Páginas que o tempo rasga

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Páginas que o tempo rasga

Um artista plástico de meia idade, relata as lembranças e conversas travadas consigo mesmo.

Miguel Westerberg

Primeira Edição Editora Global Arte XXI


Para o meu filho, familiares, amigos e TaĂ­ssa. Com carinho


Nota do autor

Quando me predispus a escrever este livro eu não tinha um assunto pré-definido, apenas deixei que as memórias e assolações que vagueiam a minha mente, se materializassem em forma de letras e construísse a figura de um artista plástico um tanto frustrado com as alegrias e decepções vividas no decorrer da sua trajetória. Os cenários retratados não poderiam ser outros, senão os muitos lugares por onde passei e as grandes experiências dramáticas que compartilhei com aqueles figurantes e atuantes no palco da vida. A cidade de Lisboa, aqui relatada, é o palco central, pois foi nela onde me desenvolvi como cidadão do mundo e vivenciei os momentos mais lastimáveis e felizes da minha existência. Muitos se identificarão com as experiências do personagem, mas qualquer semelhança será um mero acaso, já que esse livro é fictício.

Miguel Westerberg São Paulo 2009


PALAVRAS SUSPENSAS

Noite de sábado, o meu apartamento se encontra às escuras. Observo o cigarro a queimar lentamente sobre um velho cinzeiro que fora me oferecido há muito tempo. A luz que vem de fora cria sombras sobre os moveis. Olho demoradamente para elas e começo a relembrar partes da minha vida, como quando era apenas uma criança. As horas passam e sinto-me sufocado entre quatro paredes! Hoje ninguém me telefonou e o relógio de século badala um tic-tac repetitivo que me deixa impaciente. Um dia destes deixo de dar corda nele e acabo com essa agonia. Olho pela janela e sinto que a cidade esta calma, apenas alguns carros rompem o silencio ao percorrerem a calada da noite com seus viajantes despreocupados, fato que me leva a pensar no ocorrido do dia anterior: naquele mesmo cruzamento, uma jovem de apenas 19 anos fora assassinada a sangue frio por dois indivíduos, que a tentaram assaltar! Meu Deus, apenas 19 anos, com uma vida pela frente, mas tivera um fim tão trágico e chocante! Aquela imagem ficou na minha mente durante todo dia, por isso posso lembrar-me de cada detalhe com clareza, mas isso não me ajuda em nada agora, pois preciso dormir e por mais que tente não consigo. Acho que preciso pensar em alguma coisa positiva, para aquietar o meu espírito que se encontra tão perturbado e abatido. Por vezes incontáveis tento idealizar algo novo, sem muito sucesso, pois tudo já está demasiado gasto. Minha mente fica turva, cada um de meus pensamentos se desmaterializa e volta ao pó. Podia começar a pintar uma tela ou a escrever um poema, mas as únicas cores que consigo pegar é vermelho e negro. Quanto às palavras, mantenho me suspenso entre a dor e o sofrimento, que não desejo a ninguém. Por que será que a morte permanece como um enigma sem solução? Afinal de contas, o que fazemos aqui ou qual o fundamento da existência? Tenho consciência que todo mundo se interroga sobre estas questões, mas não obtém nenhuma resposta plausível; outros simplesmente silenciam suas perturbações e se refugiam em um submundo de noitadas proporcionadas pelo entorpecimento do álcool e do sexo casual. À noite se vestem de prado e durante o dia escondem as cicatrizes que tanto os perturbam. Um sorriso forjado é o quanto basta para enganar a morte, ademais são simplesmente palavras sobrepostas umas as outras, que ninguém mais as compreendem.


EXCENTRICIDADE

Já passa das duas da manha. O tempo permanece completamente estático, de forma que uma monotonia entediante invade o meu apartamento sem nem mesmo me pedir licença; na tentativa inútil de afastá-la eu tento ler um pouco, mas não tenho nenhum animo! Olho para a parede e vejo uma tela que pintei na semana passada. Uma pequena aquarela que retrata um recanto de Lisboa muito visitado por turistas: o elétrico com destino ao bairro da Graça, que da característica típica a cidade. A pintura ficou bem expressiva, então refleti um pouco e deduzi que poderia obter uns bons trocados com a venda do quadro. Esperei o dia clarear, levantei-me com os primeiros raios de sol e me dirigi a Rua Augusta, a fim de conseguir um bom preço por ela. Fiquei horas para vendê-la, mas por fim um turista inglês a comprou por trinta euros. Confesso que a minha sorte é que eu posso contar com a ajuda de uma das minhas irmãs. É ela que paga a renda do meu apartamento, caso contrário, há muito que estaria a viver na rua. Estou que nem Van Gogh, que por anos viveu apenas com a ajuda que seu irmão Theo lhe dava. Já percebi que não consigo viver em comunidade, sou demasiado solitário, lunático e um sonhador incorrigível. Nada mais do que isso! Com os trinta euros fui ao supermercado e comprei alguns mantimentos essenciais, mas pouco mais do que sete euros me sobraram. A vida dos artistas é assim mesmo; desculpem o plural, somos uns mal-afortunados, sempre vestidos de negro, mas as pessoas ignoram o porquê de nos vestirmos assim. Muitos pensam que é para estar de acordo com os padrões estabelecidos pela moda, mas a verdade é bem diferente, afinal de contas, geralmente, as aparências enganam. Na realidade nós não temos é como comprar roupas novas. O preto serve-nos de uma espécie de camuflagem, então não é de se admirar que minhas camisas, calças, casacos e as meias sejam pretas. Só o meu cabelo é que é loiro com algumas mexas brancas para contrastar, de resto tudo em mim é triste. Enfim, quarenta e nove anos e a vida pouco ou nada me deu. Trabalhei como guarda noturno numa escola do ministério da educação por aproximadamente 10 anos, mas quando pedi demissão, não recebi coisa alguma. Ainda bem que fiz grandes amizades e assim não foram dez anos de completa inutilidade. Refletindo um pouco melhor agora, acho que fiz mal, pois tomei uma decisão um tanto precipitada, mas, vindo de mim, já era de se esperar, afinal nunca paro para pensar e por isso, quando caio na real, já é tarde demais. Muitos chamam isso de inconseqüência, mas eu acho que é viver o momento mesmo que tenha conseqüências desastrosas. A única vantagem de não se trabalhar para o estado é que nos tornamos livres de um infeliz ordenado, isto é, se formos apenas funcionários de segunda categoria, como era o meu caso.


Quando paro para pensar o que realmente queria da vida, chego à conclusão de que queria mesmo era ser rico e estou ciente de que não sou o único a pensar assim. Excentricidade minha? Que seja então, melhor do que ser hipócrita e não expor meus verdadeiros desejos e sentimentos, devido a dogmas religiosos ou paradigmas estabelecidos por grupos sociais para beneficio próprio como: “só os pobres herdarão o reino dos céus”. Isso me causa risos. Que ponto de doutrina é este que ainda rende milhões as igrejas? Tenho plena consciência que esse sonho me é excêntrico, mas o que posso fazer, já que aqui estou e a minha vida não passa disto? Entrego-me todas as noites aos meus devaneios e viajo até casa dos meus sonhos, numa colina com vista para mar e imagino uma leve brisa de maresia a envolver meu rosto. Sonhos... Nada mais que sonhos! Lembrome que quando era adolescente, o sonho de ser um artista plástico reconhecido era tudo que eu tinha e durante anos a fio eu lutei constantemente, sem nenhum sucesso. Nenhuma porta se abriu e a minha face já se encontrava desfigurada de tanta frustração. Sempre que entrava numa galeria de arte, a resposta era sempre a mesma: infelizmente já temos artistas suficientes, ou quem sabe, volte daqui a uns anos, pode ser que venhamos a precisar. Nem se quer interessavam-se para ver uma de minhas telas. Imagine só o que é ouvir isto durante uma vida inteira! E o pior, sempre as mesmas coisas, as mesmas palavras, os mesmos sorrisos e olhares disfarçados. Parece que existe uma associação, aonde se reúnem para ensaiar e decidir as desculpas esfarrapadas que nos dirão. Esquecem do senso de percepção que obtemos com as lastimáveis experiências vividas. É inacreditável, que sempre que falo com eles, me venham com a mesma conversa mole.

Como não os consegui convencer, fui tentar em outros lugares apropriados, mas que não deixam de ser freqüentados por pessoas sensíveis, que admiram a arte real, não pelas sugestões dela extraídas, mas sim pela inspiração dos artistas e não por um protótipo pré-definido pelos proprietários de galerias. A maioria pensa que pintar é copiar uma tendência, mas acho que a isso se da o nome de fotografia, não? Entre os novos lugares que escolhi para expor as minhas telas, estão os famosos cafés, livrarias e restaurantes. Por falar em restaurantes, uma vez deixei algumas telas expostas em um que fica na baixa, na Rua Garret, mas tive um tremendo azar. O proprietário faliu e dez das minhas telas, dentro de uma linha cubista, ficaram lá retidas. Tentei retira-las, mas infelizmente todos os bens que havia dentro do restaurante ficaram na mão de um banco para irem a leilão, então desisti e nunca mais lá voltei. Tive melhor sorte numa livraria, que fica na baixa – chiado em Lisboa, precisamente na Calçada do Sacramento que vai dar no Largo do Carmo. Geralmente andava a procura de livros de segunda mão, já que são bem mais baratos e de preferência, os relacionados à literatura francesa. Dias antes estive na Calçada do Conde e por lá comprei vários livros, A saga dos Rougon-Macquart de Emile Zola e outro de Balzac, mas a leitura de Balzac era demasiadamente romântica e não fazia o meu gênero. Sendo assim aproveitei a oportunidade de ali estar para adquirir algumas autobiografias. Confesso que elas me fascinam de tal forma que não consigo resisti-las. Assim sai de lá com tantos livros que mal conseguia carregá-los, mas foi ao passar pela Calçada do Sacramento que algo inesperado


aconteceu: quando pela primeira vez lá entrei, a minha intenção era de poder adquirir alguns livros por um preço módico, porém reparei que o proprietário tinha paixão por pintura e escultura. Em cada recanto do estabelecimento havia pinturas e esculturas de grande beleza, pertencente a vários artistas com renome e outros anônimos. O proprietário deveria ter os seus setenta anos, era calvo, de baixa estatura, vestia se bem e no olhar percebia-se certa perspicácia, bem típico português. Enquanto dava uma olhada pelas estantes e pinturas, ele gentilmente pegou os meus livros e os colocou sobre o seu balcão. Diante de tamanha delicadeza eu senti necessidade de retribuir. Elogiei seu espaço comercial e disse-lhe que era artistas plástico. Desse primeiro contato brotou uma grande amizade e para resumir já está com bem mais de sete anos que expus meu trabalho por lá. Sua sabedoria me cativou de tal modo que era difícil evitar uma passagem por lá de vez em quando. Ele me lembrava muito o Ambroise Vollard, um grande marchand que contribuiu com o desenvolvimento da arte ao lançar vários artistas como Picasso, Van Gogh, Paul Cézanne, Rouault e Gauguin. Mesmo quando estava na América Latina trocávamos idéias por correspondência e no meu ultimo regresso a Lisboa, trouxe comigo algumas telas, que ele expusera pela ultima vez no seu espaço comercial. Já que a sua idade avançada o impediu de prosseguir com as suas atividades comerciais, assim também como o desenvolvimento dos meios de comunicação, que se tornou um grande empecilho para os pequenos comerciantes, afetando assim todos eles. Com o grande avanço da tecnologia as pessoas passaram a ler menos e buscar mais entretenimento na internet; o globalismo se propagou e juntamente com ele, houve um grande aumento no comercio chinês, que devido aos seus preços baixos, atraiam mais pessoas, mesmo com baixa qualidade das suas mercadorias. Hoje em dia a galeria do meu velho amigo se encontra fechada o letreiro escrito por cima da porta: “Livraria e Galeria Campelo” balança ao ritmo do vento, se desgastando juntamente com a cidade. Nunca mais soube nada a cerca dele e partir daí a minha vida entrou em declínio, devido à falta que a sua força e motivação me traziam. Assim como eu, muitos outros artistas sofreram, pois ele era um porto seguro para nós.


SONHOS ADIADOS

Atualmente ando sempre com pouco dinheiro que mal dá para comprar um pincel, todos eles estão velhos e gastos. As minhas tintas se acabaram; só me restou uma pequena caixa de aquarelas e foi assim que tudo começou: fiz a minha primeira exposição de pintura na Vila Beatriz na cidade de Ermesinde conselho de Valongo. Aquela exposição me fez acreditar numa possível carreira artística, pois das vinte telas expostas vendi 12. Nada mau para um pintor desconhecido, que chegou a ter no jornal da região uma pequena coluna em sua homenagem. Os anos passaram e pouco ou nada mudou. A minha vida se resume a isto! O resto dela são apenas memórias sobrepostas umas as outras. Às vezes tento idealizar novos vôos na esperança de que a vida me possa sorrir, mas o desânimo em mim é constante! Por mais que tente, nada de extraordinário acontece, mas em comparação com os demais homens, ate que não posso me queixar da vida, pois já estive em vários países, falo quatro idiomas, embora não saiba escrevê-los. Na minha terra dizem que sou um analfabeto; em outro país, um intelectual. Na América do Sul, por exemplo, o indivíduo que fala mais de um idioma é levado muito em conta; ao contrário da Europa, que já não vê encanto em mais nada. A conclusão disto tudo é na verdade um disparate, mas o ser humano é mesmo assim e quanto a isso nada tenho a declarar, já que cada cultura tem o seu modo de julgar. Em Portugal tal como no resto do mundo as pessoas têm o grande defeito de imortalizar seus artistas somente após sua morte, ou então se o artista sai do país e faz carreira lá fora, em uma terra longínqua. Isso tudo é uma grande ironia. É necessário povoar terras estranhas para poder torna se, aos olhos de todo mundo, um herói nacional. Surgem então as festas, homenagens, condecorações e com um pouco de sorte o artista torna se embaixador das nações unidas, recebendo, da noite para o dia, seu primeiro título. Recordo-me também, que noutros tempos quando era bastante religioso, sempre que viajava uma multidão de irmãos vinham se despedir e ao meu regresso, faziam festinhas de boas vindas, mas tudo mudou! Após o meu divorcio, no momento em que mais precisei de um ombro amigo, um por um virou-me as costas, porque eu não me encaixava mais nos seus padrões sociais. Foi como se eu tivesse uma doença contagiosa, fato que me fez parar e repensar sobre valores pré-estabelecidos e por mais que repense não consigo encontrar uma resposta para certos comportamentos; o que me leva a um estado de constante questionamento. Não consigo enxergar o que foi que deu errado ou a exatidão do ponto em que falhei, coisas da vida! Acho que é melhor mudar de assunto, pois todas essas interrogações sem respostas me levam a um estágio impreciso de insatisfação e, mais uma vez, de total desanimo. Ah, mas antes de iniciar meu próximo raciocínio, acho importante ressaltar que um, apenas um único irmão permaneceu sempre ao meu lado. Um irmão vindo de terras estranhas em busca de algo que lhe faltava e veio para Portugal tentar uma vida melhor e vivia na linha de Sintra para os lados do Cacem, juntamente com um grupo de brasileiros. A maioria deles clandestinos, mas que aos poucos conseguiram se legalizasse, devido a acordos entre as duas nações. Ele trabalhava no açougue do Carrefour. Era um moço humilde e de boa índole, talvez por ser temente a Deus e raramente perder um culto. Sempre que podia ele acompanhava a mocidade para congregarem em outras


cidades ou vilas portuguesas. Acompanhei todo seu progresso espiritual e juntos enfrentamos as adversidades da vida; éramos praticamente inseparáveis e nos reuníamos por horas a fio, a conversar sobre a obra de Deus. Ele permaneceu aqui por dez anos e por fim voltou para o Brasil, casou com uma bela jovem descendente de Japonês, abriu um negócio bem lucrativo e esta à espera do seu primeiro filho. Às vezes falo com ele por MSN ou telefone e fico a pensar o quanto sofreu, mas mesmo assim ele tem uma disposição invejável para enfrentar as adversidades impostas pela vida. Será que algum dia vou conseguir ter força, para fazer frente a tudo que me acontece? Nós homens somos feitos de uma massa imaleável, seguindo padrões impostos por uma sociedade corruptamente formada. Durante toda a nossa vida escondemos a nossa verdadeira identidade, mostrando ao mundo um lado inexistente, que seja aceito. Ainda vivemos numa era que a palavra tabu esta sempre evidencia nas nossas vidas. Não podemos ser nós mesmos, nem podemos dizer livremente o que pensamos, um homem tem que manter a sua postura, ser macho, ser bruto, ser juiz mesmo que tenha que julgar sem causa. Pobre do homem que escreve um poema, que canta ou dança numa praça. É crime ter sentimentos e expressa-los em público, pois podemos ser tachados de loucos. Se isso serve de consolo, com o tempo que perdemos na tentativa de sermos quem não somos, aprendemos a perceber que o orgulho e os preconceitos nada mais são do que ignorância em não saber lidar com o desconhecido; aprendemos que, apesar das diferenças, somos constituídos da mesma matéria orgânica, o que nos torna IGUAIS! Por falar em tabus, comportamento e sentimentos reprimidos, antigamente era comum um indivíduo casar-se com uma jovem de menos de 17 anos, mas hoje em dia se tal acontece é caracterizado de pedófilo. Mais uma vez nos deparamos com padrões sociais pré-estabelecidos, embora todo mundo seja consciente da atração de uma jovem por indivíduos mais velhos ou vice-versa. Sempre foi assim na historia da humanidade e sempre será. Quando dizem que estamos a evoluir, não duvido, mas existem tantas coisas inexplicáveis e retrógradas impostas por uma sociedade que vejo essa evolução de forma unilateral e um tanto inatingível. Acredito num comum acordo entre ambos, no amor ou ate mesmo numa paixão casual, mesmo que tais relações venham a esfriar com o tempo. O grande perigo de tentar forçadamente a nos encaixar nesses padrões, é a frustração de ver sua vida se desmoronar bem diante dos seus olhos, pois neste presente momento, certamente, há milhares de casais a divorciarem-se. Então, para quê tanto murmúrio? Ou porque será que nos deixamos levar por tais imposições? Tabus e nada mais que tabus imposto por aqueles que se julgam capazes de ir alem de seus limites. Desculpem-me o plural no masculino, mas aonde nos leva tudo isto? Será que nós homens, verdadeiramente, aparentamos ser o que somos? Durante toda a minha adolescência vivi num colégio católico, cheio de regras e tal como as regras, mais uma vez, os malditos tabus. Tínhamos hora para tudo: dormir, acordar, comer, brincar, trabalhar e dai por adiante. No que diz respeito à sexualidade, é simples: ela não “existia” e devido a sua “inexistência”, por ser considerada uma necessidade primordial, muitos jovens buscaram na homossexualidade a satisfação das suas necessidades; outros se desenvolveram recatado. Atualmente, parte desses jovens são pais de família, com bons empregos e boas esposas que jamais suspeitaram que o homem que com que ela se deita, uma vez teve possíveis afinidades. Pela experiência que tive no colégio fiquei consciente que 60 por cento dos homens tem essa tendência, devido ao desejo reprimido, mas eles seguem o


caminho que dizem ser o que leva a tão mencionada salvação. Tememos a reação do mundo inteiro, escondemos atrás de leis e ordens que nos sufocam. Queremos liberdade, mas tememos anarquia, de forma que acabamos por aceitar os padrões impostos por aqueles que estão acima de nós. Todas as leis existentes têm um só fim: dominar. Quem se afasta da lei, imediatamente é excluído da sociedade. Por causa disso, entregamo-nos de corpo e alma a religião ou a política, embora saibamos que qualquer crente que preze a sua doutrina, jamais envereda por outros cominhos. Tudo que é demasiado racional anula a existência divina, dando sempre prioridade à lei do homem, a qual o céu e o inferno não fazem parte. Até os anos setenta os sacerdotes apregoavam nas igrejas as barbaridades vindas do lesto, afim de que o seu rebanho não se desviasse das suas veredas. Que saudade tenho, de quando os “lobos” comiam as criançinhas. Esta, é a mentalidade dos que deturpam a própria lei para seu beneficio, caracterizando as mentes mais frágeis, porem o ser humano ama a ordem e sem ela fica a deriva, por esse motivo não nos importamos em ter que pagar impostos, sermos escravos dos que estão acima de nós, mas ate quando? Já que um dos países que se diz ser o mais democrático de todos é na verdade uma farsa. A finalidade da democracia consiste em liberdade de opção, respeitando a opinião de cada um e vivendo em harmonia, entretanto, se alguém preferir outra ideologia contraria a deles, imediatamente é perseguido. Tudo isso acaba por se tornar um paradoxo de contradições, mas quem sou eu para por em causa essa mesma democracia? Entre os milhões, que conseguem visualizar essa dissonância, eu serei a que menus se destaca, pois o que eu penso pouca ou nenhuma importância tem. Não sou político, nem clérigo, sou apenas um cidadão a deriva, que povoa essa nossa aldeia global e na minha concepção de artista, a palavra vida e a palavra morte simbolizam apenas uma linha reta, ou na menor das hipóteses, uma linha totalmente curva, onde muitos se perdem, ao possuírem visão delimitada do que há a sua frente. Tudo quanto tenho que executar eu o faço da melhor forma possível, para ter como me aproximar da perfeição, mesmo que seja nas mínimas coisas. Isso me ajuda a conhecer os meus limites. A vida para mim consiste em atos, mesmo que sejam pequenos e singelos, afinal de contas tudo o que se cultiva e se semeia no aqui e agora, são os frutos do que vamos colher no futuro. Se observarmos os índios, perceberemos que eles têm as suas próprias leis, que nos são totalmente estranhas, mas que fazem todo sentido para forma de organização tribal em que estão habituados a viver e pela sua filosofia de vida eles são capazes de viver, matar e ate mesmo morrer, sem que um desses atos sejam denominados “crime”. Por falar em índios. Faz alguns anos que estive no Paraguai na cidade de Asuncion, no qual convivi com vários residentes, dentre eles alguns índios guaranis. Quando estava por lá senti que no ar havia desconfiança, insatisfação e uma ditadura disfarçada de democracia. Os antigos ditadores se vestem hoje de cordeiros, o país está totalmente estático, parado no tempo e ninguém há entre eles que eleve a voz. Não há trabalho, nem recursos e os edifícios de grande beleza estão degradados, só a repartição publica é que sobrevive, o demais é uma cidade em decadência, onde um povo amável vive entre o fio da navalha. Este foi o povo que tentou ao longo da sua historia erguer-se, mas devido à cobiça, acabaram por ser saqueados. O Paraguai é o exemplo de um entre tantos países que se diz democrático, afinal contas a democracia esta na moda, mas é lamentável que aqueles que têm poder nada façam. A verdade é que tudo aquilo que vemos e não o que esta escondida por trás de uma camuflagem histórica, então me fale da verdade, para que eu seja verdadeiro, fale-me do que é racional e eu educarei os que anseiam por ser educados. A


doutrina dos homens consiste em amar e ser amado. Mas ate que ponto o amor é verdadeiro? Se oscilarmos entre dar e receber, o amor nada mais é do que um enigma que devasta por dentro. Amamos porque não queremos estar sós, mas a grande maioria dos homens fabrica o seu próprio amor, mediante as suas aspirações. Um capricho insaciável e devorador é tudo o que os envolve na sua mas pura e visível essência humana. Há um privilegio em ser rico e se alguém diz que a riqueza não trás felicidade, não se iluda, a riqueza não é felicidade, mas sim a rampa de partida para muitas felicidades. Se nos contentarmos com um miserável ordenado, que tipo de homens nós somos, senão hipócritas? Todo mundo anseia por ser rico, ou possuir algumas riquezas, ter uma bela mansão, dois ou três carros numa garagem bem espaçosa, viajar por lugares exóticos, vestir-se bem, comer do bom e do melhor, fazer academia ou ate mesmo uma cirurgia estética e por fim, ter sempre dinheiro no bolso para realizar os seus desejos e caprichos. Ao longo da minha vida deparei-me com pessoas que afirmaram categoricamente que o dinheiro não trazia felicidade, algumas delas viviam em decadência, fazendo me recordar uma musica Brasileira, cuja letra diz o seguinte: “Tu queres sair do gueto, mas o gueto esta dentro de ti”. Tudo isto não é mais do que o produto, do meio e do espaço que se vive, a cultura e falta dela leva qualquer individuo a acomodar-se com a sua miséria interior. Como é possível que o ser humano desista tão facilmente dos seus sonhos? Culpo em parte a mídia, que nos bombardeia constantemente com as ideologias capitalistas da classe dominante e com uma diversidade de fictismo tão imensurável, que causa inveja a muitos cineastas. Cada um de nós tornou se escravo do próprio sistema de modo que à imagem que julgamos ser nossa, pertence aos nossos opressores. Ignoramos e não temos coragem de debater tais assuntos, talvez dentro de vinte ou trinta anos o ocidente desabe da noite para o dia, mas numa sociedade materialista ou consumista, o que importa é o conforto. Os dias passam assim a correr e quando paramos para pensar um pouco sobre a vida, acabamos por dizer as mesmo às coisas. Que legado deixo para meus filhos e netos? Essa é uma questão que sempre embala o meu sono turbulento. Fecho os olhos e tento adormecer em meio ao silencio da noite, que geralmente tranqüiliza o meu espírito inquieto e me leva por dentre as veredas da solidão em direção a casa dos meus sonhos, ate que a luz de um novo e almejado dia se rompa sobre meu quarto e me desperte para prosseguir a minha caminhada.


RIO TEJO

Sete de janeiro e o céu está bem límpido. Sei que preciso sair para procurar trabalho, mas como tenho poucos estudos, sinto que vou ter um dia complicado pela frente. A minha idade também não me ajuda em nada e eu constato que pouco ou quase nada esta ao meu favor. Hoje em dia a preferência de trabalho é dos jovens. Devido à inexperiência deles a mão de obra se torna bem mais barata e os mais velhos são vistos como uma despesa a mais, um tanto desnecessária. Eles só dão “trabalho” em vez de trabalhar. É o que a maioria dos empregadores pensa. Tomo o metro com destino ao rossio e entro no café Nicola. Os empregados encontram-se numa constante azáfama e é sempre assim na primeira semana do mês. Hoje ate que tive sorte, pois consegui uma mesa bem na esplanada, localizada estrategicamente com vista para a praça. Peço um café e um copo de água; retiro de um dos meus bolsos um pequeno bloco onde registro meus apontamentos e começo a desenhar o que me rodeia. Mais uma vez sinto que a arte está no meu sangue e percorre as minhas veias de forma tão intensa, que sinto uma plenitude constate invadir o meu ser. É difícil explicar essa sensação com palavras, mas é como se só o ar que respiro não fosse o suficiente para me manter vivo. Observo a cidade num constante rodopio e subitamente vejo passar um amigo de longa data, o Pedro. Ele repara em mim e logo vem ao meu encontro. Cumprimenta-me enquanto se assenta mesmo a minha frente e pede ao garçom um café. Conversamos um pouco sobre coisas corriqueiras por aproximadamente vinte minutos. De um momento para o outro seu telemóvel toca, ele atende e diz que tem que sair com urgência, para entregar um projeto de arquitetura lá para os lados do Poço do Bispo. Antes de sair ele me da um cartão com seu contato e pede-me que lhe ligue a fim de marcarmos um encontro para discutirmos um possível projeto artístico em uma de suas obras arquitetônicas. Fico por ali mais quinze minutos e aproveito para dar uma olhada nos anúncios do “Noticias da Manhã”, retiro alguns apontamentos e vejo que uma empresa precisa de telefonistas. Por incrível que pareça é mesmo aqui no rossio. Em algum ponto do anuncio, vejo que as inscrições estão marcadas paras às nove horas. Automaticamente verifico as horas no meu relógio de pulso e percebo que ainda há tempo para tentar a sorte. Chamo o garçom e pago o café. Saio e atravesso a praça do rossio, mas reparo que o estabelecimento ainda esta fechado, contudo, algumas pessoas já se encontram a porta. Fico entre os primeiros e penso para comigo mesmo: acho que foi o Pedro que me trousse um pouco de sorte. Enquanto espero, a minha mente viaja e, sem que me aperceba, me vejo a pensar em voz alta. Sorriu de me mim mesmo e penso que devo ter tenho algum problema psicológico: Deus meu, devo estar é a ficar louco! Tento conter-me para não transparecer o meu sorriso, mas sei intimamente que é devido à pressão a que todos nós nos submetemos atualmente. Olho para trás de mim e reparo que a fila vai se estendendo por vários metros, enquanto uma nuvem negra aos poucos sobrecarrega o ar. Vejo que nos dias de hoje todo


mundo se encontra desesperado a procura de uma oportunidade de trabalho e nestes últimos anos a situação tem estado cada vez mais difícil. Parece que todo mundo decidiu vir viver nos grandes centros urbanos e a cidade de Lisboa não foge a regra. Enquanto espero, sobre mim se abate um silencio mórbido de forma que a minha mente fica completamente perturbada e o que me apetece mesmo é desistir, mas só faltam poucos minutos para a entrevista e vale à pena tentar mais uma vez, afinal de contas, como já estou aqui, não vai me custar nada. Já vai para mais de um ano que ando nesta vida e infelizmente todas as portas permanecem fechadas. Acredito que a minha idade avançada torna ainda mais difícil a possibilidade de encontrar um bom trabalho. Os que me observam diariamente até já dizem que o que eu quero mesmo é não fazer nada e que não falta trabalho para quem realmente quer trabalhar, mas quando falam comigo usando estes termos a minha resposta é bem direta: - Tem algo de bom para eu fazer? Se não tem é melhor cuidar da sua própria vida. Sem respostas eles encolhem os ombros e se afastam para nunca mais voltar. São homens carregados de palavras, mas sem ações como a maioria dos seres humanos, ou devo dizer desumanos? Não sei bem o que acontece dentro dessas mentes “racionais”, pois no fundo não consigo diferi-los dos demais animais irracionais, quando cometem essas atrocidades. Vivem suas vidas de forma monótonas e tristes, passam todo tempo reparando-nos outros, a fim de terem algo para falar e não se dão conta da inutilidade das suas existências, que persiste em lhes manter no vácuo onde só conseguem escutar o seu próprio eco sinistro. Criaturas amargas desde o nascer até ao por do sol, à noite ficam a sós e adormecem sempre desesperados ou ansiosos por um novo dia a fim de espalharem suas flechas venenosas sobre o primeiro que cruzar pelos seus caminhos. O ponteiro do relógio marca nove horas da manhã, as portas do estabelecimento se abrem e um por um, conforme a sua vez de chegada, vai entrando. Num dos balcões encontra-se um moço com os seus vinte poucos anos, vestindo um terno azul escuro e gravata com tons de rosa. Ele gentilmente me faz sinal e manda-me sentar. Preencho uma ficha, respondo algumas perguntas que já me habituei a responder e diz-me para aguardar alguns dias. A entrevista não durou nem quinze minutos e como não tenho mais nada para fazer, vou ate a Rua Augusta que fica a dois passos daqui. Enquanto perambulo por lá percebo que estão a retirar os enfeites de Natal e só ai reparo que este ano que passou fizeram uma linda decoração. Vale à pena vir ao centro da cidade durante a noite para ver os efeitos da quadra natalícia, pois o espetáculo de luzes é admirável. Parece que a cidade ganha outra vida. Muito antes de chegar ao fim da rua também vejo que os andarilhos, camelôs e artistas de rua começam a chegar e montar as suas bancas. Outros se a sentam no canto da calçada com pequenas aquarelas retratando recantos de Lisboa. A grande maioria deles vive em quartos alugados e outros acabam por viver na rua, devido as suas economias serem tão escassas que mal dão para pagar um quarto e a cota exigida pelo município todos os meses para poderem vender suas obras na rua. Os magistrados não conseguem enxergar que os artistas são ícones de grande beleza. Sem eles a Rua Augusta seria apenas mais uma rua comercial. A única coisa que poderia atrair os turistas seria apenas o grande arco que faz divisa com a praça do comercio. Eu próprio cheguei a passar essas mesmas privações por algum tempo, a minha sorte foi ter conseguido um emprego que perdurou por cerca de 10 anos.


Olho ao meu redor e não vejo nenhum conhecido. Chego ao fim da rua, próximo ao arco que dá par a Praça do Comercio e mesmo a minha frente vejo que árvore de natal com cerca de trinta metros também já esta a ser desmontada. Caminho pela praça e me dirijo para o cais para ver o movimento do rio Tejo. Hoje ele corre lento, bem lento e é aqui que passo a maior parte de meu tempo, observando os barcos que entram e saem com destino a Almada e ao Barreiro. Do Rio vem uma leve brisa trazendo consigo o vento do norte. Embora estejamos no meio do inverno, as chuvas não caíram com abundancia este ano. Já o ano que passou foi um ano de seca, tudo leva a crer que tem a ver com o efeito estufa ou talvez seja devido aos vários incêndios que ocorreram em todo país durante o verão. Não consigo entender como um país tão pequeno como o nosso, tenha tantos incêndios. Será que as pessoas estão a ficar loucas ao ponto de se autodestruírem desta maneira tão cruel e ao mesmo tempo tão lenta? Sinto tristeza quando ligo o radio ou a televisão e vejo o meu país a perder o que de melhor tem, a sua fauna. A Caminhar assim não sei aonde isto vai parar, pois ora faz frio ora faz calor e tudo mudou. Como Camões escreveu num dos seus poemas: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Se é que o ser humano se preocupa em mudar mesmo alguma coisa! Recordo-me dos invernos rígidos quando eu era mais jovem. Adorava ouvir o bater repetitivo da chuva sobre as vidraças e os estrondos contínuos dos trovões que encadeavam constantemente o meu quarto. Pela manhã o frio era de cortar a navalha e as roupas nos beirais ficavam rijas como postas de bacalhau. Confesso que havia alturas que ficava amedrontado, mas essas lembranças perduram dentro de mim ate hoje, como algo que jamais se apaga. Por mais que a minha infância tenha sido difícil, agarro-me a ela com todas as minhas forças, porque foram momentos únicos que não voltam mais e sonhos e brincadeiras que não se repetem. Tudo passou extremamente rápido, embora nem tudo que sonhei se realizou, mas o pouco que consegui concretizar faz parte de quem hoje eu sou. Atualmente sinto-me melancólico e deprimido ao mesmo tempo, não consigo deixar de pensar na vida e se penso é sempre com um leve pesar.

Olho o céu e ao longe vejo uma pequena nuvem distanciar-se tomando a forma de um cavalo alado. Desvio o meu olhar para um ponto remoto e sinto uma lagrima gélida percorrer a minha face ao repousar os olhos nas minhas recordações de infância. Instantaneamente, de súbito, sou desperto do meu devaneio por uma cena habitual: pobres desta cidade que pela manha vêm aqui repousar na relva de frente para o Tejo, perdidos entre o espaço e tempo, onde suas memórias são sempre desordenadas. Sinto profundamente que entre mim e eles não existe nada que nos diferencie. Fato que me leva a indagar se também sou um deles ou apenas um moribundo em busca de uma essência que lhe traga o verdadeiro sentido de ser e existir. Durante toda minha vida, tenho lutado contra todas as adversidades sem deixar que elas me rebaixem ou diminua a minha condição existencial para não vir a me sentir menor ou maior do que ninguém. Mais uma vez isso me leva a interrogar sobre o meu destino, sem saber se eu mesmo o escrevo ou se ele já havia sido prescrito por Deus muito antes de mim. Tento manter calma e viver cada dia como se fosse o primeiro, transformando o mal em bem e o feio em belo, mesmo que seja debaixo de muitas lutas e decepções, afinal, a vida é um só dia, porque dizem que antes de morrermos toda ela passa por nós como um filme repentino ate então nunca


visto. Se isto for verdade, eu devo estar com os meus dias contados. Com tantos dissabores o que desejo é apenas partir, porem a morte não vem, mas sei que às vezes ela me observa e rir de mim, condenando-me a esta vida de errante. Desânimo e tristeza são tudo que me resta, caminho solitário por a cidade que um dia me recebeu de braços abertos, mas quem sou eu? Um homem invisível e nada mais do que isso, porque no dia em que eu partir, a terra vai continuar o seu giro e a lua entrará em quarto crescem por séculos e séculos. Cassiopeia, Orion juntamente com Vega tomaram seu curso ate que os homens as alcancem, já que a ciência se encontra em um caminho bastante avançado. Nas praças haverá crianças e velhos que juntos falarão as gerações seguintes sobre a palavra que sempre se renova. A palavra esperança. Pouco ou nada vai mudar: as rosas com o seu perfume e as andorinhas que todos os anos virão fazer os seus ninhos nos beirais sempre que chegar a primavera. Também haverá homens que terão coragem de lutar contra as desigualdades ou contra ditadores que insistirem em se levantar. Acredito que sempre haverá guerras. A ciência se multiplicará tão rapidamente que a grande maioria dos homens não vai conseguir acompanhar tamanho progresso. Quanto à arte, provavelmente, ela será completamente virtual e pouco ou nada se fará dentro do universo cultural que se possa dizer que é algo novo. Eu, porem, voltarei ao pó, ate que um dia num ano ou século qualquer, o vento levará as minhas cinzas pelo universo e elas se juntarão a todos os que um dia partiram e juntos criaremos uma nova civilização mais racional e eqüitativa. Bem, mais ainda estou vivo e tudo que me resta é apenas uma breve oração por meio de murmúrios e lamentos. Meu Deus deixa-me adormecer tranqüilamente, deixa-me viajar para alem das estrelas, no lugar que todo mundo acredita ser eterno. Se eu nunca chegar a ser lembrado, então que todo mundo saiba que eu fui apenas um entre tantos que tu criaste com a força do teu pulsante amor. Um dia, no lugar que se diz ser eterno, eu quero também invocar os espíritos dos grandes homens, para poder ter a força e habilidade de todos eles, a fim de compreender o porquê da minha singela existência. Tal como todos eles um dia entenderam o verdadeiro significado da condição humana: Gandi, Buda, Maomé, Luter king, Che, Jesus e tantos outros que contribuíram para o desenvolvimento e progresso das nações. Peço-te, Deus meu que nunca me desampares; vem e fortalece meu coração e em cada dia renova meu ser com toda a Tua sabedoria, da mesma forma que Tu compartilhaste com todos estes que um dia também te foram fieis e hoje habitam entre as estrelas. Por fim faço minhas as palavras do filósofo e historiador Thomas Carlyle, que certo dia comentou: "A história do mundo é apenas a biografia de grandes homens”. Porque o resto é paisagem e nada mais do que isso. Divagando por entre palavras e orações, reparo que bem a minha frente o velho barco conhecido por cacilheiro aporta junto ao cais do Sodré na cidade de Lisboa trazendo consigo uma grande multidão que sai correndo apresada em direção aos seus postos de trabalho. São homens e mulheres sem rosto e cedentes por outras oportunidades, que lhes tragam satisfação pessoal. Enquanto isso, lá no alto dos céus, gaivotas sobrevoam por toda parte na esperança de poderem encontrar um pedaço de pão. Levanto-me e decido regressar ao meu apartamento, pois o frio junto ao cais tornou se insuportável. Sei que a distancia ate meu apartamento não é longa, mas mesmo assim, devido à baixa temperatura resolvo pegar um ônibus com destino a Santa Polônia. De lá subo a pé ate meu apartamento.


Eu moro na Travessa das Freiras, bairro São Vicente, no ultimo andar de um prédio que conhecemos por águas furtadas, localizado a poucos metros do Panteão Nacional. Dá minha janela, ao longe, vejo o Rio Tejo a correr lentamente e escuto o murmurar constante dos meus visinhos vindo da taberna que fica bem de frente ao prédio onde vivo. No apartamento do lado, vive um casal de idosos cujos filhos imigraram para o Canadá já há alguns anos. Um dos idosos sofre do mal de Parkinson e é terrível, pois há alturas que grita durante toda a noite sem deixar ninguém dormir. Quando isso acontece, visto um casaco bem quente e vou dar uma volta pela cidade. Adoro caminhar por Lisboa durante a noite. Suas ruas e ruelas são tão estreitas que em muitas mal passam carros. Quanto à zona do Castelo, o seu estilo arquitetônico tem um ar meio medieval e conforme os anos passaram se misturou com várias formas dando lhe deste modo um emaranhado de estilos diversificados, que chegam a confundir qualquer historiador. Em frente ao Rio Tejo encontra-se a baixa Pombalina, cuja arquitetura sofreu uma grande transformação no dia 1 de novembro 1755 devido a um terrível terremoto que arrasou toda cidade e os seus arredores. O primeiro ministro da época, por nome de Marques de Pombal, junto com arquitetos, reergueu a cidade em meio aos escombros, dando inicio desse modo a uma nova arquitetura, que foi chamada de estilo Pombalino. A Baixa, como a grande maioria das pessoas chama, tem algo de místico, pois os nomes das ruas e praças foram dados pela Confraternização da Maçonaria. Quem entende bem desses assuntos poderá reconhecer alguns dos símbolos maçônicos em diversas ruas. O bairro da Alfama e o da Moraria, de vielas e ruas bem estreitas, tem características árabes. São bairros habitados por pessoas da classe operaria. Resumindo tudo isso em uma só palavra, posso dizer que essa região é um autentico labirinto. Esta cidade oferece, para quem é apaixonado por historia, uma viagem há outros tempos. Durante todos estes anos, nada de mal me aconteceu. Creio que é devido a minha altura e ao fato de me vestir sempre de preto. Sou um andarilho. Um ser solitário e ao mesmo tempo invisível aos olhos de todo mundo. Os meus poucos amigos me chamam de filosofo do povo. Às vezes quando nos encontramos e vamos ate o Café A Brasileira, para compartilharmos idéias ou simplesmente relatar fatos corriqueiros. Sentados à mesa nós rimos como crianças inocentes e nos embriagamos com café e mais de uma dúzia de cigarros, enquanto palavras soltas misturam-se com o azafama da velha cidade ate que o dia desvanecesse vagarosamente e ultimo cigarro se apaga. Para se ter uma vaga idéia de onde fica localizado o Café A Brasileira, é só subir a Rua Garret em direção a Praça de Camões onde se encontra as estatuas dos três maiores poetas portugueses: Fernando Pessoa, o Chiado e Luis de Camões. Muitas pessoas importantes e famosas foram freqüentadores assíduos do estabelecimento, tais como Almada Negreiros, Santa Rita, Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa entre outros, que chegaram a criar no Café a "sede" do Grupo literário do Orpheu. O estabelecimento ocupa um lugar de costumes dos lisboetas e atraiu uma clientela de numerosos políticos, tanto de esquerda quanto de direita. Gente pobre ou abastada, turistas e por fim, os que se destacam são os envolvidos com a arte: artistas plásticos, músicos, escultores, poetas e escritores em grande abundância que ali fazem palestras e debatem assuntos sobre a era atual. O Café A Brasileira com suas paredes repletas de espelhos e enormes telas de quadros dos mais consagrados artistas portugueses é um cenário ideal para confraternizações e debate de idéias.


São inúmeras e boas as recordações que guardo. As conversas de café serão sempre memoriáveis. Cada encontro é um momento único carregado de magia e novidades junto dos meus queridos amigos, dos quais falarei um pouco. O Wando é formado em psicanálise e é esta sempre a analisar o comportamento das pessoas. Incluído o de cada um de nós. Sua família é da cidade de Leiria, arredores de Fátima, e todos eles estão envolvidos, de alguma maneira, com a arte. Quer seja na produção, divulgação ou venda de obras. Quando expandiram seus negócios acabaram por vir para Lisboa e se restabeleceram definitivamente por cá. Sempre que faziam uma exposição de pintura coletiva, convidavame a expor algumas das minhas obras no seu espaço comercial. Em meio a uma exposição e outra vendi algumas telas que percorrem parte da Europa. O Pedro nasceu em Moçambique e de acordo com ele seus antepassados eram negociantes indianos que imigraram e se restabeleceram na África por aproximadamente dois séculos. Nos finais dos anos setenta Moçambique tornou-se independente e seus pais, assim como muitos imigrantes, vieram viver em Portugal. Dentre nós, ele é o ser transcendente que vê amor em tudo. Formado em arquitetura, ele foi o primeiro arquiteto que recebeu o premio de inovação arquitetônica do século XXI. Há também um poeta que sonha em editar o seu primeiro livro, cujo titulo: “As Vielas negras de Lisboa” levantou muitas controvérsias entre nós. Seu nome é Manoel e sua família é de Bragança. Por fim resta falar sobre o Rodrigo. Um apaixonado por arte sacra. Tem seus sessenta e poucos anos e é restaurador. Desapontado com o rumo que a sua vida tomou. Ele não deseja mais nada da vida senão um bom prato de sopa quente sobre a sua mesa. Está sempre calado e com o olhar perdido. A impressão que tenho é que ele sempre retorna a um ponto longínquo em sua vida, quando, quem sabe, tenha sido mais feliz. Sempre que nos reuníamos nos sentíamos interligados de alguma forma, tal qual uma bela sinfonia que precisava ser finalizada. Agora estamos todos mais velhos e dificilmente nos encontramos. A idade e a vida de cada um de nós nos obriga a recolhernos ainda mais cedo aos nossos aposentos. A impressão que tenho é a de que a cada ano que se passa, a necessidade de descansar aumenta cada vez mais. A cidade branca já não é o que era! O seu encanto está aos poucos a se perder ou talvez seja porque uma nova geração está a surgir e a nossa, obrigatoriamente, está a chegar ao seu fim. Quanto a mim, de vez em quando telefono para saber como tem passado, mas dificilmente nos reunimos, porque eles já não têm disposição para tanto e sempre escuto, do outro lado da linha, um suspiro com um misto de lamentos e mais lamentos. Cada um deles tomou a sua própria direção e construíram pequenos impérios. Afinal, temos que preservar o império de cada de nós, para que a vida não venha a pregar uma partida. Um império mediante as capacidades de cada um é o quanto nos basta para que a vida se transforme em memórias. Meu Deus o que seria do homem sem suas memórias? Atualmente, no meu apartamento, existe uma foto a um canto e outra noutro. Estantes com livros velhos e sobre as paredes algumas pinturas de artistas tanto consagrados como anônimos; na sala, um piano cor de mogno com assinatura de Wagner, que nunca foi estreado e uma lareira que já não se acende. As portas rangem e a torneira tem um gotejar semelhante a um toque de um relógio, que nos vai anunciando o fim de uma longa jornada. Os azulejos da cozinha e do banheiro há muito que ficaram fora de moda e as paredes, inertes, se escureceram com o tempo, dando a casa um ar de abandono


e tristeza. Das muitas memórias que carrego comigo, guardo a lembrança das crianças que se fizeram homens e a dos homens que envelheceram e se foram para nunca mais voltar. A voz em cada um de nós torna-se arrastada e o gemido de uma enfermidade aos poucos nos corroei por dentro. Esta é nossa sina e a condição que esta reservada a cada ser humano, seja rico ou pobre. Tudo passa por nós, tudo se repete, por que é preciso que tudo mude para que tudo volte ao mesmo. Muitos acabamos solitários, amargos e não queremos aceitar as farpas do destino, porque tudo se torna insuportavelmente cruel. Adormecer e despertar em cada manha, eis a rotina a que estamos habituados, sem mencionar o quanto ainda está por vir, mas eu, porem, já me vejo por um fio. Nada sei e nada faço, apenas limitei-me a cruzar os braços e a cambalear perdidamente por entre vielas a falar comigo mesmo e balbuciar orações em forma de lamentos. Penso nas bem-aventuranças descritas no novo testamento: “Bem aventurados todos os que chorão porque serão consulados, bem aventurados os pobres de espírito porque verão a face de Deus”, mas me sinto demasiadamente distante de ti Senhor. O meu coração balanceia de um lado para outro e suspira desde o pôr ate ao nascer do sol. Não tenho mais forças para ir à tua casa, nem motivo algum para sorrir. Cada manhã para mim é apenas o surgimento de um simples dia e nada mais. Sim, apenas uma manhã na qual, inevitavelmente, me perco. Sou como filho pródigo, que partiu e que teme voltar. Como uma ovelha entre lobos preste a ser devorada. Um santo que um dia se escondeu numa caverna temendo apenas a sua própria sombra. Temo teu nome, mas desacreditei no céu e no inferno. O que é o inferno, senão esta vida e o que é o céu, senão um momento único de adoração ao teu Nome? Que saudades tenho quando ia com meus irmãos a tua casa, mas um a um se apartou de mim e me tornei um verme aos olhos de todos eles. Bem aventurados os que repousam entre o silêncio e a dor, porque alcançarão misericórdia. Um dia tive um sonho com um varão de branco, que me disse três vezes: “segueme”. Não sei se em forma física ou em espírito, pois eu também, assim como o apóstolo Paulo, um dia vi o céu. Neste mesmo sonho, que não sei ao certo se era verdadeiramente um simples sonho, olhei e vi outro varão de idade avançada com uma criança ao colo e falava para uma multidão: “o que faremos com este?” Tive muitos outros sonhos, mas também, como não poderia deixar de ser, tive diversos pesadelos que, conforme o passar dos anos transformaram em realidade. Embora desejasse, e muito, nunca sonhei com o face do Altíssimo, mas como dizem os poetas, “Deus quer, o homem sonha e a obra nasce”. Nós os sonhadores devemos ser os olhos de Deus na terra, por mais que alguns de nós não acreditemos. Deus se manifesta através de dons que nos dispensou. Ele acredita em nós, porque sabe que é da própria natureza humana se aperfeiçoar através dos seus erros. O homem erra para apreender a perfeição. É através desse processo que o amor se solidifica e passa a ter um sentido mais plausível e menos abstrato. Descobri também que é exatamente este ponto, que traz insegurança e desequilíbrio a política e a religião. Certa vez, em algum ponto da bíblia, eu li estas palavras: “não precisais que vos ensinem nada, o mesmo espírito que esta em Mim, mostrará o caminho e porá em vós palavras que nunca foram pronunciadas”. Acredito nisto, mas sei que muitos anseiam por deturpar a verdade, influenciando os de consciências fracas, a não se sentirem no direito a vida eterna devido a certas franquezas que cometeram. Estes porem não entram nos céus nem os deixam entrar. São pessoas detentores da verdade, que a ocultam deliberadamente para tirar proveito dos mais fracos.


Enfim! Palavras? Levem-nas o vento e as ações que venham elas do mar em barcos solitários, por entre tempestades. Elas darão à costa no dia que ninguém espera ou no ano que nunca se escolhe. Os profetas, os sábios e todos os que muito ensinam sabem que serão sempre desprezados; sabem que são poucos aqueles que entendem a sua voz ou cântico, afinal, eles falam a língua dos anjos; a língua que só os corações generosos poderão entender. Não instruo a minha alma com meras palavras, nem falo o que não conheço. Na verdade tudo está dentro de mim, como um espelho que se ergue e reflete a luz do sol. Por ti Senhor, há muito que também anseio, mas nestes últimos dias eu me encontro como um espelho quebrado, que nem mais forças têm para se erguer. Houve alturas na minha vida que julguei ser a voz dos cansados ou cântico dos abatidos, mas meu cântico se mistura com muitos cânticos. Hoje ele é triste e desfalecido. Poesia urbana e traços nervosos de um cotidiano a que me habituei, quando volta em meia tudo em mim se desmorona como um castelo de areia junto ao mar. Oculto o meu rosto entre as pernas e fico a chorar em silencio por longas e longas horas. Oh Deus, quantas e quantas vezes me vejo a meditar! Sempre que as azafamas e os dissabores me assolam eu vou ao desespero e me refugio dentro de mim. Tem sido assim os meus dias, entre meditações e sonhos inacabados. Não consigo romper com o meu passado, nem anular minha existência, sou demasiado covarde para tirar a minha vida. Esse pensamento me faz recordar que certa vez, um dos meus saudosos tios me disse que não temia a morte, mas sim o sofrimento. Com os seus setenta e poucos anos adquirira uma enfermidade maligna e seus últimos dias foram de grande tribulação e dor. Recordo-me que não pude estar presente, ele vivia em Gutemburg na Suécia e só soube da sua morte meses depois, quando recebi uma carta de um estranho a relatar a sua morte e a dizer que ele tinha feito um testamento e todos os seus bens passaram a pertencer a ele. Ainda tentei reivindicar, mas foi tudo em vão, já que o tinham obrigado a assinar o testamento. A meu ver acho que usaram de má fé. Bem, pensei comigo mesmo, este foi o meu ultimo elo que me ligava à parte da minha família na Suécia. Hoje só somos apenas dois eu e meu filho. Como disse, a minha família da parte paterna eram da Suécia, da cidade de Gutemburg, o meu pai dizia sempre com um sorriso nos lábios que éramos descendentes de vikings e desse modo, todos eles foram marinheiros, mas eu sempre gostei de ficar em terra firme. O meu pai, numa de suas muitas viagens, veio a Portugal e conhecera a minha mãe num bar alterno. O resultado estava à vista, eu e minhas irmãs somos como frutos deste acaso. Ele estava sempre ausente, viajando por todo mundo, ate que numa de suas muitas viagens nunca mais voltou. Morreu em Paris, devido a uma cirurgia mal sucedida. Quanto a minha mãe, nunca tivera o privilegio de vê-la. Dela apenas tenho uma velha foto preta e branca dos anos 70 que carrego comigo dentro da minha carteira. Vivi em um orfanato toda a minha mocidade, ate que atingi os 18 anos e fui lançado na selva urbana. Por ter poucos estudos, fui obrigado a entrar no submundo dos que anseia por sobreviver. Podia ter cruzado os meus braços; me encostado a um canto para nada fazer ou ter me tornado um marginal, mas devido à rígida educação que tive acabei por adotar esse mesmo sistema no meu modo de vida. Talvez a vida de cada um de nós tenha este principio: o de escolhermos um rumo e seja qual for ele, indiscutivelmente, essa será a nossa vida. Podemos prever em parte alguns deles, como o rumo da decadência; das paixões ou da dignidade. Tentei o ultimo em meio a um manto de lagrimas e suor, e fui trabalhar como servente de pedreiro nas obras por aproximadamente de dez anos. Era um trabalho forçado, pois a grande maioria dos empreiteiros pagava mal e eu nunca fazia


descontos para o estado. Recordo, com certo pesar, de cada inverno que passei. Era na verdade uma vida dura, pois todas as madrugadas eram cinzentas e as conversas sempre disparatadas. Lamentos constantes que se misturavam com sonhos impossíveis de se concretizar. Às vezes no silencio da noite interrogava-me se tudo isto era em vão e por mais que me interrogue, pouco ou nada saberei sobre esta minha existência ou esse modo de vida a que me sujeitei. Comer viver, eis o ciclo vicioso que já estou habituado. A vida para mim é comparada a uma corrente que contem em uma das pontas uma ancora que por sua vez nos aprisiona no fundo de nós mesmo. O mar é comparado a portas de abismos que nos traga e nos cega de modo que só enxergamos uma densa e vasta escuridão. Quando fecho os olhos e fico em silencio tudo a minha volta é escuro. Isto me assusta e me obriga a repensar a minha existência aqui ou em qualquer outro lugar. Eis o resumo de cada um de nós: palavras e atos que se perdem na virada do tempo, como folhas de antigos jornais que o vento leva para longe.


O LADO OCULTO DA ALMA

Conheci uma senhora que em seus sonhos se debruçava sobre uma ponte para ver um abismo em forma de rodopio, porque ele a hipnotizava e induzia-lhe a entrar na sua dimensão. Em uma de suas margens, por nome futuro, havia um grande sol que refletia atrás dela, na sua sombra, toda a trajetória de sua vida. Um mundo só seu, onde ela podia ver todos os acontecimentos vividos e analisar os bons e maus momentos enfrentados. Compreendi que o lugar exato em que ela se encontrava, não era nada mais do que o momento presente da sua existência e que o abismo, era apenas um momento de fraqueza pelo qual ela estava passando. Es a comparação da nossa vida, es os três tempos num só, do qual o presente em cada um de nós fica suspenso quando paramos e dificilmente encontramos forças para continuar. Conheci também outra pessoa que vivia dentro de si mesmo, perdido num labirinto repleto de grandes prateleiras, aonde se amontoavam milhares e milhares de livros carregados de pó. Este porem, durante toda sua vida, tentou compreender a existência humana e tudo que era possível se avaliar, tanto no lado visível como no oculto. A vida deste foi sempre em beneficio de si mesmo. Morreu jovem e nunca chegou a compartilhar seu saber com mais ninguém alem de si. Isolamento e desespero são as duas palavras que sempre vinham primeiro na sua vida e durante todo o seu peregrinar elas lhe foram uma constante companheira. Se algo descobriu em vida, ninguém nunca o soube, pois nu veio e nu se foi. Quanto a mim, apenas posso dizer que os meus sonhos são sempre iguais. Ora vejo um homem como se estivesse perdido num deserto, ora vejo a minha própria sombra a cobrir o mundo. Todos têm sonhos intransmissíveis e cada um de nós transporta a força de um acaso em si, que certamente já foi pré-determinado, porque o sonho comanda a vida e Deus quer que o homem sonhe, por uma simples razão: o mundo se alimenta de cada um de nossos sonhos, assim como nós nos alimentamos do que o mundo nos dá. Nós artistas, não sei se todos, mas creio que a maioria, sonham acordados. No metrô, no ônibus, num café ou praça publica, imaginamos o interior de cada indivíduo que passa por nós; é como se fossemos capazes de penetrar dentro das pessoas, sentido os seus receios e medos. Uns chegam a visualizar a áurea, outros nada vêem, mas conseguem se sensibilizar e retratar o mais oculto dos sentimentos. Quanto a mim, vejo o que ninguém deseja ver ou sentir: a dor e o sofrimento da alma humana, as vozes que nos perseguem, os problemas que nos abatem quando espíritos contrários nos levam a cometer barbaridades. Não podemos culpar o invisível, mas ate que ponto o ser humano esta preparado para lutar contra o que não vê? Quando era jovem adorava desvendar os caminhos do ocultismo, tentar compreender a morte ou que esta além dela. O invisível é a última das fronteiras que o ser humano terá que atravessar. Não podemos viver num mundo materialista e ficarmos indiferente ou ignorarmos os nossos sentimentos. Há muita gente capaz de ver, sentir e viver muito mais o transcendente do que o real. Indiscutivelmente, mais cedo ou mais tarde, o que está oculto se revelará e será posto à luz do dia, para bem ou para o mal da humanidade. Eu tenho uma visão que vai bem mais além dos meus olhos físicos, pois


também consigo enxergar com o meu olho do espírito, conhecido por muitos como terceiro olho. Por ter uma visão ampla e percepção bem mais apurada, já fui, inúmeras vezes, tachado de louco pelos ignorantes da nossa “civilização”. Ate mesmo alguns amigos tinham receio de mim das minhas conversas metafísicas. Sempre gostei da leitura proporcionada pelos livros de Nostradamus, com as suas profecias futuristas, o livro de São Cipriano, a Bíblia com todos os seus mistérios apocalípticos e, por fim, a Cabala que contem em si a chave para uma compreensão mais amplificada do significado da vida. Tudo o que era místico me maravilhava. Quando se é jovem só queremos chamar atenção e, geralmente, buscamos qualquer artifício para isso. Eu não fui diferente, se não tinha um argumento, não me calava, repensava e formulava um conceito que não ia longe do real, pois, como falei anteriormente, tenho uma percepção ampla. Qualquer argumento é a base para a construção do futuro. O que procuramos é o que sentimos e acreditamos ser possível concretizar. Foi pensando assim que desenvolvi o meu lado interior e também conseguia ajudar algumas pessoas que cruzavam o meu caminho, mas o medico dificilmente se cura assim mesmo, ele vive entre o mundo que desbrava e o mundo que contem enigmas. Assim como as profecias não são para o profeta, mas para quem ela é dirigida. Certo dia, há muito tempo atrás, alguém me disse: “você será um conselheiro”. Hoje me interrogo acerca de quem me aconselharia e de como é difícil receber um conselho. Na verdade é sempre tão complexo por em pratica as palavras de um estanho. O povo diz e com razão: faz o que digo e não o que eu faço. Ignorar ou viver é uma das possíveis opções de sobrevivência. Com a barba por fazer e as minhas roupas escuras, afasto propositadamente todo mundo, para que a minha vida seja mais tranqüila. Caminhar no escuro ou ficar em silencio, morder os lábios para olhar o céu noturno, esperando que uma estrela cadente passe e traga uma nova mensagem. Por que será que ninguém mais observa os céus? A maioria dos homens cansou de sonhar e não escutam mais o cântico dos pássaros nem olham para o companheiro que viaja ao seu lado. Eles adormecem de frente para televisão e assistem noticias desagraveis vindas do mundo inteiro, pois aonde quer que o homem esteja, habitará sempre violência e conflitos. Suas noites surgem sem forma ou cor. Ate que ponto o ser humano conseguira agüentar a sua própria decadência ou ate aonde vai a sua loucura e solidão? A insuportável monotonia é o suficiente para que cada um de nossos sonhos se transforme em pó, porque viemos do pó e para ele retornaremos. Somos seres indiscutivelmente mesquinhos, duvidamos de nós mesmos, cruzamos os braços para nada fazermos, mesmo que tenhamos em nós o poder de agir. Rimos por entre a escuridão, em silencio, e anulamos a nossa existência dando um fim trágico as nossas vidas, afinal, adoramos tragédias. Não conseguimos caminhar sem rirmos dos que caem em desgraça, porque este é o pão nosso de cada dia e diante de tais circunstancias é difícil ficar calado, principalmente, quando nossas vidas se encontram estagnadas. Dizemos que temos fé em Deus e o amamos, mas poucos compreendem o que quer dizer fé. Pensando bem, o que é mesmo a fé? Constantemente cremos no invisível e o amamos porque não o vemos, mas todos aqueles que nos são próximos, nós os desprezamos. Jesus disse “tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, estive preso e nunca me visitastes”. Só hoje que vim a compreender as suas palavras, pois a minha dor esta diante do que observo constantemente. Como é fácil amar o que não vemos e difícil amar o que esta patente aos nossos olhos. Enganamos-nos


quando dizemos que amamos a Deus, mas esta é a fé dos homens. Este também sou eu, porque também vivi e me fiz amado, mas estou sempre a por em causa a palavra amor. Posso dizer que já ergui os meus braços aos céus, que já subi num púlpito e deixei Deus falar por mim. Vi profecias se cumprirem e sinais do céu a cercar os meus caminhos, mas hoje vivo entre as trevas, como um forasteiro que perdeu seu rumo. Não sei se duvido ou apenas me limitei a ficar em silencio, mas acho que me perdi em um determinado momento da minha vida. Acho que foi quando senti que todo meu empenho diante dos muitos problemas que tive que enfrentar era em vão. Talvez tenha uma missão na Terra, mas estou tão cego que nem diante do espelho consigo me enxergar. Entre um emaranhado de pensamentos, levanto os meus olhos para o céu e fico perceptível ao que esta ao meu redor: as sombras noctívagas da noite começam a se formar e a lua em quarto minguante surge triste entre elas. A vizinha do lado chora a morte do seu amante. No outro lado da rua, em um apartamento de frente para o meu, observo que o único sinal de vida vem de uma das janelas cuja luz tremula reflete a sombra de um poeta em desespero, debruçado sobre um velho piano que eu jamais o ouvira a tocar. Penso no poeta e recordo que um dia li: “Seja qual for o caminho que eu escolher um poeta já passou por ele antes de mim”. Existem palavras que são eternas e outras que são apenas palavras que nenhum efeito em nós provoca. Se tivesse que escolher entre ser artista plástico ou poeta, escolheria ser poeta. Conhecendo eu cada letra daria ao mundo coisas sempre novas ou talvez indecifráveis. O poeta por natureza é um ser fingido. Ele troca o sentimento por palavras em forma de um código só seu, relatando ao mundo segredos da sua própria alma sem que alguma vez alguém os descubra. Infelizmente eu sou um pintor e nada mais do que isto. As minhas telas, há anos, se encontram em um canto da sala e quando me atrevo a escrever um poema, ele é tosco. Falta-me talvez uma musa ou deusa amável em meus sonhos. Faltam-me tantas outras coisas que só os poetas conhecem. Por entre a meditação, acendo um cigarro e fico de novo como perdido na madrugada, enquanto os meus olhos se perdem e a minha mente procura compreender cada uma das palavras que um poeta tenta tirar de dentro si. Palavras vindas do coração. No ar paira uma musica de Johann Sebastian Bach que envolve todo meu apartamento. Paixão segundo São João, aflorando em mim um sentimento de nostalgia e trazendo lembranças de outros tempos. Amores fracassados, amigos que já partiram ou colegas que abracei um dia e nunca mais os vi. Enquanto isso, o meu semblante cai, uma das minhas mãos vai encontro do meu rosto e eu revivo novamente todas as lutas que travei; sonhos incompreendidos que não sei bem aonde me levaram. Acabei só, entre quatro paredes repletas de estantes com livros velhos que acumulei ao longo da vida. Uma foto de um rosto que ninguém mais se lembra e outra de um antepassado que nunca vi. Tudo que tenho está velho e cheira a mofo. Para onde quer que eu dirija os meus olhos tudo se transforma em nostalgia. Saudade e fado duas palavras verdadeiras para se descrever a minha condição como ser humano.


PAIXÕES

Pela manha a campainha tocou quando ainda me encontrava deitado e fiquei surpreendido, pois já faz algum tempo que não recebia uma visita. Era um desconhecido que vinha da parte do Pedro para me pedir que lhe fizesse um pequeno retrato da sua filha. Fiz lhe saber que não era retratista e que o meu estilo não ia muito ao gosto dos fregueses, mas ele surpreendeu-me, dizendo que queria algo original, coisa que atualmente não e muito comum. Sendo assim resolvi aceitar, mas com essa condição. Ele ficou por ali a remexer algumas de minhas telas e soletrando palavras desconexas, que me soaram como um elogio. Em um determinado instante ele mencionou que um dia destes tinha estado numa casa de leilões e que num dos lotes havia uma pequena tela da minha autoria datada de 1997. Indaguei sobre o lote em questão e qual não foi a minha surpresa quando mencionou que pertencia ao filho do senhor Campelo. Por incrível que possa parecer ela tinha sido arrematada por um bom preço. Enquanto ele falava, eu pensava comigo mesmo que um santo deveria ter caído do altar nesse dia, pois a venda de uma obra em leilão me pareceu um milagre, porem não fiquei muito surpreso, afinal já nada me surpreende tanto hoje em dia. Tudo é possível e o tempo geralmente se encarrega de nos pregar certas partidas. Antes de sair ele comprou-me duas telas, que eu havia pintado há mais de dez anos e pagou logo em dinheiro, o que não foi nada mal. Santo Deus, porque será que estas coisas só acontecem quando estamos no fundo do poço? Mil euros? Uma raridade! Pelo que me deu a entender ele já vinha mesmo desponto a comprar alguma coisa. Em meio a uma frase ou outra acrescentou que sua esposa possuía uma galeria de arte no chiado e que fazia questão de ter os meus trabalhos expostos. Em outros tempos ate teria me entusiasmado, entretanto, após inúmeras decepções e experiências negativas com expositores, apenas senti desprovido de qualquer sentimento, embora desta vez me sentisse agradecido pelos quadros que ele comprou, devido ao montante que recebi. Para falar a verdade, vida de artista não é fácil, as dividas se acumulavam rapidamente, contudo, já que não posso saúdá-las todas de uma vez, vou aproveitar a oportunidade para mandar consertar a minha televisão, que se encontra avariada já há algum tempo. Com o resto do dinheiro pago as despesas que estão em atraso e abasteço a despenca e pouco ou nada vai me sobrar. Depois de ele ter saído fiz a minha toalete e dirigi-me ao Largo da Graça para tomar o pequeno almoço, ou devo dizer café da manha? Já não sei ao certo! Como estava há chuviscar um pouco, vesti a gabardine e segui meu caminho. Do meu apartamento ate o Largo da Graça são apenas 10 minutos e no percurso posso rever os rostos dos que por mim passam e que são sempre os mesmo. Isso geralmente acontece quando ficamos muito tempo em um determinado lugar. Como exemplo posso citar a garçonete que trabalha no café Sabores da Graça. Na época que ela veio trabalhar para o café tinha aproximadamente vinte e poucos anos, era uma jovem lindíssima, sempre alegre e pronta para tudo. O tempo passara por ela como um relâmpago. Casara, tivera filhos e o seu rosto tornou-se pesado, assim como todo seu corpo. Hoje em dia nunca sorri e dificilmente diz bom dia para os clientes. Parece que a vida não lhe trousse o que ela tanto esperava. Havia também um


senhor que ia todas as manhas a esse mesmo café, assentava-se sempre na mesma mesa, fumava o seu cigarrinho, pedia meia de leite com uma torrada e enquanto comia, lia o jornal “A bola”. Como sua idade já era bem avançada, um dia a sua mesa ficou vazia e outro tomou seu lugar, dando assim inicio a outra historia dentro de tantas historias que a cidade esconde. O que me leva a freqüentar esse estabelecimento é que na parte de baixo existe uma pequena fabrica de confeccionar bolos e pães e é por esse motivo que sempre que possível venho aqui. Tudo é fresco e os preços estão sempre em conta. Sento-me em uma das mesas disponíveis e a garçonete serve-me uma meia de leite bem escura e dois pasteis de nata. Por ali fico aproximadamente duas horas a mais a rabiscar alguns apontamentos no meu diário. No que diz respeito aos meus diários, tenho vários em casa, preenchidos com palavras soltas e vagas, bem como alguns desenhos do meu cotidiano. Rostos de amigos ou de pessoas estranhas, mas que sempre apresentam sobre suas feições algo que me cativa. Desenhos de recantos ou ruas de Lisboa, assim como de seus edifícios. Nas minhas muitas viagens levava sempre comigo um ou dois cadernos, mas infelizmente muitos deles perderam-se e outros fui oferecendo aos meus amigos e ao meu filho. A minha amiga Sara Vargas que atualmente vive em Espanha, na cidade de Cadiz, que sempre que me visita leva um ou dois dos meus diários com o pretexto de ler. Se eu a deixasse bem que ficaria com todos eles. O mesmo acontece quando vou ao Café Nicola e ao Café A Brasileira. Sempre que faço um desenho, tenho por habito oferecer aos que se assentam ao meu lado e por esse mesmo motivo é que tenho uma coleção de pequenos desenhos espalhados pelo mundo todo, devido à quantidade de turistas que anualmente visitam esses tipos de estabelecimentos. Fazendo bem as contas ate que não me posso queixar. Mesmo que tenha oferecido alguns dos meus trabalhos, também vendi ao logo da minha vida muitas telas, mas sempre por preços risórios e para ser franco não tenho habito de me prender a nada, afinal, estou sempre a mudar de um lugar para outro. Só na cidade de Lisboa já devo ter estado em milhares de apartamentos ou quartos, já que tenho um pequeno problema comigo: canso-me depressa de tudo e de todos. Se não parto para outro lugar acabo por entrar em depressão. É por isso que ninguém nunca sabe aonde vivo, a não ser que algum amigo de longa data me encontre casualmente, ai sim, deixo ficar o meu contato com ele e seja o que Deus quiser. Há duas coisas que levo sempre comigo: um lápis e um caderno, pois nunca sei o que pode surgir. Adoro ser surpreendido pelas pequenas coisas da vida. Um rosto que se diferencia de tantos rostos, uma arvore ou um edifício a cair aos pedaços, tudo isto para mim tem sempre algo de novo. É como escrever um poema ou receber uma dádiva dos céus. Desenhar para mim tornou se uma terapia que me distrai e ajuda-me a relacionar-me com todos sem que me envolva diretamente nas suas vidas. Conheço todo mundo e ao mesmo tempo não conheço ninguém, sou o que se pode chamar de um andarilho, que ama a liberdade e que ao mesmo tempo vive aprisionado dentro de si mesmo. Cada pedra desta cidade me pertence. As ruas, avenidas, bares, cafés, galerias, salas de teatro e centros comercias. Tudo é meu e eu não sou de ninguém. Ora vivo numa cidade ou em outra, mas Lisboa cativou de tal forma


que acabo sempre por voltar aqui. A cidade branca como todo mundo a chama, com seus casarios e bairros cercado de ruelas estreitas em forma de labirinto, são para os meus olhos um poço sempre cheio de surpresas. Recordo-me que quando cheguei aqui no ano de 1992, se não me falha a memória, aproximadamente no mês de setembro. Nessa altura fui viver para o Barreiro, precisamente no Vale da Amoreira, na margem sul do Tejo. Lembrome que tinha que apanhar o barco para chegar ao meu posto de trabalho, localizado em Lisboa. Meio ano depois acabei por me mudar para a capital e por aqui me tenho mantido ate ao presente momento. Exceto em alguns momentos instáveis da minha vida, que tive que sair daqui e viver em outros lugares, na esperança de encontrar alguma oportunidade melhor. Sendo assim passei algum tempo em Coimbra, Aveiro, Leiria e Porto entre outras cidades que já não me recordo no momento. Penso que se recordasse, ainda teria muitas outras para mencionar, localizadas ao redor do mundo. Em especial as grandes metrópoles do Brasil. Em cada uma dessas cidades eu vivi grandes historia que me marcaram profundamente. Histórias de amor e de grandes amizades, que me afirmaram singularmente o significado do verdadeiro existencialismo humano, pois uma grande vida é composta de pequenas partículas sobrepostas na formação de uma inesquecível experiência. Com estas experiências fiquei convencido de que o homem que nunca tenta uma ou duas mudanças em sua curta vida, jamais poderá compreender a si mesmo. Conheci também indivíduos que nasceram e sempre viveram na mesma cidade sem nunca terem ido à parte alguma ou ao menus conhecido algo de novo. Viviam presos na mesmice da sua própria ignorância e fechavam os olhos para a vasta imensidão que os cercavam. Talvez eu esteja errado ou quem sabe a linha traçada do destino desses indivíduos se limite a isso mesmo. Nascer e viver num só lugar é o quanto lhes basta para que sejam felizes. Se é que são mesmo felizes! Quanto a nós artistas, me desculpem mais uma vez o plural. Somos autênticos andarilhos e também eternos românticos, deste modo não é de se espantar que Picasso tenha casado por varias vezes. Enfim, es um assunto demasiado delicado para se aprofundar. Quanto a mim, que direi dos meus amores? Já não lembro quantos ou quais foram, mas sei bem como eram. Porque a verdade é que eu esqueço facilmente de nomes, mas jamais esqueço uma fisionomia, pois a registro de tal forma dentro de mim, que por mais que eu queira, tenho dificuldades para esquecer. Quando estou com um grupo de amigos, evito falar sobre este assunto; sou demasiado piegas e choro por tudo e por nada. As coisas do coração acabam comigo da noite para dia, abalando-me por semanas a fio, mas recordo-me que alguns anos atrás que cheguei a sentir uma fixação por uma jovem de 21 anos, que me marcou de tal forma, que ate hoje cenas vividas por nós dois vagueiam deliberadamente pela minha memória, sem me pedir licença ou permissão. Conheci-a na primavera do meu ultimo ano de casado. Por essa altura éramos apenas bons amigos, mas devido ao carinho que nutríamos um pelo outro, essa amizade depressa se transformou em algo muito mais profundo. Seus cabelos longos e negros contrastavam com seus olhos azuis fatais, ela era para mim como uma Vênus pronta a despertar de um longo sono. Inteligente, amável e sempre disposta a enfrentar todos os obstáculos da vida. Ela me seduzira como ate então nenhuma outra mulher jamais conseguira. Há quem diga e com razão que todos os artistas têm uma musa. Para mim ela fora essa musa e ate hoje permanece como um ícone escondido dentro de mim e por isso a retratei por varias vezes em algumas das minhas telas. Era como se cada parte do seu corpo fosse em parte o meu próprio corpo. Não sei se foi amor ou se foi apenas uma paixão efêmera, falo apenas o que


o meu coração me diz: que por mais que os anos passem, ela será insubstituível. Após um período de dois anos tudo acabou entre nós, pois meu temperamento não ajudava em nada, sou como se diz: calmo por fora e completamente agitado por dentro. Um defeito que ate hoje não consigo superar. Deve ser por isso que não me envolvo com mais ninguém. É de lamentar que a grande maioria das pessoas afirmem que nós os artistas não sabemos amar. O que não é verdade. A palavra amar para nós é tão profunda, que só a prenunciamos quando acreditamos que verdadeiramente a temos alcançado. Atualmente compartilho uma relação com uma jovem do Leste Europeu, que conheci há dois anos. Um sonho de mulher. Loira de olhos verde mar, com altura de 1.80 e deslumbrante. Mais do que uma linda mulher é também uma boa amiga. Tem dois empregos e uma filha que vai pela primeira vez para escola. Quando ela esta de folga liga-me, pois se preocupa comigo e ate sei que nutre um carinho muito especial por mim. A historia da sua vida e uma das mais tristes que tenho ouvido. Quando ela tinha seus 14 anos vinha a caminho de escola para casa e se defrontou com um grupo de homens que a raptaram e a levaram a força para a prostituição. A drogavam durante todo o tempo que esteve aprisionada e abusavam dela por horas a fio ate que um determinado dia conseguiram fugir com ajuda de um jovem que se apaixonou por ela. Ele comprou duas passagens de trem com destino a Portugal e debaixo de muitas lutas conseguiram chegar são e salvos ao seu destino. Em Portugal viveram na clandestinidade, sempre com medo de ser pegos pelas máfias do leste europeu. Ela acabara por encontrar trabalho num restaurante como ajudante de cozinheira e ele fora trabalhar nas obras, mas raramente o pagavam. A vida parecia que lhes estava a correr bem, mas meio ano depois, ele caiu do terceiro andar de um andaime e ficou incapacitado de trabalhar. Sem plano de saúde a sua situação se agravou e para completar o patrão o demitiu sem lhe dar nenhuma indenização. Enquanto estava no período de recuperação a sua situação se agravou ainda mais. Uma apendicite supurou e o levou a morte por não ter sido socorrido a tempo. Por estar grávida dele, ela acabou por ser dispensada do seu emprego e ficara completamente só, em um país que lhe era totalmente estranho e temendo por ser perseguida, nunca se reunia com a comunidade, como grande parte dos emigrantes fazem. Pensava em pedir asilo político, mas temia ser deportada e essa era a ultima coisa que ela queria, pois pensava tanto em si como na criança que carregava em seu ventre. Foi por essa altura que a conheci, quando sua gestação ia ao quinto mês. Vivia num prédio abandonada que fazia esquina com meu apartamento e saia todas as noites, para catar os restos de comida que os grandes supermercados deitam fora. Como todas as noites, antes de me deitar, tenho habito de ficar de frente para a janela a fumar um cigarro e a ver o movimento constante dos que passam. Aos poucos comecei a ter consciência daquela situação e certo dia encontrei coragem para ir conversar com ela. Não foi nada fácil, ela era desconfiada, tímida e carregava dentro de si todas as dores do mundo. Seus olhos verde mar deixavam transparecer certa tristeza e o seu rosto encontrava-se desfigurado de tanto chorar. Eu não podia permitir tanto sofrimento e nem mesmo me sujeitar ao conformismo. Tinha que tentar fazer algo para minimizar tanta amargura! Não agüento sofrer, quanto mais ver sofrer os outros. Deve ser por isso que nada tenho. Tudo que tenho dou e se não dou mais e por que tenho tão pouco. Certo dia consegui comunicar-me com ela em inglês, em meio a uns trocadilhos de palavras em espanhol. Disse lhe que gostaria de ajudar se ela assim permitisse. Como tenho um olhar calmo e distante, cativo todo mundo e ela não foi uma exceção. Mesmo


relutante aceitou. Por essa altura trabalhava como guarda noturno numa escola e às vezes trazia comida para casa. O meu ordenado era pouco, mas não me preocupei com mais um gasto. Não importa o quanto tenho, sempre dou um jeito. Como um familiar meu dizia, quem faz comida para um, faz para dois ou três. É em ocasiões como esta que desprezo os que tantas vezes desperdiçam o dinheiro com coisas fúteis. Seres irresponsáveis, egoístas e esbanjadores, só pensando em si mesmos e vivem se lamentando por tudo e por nada. Nem mesmo param para por a mão na consciência e pensar em nos outros que necessitam de um mínimo para sobreviver, mas não têm absolutamente nada. Pessoas que esbanjam não sabem o verdadeiro significado da palavra sofrer, nem têm uma idéia do que esta acontecendo nas ruas por onde passam diariamente. A noção de sofrimento é obtida através de uma tela de televisão, onde vêem, do outro lado do mundo, as misérias do mundo e são ate capazes de se lamentam, mas são incapazes de dar uma esmola ao pobre que passe em sua rua. Repudio também certas atitudes dos nossos governantes quando tentam fazer caridade para com outros povos, apenas para mostrar as outras nações em redor que no nosso país tudo vai bem. Sete mil toneladas de alimentos para Sudão ou para Etiópia, dois milhões de euros para os pobrezinhos que estão na Ásia, porque ouve por lá uma grande catástrofe, enquanto grande parte do povo da sua própria nação vive abaixo da linha de pobreza, na completa miséria. Interrogo-me se estou a ser egoísta ou se na verdade estou a ver o que tão poucos querem ver. As pessoas que aqui vivem sofrem muitas privações ou estão sufocadas de dividas e mais dividas. Desempregados, desnutridos, doentes e desesperados, mas que, infelizmente, são sempre postos em segundo ou terceiro plano. Santa hipocrisia, será que os governantes deste país não tem consciência ou não podem agir em face de tudo o que na verdade existe dentro das suas fronteiras? Ate quando um cego guiara outro cego? Voltando ao assunto anterior. Falei com meu eis concunhado que é medico no hospital S. José, no centro de Lisboa e disse-lhe que precisava urgentemente da sua ajuda. Por ser um homem bom e prestativo se prontificou a tratar ele mesmo de tudo.

Meses depois, às 22h ela deu a luz a uma bela menina saudável, a qual deu o nome de Raquel. Assim que se recuperou do parto conseguiu trabalho de domestica no bairro de Alvalade. Durante o tempo que viveu comigo, acabamos por nutrir certo carinho e respeito um pelo outro. No principio, como disse, éramos amigos e nada mais, mas aos pouco a nossa relação se intensificou e daí surgiu algo bem mais forte. Infelizmente, devido ao meu temperamento e por não gostar de estar sempre no mesmo lugar, acabei por me separar dela e mudei-me para outro apartamento, mas sem que antes falasse com o proprietário do imóvel. Pedi-lhe, encarecidamente, que a deixasse viver lá sobre a minha inteira responsabilidade e há pouco tempo atrás sobe que ainda vive por lá. Atualmente sei que tem algum dinheiro no banco e que muito em breve vai abrir uma pequena butique de roupa intima feminina em Benfica.


ROUPA SUJA EM PRAÇA PUBLICA

Ainda não recebi a notificação de trabalho, mas como tenho algum dinheiro vou a Baixa e aproveito para passar na Casa Fernandes para comprar algumas tintas e telas. Como sou cliente assíduo eles sempre me fazem um desconto de dez por cento. Não é muito, mas é melhor do que nada. No primeiro andar do estabelecimento há uma senhora que admira muito a pintura e os pintores. Certo dia ela mostrou-me uma pequena tela pintada a óleo de sua autoria e eu pude identificá-la como sendo uma natureza morta. Queria saber o que eu achava sobre o seu trabalho e confesso que não foi uma das mais belas obras que já tinha visto, mas para uma amadora ate que não estava nada mal. A composição se interligava muito bem com as cores escolhidas. Era um trabalho dentro de uma linha de pensamento classificada como naif. Para quem não sabe, a pintora naif é de uma pureza genuína, pois tudo o que os pintores naif fazem, o fazem com amor. Cada detalhe e pormenor são de uma elegância que transporta qualquer espectador ao mundo da fantasia da sua infância. É lamentável que a grande maioria dos artistas plásticos e expositores os desprezem tanto. Eu pessoalmente fico indignado quando me acento num café e reparo que um grupo de indivíduos se põe a falar mal sobre os naif. Não suporto esses tipos de comentários, porque me deixam com um nó na garganta. São pessoas egoístas e mesquinhas que adoram vir para lugares públicos lavar a roupa suja. Quando me deparo com uma situação como esta, simplesmente saio discretamente, pois jamais me deixo rebaixar ao nível deles. Quer gostem ou não pouco me importa. Quando alguns me olham de lado eu passo adiante como se nada estivesse acontecendo e por isso mesmo me puseram o codinome “anjo solitário”. Bonito nome, mas sei que o dizem para gozar com a minha cara, afinal de contas não consigo me esconder. As minhas andanças pela cidade de Lisboa fazem de mim uma personagem peculiar. Todo mundo já me viu alguma vez, mas eu nunca os vi. Caminho cabisbaixo, despreocupado e quando me acento numa praça a desenhar, os jovens se reúnem em volta de mim com o propósito de compartilhar suas aventuras e idéias. Qualquer palavra proferida por mim é escutada com tanta atenção que consigo senti-las no brilho dos seus olhos e com isso eu posso sentir que os transporto a outro mundo e ao final dos meus relatos me preparo para a enxurrada de perguntas que se seguem, pois querem saber o porquê de tudo. Outras vezes me pedem para desenhar os seus rostos e não consigo ficar indiferente, desse modo os mando ficar em fila indiana e vou desenhando um a um. Quando pegam no seu desenho, geralmente saem correndo para casa para mostrarem e contarem a sua historia aos seus familiares. Por vezes aconteceu de algumas pessoas desconhecidas virem falar comigo, apenas para me dizer que tem um desenho da minha autoria guardado e emoldurado a um canto da casa. Eu brinco e digo: - quem sabe se um dia esse pequeno papel não vai ser um cheque? Muitos dizem que jamais se separarão dele e conversam, conversam, ate que a minha mente viaja ate casa de meus sonhos numa colina com vista para o mar e por lá fico idealizando a minha existência. Parou de chover e um raio de sol sobressaiu por entre nuvens e atingiu meu rosto úmido. O meu cabelo está molhado, bem como todas as minhas roupas; meu caderno


amoleceu e o lápis que trago sempre comigo não tem ponta. Uma pequena navalha de bolso me faz falta, embora já tenha me acostumado a descascar os meus lápis com as unhas. Na minha frente está um casal de idosos assentados num dos bancos deste jardim, lançando pequenas migalhas aos pombos que se amontoam esfomeados, esvoaçando de um lado para outro e lutando entre eles. Os pombos criam, em volta deste casal, um manto cinzento com pequenos pontos brancos. Começo a desenhar mais uma imagem significativa do meu cotidiano e fico em silêncio, absorto dentro de mim mesmo. São momentos assim que trazem alguma serenidade a minha vida. Certo dia, conversei com um senhor de idade já avançada durante um longo tempo; contava-me com nostalgia cada momento ate então vivido. Era viúvo e tinha uma pequena aposentadoria, mas tão pequena, que mal dava para sobreviver. Sofria de reumatismo e tinha bronquite aguda, mas raramente podia comprar medicamentos, pois não tinha condições para tal. Disse-me que quando era jovem, foi viver para Angola com seus pais e que por lá abriram uma padaria. Casara se com a mulher da sua vida e tiveram sete filhos, depois veio à guerra colonial e no fim a descolonização que o obrigou a ir viver para Portugal. Por cá lhe deram o nome de retornado. Sem meio de sobrevivência acabou por ir viver com toda a sua família num bairro de lata, ou melhor, dizendo, favela, na Cova da Moura. Desempregados, tanto ele quanto sua esposa, pediram ajuda ao governo, mas só depois de dez anos lhe deram um pequeno apartamento num bairro social. As enfermidades que ele tinha, de acordo com ele, foram devido às más condições que fora sujeito quando vivera na Cova da Moura. Era um inferno, não importava se era inverno ou de verão, pois não tinham saneamentos básicos e o lixo que se amontoavam por todos os lados atraiam ratos, baratas, mosquitos e pulgas em abundancia. Chorávamos por tudo e por nada, discutíamos porque não tínhamos pão nem remédios para dar aos nossos filhos. As assistentes sociais sempre que ali apareciam era apenas para fazerem estágios com as suas perguntas absurdas. Era sempre a mesma historia, seguida por um sorrido nos lábios e um pesar de lamento por não poder fazer nada pelas pessoas. Os anos setenta foram difíceis para todos, como ele mesmo dizia, mas com sete filhos ainda pequenos era um caos total. A primeira a encontrar trabalho foi a sua esposa, mas para chegar lá caminhava mais de cinco km com o propósito de economizar o máximo possível para ajudar com os mantimentos de casa. Quanto ao seu marido, depois de um cansativo ano de tanta procura e com uma enorme quantidade de gente que se encontrava nas mesmas condições, ele resolveu ir à busca de um trabalho pesado devida a maior chance de encontrá-lo. Depois de alguns contatos e fichas feitas em obras, acabou por encontrar uma vaga de servente em uma construção no centro da cidade. Já tinha quarenta e poucos anos e a idade não ajudava. Todos os dias tinha dores terríveis pelo corpo inteiro, afinal durante todos aqueles anos trabalhou como padeiro e essa é uma das muitas profissões que nos desgasta bastante se não tivermos um bom condicionamento físico, mas, nos finais dos anos oitenta, tudo melhorou. O estado fora obrigado a contribuir com o bem estar dos seus funcionários e doou um apartamento a cada um dos que ali viviam, devido a uma nova lei aprovada pela comunidade européia, pois reconheceu que a situação medíocre vivida pelos seus habitantes era vergonhosa, sem mencionar que viviam em condições subumana. O dia da evacuação foi histórico para todas aquelas pessoas ate então tão desvalorizadas. A impressão que dava aos observadores era a de que milhares de peregrinos tinham saído às


ruas para celebrar a nova fase de suas vidas. Após as suas retiradas o bairro ficou deserto e acabou por ser demolido, pois os que dali saiam jamais pretendiam retornar. Com o passar dos anos ele envelheceu e acabara por receber uma pequena reforma do estado, por ter contribuído a vida inteira. Quanto aos filhos que tinha já estavam crescidos e ate já tinham constituído suas próprias famílias, assim também como já estavam formados e tinham seus bons empregos. Uns eram doutores e os que não eram também estavam estabilizados e ganhavam muito bem. Sabe, dizia-me ele para finalizar: fiz o que pude por eles e se não fiz melhor foi porque a vida não me permitiu, mas estou agora nesta situação precária e sem cuidados médicos, dormindo num quarto velho e sujo que fica entre o Intendente e os Anjos, só porque passei a escritura do meu apartamento para o nome de um de meus filhos. E sabe o que ele me fez? Pôs-me a correr da porta para fora só porque sua esposa não me queria lá. Podia ter ficado, mas o amava e como estava velho demais para mais um desafio, desisti para felicidade dele, porque a vida dos meus filhos esta sempre em primeiro lugar. Enfim, tentei semear as mais belas rosas durante toda a minha vida, mas no final de tudo estou colhendo apenas os espinhos. Eles se esquecem que um dia também vão ser pais, que darão tudo de bom para seus filhos e que colherão apenas o que agora esta plantando. Estão cegos demais pelo egoísmo para enxergarem que precisam fazer o bem agora. Como esse senhor, existem centenas de idosos nestas condições. Não só aqui como em todo mundo e não é preciso ir muito longe para se ouvir uma historia assim. Basta apenas perder um pouco de tempo em alguma praça, que por certo encontraremos uma ou duas historias bem similares. Deus meu como temo acabar assim! Há atitudes que nunca vou entender ou sentimentos que meu coração, por menor que seja, jamais poderá aceitar. Interrogo-me sobre estas coisas e a única coisa que entendo é que o amor esta a esfriar sobre a face da terra. Os jovens não respeitam mais os idosos. Cada um por si e nada mais existe. Quando nós artistas tentamos descrever o nosso mundo em cada uma de nossas telas, elas adquirem uma tonalidade sombria, com cores escuras e tristes. É como se um grande abismo se estivesse a formar ao redor de cada um de nós. Tudo o que temos atualmente apenas serve para nos distanciar ainda mais uns dos outros. Hoje, basta apenas um clic e tudo aparece como se surgisse do nada. Somos na verdade o produto de uma geração em que a cultura e tradição de um povo ou povos se esta a perder lentamente. Eu pessoalmente gostaria que não existissem fronteiras, mas se a falta delas nos separa ainda mais, então o que é que esta mal aqui? Recordo-me que quando vivi em São Paulo por um período de três anos, o tempo que lá estive jamais consegui fazer uma verdadeira amizade. As pessoas de lá vivem numa constante azafama, correndo de um lado para outro a procura de algo que nunca cheguei a entender bem o que era. Ate mesmo os artistas dificilmente se reuniam e quando tal acontecia era sempre tão superficial. As conversas eram uma mistura de suspiros e lamentos. É por isso que me interrogo constantemente a cerca do destino de cada um de nós, se é que realmente estamos a caminhar para algum lugar. Bem, mas quem sou eu para tentar entender ou dar respostas? Um Zé ninguém aos olhos de meio mundo e para outros talvez seja comparado a Garça Real, que pousa suas patas no lodo e no primeiro voou ela fica completamente limpa. Vejo-me como um ser capaz de pisar em qualquer lamaçal e sair com os meus pés limpos; habitar dentre os piores pecadores e sair com minhas vestes brancas; conviver com qualquer tipo de pessoa, rico pobre, preto, branco sem que jamais me contamine com a soberba e o egocentrismo da raça humana. Não pense com isso que sou perfeito, pois tenho muitos defeitos, mas o


meu coração é puro como o de uma criança e dentro de mim não há espaço para o ódio ou mediocridade de sentimentos mesquinhos.

ESCUTAR EM SILENCIO

Alguns anos atrás tentei escrever a minha biografia, mas como dou muitos erros e não sei aplicar as formas gramáticas corretas, desisti ao fim de um tempo, afinal tenho poucos estudos, pois só cheguei a completar o oitavo ano. Tinha uma fobia comigo: não conseguia estar muito tempo em lugares fechados, pois isso me deixava inquieto e me fazia sentir-se um tanto perturbado. Assistir aulas em um ambiente fechado e formal me levava quase que ao pânico e os meus professores chegavam a ficar transtornados comigo. Quanto aos meus colegas de turma, adoravam-me, pois tinha sempre uma piada debaixo da manga. Não fazia por mal, mas às vezes ia longe demais, por isso estava sempre de castigo ou então era posto da porta para fora mesmo que aula tivesse acabado de começar. Isso me causava crises de risos e eu ria como uma desvairado ao ser levado pela auxiliar de educação ate a sala dela para receber uma bela lições de moral. Não sei bem porque, mas aprendi mais com elas nesse tempo do que com qualquer professor. As historias que elas contavam, faziam me ficar em silencio enquanto os meus olhos se esbugalhavam ao mesmo tempo em que sorriam de admiração e carinho por elas. Eram gente do povo, humildes e de pouca sabedoria. Tudo que sabia era genuíno e como eu nunca tinha vivido com meus pais, adorava escutar relatos de experiências sobre alguém que tinha uma família. Eram boas mães, ótimas donas de casa e trabalhadoras. Tinham mãos ásperas, rostos queimados pelo sol e pequenas rugas de expressão, que tinham uma beleza típica e popular para mim. Elas adoravam novelas, musica Pimba e o Quin Barreiros. Quando falavam ou se riam seus ecos se faziam escutar pelos corredores da escola. Quantas vezes elas corriam de um lado para outro, como crianças desengonçadas, para nos socorrer. Recordo-me com saudade de cada uma delas e ate hoje, seria impossível esquecer o rosto de alguma delas, mas por mais incrível que possa parecer, a grande maioria dos rostos dos meus professores se apagaram de minha memória para sempre. Por mais que tente não consigo me recordar deles, afinal de contas, eles entravam nas salas de aula, escreviam e expunham apenas à matéria que tinham que transmitir. Quanto a nós alunos, parecíamos robôs programados para aprender e dizer apenas um bom dia ou boa tarde. A única professora que me cativou, foi à professora de português do sexto ano. Ela deveria ter os seus quarenta e poucos anos, era loira com algumas mexas de cabelos brancos, tinha em torno de 1.70 de altura e era bem magra. Nesse ano que ela nos deu aulas, os meus colegas de turma disseram-me bem no principio que ela era muito ríspida e que não suportava barulho na sala de aula, mas desde primeiro dia em que ela pôs os pés na sala, ate o ultimo dia de aula, ambos mantivemos uma comunhão mutua. Posso não ter aprendido nada de português, mas a sua natureza cativava-me bastante, ela transmitia o conteúdo calmamente, relatava os assuntos dentro de uma linha de pensamento transcendental que dificilmente os adultos compartilham com os mais jovens e isso me fascinava. No ultimo dia de aulas ela ofereceu-me um pequeno radio portátil negro com auscultadores para levar comigo na minha primeira viajem que eu fiz pela


Europa. Quando regressei de viajem fui à escola para rever, mas ela tinha sido transferida para outra unidade bem mais distante fora do distrito do Porto e desde essa época eu nunca mais a vi.

RETALHOS DA VIDA

Durante toda noite fui afligido em meus sonhos por imagens de infância. Como não conseguia dormir peguei um pequeno caderno e comecei a descrever, por alto, um pouco sobre a minha vida já que esta essa foi à única forma que encontrei passar melhor o tempo. Ao mesmo tempo em que as palavras iam começando a ser transcritas no papel, um emaranhado de lembranças invadiam a minha memória, então resolvi reviver um pouco a época conturbada em que vim ao mundo. Meu país ainda se encontrava sob o domínio de uma ditadura fascista, que forçou uma grande parte da população a viver em condições existenciais precárias. Juntamente com os meus irmãos acabei por enfrentar as fortes conseqüências desse período. Em 25 de abril 1974, o regime de Marcelo Caetano foi derrubado pelas forças armadas e ele acabou por ser deportado para o Brasil, aonde veio a falecer em exílio. Em Portugal começaram a surgir novas idéias políticas, que geraram reformas constitucionais e deram fim à guerra de Ultramar, principiando a descolonização e independência de Angola, Moçambique, Guiné-bissau, dentre outras, mas o povo receando uma rebelião devido ao colonialismo que durou aproximadamente 500 anos, acabou por abandonar as colônias e imigrar para um país que até então pouco ou nada lhes dizia, gerando com isso uma crise a nível nacional. Quanto a minha família da parte materna ela é oriunda do centro de Portugal, precisamente do Ribatejo. Meu bisavô que era professor catedrático, por volta do ano de 1870, recebeu uma preposta de trabalho do estado para vir dar aulas na cidade de Lisboa. Deste modo ele e toda sua família fizeram as malas e mudaram para a capital do pais, onde passaram a residir em Campo de Orique, que por essa altura não passava de um pequeno vilarejo povoado por casas localizadas em volta do Cemitério dos Prazeres. Ali viveram aproximadamente por mais um século e como a vida lhes sorrio, ele pode por alguns dos seus filhos no Colégio dos Salesianos. O meu avô foi um dos felizardos que teve a oportunidade de estudar lá. Anos mais tarde terminou seus estudos na escola náutica e dando continuidade a sua carreira militar e por conseqüência viajou por todo mundo. Em 1935 conheceu aquela que veio a ser sua esposa e com ela teve três filhos, duas moças e um rapaz que faleceu ainda jovem. Como meu avô era um pai ausente, suas filhas acabaram por se tornarem independentes muito cedo. Com poucos estudos e num país governado por uma ditadura fascista, minha tia imigrou para França em busca de melhores oportunidades de vida. Quanto a minha mãe, por aqui ficou e por falta de opção acabou como empregada domestica, mas certo dia fartara se de tudo e todos, conheceu um senhor que a levou para a prostituição e foi a partir daí que a sua vida entrou em declínio. Quando ela quis abandonar essa vida já a sua juventude tinha passado, então, na miséria total e


com quatro filhos, ela acabou por ter que mudar para o Porto. Devido às más condições financeiras foi obrigada a viver num cômodo na zona da Ribeira. O prédio era demasiado úmido, velho e tinha cerca de aproximadamente 20 famílias que lá viviam e que também dividiam um banheiro sem chuveiro, fato que nos levava a utilizar a janela existente no quarto para despejarmos as nossas necessidades fisiológicas, já que a mesma era de frente para o rio Douro. Foi por essa altura, que pela primeira vez, recebi a visita do meu avô paterno, que tinha vindo da Suécia para nos conhecer, o que me pareceu indiferente naquele tempo porque só tinha dois anos de vida. Devido às condições do ambiente e exposto a umidade existente, acabei por contrair uma forte pneumonia, que me deixou hospitalizado por um período aproximado de dois anos. Já com quase quatro anos de idade e recém recuperado, minha mãe decidiu regressar a Lisboa. Mais uma vez em Lisboa fomos viver para os Anjos e como ela ganhava pouco, nos deixava numa pensão enquanto ia “ganhar a vida”. Por essa altura éramos muito pequenos e cada um se virava como podia. Normalmente era o meu irmão mais velho que tomava conta de nós, mas já devem estar a imaginar como é uma criança de 12 anos a tomar conta de outras três: eu, a Susana e a Raquel. Por essa altura nós queríamos o colo materno e por ser mos tão pequenos e frágeis, chorávamos por tudo e por nada, incomodando os inquilinos da pensão. Certo dia as pessoas da pensão decidiram que não estavam para agüentar tal coisa e chamaram a policia enquanto a minha mãe estava fora e nos levaram para o orfanato da Mitra, que fica em Marvila. Creio que por volta do ano de 1976. A nossa mãe ainda tentou, por diversas vezes, nos tirar de lá, mas foi tudo em vão, pois a vida que ela levava, de acordo com as autoridades, era uma vida que não dava estabilidade a uma família, uma vez que se submetia a prostituição para nos sustentar. Uma das primeiras coisas que me recordo na Mitra é de que dormíamos todos em um grande dormitório. Meninos de um lado e meninas do outro. Para ir ao quarto de banho tinha que passar por um corredor no qual havia no chão um pavimento em vidro. Recordo-me que numa certa noite, enquanto me encaminhava para o quarto de banho, ao passar por esse mesmo pavimento, reparei que um dos vidros estava quebrado; senti certa curiosidade para ver o que havia, mas antes não tivesse espreitado, pois durante anos essa mesma visão me perseguiu. O que vi, foi nada mais nada menus do que um morto dentro de um caixão e ao seu lado uma viúva que o velava com prantos e lagrimas. A partir desse dia nunca mais fui o mesmo e a noite eu preferia urinar na cama a ir ao quarto de banho e assim fiquei até aos meus 15 anos. Por mais que alguém tentasse acordar-me durante a noite, eu não conseguia evitar. Há coisas que nos acontecem e que nem mesmo sabemos o porquê. Certo dia a minha mãe foi me visitar e está foi à única vez em que me recordo de têla visto. Confesso que tive medo dela, acho que foi devido ao fato de ter ficado ali sempre fechado e sem contacto algum com o mundo exterior. Era moço e vivia apenas com moços, que como eu não tinha quem pudesse cuidar de nós, éramos apenas crianças abandonadas num lugar que o povo dava por nome de “contentor humano”. Recordo desse dia como se fosse hoje: Ela vinha vestida com trajes hippie, saltos muito altos, calça a boca de sino, cabelos compridos e uns grandes óculos que envolviam todo o seu rosto, para não falar nos seus lábios com um vermelho bem garrido.


Hoje pode parecer natural, mas naquela altura, como o país era muito atrasado, quem se vestia assim era considerado louco, mesmo depois do fim de uma ditadura, que tinha durado aproximadamente quarenta e oito anos. Como eu estava com receio, alguns dos meus colegas me agarraram pelas pernas e braços na tentativa de me levarem para junto dela, desse modo eu me debatia que nem um louco tentando fugir, eles porem ria de mim sem parar. Esse encontro me perturbou de tal forma que durante muito tempo evitava qualquer contato com o sexo oposto. Desse modo o meu primeiro beijo só aconteceu quando já tinha vinte anos de idade e que por incrível que possa parecer a minha primeira relação se deu com uma moça que era divorciada e que tinha dois filhos. Só depois dessa minha primeira relação é que passei a namorar mesmo assim com muita dificuldade, pois a doutrina católica que estava de tal forma enraizada dentro de mim, me impelia a creditar que tudo era pecado. Outra prova que tive que enfrentar foi a de ir à escola, pois no caminho tinha que passar por a tal casa mortuária. Para um adulto parece ser a coisa mais comum do mundo, mas para mim que era apenas uma criança, morria de medo cada vez que passava por lá, ou então esperava por os meus colegas. Foi só passado um ano e meio que acabei por sair do jardim infantil e desse modo nunca mais passei por esse trajeto aterrorizante. Entrei assim para setor só de rapazes. Todos nós éramos pobres, as roupas que tínhamos no corpo eram dadas por varias instituições e só as trocávamos uma vez por semana. Recordo-me que havia uma sala, com uma mesa de cerca de dois metros por um e meio aproximadamente, onde um agente da policia com um lençol branco amarrado pelas pontas despejava as roupas. Ele abria-o sobre a mesa e cada um tinha que se virar como podia. Era uma confusão tão grande que se não nos apressássemos levávamos apenas o que sobejava. Ouve alturas que cheguei a andar com calças bem largas e muito raramente calçava meias, quanto aos meus sapatos eram sempre apertados e velhos. Deste modo durante a semana íamos trocando uns com os outros, pois era impossível estar vestido naquelas condições. Quanto à higiene, cada um de nós recebia um pedaço de sabão azul e os nossos banhos eram assim. A propósito nessa época nunca me lembra de ter escovado os dentes, só anos mais tarde quando entrei noutro colégio é que me dera uma escova e a famosa pasta por nome “Couto”. Os rapazes da Mitra eram muito problemáticos e o pior deles era o Caolho, que adorava lançar pedras nas nossas cabeças. Certa altura, já adulto, fui com um amigo a Mitra e dei de cara com ele. Estava tão mudado que só o reconheci por causa da expressão do seu olhar. Não lhe disse nada, pois senti certo receio em fazê-lo. Acho que ele trabalhava lá, mas não estou bem certo sobre isto. Continuando o meu raciocínio recordo: que antes de nos irmos deitar ficávamos numa sala onde todos ficavam forçadamente sentados, de frente para televisão, sem poder falar ou rir. De todas as coisas absurdas que passei na minha vida, está foi sem duvida à pior, pois quem abrisse a boca para falar ou rir ficava de castigo. O castigo era bem duro: ficar de joelhos virado contra a parede e o pior de tudo era que, quem tomava conta de nós eram os rapazes mais velhos, que faziam questão de abusar dos mais novos. Passei por muitas outras experiências dolorosas e alucinantes, que só de me lembrar me dá arrepios, mas também tive experiências positivas. Foi nesse mesmo orfanato, que tive meu primeiro contato com a arte, acho que por volta dos sete anos de idade. Esse contato se deu em uma verificação de nível de conhecimentos adquiridos pelas crianças, onde o intuito da


assistente social era medir a capacidade artística de um determinado grupo de alunos, no qual eu estava inserido. Com uma quantidade de argila, pude retratar uma imagem tridimensional de um elefante, causando desde então a primeira expressão de espanto diante dos meus colegas ao constatarem a perfeição do meu trabalho. Também me recordo, com um misto de pesar e alívio, do dia que meu irmão foge do orfanato, para passa a residir no Colégio que ficava no centro da cidade do Porto. Anos mais tarde o meu pai me tirou da Mitra e me levou de comboio para o Porto para poder estar mais perto de meu irmão. Só que o padre que era também o diretor dessa instituição não tinha sido devidamente informado da minha transferência. Por isso fora obrigado a levar o caso ao tribunal de menores do Porto. A minha sorte foi que o padre era uma pessoa boa, desse modo ele acabou por responsabilizar se pela minha tutela até que completasse os 18 anos. Foi por essa altura que passei viver uma nova experiência de vida, que não foi menos traumática, principalmente nos dois primeiros anos, pois sofria constantemente agressões por parte das gangues da Rua Escura e das Fontainhas, que freqüentavam a mesma escola que eu. O meu irmão também não ficava a trás, devido à falta de paciência que tinha para comigo, me agredia constantemente e ate sei que não fazia por mal. Comecei desse modo a refugiar-se nos desenhos como forma de não ter que encarar a dura realidade que estava a ser submetido, por isso acabei por perder o interesse pelos estudos e passei, a partir dai a dedicar-se quase que totalmente arte. Só anos mais tarde é que descobri o prazer de se pintar uma tela. Por essa altura mal sabia o que era arte e nunca imaginava poder me tornar artistas, mas arte estava-me no sangue ou na alma e desenhava ou pintava como louco porque era o que de melhor sabia fazer.

No colégio da cidade do porto a vida era desta forma: Acordamos por volta das sete horas da manha, o monitor que estava de serviço batia palmas e passava por cada quarto mandando-nos levantar. Fazíamos a nossa toalete e nos vestíamos para irmos tomar o café da manha, mas antes tínhamos que ir de dois em dois a carpintaria pegar um cesto de lenha para o fogão da casinha. Depois disso entravamos no refeitório e comíamos um pedaço de pão e café com leite. Alguns iam para a escola, localizada fora do colégio, outros tinham que fazer limpeza, varrer os corredores e banheiros e os demais tinham que ir para a encadernação, tipografia ou carpintaria. Eu normalmente ia para a encadernação durante toda a manhã para dobrar folhas ou alcear cadernos, para fazer blocos de recibos. Às vezes chegavam livros para encadernar e dentre eles, centenas de diários da republica, que só de ver dava desespero e vontade de chorar, pois tínhamos que coser os livros a portuguesa ou a francesa por horas a fio. Por volta do meio dia o senhor Joaquim tocava o sino e todos nós, em fila indiana, entravamos no refeitório para almoçarmos. Após o almoço, alguns iam para a escola e os outros para os postos de trabalho. Como a escola era fora do colégio saiamos sempre em grupo, afim de que os alunos dessa mesma escola não implicassem conosco. Eles me causavam medo e raiva, pois tinha sempre que procurar uma forma de fugir deles para evitar confrontos. Com o passar dos anos eles me deixaram em paz debaixo de muitas lutas e sacrifícios, mas voltando a rotina do colégio, como o jantar era às oito horas, tínhamos que ir para a sala de estudo das 18 ate às 20 horas e só depois quando sino tocava sairmos


para jantar. Os monitores não suportavam conversas nos horários de refeição, porque fazíamos muito barulho. Quando isso acontecia nos colocavam de castigo por aproximadamente duas horas sem podermos falar. Se nos comportássemos devidamente íamos para o recreio até as 22 horas, retornávamos a sala de estudo onde ficávamos até as 23 horas e só depois é que íamos descansar. Como eu urinava na cama ficava num quarto com uma só cama, com janela que virada para o rio douro e com vista para a cidade Vila Nova de Gaia. Na verdade, da janela do meu quarto eu tinha uma paisagem deslumbrante que me fascinava. No fim de semana era diferente, principalmente no dia de domingo. Levantávamos às oito horas para irmos à missa e só depois é que tomávamos o pequeno almoço. O restante do dia podíamos brincar, mas na hora do almoço, antes de sairmos do refeitório, cada um recebia uma pequena mesada entre cinqüenta a cem escudos, dependia da idade de cada um. Na parte da tarde saiamos para darmos um passeio pela cidade. Essa é uma das boas lembranças que guardo comigo. Normalmente saia sempre com o Nelson, o Jerônimo e a Adelino ate a beira do Rio Douro que tanto amávamos, pois foi o palco principal de todas as nossas aventuras durante anos. Certa vez decidimos subir a ponte D. Maria Pia, pelo arco principal junto à margem esquerda do rio. Hoje confesso que foi uma grande asneira, pois se algum de nós tivesse caído, a ventura se transformaria em tragédia para o resto de nossas vidas. O Nelson cresceu e concretizou o seu sonho de ser goleiro. O Jerônimo tornou se diretor do colégio e morreu tempos depois, o Adelino, que adorava brincar de policia e ladrão, acabou por entrar mesmo para a academia policia militar, permanecendo lá ate aos dias de hoje. Quanto a mim, bem... Acho que virei um andarilho e com relação aos meus sonhos de menino, pouco ou nada podia concretizei, mas sem sombra de duvida tive uma boa experiência no colégio, que contribuiu para a formação da minha personalidade e me marcou profundamente, devido às amizades que fiz durante todo esse período. Até hoje mantenho contato com alguns deles por cartas e e-mails, principalmente com o Nelson. O meu irmão, após ter saído do colégio tornou se homossexual e foi viver para Paris. Ao fim de uns anos contraio AIDS e morreu quando se preparava para fazer seus 30 anos. As minhas irmãs dispersaram e constituíram família. Atualmente tenho cerca de oito sobrinhos e nenhum deles teve que viver em orfanatos ou colégios. Aparentam ter boa saúde e tem tudo que nenhum de nós teve a oportunidade de ter: amor, muito amor. Eles Adoram-me e a recíproca é mesmo verdadeira, mas geralmente não nos vemos com a freqüência que gostaria, porque vivo a 360 km da cidade do Porto, precisamente em Lisboa. Após a minha saída do colégio fui viver com uma de minhas irmãs, nos arredores do Porto. Como os anos eram maus eu e meu cunhado decidimos ir para o Reino Unido em busca de melhores oportunidades de vida, o que infelizmente não aconteceu, pois estávamos em situação ilegal no país e também não dominávamos o idioma. O meu cunhado retornou a Portugal e eu decidi viajar pela Europa para conhecer alguns países, tais com França, Holanda, Itália e Alemanha, onde fiz uma grande amizade com um professor catedrático e residi em sua casa em Munique por um período de meio ano. Ele ensinou-me o idioma inglês e despertou em mim o gosto pela leitura. A partir daí fui desenvolvendo as minhas capacidades intelectuais e culturais com muito mais empenho e maior desenvoltura, principalmente no campo das artes. Tornei-me assim um autodidata e aprendi o espanhol e um pouco francês. Aprofundei-me na literatura e nas artes, em


especial a do século XIX e XX. Prolonguei esses estudos por mais sete anos e acabei por descobrir o mundo fascinante do saber ao compartilhar idéias com vários artistas e também visitando alguns museus da Europa. Grande parte do meu conhecimento se deu informalmente, através do gosto pelas biografias dos grandes mestres conceituados, tais como Claude Monet, Vincent Van Gogh, Munch, Modigliane, Picasso, Pollock, dentre outros. Quanto à leitura, sempre trazia comigo alguns livros: de Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Freud, Fernando Pessoa, Eça, Jorge Amado e Emile Zola por estar relacionado com a corrente impressionista. Freqüentemente também mantinha diálogos com intelectuais em vários cafés e durante esse mesmo período viajei diversas vezes com o intuito de aperfeiçoar a minha arte. No meu regresso a Portugal passei mais uma vez por Paris e vivi por um tempo na Rua Lepic no apartamento que era de um grande amigo. Tempo depois me dirigi à capital espanhola, com o propósito de contemplar grandes obras dos pintores espanhóis: Picasso, Dali, Miró dentre outros como Velásquez e Grego. Já em Portugal retornei a casa da minha irmã, tomando conhecimento que o meu cunhado encontrava-se trabalhando no Iraque, onde permaneceu por um período de sete meses, mas devido a conflitos religiosos naquela nação foi forçado a regressar. Após o regresso definitivo do meu cunhado, por razões de incompatibilidade que se tornaram ainda mais freqüentes, decidi deixar a casa da minha irmã e me sujeitei a viver com meus companheiros de trabalho em uma obra, que não me oferecia às mínimas condições de vida. Nesse mesmo ano foi convocado pelas forças armadas para apresentar-me a uma inspeção, da qual vim, a saber, mais tarde, que passei a reserva territorial devido a excesso de contingente. Foi no período compreendido entre os 18 e 20 anos, que passei uma das piores fases da minha vida, pois não me conseguia entender com as minhas irmãs e por essa razão tive que me sujeitar aceitar um trabalho duro no qual era explorado, pois trabalhava sem direitos para um sobem preiteio que às vezes nem paga. Isso desencadeou em mim uma grande depressão, que me levou a tentar suicídio. Depois de tantos dissabores retornei, mais uma vez, a casa da minha irmã, onde acabei por conhecer através dela, uma denominação evangélica da qual me tornei membro. No final do ano de 1991 concorri a uma vaga no ministério da educação, visando uma estabilidade financeira, acabei por conseguir uma vaga em Lisboa e por lá fiquei cerca de 10 anos como guarda noturno. Em Lisboa, passei a viver no Vale da Amoreira, juntamente com uma comunidade de africanos de Guiné-bissau e de Angola, tendo sempre que me deslocar de ônibus, barco e metrô para chegar ao trabalho. Certo dia ao cruzar a Rua Augusta, acabei encontrando um grupo de artistas plásticos. Dentre eles conheci aquela que viria a ser a minha futura esposa. Mal casei adoeci e foi submetido a uma cirurgia de pneumotórax espontâneo num hospital de Lisboa e fiquei impossibilitado de trabalhar por algum tempo. Juntos, compra mos um pequeno apartamento em Sintra e um ano depois nasceu um filho, o qual recebe o nome de Israel. Divorcie me passado sete anos e larguei tudo e viajei para a América Latina aonde fui residir no centro de São Paulo. Ficando por ai um tempo fazendo exposições e participando de vários inventos culturais, por vezes era convidado para dar palestras sobre arte em universidades e juntamente com vários artistas fundamos um movimento no qual debatíamos assuntos sobre tudo que dizia respeito à globalização, o qual demos o nome: “Movimento Artístico os Globalistas do século XXI”. Escrevi vários artigos do âmbito


cultural para jornais e revistas. Visitei alguns museus e o museu do MASP na Avenida Paulista, era para mim paragem obrigatória. Uma vez em cada mês ia lá para contemplar as obras dos grandes mestres da pintura, tanto Brasileiros como Mundiais. Desse modo acabei por me fascinar pela arte brasileira e seus pintores: Portinari, Aldemir Martins, Di Cavalgati e Tarsila de Amaral e tantos outros. Quanto à literatura brasileira o meu preferido é sem duvida “Os capitães da areia” ou meninos de rua do escritor Jorge Amado. Como a pintura por essa época me começou a dar algum lucro, decidi viajar pela América Latina de ônibus, dessa forma poderia conviver direitamente com o povo e compreender suas raízes. Passei por Rio de Janeiro e fiquei alguns dias em Copa Cabana na casa de uma escultora que tinha conhecido num evento em São Paulo. Dali, tomei um ônibus com destino a Foz do Iguaçu e cruzei a fronteira, entrado deste modo no Paraguai com destino a cidade de Asuncion onde fiz alguns contatos com índios locais, chamados de guaranis. Recordo que passei um mau bocado por lá, pois o meu cartão de credito não era aceito em nenhuma das caixas. Graças a um pastor evangélico não tive uma pior sorte. Ele me ajudou imensamente e por isso e muito mais que fez por mim, lhe sou muito grato. Dali para a Argentina era só atravessar um rio, então entrei em uma embarcação em Asuncion com destino a segunda maior metrópole da América do Sul: Buenos Aires e por lá fiquei cerca de um mês, a contemplar sua arquitetura e seus dançarinos de rua, Dos quais fiz alguns esboços para futuras telas que acabei por vender anos mais tarde em Portugal. Saindo de Buenos Aires fui para Montevidéu no Uruguai para conhecer a belíssima baía, pela qual saem e entram todos os dias às mercadorias que se importam e se exportam para todo mundo, em especial a da rota do Mercosul. No Peru estive em Lima e de lá tomei um trem ate a cidade sagrada, mais conhecida por cidade montanhesa de Machu Pichu ou “cidade perdida dos Incas”. É uma cidade pré-colombiana e bem conservada, localizada no topo de uma montanha a 2400 metros de altitude, cercada por outras montanhas e circundada pelo rio Urubamba, que lhe proporciona uma atmosfera única e de grande beleza. Testemunho disso são as muitas fotografias que por lá tirei. Na Bolívia aproveitei para passar na casa de um grande amigo, Fernandez Gonzáles, que vive em Nuestra Señora de La Paz ou simplesmente “La Paz”. Recordo-me que o conheci numa praia em Faro. Ele fazia tatuagens aos turistas que por lá passavam. Quando me viu em La Paz ficou surpreendido e me convidou a ficar por um tempo com ele e com a sua numerosa família, que vivem no bairro San Antonio. Por essa altura ele se encontrava desempregado, por isso fez questão de me levar a conhecer a sua cidade. Fomos a vários lugares: o Valle de La Luna, Palácio Legislativo do Governo e por fim a belíssima Catedral de Nossa Senhora de La Paz com os seus numerosos Portões, que se já não me falha a memória são nove. Antes da minha partida fui com ele no centro para contemplar a imponente Igreja de São Francisco. Despedi-me dele e atravessei a Colômbia com destino à Venezuela e seguindo os contornos de um estreito vale montanhoso, acabei por chegar à cidade de Caracas onde fiquei 7 dias no Hotel Ávila. Durante o tempo que estive em Caracas aproveitei para conhecer a cidade: tomei o metro e fui ate o Capitólio Nacional, que ocupa todo um quarteirão com os seus domos dourados e de arranjos neoclássicos, fui também ao Parque Del Este, que fica mesmo no centro da cidade. É um paraíso verdejante com um pequeno zoológico cheio de animais exóticos vindo de todas as regiões do país. Uma das coisas que mais me fascinou foi à réplica do famoso navio, guiado


por Cristóvão Colombo, o Santa Maria, localizado na parte sul do Parque e que nos dá uma vaga idéia para compreensão da sua maravilhosa viajam com destino ao novo mundo. Por fim fui de barco a República Dominicana e a Cuba, aonde tive o privilegio de ver Fidel Castro numa praça a discursar. Recordo-me que só em Cuba tirei mais de cento e cinqüenta fotos. Cada uma mais bela do que outra. Voltei para Brasil e fui residir numa pequena cidade por nome de Ipubi, no estado de Pernambuco, mas após quatro anos cansei-me de tudo e voltei à pátria num vôo direto de S. Paulo com destino a Lisboa. Na minha mala trazia algumas telas enroladas que dei por título, período verde e amarelo. A minha espera estava o Wando meu grande amigo. Atualmente é formado em psicologia, tem um consultório nas amoreiras, casou com uma sueca e tem já dois filhos. Há uns anos atrás éramos amigos inseparáveis, pois por essa altura ele dividia o seu tempo entre os estudos e o trabalho e de vez em quando saiamos com um grupo de amigos para irmos tomar uns copos lá no bairro alto ou então quando havia um feriado na sexta feira íamos todos de carro para regiões remotas. Foram momentos únicos que a mente jamais se atreve apagar, lugares paradisíacos que ao fim de uns anos nos fazem sonhar continuamente com eles. O Wando triunfou, mas nunca se esqueceu de mim, ao contrario da maioria das pessoas que após atingir uma meta, engradassem a si mesmo e escolhem as pessoas que mais se identificam com seu novo padrão de vida. Já não o vejo com tanta freqüência, mas não me atrevo a importuná-lo, afinal tem uma família encantadora e o seu trabalho o prende de tal maneira que pouco lhe resta para si.


OBJETOS ÚNICOS

Subitamente sou despertado do meu devaneio pelo som do telefone. Era a esposa do amigo do Pedro, que ligou para me fazer um convite irrecusável: expor algumas de minhas pinturas na sua galeria e, embora não tenha demonstrado, fiquei extasiado com o convite inesperado e a possibilidade de um recomeço bem sucedido. Combinamos de nos encontrarmos no galeria, lá Chiado, dentro de aproximadamente dois dias, pois ainda tinha que organizar o material para ser exposto e selecionar as telas mais significativas, já que possuo uma quantidade um tanto numerosa,s se bem que o portifólio feito meses atrás me ajudaria e muito a escolher as pinturas mais adequadas para serem expostas. Levantei-me subitamente, com animo revigorado e uma alegria latente, que mal conseguia disfarçar. Durante todo dia me detive ao trabalho minucioso de seleção e reparos, pois algumas telas precisavam de alguns retoques, devido ao desgaste do tempo e as muitas mudanças que fiz ao longo do tempo. Vivia mudando de apartamento, porque viver sempre no mesmo ambiente me causava tédio, monotonia e desolação. Comecei a olhar as telas inertes à minha frente e um frenesi tomou conta de mim, pois há muito tempo que não as admirava. Observei-as demoradamente e sem pressa, pois cada uma delas retratava uma historia singular que tinha a magia de me transportar para outros tempos, vidas, sonhos, enfim, para o meu refugio sagrado: minha destemida imaginação. Pela primeira vez reparei que ao longo dos anos cada uma delas variava e muito de tonalidades, revelando o meu estado de espírito. Tive vários períodos: o transcendental, o urbano, verde amarelo e o período negro. Todos eles dentro de uma linha de pensamento cubista com mistura de um leve toque expressivo. As minhas primeiras obras foram em aquarela, mais tarde tentei por varias vezes pintar a óleo e não consegui, pois o cheiro da tempera e o tempo de espera me deixava sempre impaciente, me fazendo mudar de idéias. Às vezes começava uma paisagem que acabava se formando em alo completamente diferente da minha idéia inicial, tanto era o tempo que eu tinha para tentar finalizar minha primeira forma de pensamento, antes que a tinta secasse. Certa altura entrei numa loja dos 300 em Valongo e numa das prateleiras encontrei uma embalagem com tintas acrílicas e decidi comprar para ver o que acontecei, pois também vinha com uma pequena tela e instruções de secagem rápida, fato que me chamou a atenção, pois um dos maiores problemas que enfrentei com relação às pinturas, era a demora da secagem. A partir dai dediquei-me de corpo e alma a pintura acrílica e fiz assim algumas das minhas melhores obras, pois me adaptei muito com o processo dessa técnica. Enquanto estava retocando uma tela reparei num pequeno livro caído num canto; debrucei-me para pegá-lo e percebi que tinha por titulo “À hora dos assassinos”. Era um estudo de Henry Miller acerca do poeta Rimbaud. Recordo-me perfeitamente do dia e do lugar que comprei. Na época namorava uma moça brasileira que era de São Paulo, precisamente da cidade de Diadema. Comprei esse livro numa pequena banca de jornal junto ao terminal metropolitano que faz esquina com Avenida Kennedy e com Rua da Conceição. São estes pequenos objetos simbólicos que trazem ao meu cotidiano alguma alegria. Acendo um cigarro e com um leve sorriso releio algumas passagens que tinha


deixado sublinhadas em vermelho: “Um gênio a procura de emprego: eis aí uma das visões mais tristes deste mundo. Não se encaixa em lugar nenhum, ninguém o quer. É desajustado, diz o mundo”. Isso é uma verdade incontestável, pois tanto Henry Miller quanto Rimbaud foram dois seres incompreendidos no seu tempo e desprezados por a sociedade, mas acabaram por tornarem se imortais por aqueles que em vida nunca os compreenderam. A vida de artista é mesmo assim, nem as próprias mães chegam a entender seus próprios filhos, quanto mais à própria sociedade. Vivemos como na corda bamba e tudo o que dizemos parece absurdo. As nossas palavras ou jeito de vivermos nunca se encaixa com os padrões desta ou daquela sociedade. As minhas irmãs nunca estão de acordo com meu modo de vida e estão sempre me cobrando uma vida estável ou em família. Acho que, de preferência, rodeado de muitos filhos. Não conseguem entender que sou diferente e não é porque queira o deseje, mas simplesmente por não poder evitar ser assim. Este é o meu jeito e assim foi constituída a minha personalidade, sendo assim, para evitar maiores confrontos, evito conversar sobre mim mesmo. Quando alguém me pergunta como estou, digo sempre que tudo vai bem. Saio discretamente e caminho sem destino de um bairro para outro sem pedir licença. O meu segredo é não ter segredo nenhum e gosto de ter a plena liberdade de não ter que dar satisfações aos demais que me observam. Já não tenho paciência para nada. Afinal de contas o que a grande maioria das pessoas quer é saber é se estamos em uma situação ruim, pois adoram ouvir lamentações. Se me predispusesse a confessar as minhas culpas e infortúnios, acabaria por dar asas às suas imaginações e os fazê-los denegrir a minha imagem, então uso sempre uma palavrinha que trago sempre comigo e a repito com freqüência: BASTA, que quando não é respeitado se transforma em um diálogo bem acalorado, pois surgem ai às oportunidades de invasão, que não tolero e passo para a ignorância verbal bem como acusações infundadas: tu isto, tu aquilo e é por ai que surgem à pequena bola de neve que vai crescendo e derrubando tudo que encontra pela frente inclusive o respeito que possuímos pelas pessoas. Gosto muito de um ditado popular que tem seu fundamento: “O silencio vale mais que mil palavras”. Coloco o livro sobre a mesa e pego de novo no pincel para retocar a tela ‘O Café A Brasileira’, que esta a minha frente, pedindo por um toque e retoque. Pintei-a no ano de 2003, no período que estava para me divorciar. Esta tela traz consigo uma longa historia: alguns anos atrás a vendi a um senhor que é proprietário de um estabelecimento de Antiguidades em Alfama e também é pintor. Quando voltei do Brasil fui ter com ele e pedi que gentilmente me trocasse por outras duas, explicando que tinha certa admiração por ela. Ele conhecia-me bem, por isso não ficou de mal comigo e aqui esta ela comigo, pois tem um valor afetivo inestimável para mim. Não a vendo mais por preço nenhum e só a exponho porque me pedem, senão, nem saía da minha residência. Há objetos que são únicos e intransferíveis, os quais jamais conseguimos nos separar deles e este é um destes objetos que sinto que fazem parte de mim. Dentre tantos momentos vividos, tenho um que guardo com muito carinho por ter sido intenso e significativo, não que os outros não tenham sido, pois cada um deles, na sua particularidade, tem um significado único e particular. Bem, mas voltando ao assunto, recordo uma época, acho que por volta do mês de março, no colégio em que era preparado uma festa em homenagem a São José. Eu Deveria ter os meus 12 anos quando fui convidado a participar de uma peça de teatro, embora o meu papel fosse pequeno, mas


nesse momento eu nem me recordo muito bem o que ia representar, mas o que verdadeiramente me marcou foi uma sena bastante inusitada: estava sentado na platéia enquanto esperava por a minha vez para atuar e ao meu lado estava uma bela jovem com uma fita lilás em forma de um laço sobre os seus cabelos loiros, detalhe que me chamou muito a atenção. Como não conseguia parar de olhar para ela, acabei por iniciar um hesitante monólogo, que viera a se transformar em um empolgante diálogo minutos depois, interrompido de vez em quando por sonoros shhh, dos que queriam prestar atenção no contexto da peça, o que nos causava risinhos contidos, para não aumentar a fúria dos expectadores. No fim da peça todo mundo foi convidado pelo senhor padre para um lanche. Ela também veio acompanhada por seu pai. Conversamos um pouco mais e acabei por memorizar seu nome: Dalila. No fim percebi que ambos tínhamos sentido algo um pelo outro, pois antes de se despedir de mim, levou as suas mãos ao cabelo, retirou a fita e me ofereceu. Desde ai, nunca mais a vi, mas aquela fita tenho guardada dentro de um caderno ate hoje. Nunca consegui me separar dela devido ao valor sentimental que representa para mim. Não tenho o habito de colecionar nada, mas admiro os que têm, apenas guardo as coisas do coração, aquelas que mexeram de alguma forma comigo. Sei que por entre esses pequenos objetos há algo inexplicável como um segredo, uma historia, um sorriso ou um olhar que se torna imortal. Algumas mulheres acham que a grande maioria dos homens não se apega as coisas do coração, mas essa não é a única verdade absoluta. Eles se não demonstram a importância devidas que essas lembranças representam para poderem prosseguir em frente, mas as mantem guardadas em um lugar de difícil acesso, para não virem à tona com freqüência. É um tipo de camuflagem que usamos para nos proteger. Comigo também não é diferente e eu também utilizo esse tipo de artifício para poder continuar o meu caminho, sem nunca anular o meu passado, afinal, “o nosso presente só pode ser o repensar do passado para melhoria do futuro”. Não adianta virarmos as costas ao passado, mais cedo ou mais tarde ele nos persegue. Quando ficamos velhos tudo a nossa volta passa a girar em torno do passado. A memória é o melhor dos dons que Deus dispensou aos homens e é o que os difere dos seres irracionais. O que seria do ser humano se não tivesse memória? Talvez ainda estivéssemos no tempo das cavernas. Este é único legado ou arma capaz de nos elevar e nos fazer denunciar os males do mundo. Os filósofos dizem e com bastante racionalidade: “penso, logo existo”. Nesse caso, se eu penso, eu memorizo, eu sonho, eu crio e creio, por isso, indubitavelmente, o meu viver será registrado por todos aqueles que virão depois de mim. Os que me são próximos não me vêm como sou, me tornei invisível para eles devido ao choque de idéias que gero quando os faço pensar e os obrigo a refletir sobre problemas sociais e sobre assuntos diversos lhes são inatingíveis. A grande maioria não querem ser acordados do estado de inércia ao qual estão condicionados muitas vezes até pelo próprio meio em que se desenvolveu, estão presos as suas idéias conformistas que lhes dão “segurança” para viver mediocremente dentro de si mesmos. Não os censuro por isso, mas sei que posso fazer algo por aqueles que almejam, desesperadamente, compreender o que se passa no intimo das fronteiras que nos separam da ignorância e do individualismo humano. Qualquer ser humano deveria tentar compreender este lema budista, que a vida de cada um de nós é composta por estas duas ações: Miséria e ignorância. Se não conseguimos enfrentar estes dois grandes obstáculos jamais poderemos saber qual é o verdadeiro significado da vida, porque em parte eu creio, que os grandes males do mundo venham também daí.


Não sei bem ao certo em que ponto o meu individualismo deu lugar ao meu altruísmo, mas penso que foi durante a expedição pela América latina, ao ver a decadência político-econômico que assolou Buenos Aires anos atrás. Foram cenas chocantes que presenciei. Era uma manhã de domingo quando me dirigia à estação de metrô e repentinamente, uma multidão se fez ouvir a poucos metros. Eles se destinavam ao comercio mais próximo em busca de bens essenciais. Saqueavam açougues, supermercados e tudo que lhes fornecessem alimentos. A cidade outrora turística se encontrava caótica. Diante desta situação meu coração batia aceleradamente, temendo pela minha própria vida. Ao mesmo tempo sentia-me solidário para com as pessoas que enfrentava tamanha crise. Devido à paralisação e sem meios de transportes alternativos, telefonei para casa de uma amiga que tinha conhecido em Espanha alguns anos atrás e como ela mora próximo dali, cerca de um ou dois quarteirões, pedi ajuda e ela se prontificou a vir ao meu encontro. Já de volta a segurança da sua casa, um turbilhão de pensamentos e emoções conflitantes me invadiram de tal forma que passei horas a fio tentando entendê-los. Depois do momento conflituoso viera os questionamentos: como um país de uma política ate certo ponto estável, poderia entrar em tamanho colapso? Após um pouco mais de reflexão, entendi que até certo ponto globalização estava por trás de tamanha ruína. O que a priori vem com uma linda filosofia de desenvolvimento e crescimento simultâneo entre diferentes classes sociais, traz consigo o mecanismo de enriquecimento demasiado dos que já estão no topo da pirâmide social. Em que bases consistem a globalização senão no beneficio e interesses dos donos do mundo. O ser humano é demasiado interesseiro para poder compartilhar alguma coisa com o seu semelhante ou com quem quer que seja. O exemplo disso esta patente aos nossos olhos, quando os americanos invadiram o Iraque se desculpando da pior forma possível e vergonhosa. Ninguém conseguiu lhes fazer frente, para lhes dizer basta. Todo mundo sabia que seu o único objetivo se centrava nos poços de petróleo, contudo milhares de inocentes sofrem ate hoje as cicatrizes dessa guerra e não é de admirar que o povo árabe se revolte e se defendam contra seus invasores como podem. Eu também faria o mesmo por minha nação, lutando com todos os meios que tivesse ao meu alcance, mas enfim, este mundo no qual vivemos nos transforma em autênticos cegos, surdos, mudos e incapazes de fazer frente às injustiças, principalmente quando estas não nos atingem diretamente. O mundo caminha para o precipício e o aquecimento global assusta-nos, mas os que têm o poder em suas mãos nada fazem para minimizar tais danos. Na televisão a mídia bombardeia-nos constantemente com estas noticias e eu me interrogo se é com objetivo de nos conscientizar. Acho que nos encontramos de mãos atadas e a nossa voz não consegue submergir. Existindo apenas um grupo aqui e outro ali, mas eles não passam de um punhado de corajosos, tentado fazer frente contra um sistema corrompido mundialmente. É urgente despertar antes que seja tarde, mas é lamentável que para podermos despertar, atualmente começamos sempre por cima, quando na verdade deveria começar por debaixo, como quem lança a semente sobre a terra e espera pacientemente o desabrochar. Existe uma musica portuguesa, cuja letra diz o seguinte: “... não me venha pedir contas... vocês fizeram o mundo assim...”. Por este caminhar o único legado que vamos deixar para os nossos filhos, será um álbum de fotos antigas e nada mais do que isso, ou talvez quem saiba pedras e ferros contorcidos. O povo esta cansado de mitos ou de palavras repetidas que não os leva alugar nenhum. Porque as palavras? Que as levem o vento, mas ate que ponto o vento terá capacidade de se transformar em ação? A ação gera


ação, mas as palavras nada mais são do que meras palavras. O vento vem e vai e a única ação que se tem conhecimento atualmente é a da palavra destruição. Há palavras que nunca foram escutadas ou lidas em silencio, pois se tivessem sido, por certo haveria mais riqueza e intelecto nas pessoas. Que é feito da palavra esperança? Acredito que um dia o vento nos pegará de surpresa, mas só espero que não venha a ser tarde demais. Deixemos de palavras e passemos das palavras às ações, pois só assim, as nações podem obter o devido progresso.


A GALERIA

Dia 23 de março logo pela manha um raio de luz reflete sobre meu quarto. Durante toda noite não consegui dormir, dei voltas e voltas na cama e só adormeci La pelas quatro horas da manhã. Não conseguia deixar de pensar em quais telas deveria levar para a galeria. Tenho uma entrevista marcada para duas da tarde, mas pouco ou nada fiz e como não tenho carro terei que levar algumas telas debaixo do braço. Na verdade já me habituei a esta rotina e tirando as decepções pouco tenho que me queixar, já que o habito faz o monge. Antes de sair tomo um banho, aparo a barba e enquanto um pouco de água ferve para fazer um café, vou lavando a louçã que se juntou. Esta é uma das vantagens que se tem quando se vive só: podemos adiar certas coisas do nosso dia-a-dia sem que exista alguém que repare em tudo que deixamos de fazer. Afinal, mesmo que a vida seja apenas um dia, acredito que se não fugir de certas rotinas acabo por me aborrecer facilmente. Uma das coisas que precisava fazer era cortar o cabelo, mas como tenho sempre poucas economias, estou sempre a adiar. Tomo o café da manha e acendo um cigarro, releio um livro por apenas 30 minutos. Depois junto cinco telas, o currículo e algumas fotos que escolhi do meu portifólio. Como ainda é cedo, ponho as mãos ao trabalho. Retoco uma das telas que se encontra em más condições e termino o retrato que recebi de encomenda. Só espero que gostem, pois fazia me falta mais algum dinheiro. O relógio da sala marca meio dia, pego as telas e saiu. Desço a escadaria e em poucos segundos encontro-me na rua, o céu encontra-se limpo e a tasca que faz esquina com meu apartamento esta repleto de gente. Passo despercebido e como tenho algumas moedas no bolso, vou ate a paragem do elétrico para apanhar o 28 com destino ao largo do Camões, que fica no Chiado. Desta vez tive um pouco mais de sorte, pois o elétrico acabou mesmo de chegar, mas há alturas que demora tanto tempo, que mais vale fazer o percurso a pé. Entro, pago o bilhete e abro caminho por entre a multidão. Os batedores de carteiras andam a solta, mas não tenho que me preocupar, estou completamente falido e já conheço alguns deles de vista, afinal só os turistas é que não os conhecem. Coitados, ate dá pena ver quando eles se dão conta que foram roubados. Chegando ao largo do Camões, olho para o relógio e reparo que tenho ainda algum tempo, desse modo entro no Café A Brasileira e ainda mal estou a entrar há alguém entre a multidão que me faz sinal. É a Lílian uma amiga de longa data e descrevê-la não é tão fácil já que ela pouco ou nada fala sobre si mesma. Apenas sei por alto e o que me contaram, que ela cansada da vida de casada, um dia abandonou o esposo e passou a compartilhar com uma senhora de idade um apartamento no Bairro Alto. Sei também que noutros tempos era professora nas Belas Artes, mas que devido a um esgotamento ficou incapacitada de trabalhar e o Estado, por sua vez, cedeu lhe uma pequena pensão. Atualmente vive seus dias de café em café, escrevendo poesia e prosa para uma coluna de um jornal Alentejano. Acento me perto dela e enquanto tomo um café ela recita para mim um de seus muitos poemas. A sua voz é arrastada, típica do povo do Alentejo e desde que a conheço


vejo que mantem sempre consigo um pequeno lenço de seda enrolado em volta do seu pescoço. Diz que é para preservar a voz, pois de quinze em quinze dias vai num pequeno bar para cantar o fado e recitar poesias. Quando estou com ela não consigo parar de rir, pois a sua vitalidade me contagia. Ela ainda é das poucas pessoas que consigo escutar sem que me aborreça. Depois de recitar um dos seus poemas, pergunta-me por que estou com as telas e eu lhe respondo que vou a uma entrevista que ficou marcada para as duas da tarde ali mesmo no chiado, então sorri para mim e deseja-me sorte. Enquanto me preparo para pagar o café ela insiste que não, que desta vez quem paga é ela. Encolho os ombros e friso as sobrancelhas com um leve sorriso enquanto me preparo para sair. Olho de novo o relógio e penso que não posso me atrasar mais. Apresso-me a toda velocidade para a galeria que fica a três quarteirões do lugar que me encontro. Encanto caminho choco contra um sujeito, as telas me caem e ele fica bravo comigo. Peço-lhe desculpa e ele insiste que devo tomar mais cuidado por onde ando, enquanto segue o seu caminho. Por fim vejo a galeria do outro lado da rua, atravesso e me dirijo para a porta de entrada, toda de vidro que me convidava a entrar. O espaço era maravilhoso. Nas paredes brancas quadros expostos de vários artistas de renome, fato que me preocupa, pois penso que vai ser difícil fazer frente a este extraordinário currículo de artistas, afinal ainda estou há anos luz para poder competir com os tais. Enquanto observo uma tela, uma senhora vem ter comigo. Paro um pouco e olho para ela encanto pouso as telas a um canto da galeria. Depois a comprimento e digo quem sou e para o que venho. Ela sorri e convida-me a ir ao seu escritório, que fica no andar de cima. Tomo de novo as telas e enquanto me dirijo para lá vou observado de relance às pinturas expostas e se não estou em erro creio que é uma exposição coletiva. No escritório ela me convida para sentar numa pequena poltrona revestida de um coro negro bem macio. Na minha frente há uma mesa de vidro com um computar portátil e uma jarra de cristal com um lírio em tons de fogo. Como não sei o que dizer, lhe entrego o desenho que o esposo dela tinha encomendado. Ela estende as suas mãos delicadas a fim de pegar o desenho e reparo o quão gentil era parece e a meu ver acho que aparenta ter trinta e poucos anos. A primeira impressão que tenho é que ela é extremamente inteligente e de bom gosto. Observa o desenho e sorri, numa só palavra diz que esta, perfeito. Fico em silêncio e as palavras me fogem uma a uma sem que saiba o que dizer. Ela toma a iniciativa de falar em tom suave que sou tímido e eu apenas me limito a responder que sim. Ela sorri e principia um diálogo: - Sabe, o meu esposo esta encantado com todo seu trabalho, não faz outra coisa senão falar de ti para todo mundo. - Obrigado. Respondo eu perplexo e limito-me apenas a escutar cada palavra que vai saído de sua boca. Apetece-me falar, mas por mais que tente, me sinto bloqueado. Isto de se viver sozinho faz de mim um individuo completamente desnorteado, principalmente quando mais preciso. Respiro fundo para reunir um pouco de coragem e por fim começo a falar sobre cada uma das telas que trouxe. O meu cabelo cai sobre os olhos e de vez em quando passo a mão para puxar para cima. Ela sorri e diz que tenho mesmo ar de artista. Encolho os ombros e também sorrio. Ela diz que vai expor todas as minhas telas dentro de um mês e que o vernissage e os convites ficam também por conta dela. Para finalizar, como


já tínhamos combinado o preço do retrato de sua filha, passa-me um cheque, agradece e só ai que fico sabendo o nome dela, pois estava escrito nesse cheque, o qual leio “Kátia Pontes” um tanto desconcertado pela falha cometida e me despeço dela com um sorriso de esperança nos lábios. São agora precisamente três e meia da tarde, os bancos já se encontram fechados e aproveito para ir ao Cais Sodré há lá um pequeno bar de frente para o rio, aonde trabalha um senhor que conheci na igreja. A sua historia não é diferente da dos demais, mas o fato dele ser brasileiro me chamou a atenção. É de Goiás, casado, tem quatro filhos e esta em Portugal apenas para conseguir pagar algumas dividas e terminar a construção da sua casa. Vai para algum tempo que juntamente com o Jonas e outros amigos, chegávamos a ir Belém só para passar as tardes de domingo por lá. Cada um deles tinha uma historia diferente que me cativava. São aquelas historias de imigrantes que terminam sempre do mesmo modo: “E aqui estou eu”. Aprendi muito com cada um deles, principalmente a valorizar a vida e amar os estranhos, sem por em causa o seu modo de se vestirem ou de falarem. Muitos deles passavam privações só para poderem juntar um pouco dinheiro na esperança de conseguirem abrir um pequeno negocio na terra de onde vieram. Como em Portugal a legalização tornou se complicada, alguns partiram para outros países da Europa, como Espanha, Irlanda, Alemanha e Inglaterra. O Jonas ficou um tempo na Irlanda juntamente com uma comunidade de brasileiros, mas regressara para Portugal e decidira ficar por aqui mesmo, na esperança de um dia voltar conseguir o suficiente para se estabelecer no Brasil. Nos dias que ele se encontra de folga e sempre que posso saímos um pouco para passarmos o tempo. Assentamo-nos de frente para o rio, bebendo vinho verde e comendo alguns salgadinhos para que a sua vida não seja apenas trabalho e casa. Ele fala-me com certo pesar que morre de saudades da sua esposa e de seus filhos e de que não vê a hora de partir. O inverno para ele é doloroso, pois na sua terra as temperaturas, independente da estação do ano, são sempre altas. Eu também já estive no estado de Goiás, precisamente em Goiânia, no bairro de Aparecida anos antes, quando fui visitar um amigo brasileiro, que do mesmo modo que ele tinha estado em Portugal a trabalhar. Este ultimo teve pouca sorte. Foi assaltado duas vezes no centro de Lisboa e, uma das vezes teve um revolver apontado na sua cabeça. Levaram lhe todo seu ordenado que tanto lhe custara a ganhar, deixando-o arrasado. Foi nesse período negro da sua vida que o conheci na igreja e o levei para minha casa onde ficou um mês. Como ele tinha um bilhete de ida e volta, fez as malas para nunca mais voltar. Durante um tempo cheguei a falar com ele por telefone e certo dia lhe fiz uma grande surpresa ao aparecer na sua casa. Era humilde, honesto e trabalhador e amava o seu país e se um dia viajou foi porque estava mesmo necessitado. Depois dessa minha viajem apenas soube que ele se tornou cooperador numa igreja evangélica, pois tinha o dom da profecia e nunca mais tive noticias dele. Lamento que muitos portugueses se tornem mesquinhos perante os imigrantes, sempre com uma desculpa ou outra para depreciá-los. Só sabem dizer que eles vem para cá para tomar os seus postos de trabalhos, mas tem memória curta, pois as comunidades de imigrantes ficam sempre com os trabalhos mais pesados e se sujeitam a receber ordenados que seja uma autentica miséria. Se alguns deles conseguem sobreviver é por que são unidos, se agrupam em pequenos apartamentos e dividem entre eles as refeições. Os anos que eu passei de maiores privações foram estes que me socorreram, sem nunca


me deixar faltar nada e tinham sempre uma palavra de esperança para compartilhar. Quando ficava muito tempo sem aparecer, se preocupavam comigo e vinham ao meu encontro. Em Portugal existem três comunidades de imigrantes: os africanos que chegaram nos anos setenta, os brasileiros, por volta dos anos noventa e por fim os do leste da Europa, que chegaram quando o comunismo desvaneceu-se. É impossível ficar insensível e quando paro para refletir um pouco, penso nas lutas que eles tiveram que enfrentam e as lagrimas derramaram por causa de um amanha incerto. Ate quando existirão fronteiras? Será que tudo isto é mesmo preciso? Nós, que dizemos ser do primeiro mundo, não temos o direito de subjugar os outros povos por puro capricho do auto ego que nos foi transmitido por nossos antepassados, já que eles se julgavam no direito de se classificar superiores as demais nações, menosprezando-os pela origem de suas raças e cores, em vez de tratá-los como irmãos. Não adianta mentir para nós mesmo, nem adianta fazer de conta que não somos cúmplices, pois cada um de nós carrega este mesmo ego dentro de si. Se novas mentalidades estão surgindo por todo mundo, também é certo que muitos há que lutam para impedir que tais mentalidades se desenvolvam. Deste modo há três concepções formuladas acerca do verdadeiro sentido da palavra ser: Um deles é determinado por nós mesmos, originado da forma de sermos o que pensamos que somos; a outra é determinada pelo que os outros pensam que nós somos e a que mais se aproxima do verdadeiro SER é o que realmente nós somos. Desde a nossa infância até o presente momento, toda a nossa personalidade, tanto moral com ética, se baseia nessas três formas de pensamento. Por elas vivemos e aceitamos, em cada dia, a realidade da nossa condição de seres humanos. São estes os fatores que determinam à constituição de todos nós e por elas temos uma maior compreensão para enxergarmos tantos as nossas pusilanimidade como a nossa coragem e só assim, podemos atingir nossos adjetivos e ajudar a melhorar o nosso mundo.


SÃO VICENTE DE FORA

Como tenho que andar um pouco, decido por trilhar o caminho a beira do rio com destino a Santa Polônia. O rio esta triste e sujo e isso me deprime um pouco, as pessoas passam por mim em direção aos seus lares, os últimos raios de sol se escondem de mim e em outro ponto qualquer, surge radiante para iluminar outras vidas. A noite chega apressada e eu contemplo um lindo e prateado luar. Chego a Santa Polônia, subo a encosta com destino a São Vicente de Fora, vejo que o Panteão Nacional já tem as luzes ligadas e os cafés começam a fechar as suas portas. Há gatos nos beirais (que beirais?) e pombas que se refugiam dentro de edifícios abandonados. A cidade adormece e um silêncio invade as ruas. Amanhã, como é terça feira, vou ate a feira da ladra, que fica só um quarteirão do meu apartamento. Chego a casa e preparo o meu jantar que se compõe basicamente de espaguete, dois ovos fritos e, para acompanhar, um copo de vinho tinto seco, este é o jantar noturno dos humildes. Depois de jantar pego um livro e de vez em quando, paro um pouco para meditar nas palavras que leio. O autor do livro é Oscar Wilde e numa das passagens sublinho de vermelho a seguinte frase, que me faz pensar constantemente nela: “Viver é a coisa mais rara do mundo - a maioria das pessoas apenas existe”. Após o momento de reflexão tenho que concordar com o escritor. Sim, a maioria das pessoas apenas vive. Será que eu sou uma delas? Enfim, a vida de muitos seres humanos se resume o esse primeiro estagio de simplesmente existir. Como o meu dia foi longo e próspero, enfie-me na cama e adormeci. Quando despertei pela manha, recordo-me que tive um sonho bem estranho: sonhei que as minhas roupas negras se transformavam lentamente em brancas e um clarão de luz cobria tudo em meu redor. Fiquei a meditar por longas horas sobre este sonho e por mais que tentasse compreender não achava respostas para ele, então acabei por esquecer. Fiz a minha toalete, tomei o café da manha e depois sai com destino a Feira da Ladra, onde há sempre bons livros a preços bem risórios e tantas outras coisas que, acreditem se eu tivesse uma casa grande e é claro um pouco mais de dinheiro, compraria de bom grado. A Feira da Ladra é feita duas vezes por semana, as terças e sábados em São Vicente de Fora mesmo, de frente para o Panteão. Nos dias de sábado está sempre abarrotada de gente, mais parece um dia de feriado ou dia dos santos populares. Como ela fica bem perto do meu apartamento, dificilmente perco uma e sempre que por lá passo compro qualquer coisa, já que os preços são acessíveis, eu não consigo resistir e os vendedores são simpáticos. Algumas vezes encontro alguns conhecidos ou ate mesmo amigos de longa data e quando isso acontece, acabamos por ir ate o Café Panteão para conversarmos mais a vontade sobre os últimos acontecimentos das nossas vidas. O Café Panteão tem uma pequena esplanada de frente para um jardim e em dias de feira fica completamente lotado, totalmente diferente dos outros dias onde apenas meia dúzia de pessoas o freqüentam. Quanto ao jardim, embora tenha entrado lá poucas vezes com o meu filho para ele poder brincar livremente, pude notar que é um espaço bastante seguro e acolhedor por ser todo vedado.


Por volta das 11 horas regressei para casa com o intuito de terminar de pintar uma tela. Enquanto pinto penso comigo mesmo que após estes anos todos à sorte por fim esta do meu lado, apesar de ter consciência que o que levou aquele casal a investir em mim foi o fato de uma das minhas telas ter sido vendida em leilão. Talvez esteja a ser demasiado orgulhoso e começo achar que tenho que aprender a ser mais humilde, deixando que a vida corra tal como ela se apresenta. Infelizmente as circunstanciais fizeram de mim o que e sou agora. Não quer dizer que seja desconfiado, mas prudente, afinal os velhos não são mais sábios, mas sim mais prudentes. E é isto que faz com que todos eles demonstrem certo tipo de sabedoria. Ao longo da minha existência, compreendi que até as mulheres que viveram comigo, ao fim de um tempo, notavam que eu não era uma pessoa fácil, já que nunca me entrego totalmente a elas, ou melhor, dizendo a ninguém. Meu temperamento e idéias as decepcionavam com o passar do tempo. Não discordo delas, pois sei que sou muito difícil e genioso, mas essas experiências frustradas serviram para me ensinar que jamais devo me comprometer com ninguém e é por essa razão que vivo só e também porque quero evitar de magoar mais alguém. Sei que consigo ser um bom amigo ou companheiro, mas compartilhar a minha vida com mais outra pessoa, nem pensar. Tenho as minhas neuroses, que já me dão muitas dores de cabeça e tirando isso, em nada me distingo dos demais homens. Cada um com sua identidade, mas sempre tão iguais no que se refere ou requisito “mulher”. Há muitos que não conseguem entender como eu posso ser tão solitário se tenho tantos amigos, mas os tais desconhecem que todo artista é assim mesmo; desconhecem que nada nos preenche e que tudo para nós é tão efêmero; tudo que não passa de um momento singular, mas que se desfaz no mesmo momento em que se transforma em passado. Uma passagem e nada mais do que isso. Procuramos viver e ao mesmo tempo em que vivemos nos tornamos responsável pela nossa própria criação, fruto de uma procura exaustiva de algo perfeito ou quase perfeito. Para isso eu preciso que a minha vida e tudo que faço estejam interligados por duas palavras: silencio e solidão. No silencio procuro à paz que tanto preciso e na solidão encontro o que ainda não está patente aos olhos do mundo. De mim sai o que nunca foi revelado sem que eu mesmo entenda essas revelações. A grande maioria dos artistas encontra no meio das trevas a luz que esta submersa nas entranhas do subsolo místico. Durante toda nossa jornada não fazemos outra coisa senão vaguearmos por entre os submundos da nossa desolação, comparados em boa parte ao Hades e ela que tentamos obtemos para a humanidade o decifrável enigma da vida e da morte, porque nós não nos conformamos apenas a uma vida repleta de ansiedades, medos ou miséria, aonde a fome, a velhice e as enfermidades tentam fazer de nós seres banais. Desafiamos a morte mesmo sabendo que ela nos observa e espera o momento oportuno, que algumas pessoa chamam de “momento certo” para nós tirar daqui e nos levar para um lugar que tememos ir por ser totalmente desconhecido para nós. Não pretendemos ser imortais, nem deuses, apenas queremos respostas capazes de nos tirar o medo de irmos mais além, afinal de contas, Deus nos deu livre arbítrio e entendimento para compreendermos o destino da humanidade, bem como toda a sua obra e eu anseio por compreender tamanho mistério existente entre o céu e a terra para poder deixar um legado para as gerações futuras. Essa seria a minha pequena contribuição, mas eu ficaria imensamente feliz em poder fazer algo que fosse reconhecido, nem que fosse uma coisa bem simples para apresentar e sei que para que isso seja possível eu necessito de três instrumentos básico de trabalho: pinceis,


tintas e telas, mas o que ainda não sei é por onde começar. Bem, acho que tenho que pensar em algo que se faça renascer por se só e se transforme na minha obra-prima ressurgida do nada. Miguel Ângelo via a obra muito antes de ela estar feita, uma simples pedra de mármore e era tudo que ele precisava para transformar em uma bela escultura. Como ele mesmo dizia, era um por centro de imaginação e noventa nove por centro de suor. Para mim isso é bem mais difícil, mas eu tento e muitas vezes me debato perante o que está oculto aos meus olhos, na tentativa de compreender o mecanismo de funcionamento das coisas. Eu acredito que Deus deu a todos os artistas a vocação de decifrar mistérios e segredos ocultos, que são muitas vezes expressos através de uma pintura abstrata. Com sinais místicos eu consigo me comunicar com a humanidade, numa linguagem que acredito ser universal. Em outros tempos quando pintava tinha sempre a preocupação de agradar o público em geral, hoje apenas deixo fluir o pincel sobre a tela sem pensar ou analisar os meus gestos. Isso me faz pensar que há cerca de cem anos atrás, não era possível se ir tão longe já que a humanidade vivia adormecida dentro de si mesma e sempre rodeada de preconceitos impostos pelas protestardes. Certo dia li um pequeno artigo Pablo escrito por Picasso para a revista “Arts de France” no ano de 1946, referente à exposição de Vincent Van Gogh, que ele fora ver, cujo texto era: “Não há outra chave senão a poesia. Se as linhas e as formas harmonizam é como no poema. É certo que o publico nem sempre compreende a arte moderna, mas isso é devido a não ter aprendido nada dela, ao que a pintura em si se refere. Nela aprendemos a ler, a escrever, a desenhar ou a cantar, mas nunca pensamos nela para aprender a olhar um quadro. Que possa ali haver uma poesia da cor, uma vida da forma e do ritmo, breve de rimas plásticas, ignora-o completamente. Muito mais, além disso, se o público não sabe apreciar uma imagem poética ou uma assonância musical”. Foi face a estas palavras que acabei por compreender, que tudo que eu crio torna-se novo. não só para mim como para cada um de vós, mesmo tendo em mente que alguns nunca chegará a compreender tais criações ou idéias, pois elas só fazem sentido quando as interligamos com os acontecimentos mundiais e ao espaço e tempo vividos pelo artista. Enquanto o mundo gira, um terço da população mundial mergulha dentro de si, trazendo a luz do dia informações necessárias e capaz de mudar o rumo da historia, já que atualmente estamos conscientes que a força do acaso nos movimenta em forma de um circulo ou quem sabe se este acaso não é o meu ou o seu próprio destino. Somos seres predestinados para fazer girar esta tão grande maquina chamada mundo, o nosso mundo. Na arte, a linha reta transforma-se num circulo perfeito quando o sonho da humanidade ultrapassa as medidas exatas do tempo. Mistura-se as cores sobre a paleta e assim elas renascem tiradas do nada. O artista, deste modo, cria a representação do ser humano perante a vida dando sentido real ao nosso peregrinar aqui. A vida nada mais é do que uma interligação de sentido e idéia, quando os artistas ondularam a linha e fizeram dela uma rotatória com pontos de interligação. Cada século torna-se um fator primordial e o ser humano sem saber é impelido pela força que se diz ser do acaso, criando e aprisionando o tempo dentro dele mesmo. Na arte abstrata atual o conceito ou a visão dos artistas tem como finalidade o indefinido, mas quando nós duvidamos, o circulo se desfaz para dar inicio a outro circulo, que anuncia o principio de uma nova idéia ou ideal. Cada um de nós transporta uma nova visão que lentamente desencadeia novas formas de pensamento. Nada está escrito, mas tudo está em si elaborado, de forma que o


destino da humanidade se encontra interligado e gera respostas mediante o tempo que está inserido. Talvez tudo isto não passe de um enigma em si pré-definido. O artista movese no circulo do seu próprio tempo e lentamente absorve respostas vindas de um acaso que esta para alem de suas idéias ou ideais. A loucura das palavras aparece quando, na tentativa de descrever uma nova era, ela nada mais é que a força deliberadamente de cada pensamento que se forma mediante a necessidade que cada um de nós encontra para se expressar. Chama-se a isto destino, mas se existe um acaso o destino em si é o principio de algo que estava para se cumprir mediante o tempo e ação provocada por tantos acasos. Não escolhemos as nossas idéias nem o nosso espaço ou o tempo. Ele, o tempo, nos escolhe e nos dá uma vocação. Um gênio deste modo não se faz gênio, ele nasce gênio. Ele vive no seu tempo sem saber que as suas ações serão determinantes e transformarão o pensamento coletivo. Deste modo o gênio da continuidade a linha sucessiva de novas idéias. Inteligível ou não um circulo nada mais é do que a união perfeita que recebe milhares de círculos que vão formar com o tempo uma esfera, que é apenas um átomo que nasceu da linha reta quando pelo um acaso alguém num gesto simples gerou a ação e mudou o curso da historia da humanidade. Mas que só será compreendida dentro de cinqüenta ou cem anos. Estas palavras que vos escrevo são apenas um outro circulo que dentro de tantos círculos formam o átomo capaz de transformarmos a todos, também eu inicio juntamente com vós uma nova era, que damos por nome de era global. Eu me recordo que quando era adolescente tinha a capacidade de liderar. Conseguia reagrupar um punhado de jovens e os persuadia a fazer coisas que hoje considero ser as mais disparatadas. Acreditava que podia mudar o mundo, ou que seria o pai de uma nova geração, mas os anos se passaram e descobri por mim mesmo que num estranho e fecundo isolamento criativo é que se consiga criar mesmo alguma coisa. Tudo que fiz ate hoje foi retocar uma ou duas telas. Quanto as minhas palavras elas se repetem e se misturam com as dos grandes filósofos. Nada do que eu tenha dito é novo, mas tudo que eu faço, sei que se encaixa no meu próprio tempo. Talvez dentro de 30 ou 50 anos uma pintura minha se torne a chave para solução de algum mistério que ate então nunca foi desvendado. É bem provável que não esteja aqui para ver ou ouvir, mas se de uma só tela conseguir fazer luz entre vós, então eu saberei que a minha vida não foi em vão. Assim como Deus disse haja luz e ela se fez, o mesmo dom que ele nos deu tem essa capacidade que é despertar as mentes ainda entorpecidas. Deus não trabalhou em vão quando pôs sobre nós algo que julgamos enigmático, afinal Ele esquadrinhou os céus e nos deu parte do seu poder para que possamos juntos, questionar os seus mistérios tanto da vida como o da morte, porque tudo se encontra interligado.


OS GLOBALISTAS

Tenho um mês para juntar o maior numero de telas possíveis, ao todo vou tentar expor aproximadamente cinqüenta e duas pinturas, doze cadernos de estudos e cinco esculturas que fiz há cerca de quinze anos atrás. Essa exposição vai ser uma retrospectiva de todo meu trabalho e ate que enfim que após estes anos todos vou poder divulgar as minhas obras num lugar decente. Ao longo da minha vida tive as portas sempre fechadas e as poucas exposições que fiz no meu país nunca deram para grande coisa, a não ser para pagar as minhas despesas. Poderia ter desistido, mas a pintura é o que de melhor sei fazer. Quando se nasce com certo dom é impossível virar as costas para ele. Durante todo o meu trajeto de vida cheguei a dizer, que nunca mais pegaria num pincel, mas conforme os anos se passaram, havia algo dentro de mim que me impelia para criação, porque nós artistas não pintamos apenas pelo gosto de pintar, mas esta é a verdade: arte é algo inexplicável é a revelação de um momento único que vai alem da compreensão humana.

O século vinte fez surgir vários movimentos artísticos e com eles o mundo teve muito a ganhar. Os Surrealistas, cubistas, expressionistas, dentre outros movimentos, conseguiram trazer para a humanidade novas perspectivas de se ver o mundo. Infelizmente hoje em dia os artistas caminham divididos e a tecnologia sufocou grande parte deles. Falar hoje de um movimento é o mesmo que nada se dizer. Ninguém quer trabalham em comunidade, todos se encontram dispersos e em parte creio, sem rumo. Recordo que na entrada do século XXI tentei fundar um movimento artístico em São Paulo, mas constatei que após certo período de tempo, a idéia não estava a funcionar. Os poucos artistas que contatei perderam completamente o entusiasmo depois de algum tempo e pouco ou nada soube deles. Na época a idéia era simples: os Globalistas, tal como era chamado o movimento, era formado por artistas de vários estados do Brasil e de Portugal. As suas idéias centravam se numa só base: despertar o mundo da arte no principio do século XXI para os problemas gerados pelas conseqüências do surgimento da era globalizada. Reuni artistas com vários estilos, desde o naif ao abstrato. A linha de pensamento que era global, tentava retratar o mundo atual tal como cada um de nós o via. Para nós a era Contemporânea tinha chegado ao fim e dado lugar a era Global. Nós não queríamos estar indiferentes ao que estava a acontecer ao nosso redor, queríamos que a nossa voz tivesse força e que todas as nossas obras anunciassem essa nova era, denunciando e revelando ao mundo cada um dos nossos pontos de vista, face aos problemas que éramos confrontados diariamente. Ainda chegamos a escrever vários artigos para jornais e uma das frases que escrevemos da qual nunca me esqueci era esta: “um dia às gerações futuras saberão que na entrada do séc. XXI, no meio do nada, a voz dos Globalistas surgiu para de novo fazer despertar arte”. Para a grande maioria das pessoas a palavra Globalização é mais que uma simples palavra. Dentro de um universo tão vasto a palavra globalização aparece apenas para se falar de economia, mas ao analisar diversos artigos sobre o assunto, observamos vários pontos que nos levara as seguintes indagações: será que a globalização é apenas


economia? Será que as bases da verdadeira globalização estão lançadas? Que projetos existem? Que idéias e vantagem um mero cidadão do mundo pode tirar? Dentre tudo que foi possível compreender eu, pessoalmente, cheguei a esta conclusão: a globalização existe, mas não há bases sólidas nem suportes para que ela beneficie todos. Após um estudo minucioso sobre os seus aspectos positivos e negativos, decidimos compreender sobre a parte que nos atinge de forma plural e não singular como ela é economicamente tratada, de forma que a humanidade fique esclarecida e acredite que ela é mais do que um monopólio de interesses econômicos com o intuito de deixar um legado às gerações futuras e de forma que a era da globalização não se resuma a meras palavras tais como o capitalismo centralizado, existente somente nas mãos dos que detêm o “poder”. Estou convencido e acredito que se existir uma base tanto de nível econômico quanto cultural e social, a globalização passará a ser mais significativa para todas as pessoas dentro de um curto período de tempo. É inegável que atingimos uma nova era, mas estamos alheios a ela por nos manterem a parte e excluídos através dos aparelhos ideológicos de estado. Não estou convencido que a globalização pertença somente aos magistrados e potestades, acredito e tenho plena consciência que ela pertence a todos e que todos podem usufruir dela como um bem precioso a todos os níveis. A nossa idéia era simples: reunir, conectar e nunca dispersar ou individualizar e para isso era necessário reunir um todo em todos de forma a dar corpo, algo que para a maioria das pessoas é apenas uma palavra abstrata. O monopólio globalizado como padrão econômico, é certo que já existe desde o século XIV entre os paises dominantes, mas que atualmente se encontra na mão do grupo denominado como G7. Se considerarmos não só o aspecto econômico como também o social e cultural de forma global, levando em consideração as necessidades de todos, acreditávamos que tínhamos a possibilidade de descentralizar essa idéia abstrata e transforma-la em algo verdadeiramente real e plausível, pois a palavra globalização é uma das palavras mais atuais que existe e que provocam contestação a nível mundial. Tudo porque não existe um discurso positivo que edifique e traga mudanças para todos os povos. Este é apenas o principio de uma nova forma de pensamento global que nos levava a pensar e avançar rumo a um futuro bem próximo, que é inegável quando se esta bem à frente. Acreditávamos que certamente o bom senso e o intelecto de cada um os nós, levava-nos a solidificar esta idéia. Estávamos também convencidos que se partíssemos do principio que a palavra globalização fosse vista de forma positiva, passaria a ser aceita e compreendida. Quando a principio, Karl Marx deu corpo e forma ao pensamento coletivo o povo saiu à rua e a primeira greve aconteceu, abrindo assim caminho para a democracia. A nossa idéia era a seguinte: abrir caminho para a globalização no sentido amplo da palavra, de forma que ela chegasse ao alcance de todos, mas infelizmente o movimento em si durou pouco mais que dois anos. Pois não passara de um sonho que esta ainda a espera de se realizar e quem sabe se um dia não entraremos para historia da arte? Afinal, desde que o século XXI começou nada de radical surgiu. A necessidade de ter voz vai sempre mais longe, independente dos meios ou do espaço que cada um de nós possa estar inserido. Talvez um dia seja bem provável que tenhamos marcado a diferença. Como sempre digo para todo mundo. Arte pela Arte é tudo que um artista tem para dar e se algum de nós ignorar isto, então a sua vida será vã.


O RINO Durante toda manha estive no banco; a fila de espera era enorme e havia uma grande confusão, pois ninguém se entedia. Como a minha carteira de identidade estava fora de prazo tive que regressar a casa para pegar o meu passaporte a fim de poder depositar o cheque. Enquanto estava a caminho de casa o celular tocou. Um artista que tinha conhecido alguns anos atrás no Brasil, me comunicava que ia chegar a Lisboa dentro de dois dias e que queria saber se podia ficar na minha casa. Respondi obviamente que sim. Era o Rino, do estado do Paraná que acabara de receber uma bolsa de estudo concedida pelo governo brasileiro, para estudar artes plásticas em Paris, na França. Confesso que ate senti uma pontada de inveja, mas que logo deu lugar a um impeto de felicidade por reencontrar o meu amigo novamente. O conheci na Avenida Paulista quando participávamos de um evento cultural em São Paulo, chamado Parangolé do Brasil. A iniciativa tinha partido dele e de uma outra senhora que tem um jornal sobre tudo que se faz de melhor no mundo das artes. Recordo-me bem, pois um mês antes desse acontecimento tive que ser internado urgentemente no hospital de Diadema, devido a Dengue, o que é muito comum quando não se toma as devidas precauções. Recordo-me que comecei a sentir dores de cabeça, febre alta que passava de 40 graus, dores nos músculos e o meu corpo ficaram todo cheio de manchas avermelhadas. Perdi completamente o apetite e por essa altura passei pelo vale da sombra da morte, mas a minha sorte foi que fui socorrido a tempo por uma boa equipa medica. O tratamento foi repouso absoluto e reposição de líquidos perdido. Acho que nunca bebi tanta água em toda minha vida, assim como sucos e a minha alimentação teve que ser à base de frutas e legumes.

Quanto ao Rino ele é uma pessoa bem divertida e acima de tudo comunicativa. As poucas vezes que estive com ele me marcaram profundamente. O seu modo de vida é bem típico do povo brasileiro: alegres, bem dispostos e sempre prestativos. O Rino não foge a regra. Tinha gosto por instruir-se e compartilhava com cada um de nós todas as suas aventuras, sempre com um sorriso nos lábios. Amava a sétima arte e acabava de conhecer a pintura. Certa noite fomos todos para casa de uma amiga que vive no bairro do Brooklin, a fim de batermos um papo, como dizem por lá. Quando chegamos, já se encontrava vários artistas: escultores, músicos, pintores, poetas e gente do teatro. Uns trouxeram vinho e boas cervejas o que fez com que a noite se tornasse bem mais alegre. Recitamos poesia, enchemos a casa de fumaça que saia dos nossos cigarros, enquanto ouvíamos o som melódico de um vilão. Uns cantavam feitos loucos e ate me fizeram cantar um fado, que não saiu nada bom, pois estava com a voz um tanto enferrujada, o que causou muitos risos e não o choro, já que este é o efeito que o fado tende a provoca na maioria das pessoas. Como a casa tinha um pequeno jardim eu e o Rino fomos para lá. Pegamos numa tela e com algumas tintas começamos a pintar e o resultado foi surpreendente, uma vez que a gama de cores se misturou de tal forma que mais parecia o trabalho de um só artista,


no fim chamamos todos para assinarem por detrás e a oferecemos para a dona da casa. Depois disso ainda participei de vários eventos com todos eles, sendo que o ultimo foi em um lugarzinho bem charmoso, chamado de Embu das Artes e só fui convidado porque estava inserido num dos movimentos que melhor se destacava em São Paulo naquela época. Lembro-me que logo em seguida comecei as minhas viagens pela América Latina e desse modo me desliguei do círculo de artistas de São Paulo. O Rino enveredou pelo caminho da sétima arte e como não tinha esquecido a pintura, pediu ajuda e foi bem sucedido. Um dia me disse que se viesse a Europa me visitaria e eu não dei muito crédito, porque as pessoas as vezes falam demais, mas eu o subestimei e ele, como um bom artista, me surpreendeu. Eu admiro muito os artistas nesse aspecto, pois mais cedo ou mais tarde sempre cumprem as suas promessas. Bem, mas voltando a ligação que recebi dele a caminho de casa e a menção da bolsas de estudo, senti que fiquei um tanto triste, pois nunca tive essa oportunidade, por mais que tenha tentado. Escrevi varias cartas para algumas instituições expondo os meus motivos, mas nunca obtive sucesso. Ao fim de uns anos desisti e matriculei-me num curso de pintura no Chiado, que por incrível que possa parecer, era uma escola de terceira idade. Na verdade foi a melhor coisa que me ocorreu, pois fiz algumas amizades que duram ate então e a Sara Vieira foi uma delas. Juntos nós dois chegamos a participar de varias exposições coletivas, as quais nos trouxeram algum sucesso. As pinturas da Sara elas têm alma própria, dentro de uma linha poética naif, que conseguem cativar a grande parte do publico. Creio que era por esse motivo as suas obras se vendiam sempre muito bem. Um dia a sua filha tentou uma vaga para estudar medicina em Lisboa, mas como não conseguiu foi forçada a procurar em Espanha onde conseguiu obter uma matricula na cidade de Cadiz e um ano depois tirou a melhor nota da turma, levando assim a universidade a oferecer lhe uma bolsa de estudo por um período de um ano. A sua mãe a acompanhou para ficar perto dela e este foi o motivo que fez com que nos separássemos. Recordo-me que no dia que viajei para o Brasil, como elas se encontravam em Portugal de férias, vieram se despedir de mim. A Sara é das pessoas que mais tem obras minhas, pois cada vez que eu mudava de apartamento, era ela que me ajudava e a única forma de recompensá-la era oferecer uma tela. Quando não temos dinheiro pagamos como podemos, porque a nossa amizade, mesmo que distante, continua do mesmo modo: intocável. Uma grande amizade não nasce de meia dúzia de palavras, mas sim do todo que se constrói com o passar do tempo para que ela ganhe corpo e alma. Um amigo não discute, mas antes compartilha nem que seja as coisas mais simples da vida. Um amigo sabe conversar, sempre escuta em silencio tudo que outro tem para dizer e nunca julga.


HOTEL CALIFÓRNIA

Como o tempo esfriou fiquei gripado de tal forma que nem consigo fumar. Perdi o paladar e tenho estado na cama entretido a ler durante o dia todo. Gostaria de poder ver um pouco de televisão, mas ela foi para o conserto e ainda não chegou. Acho que vou ter que comprar uma outra assim que for possível. Logo à noite o Rino chega e eu terei que sair para me encontrar com ele no aeroporto. Só me faltava essa gripe agora para me fazer sentir tão indisposto. Ainda bem que tenho uma receita de um remédio caseiro que é ótimo e vou fazer isso agora: colocar sobre mim bastantes cobertores e numa tigela juntar açúcar e queimar bagaço. Esta receita foi o pai do meu cunhado que me deu alguns anos atrás e não há vírus que resista a uma única dose. Olho pela janela e percebo que o tempo esta escuro, pois chove sem parar e o vento é fortíssimo. Enquanto observo a minha mente viaja por outros lugares fazendo me desligar dos problemas do mundo de tal forma, que as memórias sobrepostas se misturam com fantasias e me confundem, pois a nossa mente é impressionante, o que também nos torna seres humanos admiráveis. A capacidade que temos para viajar por lugares estranhos é uma dádiva dos deuses dada a nós reles mortais. Pena que eu não possa fazer uma viagem ao passado, pois se fosse possível, certamente iria para o século XIX, pois adoro tudo que está relacionado a ele, desde sua arquitetura, sua gente, as transformações e todos os seus grandes acontecimentos, ate o desabrochar da arte e todos os grandes artistas, principalmente em Paris. A idéia de uma viagem no tempo, precisamente a Paris me cativa de tal forma, que às vezes consigo imaginar-me a passear por cada um de seus bairros: o Montmartre, rodeado de belíssimos cafés, estúdios e artistas circulando por todos os lados e ao longe, como plano de fundo, a inconfundível Basílica de Sacré Cœur. Descendo pela Rua de Lepic me encontraria com todos os grandes impressionistas no Moulin de La Galette. Imagine só eu entre Monet, Degas, Renoir e Van Gogh. Ohh! No final da Rua Lepic ia visitar o famoso moinho vermelho, o cabaré Moulin Rouge com o seu espetáculo de revista, onde se apresenta a famosa dança “Can-Can” com seus inúmeros artistas internacionais e como escreveu Ernest Hemingway: “Paris é uma festa”, mas um dos autores que melhor descreve Paris do século XIX é, sem sombra de duvida, Emile Zola em uma de suas obras, que tem por nome “O ventre de Paris”. Vale a pena ler esse livro, absorvendo cada palavra escrita desde o principio ate fim, pois é de veras encantador. Ele transporta-nos no tempo e nos leva para conhecer a famosa cidade da forma que ela era naquela época. Creio que todos nós, uma vez na vida, tivemos a loucura de sonhar em viajar no tempo. Diante da solidão e em nossos sonhos viajamos sempre a procura de um momento único, que nos traga respostas para as incógnitas que nos são apresentadas diante das teorias, que circunda o mistério do existencialismo. Uma outro fato que constantemente me assola é o de ter ou não uma vida anterior. Penso nisso como algo provável e apenas vacilo porque tudo, infelizmente, é subjetivo demais para que compreendamos. Todos temos um lado Místico, que nos liga ao passado. Talvez isto seja força de um acaso ou quem sabe vivemos no mundo da lua, tentando encontrar respostas para tudo e para nada.


Fico em silencio e percebo que, lá fora, a chuva se abranda. Pego um cigarro e acendo, mas não o consigo fumar. Ligo a radio e sintonizo na radio nostalgia, mas a musica é a mesma de sempre: Eagles – Hotel Califórnia. Escuto um pouco e vou traduzindo para mim mesmo “... espelhos no teto o champanhe rosa no gelo e ela disse: nós todos somos apenas prisioneiros aqui de nossa própria artimanha”... Minha mão se ergue ao encontro do meu rosto enquanto a musica continua a soar. De súbito sou interrompendo por um estrondo. Um pássaro chocara contra uma das minhas vidraças e eu fico paralisado, sem palavras. Nada me ocorre no momento, pois fiquei preso pela inércia, não sei se hei de rir ou chorar e fico assim no vazio por aproximadamente meia hora ate que me aproximo da janela e vejo que o pássaro esta bem e que o tempo melhorou. Preparo-me então para sair, embora o céu esteja completamente escuro sem nenhuma estrela. Deixo as escadas e reparo que numa das vielas, em um canto meio escuro esta um jovem a remexer o lixo. Tento enxergar melhor e percebo que junto dele esta um cachorro magro com a cauda abanando constante. Passo por ele e nem me dá importância. Checo as horas no relógio de pulso e constato que ainda tenho bastante tempo, o que me faz decidir por fazer uma caminhada ate o Rossio. Entro por becos e vielas de Alfama que se ligam ate ao Martin Moniz e não encontro nem uma alma viva. A cidade esta deserta e o silencio paira por cada uma das suas ruas, mas isso é algo com o qual já me habitue, pois há sobre ela um encanto noturno que cativa qualquer visitante, já que é impossível não nos perdermos nela à noite. Lisboa tem algo místico nas suas sete colinas: Castelo, São Roque, São Vicente, Santa Catarina, Santo André, Chagas e Santa Ana. Muitos dizem que faz lembrar as sete colinas da cidade de Roma ou ate mesmo de Constantinopla. Fernando Pessoa acreditava que ela tinha sido fundada por Ulisses e a descreveu num dos seus poemas da seguinte forma:

“O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.

Assim a lenda se escorre


A entrar na realidade. E a fecundá-la decorre. Embaixo, a vida, Metade de nada, morre”.

De uma forma ou outra o poema, mesmo que metafísico, descreve bem a alma da cidade. Fernando Pessoa amava de tal modo esta cidade que ele mesmo, por aqui ficou e nunca mais partiu. É impressionante como um indivíduo pôde descrever sobre tantas coisas desconhecidas. Não há rua que eu tenha estado que ele não tenha uma vez passado. Homem solitário e que compartilhava o seu tempo com os muitos livros que tinha. Hoje se encontra entre os melhores da literatura mundial. Por onde quer que eu viajasse, sempre encontrava alguma pessoa que sabia recitar um ou dois dos seus poemas. Camões ficou deste modo em segundo plano e Eça de Queiros em terceiro, já que a leitura de Fernando Pessoa se encontra numa linha mais contemporânea, metafísica e ao mesmo tempo lógica. Enquanto pensava sobre isto, reparei que acabava de chegar a Praça do Rossio e preparei-me para tomar um ônibus com destino ao aeroporto. O Rino vai chegar de Paris às 22 horas se não houver atrasos ou contratempo no vôo. Como é brasileiro, espero que não lhe travem a entrada, o que é bastante comum acontecer aqui em Portugal. Conheci muitos casos assim e alguns deles bem tristes, já que não são reembolsados. Imagine o que é ter que trabalhar uma vida inteira para conseguir atingir uma meta, ou ate mesmo ter que pedir um empréstimo a um banco e no fim, quando se espera atingir seu objetivo, vai tudo por água a baixo. Ficando desse modo ainda pior do que estavam. Quando alguém me pergunta se pode vir para Portugal para trabalhar, a primeira coisa que eu digo é que é melhor entrarem por França ou outro país qualquer já que lá não tem o habito de impedir a entrada de brasileiros. Também acrescento que se perguntarem o motivo da sua estadia ali, diga que vai visitar o país e conhecer Portugal. Não é cem por cento seguro, mas por vezes dá resultado, pois para quem não sabe, a grande maioria dos portugueses tem dois defeitos: são mesquinhos e desconfiados, mas também têm grandes virtudes: são cordiais, humildes e se afeiçoam às pessoas que lhes conquistam por completo e se pensarmos bem, ate que conseguimos compreender esses seus defeitos, pois o mundo se encontra de um jeito tão desumano, que nos obriga a ficar sempre com o pé atrás. Meia hora depois o ônibus chega. Por esta época do ano são poucos os que viajam, principalmente aqui em Portugal. O salário é tão baixo que mal dá para se fazer viajem. Pago o meu bilhete e mal entro, logo reparo que o ônibus esta completamente vazio. Procuro um lugar mais espaçoso, onde possa descansar um pouco e me sento. Como o percurso é um tanto distante eu nem preciso me preocupar em adormecer ou perder o ponto de desembarque, já que a aeroporto se encontra na ultima paragem. A cidade estava totalmente sem transito, com os semáforos quase todos abertos, facilitando assim o tempo do percurso ate o aeroporto de Pedras Rubras.


São agora 21 horas e na zona de desembarque há um vai e vem constante. Pelo que percebi era tudo devido aos muitos atrasos. Pergunto na recepção sobre o vou que vinha de paris e me informaram que ia chegar na hora prevista. Menos mal, penso comigo, pois odeio esperar. Tomo um café e observo os que iam chegando e uma hora depois aparece o Rino com a sua bagagem, a conversar com duas moças. Faço lhe sinal, mas ele está tão distraído que nem se percebe. Aproximo-me por trás dele e uma das moças repara em mim, sorri e frisa as sobrancelhas, como quem diz: Quem é este? Ao fim de um tempo toco lhe no ombro, ele vira-se repentinamente e abre um grande sorriso. Cumprimentamos-nos e enquanto seguimos em frente ele me apresenta as duas moças Chilenas que vieram no mesmo vôo. Por não terem um lugar certo para irem, as convido para ficar um ou dois dias no meu apartamento. Elas aceitam de pronto, pois já de inicio deu para perceber um olhar envolvente. Como já era de se esperar, um clima de sedução pairou entre nós e todos juntos acabamos por passar bons momentos que se estenderam por mais alguns dias. Infelizmente o Rino teve que voltar para Paris e dar continuidade ao seu curso o que foi imensamente lamentável, pois a sua visita foi inesquecível. Quanto às duas Chilenas, acabaram por receber uma preposta para trabalhar em Palma de Mallorca, Espanha e desde o dia que partiram apenas recebi um pequeno postal a desejar-me boa sorte para a minha futura exposição e nunca mais tive noticias delas. Voltando a ligação que recebi dele a caminho de casa e a menção da bolsas de estudo, senti que fiquei um tanto triste, pois nunca tive essa oportunidade e não quer dizer que não tenha tentado. Escrevi varias cartas para algumas instituições expondo os meus motivos, mas nunca obtive sucesso. Ao fim de uns anos desisti e matriculei-me num curso de pintura no Chiado que por incrível que possa parecer, era uma escola de terceira idade. Na verdade foi a melhor coisa que me ocorrer, pois fiz algumas amizades que duram ate então, Sara Viera foi uma delas. Juntos, chega-mos a participar de varias exposições coletivas do qual obtivemos algum sucessos. Quanto às pinturas da Sara, elas tem alma própria, dentro de uma linha poética, mesmo que naif, que conseguem cativar a grande maioria do publico. Creio que era por esse motivo as suas obras se vendiam sempre muito bem. Um dia a sua filha tentou uma vaga para estudar medicina em Lisboa, mas como não conseguiu foi forçada a procurar em Espanha e lá consegui obter uma matricula na cidade de Cadiz, um ano depois tirou a melhor nota da turma e a própria universidade ofereceu lhe uma bolsa de estudo grátis por o período de ano. A sua mãe a acompanhou para ficar perto dela e este foi o motivo que fez com que nos separássemos. Recordo-me que no dia que viajei para o Brasil, como elas se encontravam em Portugal de férias, vieram se despedir de mim. A Sara é das pessoas que mais tem obras minhas, pois cada vez que eu mudava de apartamento, era ela que me ajudava e a única forma de recompensá-la era oferecer uma tela. Esta é verdade que quando não temos dinheiro pagamos como podemos, porque a nossa amizade mesmo que distante, continua do mesmo modo, intocável. Já que uma grande amizade não nasce de meia dúzia de palavras, mas sim do todo que ela conte e é preciso vários anos para que ela ganhe corpo e alma. Um amigo não discute, mas antes compartilha nem que sejam as coisas mais simples da vida. Um amigo sabe conversar e sempre escuta em silencio tudo que outro amigo tem para dizer.


VIDA DE ARTISTA

O céu encontra-se limpo e uma brisa rompe pela cidade, parece que estou em plena primavera e como me encontro no Martim Muniz aproveito e me dirijo a um quiosque para carrego meu celular. Após carregar o celular, faço algumas ligações para uns amigos e colegas de longa data, a fim de convidá-los para vir a meu vernissage. Recordo que devido à assistência que tive que dar as visitas, ficara privado de terminar umas telas. Não que eu me queixe, pelo contrario, ate que me diverti como a muito não o fazia. Tento esquecer essa aventura e me focar no meu presente, que consiste no meu trabalho, pois muito em breve a senhora da galeria mandará alguém vir buscar as telas para montar a exposição que esta marcada para daqui a quinze dias. Sinto que após muitos anos a vida me sorri, tenho fé nesta exposição. Quem sabe se não vendo um bom numero de quadros e a partir daí seja o principio de um sonho que estava adiado. A vida de artista é assim, a meu ver o governo deveria dar mais apoio ao mundo das artes e todas as suas vertes. Sem arte o mundo estaria às escuras. Sem beleza, sem palavras, sem cor e som. A vida do ser humano seria triste e viveríamos num mundo sem sentido. Quando vamos num museu e vemos as obra de um pintor, dificilmente paramos para pensar, afinal já nos habituamos a certa rotina, que é de seguir em frente perante tudo que nos apresentam. Uma pintura, um poema, ou seja, lá o que tenha sido criado por qualquer artista, tem sempre uma grande historia por detrás. Ela conta-nos historias sobre o tempo e o espaço, de forma mais realista ou sentimental. É um momento único registrado para posteridade. Leonardo, Monet, Van Gogh, Picasso, Modigliani, Poolok e tantos outros preencheram de tal forma o nosso mundo de cor, que ate hoje a humanidade se surpreende com tamanha beleza. A arte, não pode morrer e para se compreender a visão dos artistas do séc. XXI é necessário retroceder ao passado. Para termos uma noção maior de espaço e tempo a fim de podermos analisar o presente, pois é impraticável falar de algo novo sem que se tenha a consciência do por que de certas mudanças dentro de uma determinada área, principalmente quando essa área se trata da arte. Teremos que voltar no tempo do paleolítico, há mais de seis milhões de anos atrás, porque foi ai que tudo começou a germinar: os sentimentos e a necessidade de comunicação deram origem aos primeiros traços artísticos expostos nas cavernas em forma de sinais, símbolos naturais e sobrenaturais, que descreviam o modo de vida de um ser que lentamente se ia conhecendo a si mesmo. Mais tarde o homem descobre as letras ainda em forma de sinais, bem visíveis na Mesopotâmia, no Egito e em outros povos da época. Desse modo o ser humano cria à escrita e passa a tentar compreender as formas, linhas e perspectiva de fundo, a fim de transmitir através do desenho e da pintura os seus mais íntimos sentimentos, anseios, idéias e medos de forma muito mais precisa. Séculos mais tarde, aparecem os primeiros grandes pintores: Botticelli, dando inicio aos primeiros afrescos em igrejas na Itália. Miguelangelo, Leonardo da Vince, Rafael e Caravaggio dentre outros descobrem o mundo da perspectiva. Com o passar dos séculos surge Rembrandt, Vermer e Rubens, mas mesmo assim, a pintura ainda é algo estritamente abstrato para a


maioria das pessoas e de difícil acesso, limitado aos grandes senhores, ao clero e a nobreza, mas é na entrada do século XIX que a arte sofre suas primeiras e grandes transformações. Em parte, devido à fotografia e ao cinema, que viabilizou a perda de um dos seus maiores monopólios: o retrato. Com a urgência de novas idéias aparece então um pintor que rompe com os padrões da pintura acadêmica, que obrigava os pintores a seguirem um padrão clássico e ao mesmo tempo teatral. Foi o pintor Millet que fez a sua primeira exposição independente em Paris no século XIX, numa pequena barraca de madeira, de frente para a maior exposição existente: a exposição mundial, que teve a torre Eiffel como a sua principal atração. Para quem não sabe, a pintura de Millet era simples, pois retratava, pela primeira vez, a classe operaria e o cotidiano de uma sociedade. Foi duramente criticado, embora tenha sido o pai da arte contemporânea, que abriu caminho para a liberdade de expressão, fundando assim o primeiro movimento artístico: o Naturalismo. Nesse mesmo século um grupo de pintores, depois de presenciar a exposição de Millet, decidiu cortar com o academismo e criar escolas independentes. A mais conhecida é a dos pintores de Barbizon, que saíram dos padrões pré-definidos e passam a pintar ao ar livre, retratando as formas da natureza. Fato que os classificaram como naturalistas. Dentre eles estão Manet, Claude Monet, Pizarro, Degas, Renoir e outros que, ao decidirem fazer uma exposição independente, foram classificados como impressionistas pela critica, devido à forma pela qual suas pinturas eram retratadas. Uma das telas mais polemica foi a de Claude Monet, com a tela impressão de sol nascente. A critica atacou de tal forma este movimento, que chegou a sair nos jornais da época em toda França. Depois dos impressionistas, vieram os expressionistas e os cubistas, através das idéias polemicas e conturbadas de Pablo Picasso, que rompe assim, de uma vez por todas, com as formas artísticas convencionais e abre caminho para a pintura abstrata no principio do século XX, gerando vários outros movimentos, entre eles, como já foi destacado anteriormente, o expressionismo, o cubismo, o surrealismo, o dadaísmo, o realismo, o futurismo, a pop arte, o minimalismo e outros. O que estes movimentos têm de mais grandioso são as suas idéias e a conjunção do todo que se interliga para que a arte fale mais alto e enriqueça a mente e o espírito da humanidade, fazendo com que cada um destes movimentos rompa com certos tabus impostos por aqueles que ate então, tinha sobre eles, as rédeas do poder. A arte passa deste modo, a ser uma forma de exprimir os sentimentos, conforme a área de atuação de cada artista quer seja na pintura, na musica, na literatura ou em qualquer outra forma existente de arte. Com a entrada de um novo século, o XXI, os movimentos artísticos passaram para segundo plano, pois grande parte dos artistas tornou-se demasiadamente individualista. Para inverter esse quadro temos que levar a arte a retomar o seu percurso natural: de educar e ultrapassar fronteiras! Espero que a era global nos traga instrumentos de viabilização, a fim de trazer mais conhecimento através de uma conscientização. Eu creio que esta reflexão sobre arte é de que estamos sempre em um processo de mutação. Para acompanharmos as mudanças temos que nos desprender das formas de preconceitos e buscar o conhecimento necessário para melhor exprimirmos todas essas transformações. Este é finalidade de todos os artistas desde que nascem ate ao dia que morrem. Não adianta bloquear um artista, existe algo dentro dele que o leva a uma única direção: a da arte, que esta no seu sangue.


Desde do dia que o Rino partiu, tenho estado ocupado com duas telas, uma nova perspectiva de ver o mundo surgiu em mim. As minhas pinturas ganharam mais cor e ao mesmo tempo mais vida. Neste momento gozo de tranqüilidade, parece que o meu destino resolveu me dar uma trégua e umas torrentes de bons acontecimentos se repetiram sucessivamente. Não sei se devo temer este momento ou se devo apenas desfrutar dele tal como se apresenta. As dificuldades de outrora e as decepções se transformaram em algo inexplicável, que talvez possam ser traduzidas em um vocábulo, pois é o único que me ocorre agora: realização. Um dia quando estive por Paris, encontrei uma pintora que ao ver os meus trabalhos, dissera-me, que eu pintava o lado mais negro da vida. Durante o meu percurso artístico, olhando para cada uma das minhas telas, só hoje consigo compreender e aceitar o seu ponto de vista. Afinal, todo artista tem uma mensagem para dar ao mundo e eu não fujo a regra. Sofrimento, dor e esperança são os meus estados de espírito. Indiscutivelmente tudo que faço é com um só propósito: libertar-me e compreender o mundo a minha volta. As pessoas que me conhecem, fazem parte do meu mundo e eu as recompenso colocando-as na historia, porque eu, deliberadamente a escrevo, mas não como os jornais ou revistas a escrevem. Escrevo em silencio e trago para a luz do dia o que poucos conseguem enxergar, já que o mundo em que vivemos tornou-se um labirinto de enigmas infindáveis que só os mais audazes conseguem decifrar. A ciência sufoca e ao mesmo tempo alimenta as nossas fantasiais. Tudo que queremos obtemos. Dessa forma o amor em nós esfria e suga-nos lentamente o gosto por tudo o que é verdadeiramente belo. Os jovens de hoje dificilmente lêem um bom livro, acham o demasiado extenso, preferindo jogos eletrônicos. Pergunte lhes quem foi Modigliani ou outra personagem histórica e a resposta será sempre a mesma: não sei ou nunca ouvi falar. Não sabem que a liberdade de que eles hoje usufruem se deve a cada uma dessas pessoas que ousaram e souberam fazer a diferença no mundo apático em que viveram, desafiando o destino a que foram submetidos.Meu Deus! Que filosofia incutimos nos nossos jovens ou que educação eles recebem? Que futuro lhes esta reservado? Quando os deixamos caminhar às escuras, sem um propósito ou pré-projeto estabelecido, sem meta ou objetivo. Eles ignoram que um povo inculto é facilmente dobrado, mas, infelizmente esta é a geração em formação que contemplo bem diante dos meus olhos. Prescindir a historia é o mesmo que cometer erros que já foram corrigidos e voltar à estaca zero. Acreditem, a historia não perdoa! Os que anseiam por dominar sobre nós se põem a espreita e basta um único deslize para que caiamos em suas armadilhas e o mundo mergulhe novamente em um caos profundo. Já é noite e terminei a minha ultima tela. Um auto-retrato sobre um fundo negro e vermelho sangue. Meu rosto está sereno e meu olhar encontra-se distante. Deito-me e fico demoradamente a olhar para teto. Os poucos carros que passam iluminam o meu quarto e as sombras de sempre se misturam com o silencio ate que eu adormeça. O mesmo sonho, as mesmas perguntas são um todo em mim que permanece inacabado. Por fim o dia renasce trazendo a luz que toma o curso e as vozes que vêem da rua são repetitivas. Palavras intercaladas que se misturam com lamentos e recllamações de um povo que se esconde dentro de si mesmo. O meu povo, o meu viver, porque para isto tenho nascido e mais do que isto é apenas uma historia que só se completa quando partir. Esta é apenas a razão que nunca se define ou um olhar que nunca se conhece; é o grito que nunca se


escuta, mas sempre nos atordoa para alem de um silencio mórbido que se repete dia após dia. Daqui surge o meu desejo profundo de definir o indefinido. Recebo um telefonema, que me informa que por volta das duas da tarde, eles vêem pegar as telas e o restante do material para montar a exposição. Saio um pouco, vou ate um café que fica em frente ao panteão. Fico ali parado por horas a fio entregue as muitas recordações que aquele lugar me traz. Aqui compartilhei bons momentos com o Wando, conversas únicas e capazes de nos fazer entender um pouco mais sobre a nossa existência e condição humana. Mando vir uma meia de leite de maquina e uma torrada. A minha frente contemplo o jardim publico onde os reformados todos os dias se reúnem para jogar as cartas. Como também há na praça um pequeno parque infantil, as escolas trazem as crianças para vir brincar na hora do recreio. Desse modo o verde se mistura com outras cores, dando ainda mais vida ao jardim. Tiro meu bloco de apontamentos e escrevo palavras soltas. Um diário carregado de desenhos, mas com tão poucas palavras, se bem que para mim uma imagem fala muito mais que a desconexão de muitas palavras. Enquanto escrevo alguém se aproxima de mim, mas como o sol esta sobre o meu rosto, apenas vejo um vulto. Com uma das minhas mãos protejo o meu rosto do sol e reparo que é o Heitor, um artista plástico que tem uma loja de antiguidades a poucos metros do café. Sorrio em cumprimento e peço lhe que se sente. Já não o via há mais de meio ano. Antes, sempre que podia, ia ao seu espaço comercial para o ver pintar e contemplar a grande variedade de obras de arte que ele sempre tem por. A primeira vez que entrei lá foi na época do atentado de 11 de setembro em 2001. Ele estava a dar uns retoques finais numa tela, com tons de vermelho, amarelo e preto. Bati no vidro da sua montra e perguntei se poda entrar para ver. Ele disse-me que sim e desde então ficamos amigos, de forma que sempre que tinha algum tempo disponível ia ate lá para conversarmos um pouco sobre arte e outros assuntos corriqueiros. Homem culto, viajado e que gosta muito de animais em especial cães. Esta sempre bem disposto e é incapaz de ver alguém a sofrer, cheguei a presenciar muitas vezes seus gestos nobres para com os pobres de espírito. Falei lhe da minha exposição e como tinha alguns convites comigo, dei lhe alguns para ele deixar no seu estabelecimento comercial. Conversamos por mais de uma hora sobre uma grande diversidade de assuntos em geral. Como ele tinha que ir almoçar com um cliente saiu com a promessa de estar presente na minha exposição. Pouco depois voltei para o meu apartamento que fica num terceiro andar no lado direito na Travessa das Freiras numero 12 e como ele era antigo e não tinha elevador, todas as telas terião que ser levadas em grupo de cinco pelas escadas que são bem estreitas. Às duas e meia chegou à senhora da galeria com dois jovens que começam a carregar as telas e o resto do material para uma van. Entrego o preço das telas e esculturas. O resto fica por conta dela, tal como ficou combinado. Ao todo levaram cerca de meia hora para carregar todo material. Agora só faltam alguns dias para a minha exposição e me dou conta que nem tenho um terno decente para usar no vernissage. Enfim, seja o que Deus quiser! Acho que não vou fazer má figura, afinal de contas, sou um artista e os artistas sempre dão um jeito.


Como a galeria tem certo prestígio, a dona do espaço lembrou-se de mandar um fotografo e um jornalista ao meu apartamento para entrevistar-me. Só me faltava esta, mas como o marketing hoje em dia é tudo, lá vou eu fazer parte de figurante no palco da vida! As perguntas? São as de sempre: há quantos anos é pintor? Que pensa sobre arte atual? Hoje em dia pode se viver da arte? Conte-me a sua historia e seu percurso artístico. Se não fosse pintor o que gostaria de ser? Quantas exposições já fez? Defina a arte. Fico atordoado e respondo da melhor forma que posso. Eles despedem-se e saem. O telefone toca e vou atender. Do outro lado da linha escuto a voz do meu filho. Que me dá os parabéns, pois já sabe que vou fazer uma exposição. Por fim me diz que estará lá, eu agradeço-lhe e conversamos um pouco. Depois de desligar me sinto infeliz por ser um pai ausente, pois desde que me divorciei foram poucas as vezes que estive com ele. De vez em quando nos falamos por telefone, mas devido ao grande amor que nutria por a minha ex esposa aos poucos me foi afastado. Sempre que ela ficava por perto, uma tristeza caia sobre todo meu ser. Não suportando mais, viajei e estive fora por alguns anos na esperança de que tudo viesse a melhorar, o que não sucedeu. O Wando sempre me dizia: que a nossas vidas estão sempre interligadas com o passado. Quer esteja em Londres, São Paulo ou São Francisco, o passado nos persegue. Não adianta nos escondermos ou fingir que nada se passou. É como se carregássemos uma culpa dentro nós ate a eternidade. Eu não consigo esquecer, porque entre o sono e o sonho tudo em mim é real. Há sentimentos que não morrem e jamais morrerão. Há palavras que escutamos ou pronunciamos, que serão eternas ate o fim das nossas vidas. Julgar, amar e perdoar. Um todo que se repete constantemente, afinal a vida é isto mesmo e o resto dela é tão banal que pouco ou nada faz sentido. A relação com um artista é das mais disparatadas que possa existir na face da terra. Temos uma mulher para sustentar que se chama arte, Baudelaire dizia e com razão; “A arte é uma prostituta insaciável”. Se não fosse artista eu seria apenas um simples operário e faria o que todo mundo faz. Dormir, trabalhar e comer. Oh! Quem me dera ser assim. Ter uma casinha com muitos filhos, uma esposa para amar e um trabalho estável. Sair à rua de vez em quando com a família ou participar de um churrasco entre colegas de trabalho para conversar sobre futebol ou discutir política mesmo sem nada entender e por fim dar muitas gargalhadas das situações que não entendemos. Destino cruel é esse de ter nascido um artista. O mundo a nossa volta gira da forma mais estranha possível. Nunca nos conformamos com nada. Às vezes tento entender como se é possível classificar uma obra de arte de um a dez, mas das duas uma, ou se é artista ou não se é, já que neste meu mundo não existe meio termo. Aqueles que nos observam nunca poderão entender a nossa natureza e nós por outro lado também não podemos entender as deles. Somos dois pólos, um a norte outro a sul. Que distancia! Nietzsche disse: “A arte levanta a cabeça quando as religiões perdem terreno”. Deste modo o artista tem em si o dever de erguer ou dar a conhecer aos demais homens as respostas que eles não encontram em nenhum lugar. Há quem chame isso de fé, mas a palavra fé para os artistas tem outro nome: inspiração. Para mim é como um acumular de idéias, mas para os outros é como esperar por um milagre... Talvez nós artistas apareçamos como um milagre ou mensageiros do inesperado para aqueles que esperam por uma resposta e é ai que lhe dão o nome de milagre. Alcançamos tais feitos mediante o suor do nosso rosto, sem que eles mesmos se apercebam disso.


Quando uso o termo artistas, me refiro aos escritores, compositores, poetas, atores, músicos, pintores, escultores e os demais que se relacionam de forma direta ou indireta com a arte. E me desculpe, porque quando me vêem dizer que um cozinheiro é um artista, eu sempre respondo que não.


O TUNEL Sexta-feira, primeiro dia do mês de fevereiro, o céu está meio encoberto e o meu vernissage esta marcado para hoje às 20 horas. Sinto-me bem e tudo indica que a exposição vai ser um sucesso. A dona da galeria me telefonou logo pela manhã para me informar que a minha entrevista já tinha sido publicada e que gostaria que eu fosse à galeria para ver se estava tudo em ordem, mas deixei claro que preferia ver tudo somente no próprio dia e que confiava no bom gosto dela. Depois disso fiz alguns telefonemas no meu celular e contatei vários amigos e artistas com o intuito de convidá-los a participar da inauguração, já que essa exposição significava muito pra mim. Alguns atenderam e outros tive que deixar mensagem. Como ainda são onze horas vou ate ao Largo da Graça e aproveito para passar numa banca de jornal e comprar alguns exemplareis da revista; em seguida subo com destino a esplanada do Miradouro da Graça a fim de ficar por lá algum tempo, já que é um dos bons lugares que conheço onde se pode desfrutar de uma das mais belas paisagens da cidade. É indescritível a beleza retratada pelo panorama de telhados e edifícios seculares. Aqui em cima posso contemplar uma parte do mosteiro Agostiniano, localizado atrás do Miradouro. Se não engano, é uma construção antiga datada em 1271, mas que foi danificado após o terremoto em 1755 e logo em seguida reconstruído. Uma outra vista deslumbrante que posso ter daqui é a da construção do castelo de São Jorge também conhecido como Castelo dos Mouros, que foi erguido sobre a colina mais alta do centro, de forma que pode proporcionar aos turistas e visitantes umas das mais belas paisagens com vista para o rio Tejo. Momentos mais tarde olhei para o relógio e me dei conta que tinha ficado ali parado por horas a fio, apenas relembrando os bons momentos que vive nesta cidade. Não sei por que estou tão nostálgico hoje; a sensação que tenho é a de um filme que repassa a história da minha vida diante de mim. Decido voltar para meu apartamento, pois o meu estômago começa a dar sinais vitais de fome. Preparo uma comida instantânea no microondas, abro uma garrafa de um bom vinho que tinha guardado para um momento especial e fico a saborear mais um momento de solidão. Durante a tarde fiquei por casa, a acabar de ler um livro: Elogio da loucura de Erasmo de Rotterdam. Há uns anos atrás uma amiga que vive na cidade de Ermesinde tinha me emprestado para ler, só que por essa altura não me interessava muito por leitura, mas estando eu na Feira da Ladra encontrei esse mesmo livro e o comprei por apenas dois euros. Confesso que ele é bem irônico, melhor dizendo uma critica a sociedade daquele tempo que ainda consegue se transportar para a atualidade. Olho no relógio e reparo que dentro de uma hora e meia vou ter que me preparar para sair e seja o que Deus quiser. O Wando ligou-me para se prontificar a me levar-me a galeria de carro. Insisti que não era preciso, pois sei como é o trânsito na sexta feira, ainda acabávamos por ficar presos nele, coisa que hoje não convém. Aprontei-me para sair de casa e tal como previa o transito está realmente caótico. Como daqui ao Chiado são cerca de 30 minutos, decido ir a pé.


Alfama, Portas do Sol, igreja de São António que fica no bairro da Sé, entro na Rua da Conceição e depressa chego à Baixa. Na Rua Garret Encontrei um grande amigo o Lamego e a sua namorada a Moreninha que esta acompanhada por um pequeno cachorro marrom. Todos os dias eles vêem ate aqui para tocar seus instrumentos a fim de ganharem uns trocados. Conversamos um pouco sobre coisas corriqueiras e os convido a aparecerem na exposição. Antes de me despedir deles, deixo meia dúzia de cigarros e subo a rua com destino ao Chiado, pois ali tenho sempre uma paragem obrigatória, no “Café A Brasileira”. Como hoje é sexta feira, o café encontra-se lotado ao ponto que mal dá para nos mexermos lá dentro. Fico junto do balcão e enquanto tomo um café vou distribuindo alguns convites. Um jovem artista e ainda desconhecido, pergunta-me se pode me acompanhar, pois não conhece a galeria. Digo lhe que sim e por ali vamos nós a conversamos assuntos referentes ao mundo das artes. Enquanto atravessamos a Rua da Misericórdia para nos dirigirmos a Praça de Luís Camões um carro choca contra outro criando a maior confusão, um senhor de idade cai no passeio de susto e nos dirigimos para ajudá-lo. De súbito um indivíduo sai aos gritos de um dos carros enquanto se dirigi para o outro e os dois começam discutir. Estoura-se a maior confusão de forma que ninguém se entende. Enquanto nos preparamos para sair dali, ouve-se um estrondo e ao mesmo tempo sinto uma dor tão aguda que não me consigo reter de pé e caiu da forma mais bizarra. O rapaz que se encontra comigo vem ao meu encontro e começa a gritar: foi atingido, foi atingido! Penso, meu Deus o que esta a passar? Uma multidão surge ao meu redor do nada. Enquanto, em vão, eu faço força para alevantar-me, pois sinto me preso ao chão. As dores multiplicassem. Alguém entre eles diz que é medico e vem ao meu socorro, outros gritam: chamem uma ambulância ele esta a perder muito sangue. Sangue? Só me faltava esta agora, logo hoje tinha que me acontecer tamanho infortúnio. Enquanto isso uma leve garoa começa a cair sobre o meu rosto e as vozes ficam distantes. Tento falar, todavia não consigo; as palavras perdem-se dentro de mim e a dor abranda. Sinto-me fraco e abate-se sobre mim uma tão grande vontade de dormir. O céu começa a escurecer, meu corpo fica gelado; vejo um a um dos meus familiares e amigos passar diante mim com rostos serenos e tenho a sensação de que minha alma esta saindo do meu corpo. Sinto-me perdido e um foco de luz se torna aos poucos mais brilhante e vai cobrindo tudo em meu redor sem que atrapalhe a minha visão. Sem saber como eu me dou conta de que estou entre aquela multidão e reparo que mesmo a minha frente esta o rapaz que vinha comigo. Toco lhe no ombro, mas ele não se dá conta, insisto, mas em vão. Falo, porém ele não me escuta. Olho ao meu redor e reparo que todo mundo se encontra triste. O som de uma sirene de uma ambulância que acaba de chegar desperta a minha curiosidade e dela saem dois enfermeiros e um médico que vão abrindo passagem por meio da multidão. Tento dizer lhes que esta tudo bem, mas não me escutam. Aproximo-me para ver também o que se passa, mas entro em choque ao constatar que a pessoa que esta prostrada sobre o passeio sou eu ou o que resta de mim. Meu Deus eu morri! Em meio a uma diversidade de sensações que me invadiram repentinamente, os vejo colocarem o meu corpo numa maca e o transportar para dentro da ambulância. A sirene não para de tocar, de forma que atrai mais curiosos. Olhei e o jovem que vinha comigo estava a um canto, completamente atônito e em estado de choque; algumas das pessoas que estavam no Café A Brasileira vieram ver o que tinha ocorrido e ficaram também chocadas. Aos poucos um sentimento de tristeza vai tomando conta daquele lugar e reparo que a ambulância parte com destino


ao hospital. Sobre o passeio, há um manto de sangue que se mistura com a água da chuva, que escorre lentamente para uma calha. A multidão se dispersa, os carros são retirados pelo reboque e a cidade volta à rotina de sempre. Não sei mais o que fazer, estou atônico e me acento num dos bancos da praça. Quero fumar o cigarro, mas não tenho como o fazer ou beber um copo de água, pois a minha boca encontra-se seca. De repente lembro-me da exposição e vou ate lá. Pelo caminho imagino mil e uma coisas. Será que já sabem do ocorrido? Agora vou ter que me conformar com isto. O pior de tudo é que nem sei bem o que fazer. Quando chego à galeria tudo esta em alvoroço, o jovem que vinha comigo acabou por descobrir o caminho e foi dar a noticia, juntamente com outros artistas e pessoas que com ele vieram. Todo mundo lamenta e a exposição que deveria ser um momento apreciação, transformou se em algo constrangedor. A um canto da galeria o meu filho chora ao colo de sua mãe, enquanto todo mundo tenta consolá-lo. A dona da galeria encontra-se só e o seu semblante mergulhado numa profunda tristeza. Com as mãos entre as pernas e o rosto perdido no vazio não consegue tomar uma atitude. O seu esposo aproxima-se e toca lhe sobre os seus cabelos. Ela desperta de si e abana a cabeça de um lado para outro sem saber o que dizer. Expressões faciais e gestos de preocupação esta patente por todo lado. Nas paredes as minhas pinturas tentam dar vida ao espaço, mas uma nuvem negra toma cada um dos visitantes e alguém entre eles lembra se de cobrir uma das minhas telas com um tecido negro o meu ultimo auto-retrato, que acabara de ser coberto. Tento falar, mas sei que ninguém me escuta, sinto-me como perdido perante este cenário e suspiro. A noticia espalhou se pela cidade e os repórteres começam a chegar, tiram fotos e tentam obter o maior numero de informações. A dona da galeria tem que entervir, mas esta sem forças. então o seu esposo toma a dianteira e explica o ocorrido aos jornalistas. Como há uma pequena televisão na galeria, alguém dentre eles liga e todo mundo se aproxima para ver as noticias de ultima hora: artista plástico foi apanhado por uma bala perdida na zona do chiado, quando se deslocava para ir ao seu vernissage. De súbito a dona da galeria toma a atitude de fechar o espaço e ir ao hospital para saber mais detalhes sobre o ocorrido. Um a um começa a sair e as luzes se pagam. Na rua, de frente para a galeria, se amotina um grupo de curiosos. Todo mundo quer saber o que se passou. A dona galeria entra num carro juntamente com seu esposo e se dirigem ao hospital. Atrás deles vem outros carros e em um deles se encontrava o meu filho com sua mãe. Desse modo forma-se um aglomerado enquanto outros carros acompanham. Na chegada ao hospital vejo que já lá se encontrava o Pedro, o Wando e muitos outros amigos. Todos eles preocupados e de semblante triste. O medico chega e dá a noticia: “morreu às 19 horas e 57 minutos”. A tristeza é geral e eu acabo por compreender que por mais que quisesse dizer algo, ninguém me iria escutar. Todo mundo volta para seus lares e a partir de agora as horas deixaram de fazer sentido, as batidas do meu coração já não são escutadas nem mesmo por mim, mas o meu corpo permanece igual ao anterior em tudo. No que diz respeito à tristeza só a sinto quando vejo algum conhecido cabisbaixo. Dá-me vontade abraçar alguém, mas sempre que tento fazer isso, dou conta que essa mesma pessoa ainda ficava mais triste. Acho que ela deve sentir a minha presença, pois sempre que toco alguém às lembranças que passamos juntos se manifestavam, fazendo nos chorar.


Começo a interrogar a minha existência como ser transcendente. O que vai ser de mim? Por quanto mais tempo estarei por aqui? Será que vou me tornar uma alma errante? Uma coisa é certa, a dor e tantas outras coisas que em vida me atormentaram eu parei de sentir. Agora vejo o mundo com outros olhos, um mundo repleto de bondade e consigo perceber o que levava a humanidade a cometer tantas loucuras. Uma delas é o medo da morte ou o que nos espera do outro lado. Talvez seja este o motivo que faz com que tomemos atitudes precipitadas. Nós humanos tememos o que está oculto e isso nos leva a fracassar. Dessa forma muitos de nós nos tornamos mesquinhos e egoístas. Queremos um lugar na historia, mas conforme os anos passam reparamos que pouco ao nada fazemos para merecê-lo. Desse modo as nossas vidas tornam-se monótonas e é ai que tentamos vencer seja a que custo for. Ao contrario do que sempre tinha ouvido falar, desde que morri nunca vi anjos, túneis de luz ou outra coisa parecida. Acho que cada ser humano tem uma experiência diferente, talvez cada uma dessas experiências seja transportada para o mundo transcendental, a imagem do que cada um de nós viveu. Agora eu sei que a alegria nada mais é do que a sensação de saber que existe realmente vida além da morte. Quando adolescente, eu temia o inferno ou purgatório, já que tinham me educado assim. Por isso temia o escuro e tinha sempre pesadelos durante a noite. Via me rodeado de caixões e todos os sons noturnos se transformavam em vozes que me amedrontavam. Mal apagavam a luz a minha mente começava a pregar me partidas. Sempre tive uma grande imaginação, mas esta era a parte que eu mais testava dela, por isso durante anos urinei na cama, tinha medo de me levantar para ir ao banheiro. Com 15 anos fiz a minha primeira viajem ao estrangeiro, precisamente Alemanha e a partir daí tudo mudou. Nunca mais tive pesadelos nem urinei na cama e nunca soube por que essa mudança tão radical em mim. Por esse mesmo motivo desacreditei em tudo isso. Se existe um inferno esse inferno só pode ser aqui, na verdade as igrejas deviam ser proibidas de pregar sobre o inferno ou purgatório, elas nem imaginam o mal que causam as crianças e adolescentes. A palavra de Deus é amor, por isso não entendo porque se fala tanto do inferno nas igrejas por todo mundo. Será que os sacerdotes desconhecem que todo o ser humano carrega dentro de si dois lados: o lado negativo e o positivo? Somos formados por matéria e essa matéria contem os nervos o que faz com que a humanidade aja da forma mais estranha possivel, principalmente quando se deparam com situações complicadas. Se pararmos para pensar um pouco, cada um de nós já se viu numa destas situações. Eu durante toda minha vida me interroguei a cerca de quem era a culpa quando um indivíduo se transforma em um marginal: Será que se nasce criminoso? O que entendi, foi que a grande parte da sociedade é em si responsável, ela cria leis absurdas e essas mesmas leis que são criadas por aqueles que nunca chegam a cumprir. A grande maioria é que se tornam prisioneiros das tais leis em si absurdas. Aqueles de quem esperamos o exemplo, são os primeiros a corromper a lei. Os pobres ficam desse modo, sobrecarregados e indefesos. O exemplo disso esta num pobre que rouba para tentar sair de uma situação difícil e vai preso por anos a fio. Ele pode ter roubado apenas uma ninharia, mas um rico que rouba milhões sofre apenas uma leve pena e continua a roubar ou a desviar durante toda a vida.


O pior de tudo é que o pobre fica a partir daí privado de exercer uma boa profissão e todo mundo passa a olhar para ele como ser desprezível. Quanto ao rico o dinheiro tem o poder de anular a sua culpa. Hoje sei que a vida nada mais é do que uma passagem. Sei que o inferno e o céu nos perseguem de uma forma que nunca esperavamos que ela nos viesse a perseguir. A ausência da bondade no mundo transcendental nos coloca em uma angústia que julgo ser apenas eterna se não nos arrependermos. Quanto maior for o sentimento de culpa maior é a angustia. Das duas uma ou nos arrependemos ou vivemos nessa eterna angustia. Haverá pior inferno do que este? Quando humano estive por varias vezes angustiado e a experiência em si não foi nada boa, era como algo inexplicável, uma dor que não era dor, um sentimento tão estranho que por mais que tentasse o dissipar, me era impossível. Só o próprio tempo é que se encarregava de fazê-lo sumir. Dou graças a Deus que não me encontro nesta situação, o meu ultimo estado como ser humano foi de plena paz e harmonia para comigo mesmo e para com todo mundo. As duvidas que tive em vida dissipavam-se e agora só me restava esperar por algo transcendental. O que poderá ser, nem sei? Talvez uma luz ou simplesmente uma viajem para lá das estrelas! Respostas incompletas que encontramos até depois da morte, eis ai o mistério ao qual cada um de nós esta sujeito, tanto em vida quanto na morte. Sócrates bem que tinha razão quando deixou escrito para as gerações vindouras; “penso logo existo”. Eis uma possível resposta e afirmação.


UM PEQUENO FRISO DOURADO

Durante dois dias estive em vários lugares, que me eram familiares, revi cada uma das pessoas que me eram queridas e foi como se estivesse a despedir de cada uma delas. Depois desses dois dias entrei no cemitério para presenciar o meu enterro. O céu encontrava-se completamente limpo, a luz do sol mesmo que de inverno, refletia sobre cada uma das lapides em um brilho que ofuscante. Ao fundo o carro mortuário acabava de entrar e atrás dele uma grande multidão de pessoas que conheci durante a vida e outras nunca conhecera, mas que me pareciam familiares. Tristeza e lágrimas, era tudo que exista em cada rosto que ali se encontrava. A minha morte comovera meio mundo e aparecera nos jornais de todo país, inclusive na televisão. As minhas duas irmãs tinham vindo do Porto e junto delas estava o meu filho de terno e gravata preta, só a camisa é que era branca. Atrás vinham os meus amigos e artistas que tinha conhecido em alguns cafés e galerias. A certa altura a carro parou. O Wando, o Pedro, um dos meus cunhados e o esposo da dona da galeria pegaram nas alças do caixão e o transportaram para cima de um suporte. O caixão era branco e continha um pequeno friso dourado em volta dele, fazendo com que um pequeno raio de luz iluminasse todos que ali se encontrava para um ultimo adeus. Em uma ultima homenagem o abriram e pude contemplar o meu rosto, que por mais estranho que possa parecer estava sereno. Por fim fecharam o caixão e com duas fortes cordas o lançaram sobre uma cova, enquanto descia um jovem com um violino a tocar um hino de uma das passagens da bíblia referente ao cântico dos cânticos do versículo dois, e um a um foi saindo, enquanto o presbítero recitava uma pequena passagem bíblica. “Porque viestes do pó e ao pó voltarás e o espírito voltara para Deus que o deu”. Por fim só duas pessoas ficaram, era a moça do leste Europeu e a sua filha, que choravam continuamente sem parar. Aproximei-me delas e reparei que a menina olhou para mim e sorrio. Sempre tinha ouvido dizer que as crianças têm essa percepção de ver que a grande maioria dos adultos não consegue ver. Creio que deve ser devido a pureza que tem em seus corações. Desse modo, instintivamente, olhei fixamente para ela e disselhe que estava tudo bem. Ela por sua vez agarrou-se a saia de sua mãe enquanto repetia as minhas palavras. A mãe perante tal atitude ficou admirada, enquanto com uma das suas mãos acariciou a pequena e com outra enxugou seu rosto. Ate que as duas partiram, sem que no entanto a menina não deixava de olhar para trás. Acenei com uma das minhas mãos para lhe dizer um ultimo adeus e ela correspondeu do mesmo modo, ate que deixei de vêlas Depois que sai do cemitério fui ate a beira do rio e o movimento era o de sempre. Deitei-me sobre a relva e enquanto olhava o céu, um raio forte de luz veio na minha direção, provocando em mim uma sonolência incontrolável, não sei por quanto tempo. Só sei que quando os abri, contemplei a casa dos meus sonhos na colina com vista para o mar.


Fim Paginas que o tempo rasga - Escrito por: Miguel Eihar Westerberg – 2009-09-25 – Lisboa – Portugal


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