DIA O junco no alto mar com ventos bonançosos. VOZ de Fernão Mendes E do Reino do Japão nos partimos para Liampó, o porto no mar do Reino da China onde os portugueses naquele tempo tinham seu trato, e onde prove a Deus chegamos a ele em salvamento. E depois de muitos dias em Liampó, nos embarcamos num de muitos juncos mal apetrechados, que se dirigiam a Malaca. Num domingo de manhã nos partimos, contra o vento, contra a maré, contra a monção, contra a razão e sem nenhuma lembrança dos perigos do mar.
CENA 102 –INTERIOR NOITE Na alta madrugada o barulho ensurdecedor de forte invernia, que fustiga Almada e toda a zona de Lisboa. O vento nas janelas, o bater das portas, não impedem que o velho Fernão Mendes Pinto adormeça de borco sobre a mesa comprida, onde esteve a escrever. No tampo, para além de muitos papéis, dos tinteiros e das penas de escrita, podem ver-se muitos livros e muitos mapas. Alguns livros de autores chineses, cujas capas se mostram, são: A Crónica dos Oitenta Reis da China, A Situação de Muitos Lugares Notáveis, Toxefalem, Aquesendos e muitos cadernos abertos com elementos geográficos da Ásia, outros sobre elementos históricolendários, desenhos sobre a construção da muralha da China, e em outros desenhos de vestuários, adornos, pagodes e divindades. Um longo e lento movimento para mostrar tudo isso até fixar o rosto de olhos fechados e respiração profunda do escritor aventureiro. No início uma legenda: ALMADA, Inverno de 1574
No final do movimento, duas assombrações. O aparecimento de Pinachilau, broquem da cidade de Pongor.
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PINACHILAU Negareis que quem conquista não rouba? Quem força, não mata? Quem senhoria, não escandaliza? Quem cobiça, não furta? Quem oprime, não tiraniza? Todas estas coisas se dizem de vós e assim larga-vos Deus de suas mãos, dando licença às ondas do mar para vos afogar debaixo de si... O estrondo de uma porta faz com que Fernão Mendes abra muito os olhos e o que vê assusta-o. Endireita o tronco e fica como que petrificado. Diante dele, oito moços de dez a doze anos de idade, vestidos de vestiduras compridas de cetim branco, e xorcas de ouro nos pés, e aos pescoços muitas joias ricas e fios de pérolas e que gritam em uníssono, como numa cantoria de maldição. MOÇOS Vai te maldito, para a côncava funda da casa do fumo, onde com pena, perpetuamente morrendo sem acabar de morrer, pagarás sem nunca acabar de pagar, a rigorosa justiça do Alto Senhor. E logo depois, atrás deles, surgiram seis talagrepos (budistas do Sião), de mais de oitenta anos cada um, vestidos de damasco roxo, com altirnas lançadas por cima dos ombros e sobragaçadas a modo de estolas, os quais traziam nas mãos incensários de prata, com que incensaram quatro vezes a sala. TALAGREPO Se as nuvens do céu fossem capazes de explicar esta dor aos brutos do campo, eles deixariam os seus pastos para nos ajudarem a chorar a tua falta, e o grande desamparo em que todos ficamos, ou te rogariam senhor, que nos embarcasses contigo nesta casa da morte em que todos te vemos, sem nós Tu veres, porque não somos dignos de tamanha mercê. Mostra Senhor, por figuras da terra, a nós miseráveis, o caminho que nos incite a te imitarmos e seguirmos as tuas pisadas, para que no fim derradeiro do nosso bocejo te vejamos alegres na casa do Sol. Uma forte rajada abriu de par em par as portadas das janelas e o vento entrou, levando a aparição, mas também espalhando os papéis da mesa, todos pelo chão da grande sala. Fernão Mendes levanta-se a correr e com o tronco dobrado começa a apanhá-los. Detém-se imóvel a olhar muito para um deles.
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CENA 103 –INTERIOR DIA Fortaleza de Malaca. Num salão muito grande, o capitão da fortaleza D. Simão de Melo e os seus oficiais, D. Francisco de Eça, que é seu cunhado, e o irmão dele D. Jorge de Eça, Diogo Pereira, Afonso Gentil, Belchior Sequeira, João Soares, Gomes Barreto, e o capitão do catur André Toscano, juiz dos órfãos e aí casado em Malaca. Fernão Mendes Pinto assiste à pregação religiosa e guerreira, que o Padre Mestre Francisco Xavier, reitor universal da Companhia de Jesus nas partes da Índia, dirige aqueles homens aflitos com a proximidade da frota turca do Rei de Achém, que ocupou os mares e ameaça cercar Malaca. Comecemos pelo rosto do padre jesuíta.
FRANCISCO XAVIER E se for necessário, eu quero pela honra de Deus e de El-Rei nosso senhor ir, na companhia de vós, servos de Cristo, a pelejar com esses inimigos da Cruz. SIMÃO DE MELO Isso não, vossa reverência, que não podeis abandonar este povo que tanto vos ama. Mas é mui grossa a frota do turco. Três galeotas, a lanchara de Biyayá Sora, que é o capitão-mor da armada, nove fileira de seis barcos a remos, cinquenta e quatro no total e mais outras lancheiras e fustas, que trazem quase cinco mil homens de bailéu, a que nós chamamos de peleja...
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FRANCISCO XAVIER (interrompendo) Rezando com fervor os Pater Nossos e as Avé Marias, Deus nos fará a mercê da vitória para cumprirmos a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo. D. FRANCISCO DE EÇA (desamparado) A nossa armada é muito fraca. Das nove fustas, duas estão podres, e para servir de recados entre elas apenas temos um catur pequeno. E bons soldados, temos só cento e oitenta. FRANCISCO XAVIER Que não passe isto tanto por graça, mas aos mouros podemos pelo menos intimidá-los, ir ter com eles antes que venham ter connosco, ladrar-lhes nas costas! D. JORGE DE EÇA (nervoso, exibindo um papel) Os turcos enviaram-nos esta carta por sete desgraçados pescadores, que andavam num parau para o sustento das mulheres e dos filhos que tinham em terra, a quem não mataram, mas pior, cortaram os narizes e as orelhas e até jarretaram os artelhos, por desprezo e para mostrar que este mar é deles por vontade do maldito Rei de Achém. Quer vossa reverência ler? Entregou-lhe o papel manchado. FRANCISCO XAVIER Biyayá Sora, filho de Seribiyayá, pracamá de rajá, que com bocetas de ouro traz guardado para sua honra o riso do grande Sultão Alaradim, castiçal com pivetes de cheiro da santa casa de Meca, Rei do Achém e da terra de ambos os mares, te faço saber, para que assim o digas ao teu Rei, que neste seu mar em que estou descansado, assombrando com meu bramido essa sua fortaleza, hei-de estar pescando a seu despeito e por muito que lhe pese, o tempo que me vier à vontade, e por testemunhas disto que digo tomo a terra e as gentes que nela habitam com todos os mais elementos até o céu da lua, e lhe certifico a todos, com palavras ditas da minha boca, que o teu Rei fica vencido e sem honra nenhuma. Francisco Xavier, o padre jesuíta, amarrotou o papel, atirou-o ao chão e com violência pregou... FRANCISCO XAVIER Uns e outros temos de pôr a vida pelo nosso bom Deus, que para nos reunir se pôs numa cruz, escarnecido, desprezado, açoitado, coroado de
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espinhos, por fim crucificado num duro pau, para nos crucificar a nós no seu doce amor e esmaltar nossas almas com o seu sangue sem preço, com o que justificava o nosso pouco merecimento diante do Padre Eterno. O seu fervor e devoção costumados fez muita impressão em todos os que ali estavam, que gritaram em coro... TODOS Nós e os nossos soldados, juntos em conformidade cristã, juramos morrer pela fé de Nosso Senhor Jesus Cristo. E o padre jesuíta e os oficiais portugueses ajoelharam todos e rezaram com fervor, muito emocionados, um Pai Nosso. CENA 104 –INTERIOR/EXTERIOR DIA Numa montagem paralela entre o interior de uma igreja em Malaca, onde Francisco Xavier celebra missa em latim e, em português implora a Deus a vitória da armada portuguesa, e o alto mar, onde se trava uma decisiva e terrível batalha. CENA 104/A O padre Francisco Xavier, paramentado, ergue o cálice e a hóstia. FRANCISCO XAVIER Domine non sum dignus... CENA 104/B O capitão da armada D. Francisco de Eça, no interior de uma manchua (embarcação rápida) bem equipada, armada com uma coura de lâminas de cetim carmesim, com cravação dourada, tem um montante erguido nas mãos e grita na direcção das fustas. D. FRANCISCO DE EÇA Prestes! Prestes! Prestes com o nome de Jesus! Ali temos os nossos inimigos! O capitão-mor, como que se aproximando de cada uma das fustas, anima os capitães e os soldados delas, com a boca cheia de riso e mostras de grandíssimo esforço a gritar.
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D. FRANCISCO DE EÇA Irmãos, senhores, lembrem-se de quem são! O nosso bem aventurado padre, Mestre Francisco está a orar por nós a Nosso Senhor. As lágrimas e orações deste nosso santo, que como todos sabem, é santo, hão-de ser ouvidas e aceites por Deus. Depois recolhe-se à sua fusta e quando sobe pelas escadas de corda, olha para longe porque ouve uma espantosa grita, com grandessíssimo estrondo de diversos instrumentos: é a armada turca comandada por Biyayá Sora. CENA 104/A FRANCISCO XAVIER Ó Jesus Cristo, amores de mi anima, pelas dores da tua sagrada paixão não os desampares! E agora dizei todos um Pater Noster e uma Avé Maria, pela alma dos que vão morrer e pela glória dos que, vencedores, vão voltar. E os fiéis obedecem. Ajoelham e rezam em voz baixa, produzindo uma surdina que ecoa nas paredes da igreja. CENA 104/B No alto mar. Um tiro de camelo parte da fusta de João Soares e atinge com estrondo a lanchara de Biyayá Sora. Depois, planos afastados e outros muito próximos, todos rápidos e muito curtos, para tornar possível a descrição do feroz combate naval. Rostos, gritos e explosões. VOZ de Fernão Mendes O tiro de camelo se empregou tão bem, que a lanchara onde vinha o Biyayá foi logo metido ao fundo, com a morte de mais de cem mouros. As três galeotas querendo acudir com muita pressa aos que estavam na água, e para tomarem o seu capitão-mor, fizeram um ajuntamento confuso que ocupava muita largura, sobre o qual a nossa artilharia toda empregou tão bem três surriadas, que nenhum tiro foi debalde. Nove lancharas foram logo ao fundo e as outras quase todas desbaratadas... CENA 105/A O padre Francisco Xavier, numa espécie de transe, responde à desconfiança e temor dos fiéis, que não têm novas da batalha há muito tempo. Burburinho e depois no silêncio, que o padre impõe, a voz grave dele eleva-se.
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FIÉIS (quatro dos presentes) - Quinze dias são passados e nenhum voltou... - Morreram, morreram todos, estamos perdidos! - Um pescador que chegou disse que os mouros desbarataram a nossa armada e a tomaram. - Não conservaram a vida a nenhum dos nossos e levaram todas as nossas fustas para o Achém. FRANCISCO XAVIER Calem-se todos! Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu vejo-os! Eu vejo-os! Eu conto-vos o que Deus, na sua graça, me permitiu ver. Silêncio na igreja. Uns fiéis trocistas e desconfiados, outros pasmados e crédulos.
FRANCISCO XAVIER Deus ordenou-lhes tudo em seu favor. Cobraram tanto ânimo e esforço que, clamando em nome de Jesus, arremeteram a eles tanto sem medo, que quatro fustas nossas abalroaram seis das suas. Lançaram-lhes, após isso, muita quantidade de panelas de pólvora e de pedradas, fora muita soma de espingardas, que atiraram continuamente sem nunca cessarem, o furor desta honrosa briga é tamanho, que só em meia hora foram mortos, desses inimigos, quase dois mil...
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“Ah” exclamaram uns, “louvado seja Deus” gritaram outros, dos fiéis que acreditavam. E da parte dos que duvidavam, ouviu-se: “Como é que ele sabe?” e outro se atreveu, gritando alto... UM DOS FIEIS Bofé padre! Muito melhor fora esses Pater Nosters por suas almas, que por essa vitória que dizeis, e que Deus a vós, e ao capitão há-de pedir estreita conta, por serdes ambos causas de suas morte. E como este dito teve muito impacto, e provocou cotoveladas, risinhos e palavras retorcidas... OUTRO DOS FIEIS Desses e dos ungidos, há lá tão pouco, que não há nenhuns. OUTRO AINDA Se os vós alguma hora virdes, bem vos podereis benzer deles! FRANCISCO XAVIER (gritando) Calem-se todos, homens de nenhuma fé! Porque se o que vos digo é a verdade do que vi, e que Deus me permitiu ver, porque duvidais se não sabeis? Francisco Xavier, apertando os punhos nas mãos, sucessivamente, com um fervor impetuoso e o rosto abrasado, continuou o relato, porque de novo se fez silêncio. FRANCISCO XAVIER E a chusma deles cobrou tamanho medo, que se lançou toda ao mar. Porém a corrente e o peso da água , que era muito grande, os afogou quase a todos em muito pouco espaço de tempo. E os outros que ainda ficaram vivos, e como este negócio lhes sucedia cada vez pior, depois de pelejar esforçadamente em bom espaço, conhecendo já claramente sua perdição, e que os nossos os matavam a todos com espingardas... CENA 104/B No interior de uma fusta turca, que os portugueses já ocuparam, os soldados matam, uns turcos com tiros de espingarda, e a outros queimam o corpo com tochas a arder. Série de planos muito aproximados para mostrar o horror da chacina. UM MOURO (antes de morrer) Mate, mate, quita fadulé!
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VOZ de Fernão Mendes Isto apenas queria dizer: “Matai-nos, matai-nos que não nos importa nada disso!”. E como relatava o bem-aventurado Francisco Xavier, aquele santo que fazia milagres, e que contava a verdade, ia-se fazendo o sucesso de tão gloriosa batalha. CENA 104/A FRANCISCO XAVIER (comovido, chorando) Dêem graças ao Senhor, neste quase sol posto. Dizei um Pater Noster e uma Avé Maria pela alma dos poucos dos nossos que morreram e depois corram ao porto para saudar os que trazem a fama de tão gloriosa e honrada vitória. Eles vão chegar antes que o sol se ponha. CENA 105 –EXTERIOR FIM DE TARDE Porto de Malaca. Na verdade, ao pôr-do-sol, com muitas bandeiras e muita algazarra, a frota portuguesa, agora aumentada com os barcos capturados aos turcos, avista-se ao longe e aproxima-se lentamente na enseada, saudada pelos portugueses, que acenam bandeiras em terra. VOZ de Fernão Mendes Se acharam mais de oitocentas espingardas e uma grandíssima quantidade de zargunchos, lanças, terçados, arcos turquescos com muitas flechas e azagaias guarnecidas de oiro. Se acharam mortos dos nossos vinte e seis, dos quais os cinco sós foram Portugueses, e os mais foram escravos e marinheiros que nas fustas iam ao remo, e feridos foram cento e cinquenta, de que setenta foram Portugueses, dos quais depois faleceram três, e cinco ficaram aleijados. O Rei de Parlés veio logo visitar D. Francisco de Eça, levantando muitas vezes as mãos ao céu, e prometeu com juramento solene de ser dali por diante vassalo de El-Rei nosso senhor com tributo de dois cates de ouro cada ano, que são quinhentos cruzados. Na briga foram mortos com a gente que se afogara, passante de quatro mil homens turcos, de que a maior parte foi gente limpa e criados do Rei do Achém, e quinhentos deles eram Ourabalões de manilha douro, que são fidalgos.
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CENA 106–EXTERIOR DIA Porto de Hiamangó, na baía de Canguexumá (kagoshima), no Japão. O barco de Fernão Mendes Pinto, está prestes a zarpar, depois da sua viagem ao Japão, quando ele vê descer de cima do morro inclinado, em grande pressa, dois homens a cavalo vestido de armaduras cinzentas e de capacetes de metal de aba larga muito estranhos, a capearem com uma toalha e bradar rijo para ele. Fernão Mendes mete-se rapidamente na manchua bem equipada e navega para terra ao encontro dos dois japões. Um deles é um samurai de nome Angiró.
ANGIRÓ Porque o tempo, senhor, não sofre muita demora, porque me temo de muito boa gente, que vem atrás de mim, te peço pela boa vontade do teu Deus, que sem pores diante dúvida ou inconveniente algum, me recolhas contigo. O meu nome Angiró, e sou samurai. FERNÃO MENDES (embaraçado) Eu conheço-o! Já o vi duas vezes a defender mercadores, nesse lugar de Hiamangó, de acordo com o que me parece ser boa justiça. Eu levo-o. Então o samurai e o seu companheiro, que pelos modos era uma espécie de servidor, desceram das suas montadas, que deixaram livres, beijaram as mãos de Fernão Mendes e entraram na manchua. Estavam aflitos e olhavam continuamente na direcção da encosta. Quando já chegavam perto do junco e da escada de corda, viram na encosta descer catorze a cavalo e pouco depois mais nove, que chegaram à praia em grande correria e em grande grita, empunhando lanças e bandeiras. O que parecia ser o chefe, berrou...
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CAVALEIRO Dá cá esse tredo, senão matamos-te! O junco subia a âncora e já largava, quando Fernão Mendes ouviu a última ameaça gritada ao longe. CAVALEIRO Se levares esse japão, sabe que mil cabeças de outros tais como tu hão-se pagar o que agora fazes! CENA 107 –INTERIOR DIA Igreja Goa. Enquanto decorre o ritual do batismo do Samurai Angiró, a quem Francisco Xavier dá o nome cristão de Paulo de Santa Fé, ouvimos... VOZ de Fernão Mendes Muito interessado em cristianizar essa nova gente e essas novas terras bárbaras, o padre Francisco Xavier ficou muito alvoroçado com a conversão de Angiró, o samurai, que era muito entendido nas leis e nas seitas de todo o Japão. FRANCISCO XAVIER Paulo de Santa Fé, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Francisco Xavier, depois de lhe despejar água na cabeça com uma concha, abraçou-o e beijou-lhe as duas faces deste novo e importante cristão. VOZ de Fernão Mendes E Paulo de Santa Fé aprendeu a ler, a escrever e toda a doutrina cristã. A determinação de Francisco Xavier era denunciar o barbarismo desta ilha do Japão. Cristo Filho de Deus, pedia-lhe para levar este homem consigo como seu intérprete. E depois o levou e ao seu companheiro que também se fez Cristão, a que o padre pôs o nome João, os quais ambos lhe foram lá depois muito fieis em tudo o que cumpriu ao serviço de Deus, e por cuja causa o Paulo de Santa Fé depois foi desterrado para a China, onde foi morto por uns ladrões.
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CENA 108 –INTERIOR E EXTERIOR DIA Reino de Pegu (Birmânia). Numa das tendas do bazar que cercam um grande terreiro no centro da cidade, um grupo de portugueses, entre os quais Fernão Mendes, disfarçados com trajes gentios, assistem temerosos e impotentes à cena macabra que se desenrola diante dos seus olhos. Como a abertura dos panos da tenda é estreita, eles apenas vêm parte do terrível acontecimento. No centro do terreiro, em cima de um palanque, um homem outrora forte e poderoso, que chegara a ser o governador português no reino de Pegu e até designado como irmão de El-Rei, treme e com lágrimas na cara, implora aos céus e grita o seu arrependimento. DIOGO SOARES Si iniquitates observaveris Domine, Domine quis sustinebit? Mas confiado eu, meu eterno Deus, no preço infinito do teu precioso sangue, que por mim derramaste na Cruz, poderei dizer muito afoitadamente: Misericordias domini in alternum cantabo. A meio das escadas um homem muito velho, chamado Mambogoá, com um ídolo nos braços, incita a multidão. MAMBOGOÁ O que, por honra deste Deus da aflição que tenho em meus braços, não apedrejar esta serpente maldita, os miolos de seus filhos se consumam no meio da noite, para que bramindo por pena de tamanho pecado, se justifique neles a justiça do alto Senhor. E um bruá enorme se ouviu saindo da garganta da multidão, uma primeira pedra é atirada, que atinge e faz dobrar o corpo de Diogo Soares e depois outra e outra, e muitas outras. No interior na tenda, onde estão a beber, sentados em bancos à volta de uma mesa, um dos portugueses se ergue revoltado, mas logo é agarrado pelos outros. Então as mulheres que os servem começam a cantar, acompanhadas por alguns homens, batendo tablas e dedilhando cordas... MULHER Diogo Soares O grande general Chamado “o Galego” O homem dos olhares fatais Comanda sessenta mil homens De terras estranhas Vencendo e lutando Por quem paga mais Eficaz nos sermões Insinuante pois
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Ganhou a simpatia De príncipes e samurais Já é governador Do reino de Pegu Mais forte do que o rei Mais rico por golpes mestrais Naquela cidade Vivia um mercador De nome Mambogoá De fortuna sem fim E naquele dia O dia das bodas Casava uma filha Com Manica Mandarim Diogo Soares passou por ali Ao saber da festa Felicitou noivos e pais E a noiva tão linda Ofereceu-lhe um anel Agradecendo a honra Por gestos puros e sensuais Então o galego Em vez de guardar O devido decoro Prendeu-a e disse-lhe assim: HOMEM “Ó moça formosa És minha, só minha A ninguém pertences A ninguém, senão a mim” MULHER O pai Mambogoá Ao ver pegar o bruto Tão rijo na filha Ouvindo este insulto de espanto Levantou as mãos aos céus Os joelhos em terra No retrato da dor Pedindo e implorando num pranto
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HOMEM “Eu peço-te Senhor Por reverência a Deus Que adoras concebido No ventre sem mancha e pecado Não tomes minha filha Não leves meu tesouro Que eu morro de paixão Que eu morro tão abandonado” Na tenda do bazar, onde estão os portugueses disfarçados, o que se tinha levantado, levantou-se de novo e espreitou. E o que viu fez-lhe tapar o rosto com ambas as mãos. Uma infinidade de pedras e de seixos voavam na direção do palanque, onde o corpo ensanguentado de Diogo Soares ia desaparecendo num montão de pedras. Mas a canção continuava.
MULHER Mas Diogo Soares Mandou matar o noivo Que chorava abraçado À moça assustada Tremendo E a noiva estrangulou-se Numa fita de seda Antes que a possuísse À força o sensual galego
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A terra e os ares Tremeram com os gritos Do choro das mulheres Tamanhos que metiam medo E o pai Mambogoá Pedindo pelas ruas Justiça ao assassino Acorda a cidade em sossego: HOMEM “Ó gentes Ó gentes Saí como raios Na ira das chuvas Na ventania do açoite E o fogo consuma Seus últimos dias E lhe despedace As carnes no meio da noite” MULHER Em menos de um credo Numa grande grita P’lo amor dos aflitos Juntou-se ao velho o povo inteiro Com tamanho furor E sede de vingança Arrastaram-no preso Diogo Soares ao terreiro E o povo a clamar Que a sua veia seja Tão vazia de sangue De quanto está o inferno cheio E subiu ao cadafalso Cada degrau beijou Murmurando baixinho O nome de Jesus a meio Seu filho Baltasar Soares Que vinha de casa O qual vendo assim Levar seu pai
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Lançou-se aos seus pés a chorar E por largo tempo abraçados No abraço dos mortais HOMEM “Senhor porque vos levam Cruéis e vingativos Senhor porque vos batem E porque vos matam medonhos?” “Pergunta-o aos meus pecados Que eles to dirão Que eu vou já de maneira Que tudo me parece um sonho” Crianças arrastam a cabeça, os braços, as tripas de Diogo Soares pelo chão poeirento das ruelas. Toda a gente atira esmolas, os moços recolhem-nas e voltam à macabra caminhada. As vozes do coro continuam a ser ouvidas. HOMENS E MULHERES E foram tantas pedras Sobre o padecente Que este morreu bramindo O rosário dos seus pecados Ensopado na baba Do ódio dos homens Escuma animal De todos os cães esfaimados As crianças e os moços Trouxeram seu corpo Sem vida pelas ruas Arrastado pela garganta E a gente dava esmola Oferecida aos meninos Dava como se fosse Uma obra muito pia e santa Assim terminam os anais Do grande general Chamado “o Galego” O homem dos olhares fatais. Um travelling sobre a terra do chão, marcado por sulcos e algumas manchas de sangue. Então ouvimos...
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VOZ de Fernão Mendes E desta maneira acabou o grande Diogo Soares que a fortuna tanto tinha levantado naquele reino de Pegu que chegou a ter título de irmão de ElRei, que é ali o mais alto e supremo de todos, com duzentos mil cruzados de renda, e ser capitão geral de oitocentos mil homens, e governador supremo sobre todos os outros dos catorze reinos que então senhoreava o Rei do Bramá. Mas esta é a condição dos bens mundanos, principalmente dos mal adquiridos, serem sempre meio e caminho de desventuras. CENA 109 –EXTERIOR DIA Uma nau portuguesa, no alto mar, carregada de muita fazenda. Trabalhos de marinheiros nas velas, nos cordames e Fernão Mendes Pinto no convés, primeiro com um olhar sereno sobre os trabalhos e depois, com um olhar melancólico sobre o mar infinito. VOZ de Fernão Mendes Nas partes da China sempre me ocupei em ajuntar bens da terra, que era o que eu pretendia, mas acertei sempre perder, estando sempre penando nisso. E do dinheiro que eu tinha do Japão, emprestei-o eu todo ao Padre Mestre Francisco e se houve feito a primeira igreja e a casa da Companhia. E com a determinação de recuperar das naus do reino, nove ou dez mil cruzados, parecendo que minha glória e felicidade estava em voltar a Montemor com eles, me voltei a Malaca, para voltar a Goa e com a ideia de voltar a Portugal. Porém como Deus, cujos segredos ninguém pode adivinhar, não era servido que o bem aventurado padre entrasse na China, que era o que ele mais queria, para poder espalhar a Fé de Cristo, deu-lhe a morte na Ilha de Sanchão, que foi num sábado aos dois dias de Dezembro do ano 1552, à meia noite, cuja a morte foi assaz sentida e chorada por quantos estavam presentes. E eu, sem nada, tive de regressar ao Reino do Japão. CENA 110 –EXTERIOR DIA Enseada de Kuma-no-Ura, na Ilha de Tanegashima, no Japão. Ao longe, a nau de Fernão Mendes Pinto e um pequeno barco japonês a vela, que se aproxima. Depois, quando ficamos mais perto, podemos ver um japonês de meia idade e uma jovem rapariga, que sobem a bordo. E ainda mais perto, podemos ver no convés, o encontro desses dois visitantes com Fernão Mendes no seu barco de mercador. Reverências do Japonês e troca de olhares entre o aventureiro deslumbrado e a jovem japonesa de olhos de amêndoa e rubor nas faces.
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VOZ de Fernão Mendes O Senhor da Ilha de Tanegashima, de nome Tokitaka, queria muito conhecer o segredo da fabricação das espingardas, que lhe eram assaz necessárias para a justiça e mando, que ele tinha naquela ilha. Então ordenou ao seu alfageme (armeiro) de nome Kimbey Kiosada, que a todo o custo o segredo alcançasse. Um dia Kiosada veio ao nosso navio de mercadores e com ele veio também uma donzela de beleza rara, que na língua do Japão se diz utsukushii, que se chamava Wakasa e que era sua filha. CENA 111 –INTERIOR NOITE Casa japonesa em Tanegashima. A jovem Wakasa, vestida de quimono vermelho e muito arranjada nos cabelos, está de joelhos a lavar o corpo nu de Fernão Mendes, sentado no interior de uma enorme celha de madeira. Ela despeja água aquecida pelas costas dele e com gestos muito delicados, esfrega-lhe depois o corpo com toalhas brancas. VOZ de Fernão Mendes O senhor Kiosada, que era armeiro, ofereceu-me a mão da sua filha e eu senti-me muito abalado. Nos mais de cinco meses que ali estive fabricaramse seiscentas espingardas, que davam fogo e de que o senhor Tokitaka mostrou muito contentamento. CENA 112 –EXTERIOR DIA Ilha de Tanegashima, no Japão.
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Caminhando lentamente, numa longa e estreita floresta de bambus extraordinariamente altos e muito belos (referência: Floresta de Bamboos em Kyoto), Fernão Mendes e sua amada Wakasa, de doces olhos de amêndoa e de suaves cabelos negros compridos, que esvoaçam sobre o quimono colorido. CENA 113 –EXTERIOR FIM DE TARDE O paraíso de Fernão Mendes na terra do Japão. Num campo de um verde intenso e de pedras com musgo que se recortam num lago calmo, os corpos nus de Fernão Mendes e de Wakasa, que se abraçam e os lábios que se tocam, em movimentos muito lentos, com respirações suaves de grande prazer. CENA 114 –EXTERIOR DIA A nau de Fernão Mendes afasta-se na enseada de Kuma-no-Ura e a bela Wakaza corre até chegar e subir com desespero para o alto de um rochedo que domina o mar. O barco que se afasta e as lágrimas no rosto dela. CENA 115 –INTERIOR DIA Recanto da igreja de São Domingos. Uma Legenda: TRIBUNAL DE SANTO OFÍCIO DE LISBOA, 1613 Cena quase muda e quase sem cor. Grandes planos de sucessivos rostos dos inquisidores, tão aproximados e tão violentos, para mostrar o poder e a violência da censura. Pormenores e som de mãos a arrancar sem piedade algumas páginas de um grosso volume cosido à mão. CENA 116 –INTERIOR DIA Tipografia em Lisboa no início do século XVII. O editor Pedro Craesbeek e o padre jesuíta, Frei Belchior Faria, abraçam-se entusiasmados e comovidos. Em fundo as prensas de impressão, perto o tampo de uma grossa mesa de madeira, onde estão espalhados vários documentos das autorizações e das licenças para a publicação. Pormenor de uma das licenças: “Este liuro cujo titulo he peregrinação de Fernão Mendez Pinto não tem cousa alga contra a nossa santa Fé ou bõs costumes & guarda delles, antes he historia muyto boa, chea de muyta variedade & nouidade, por as quais partes ha de contentar muyto, porque a nouidade (segundo diz o Philosopho) deleita, & a variedade como affirma S. Augustinho tira o fastio, pelo que se pode imprimir. Em S. Domingos de Lisboa a 25. de Mayo de 613.“ Depois, Frei Belchior de Faria lê um pedaço da sua introdução para a edição portuguesa.
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FREI BELCHIOR DE FARIA Peregrinação de Fernão Mendes Pinto em que dá conta de muitas e muito estranhas cousas que viu e ouviu no reino da China, no da Tartária, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegu, no de Martavão e em outros muitos reinos e senhorias das partes Orientais, de que nestas nossas do Ocidente há muito pouca ou nenhuma notícia... PEDRO CRAESBEEK (entusiasmado) E querem o livro em Castela, e em França, e em Amsterdão para ser editado na língua alemã, todos querem ler a Peregrinação, Santo Deus! CENA 117 –EXTERIOR DIA No alto mar, uma nau vinda do oriente, regressa a Lisboa. De repente todos os marinheiros páram a azáfama para cantar. CORO Já é tempo de partir Adeus morenas de Goa Já é tempo de voltar Tenho saudades tuas Meu amor De Lisboa Antes que chegue a noite Que vem do cabo do mundo Tirar vidas à sorte Do fraco e do forte Do cimo e do fundo Trago um jeito bailarino Que apesar de tudo baila No meu olhar peregrino Nos abismos do mar CENA 118 –INTERIOR DIA Almada, Quinta do Vale do Rosal. Mesa de trabalho de Fernão Mendes onde ele escreve em absoluto frenesim. Uma legenda: ALMADA, Agosto de 1578
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FERNÃO MENDES (lendo o que escreve) E nisto vieram a parar meus serviços de vinte e um anos, nos quais fui treze vezes cativo e dezasseis vendido, por causa dos desventurados sucessos que atrás no decurso desta minha tão longa peregrinação largamente deixo contados. Fernão Mendes, depois de uma pausa, coloca a pena no tinteiro para se levantar e passear lentamente pela sala. VOZ de Fernão Mendes Daqui se entende claramente que se eu e os outros, tão desemparados como eu, ficamos sem a satisfação dos nossos serviços, foi somente por culpa dos canos e não da fonte, ou antes foi ordem da justiça divina, em que não pode haver erro, a qual dispõe todas as cousas como lhe melhor parece, e como a nós mais nos cumpre. Pelo qual eu dou muitas graças ao Rei do Céu que quis que por esta via se cumprisse em mim a sua divina vontade, e não me queixo dos Reis da terra pois eu não mereci mais por meus grandes pecados. De repente Fernão Mendes estaca estarrecido como se uma visão trágica viesse ter com ele. El-Rei D. Sebastião caminha ferido na batalha de Alcácer Quibir em 4 de 1578 para desaparecer na poeira, que cavalos sem cavaleiros levantaram nos campos em volta. UMA VOZ A liberdade de um rei só há-de perder-se com a vida. FERNÃO MENDES (fechando os olhos) Todas as acções têm uma paga! Todos os pecados têm castigo!
CENA 119 INTERIOR FIM DE TARDE Um ténue raio de luz vindo da janela, recorta os corpos e os rostos da mulher e das filhas de Fernão Mendes, que olham para ele no seu leito de morte. Uma legenda... ALMADA, 8 de Julho de 1583
Um padre jesuíta diz em latim as orações da extrema-unção. Um último olhar de Fernão Mendes, uma última respiração.
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CENA 120 INTERIOR Palco de um teatro de ópera. Recortada num ciclorama vermelho sangue, Wakasa de quimono azul, simula com uma longa espada o terrível haraquíri, que lhe dará a morte, ouvindo os acordes finais da ópera Madame Butterfly, cujo enredo foi construído a partir da paixão de uma jovem e bela japonesa por um marinheiro ocidental. Todos os anos se comemora na Ilha de Tanegashima, que significa Ilha da Espingarda, a paixão absoluta entre a jovem japonesa Wakasa, cujo nome quer dizer juventude, e o português que levou pela primeira vez uma espingarda ao Japão. E segundo alguns, este enredo pode ter sido a fonte de inspiração para a ópera de Puccini.
Fundido ao negro, e uma legenda a branco... “Fernão Mendes Pinto nunca chegou a receber a tença de dois moios de trigo por ano, enquanto vivesse, que lhe foi atribuída pelo Rei Filipe de Espanha e de Portugal, em Fevereiro de 1583, porque morreu meses depois. Há vinte cinco anos que reivindicava aos reis portugueses uma paga pelos seus feitos e serviços prestados.“
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Guião cinematográfico de João Botelho, a partir da obra homónima de Fernão Mendes Pinto, produzido pela Ar de Filmes. Contactos Produção
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