Revista Design-SE

Page 1

s

design e designSe ano 1I maio ano mai| /2009 2009


sumรกrio 04 08 13 16

O Artista que Ajudou a Eleger Obama

SHEPARD FAIREY

o artista que ajudou a eleger Obama 01 O Homem que Reinventou a Roda

MARCEL o artista que DUCHAMP ajudou a eleger Obama 01

o artista que ajudou a eleger Obama 01

Eles criaram Moderna o artista quea Vida ajudou a eleger CHARLES E RAY EAMES

Obama 01

o artista que ajudou a eleger Obama 01 Em primeiro plano ANNIE LEIBOVITZ


aos leitores É com imenso prazer que lançamos a primeira edição da nossa revista “DesignSE”. Aqui você tem acesso a tudo que o design pode proporcionar em variados aspectos. “DesignSE” foi feita exclusivamente para você que tem sede de conhecimento e cultura. Aproveite!


política

O ARTISTA

QUE AJUDOU A ELEGER OBAMA Por Fernando Eichenberg

E

le já chegou a ser detido algumas vezes por ações ilegais de grafite. Hoje, Shepard Fairey é o autor do retrato mais divulgado ao longo da campanha do próximo presidente dos Estados Unidos e, aos poucos, sai das ruas e entra nas galerias e nos museus. 04



Em seu embate para chegar à Casa Branca, antes de ser consagrado pelo voto como o próximo presidente dos Estados Unidos, o candidato democrata Barack Obama recebeu um inesperado reforço de marketing eleitoral. Um pôster com o seu retrato traçado nas cores vermelha, azul e branca (as mesmas da bandeira americana), o semblante firme e sereno com o olhar levemente lançado acima do horizonte — comparado por alguns à célebre mirada de Che Guevara imortalizada pelo fotógrafo Alberto Korda —, tornou-se imagem onipresente de sua campanha, a mais divulgada no país e utilizada até mesmo no exterior. A peça de propaganda não foi produzida por uma grande agência de publicidade nem encomendada pelos marqueteiros oficiais de Obama, mas uma criação espontânea do artista gráfico Shepard Fairey, que viu sua popularidade — e seu valor artístico — crescer com a de seu candidato. Lançados em apenas 350 cópias, os cartazes se esgotaram em minutos e proliferaram ad infinitum pela internet. O sucesso levou a campanha oficial a abraçar a iniciativa do cabo eleitoral grafiteiro e a endossar sua obra, sem resistir a dar seus palpites. A pedido dos conselheiros de Obama, a palavra “Progress”, legenda do pôster original, foi substituída por “Hope” e “Change”, leitmotiv do discurso do candidato democrata. Etiqueta e estratégia política obligent. Fairey foi brindado com uma correspondência assinada pelo próprio Barack Obama: “As mensagens políticas implicadas no seu trabalho têm encorajado os americanos a acreditar que podem contribuir para mudar o status quo. As suas imagens têm um profundo efeito sobre as pessoas, sejam vistas numa galeria ou num semáforo. Tenho o privilégio de fazer parte do seu trabalho artístico e estou orgulhoso de ter o seu apoio”. Nascido em 1970, em Charleston, na Carolina do Sul, Frank Shepard Fairey se quer um representante da street art, um artista urbano que já foi detido uma quinzena de vezes pela polícia por ações ilegais de grafite, o chamado bombing, em muros de cidades americanas (em uma das vezes, foi preso no Japão). “Quando fiz 14 06

Shepard Fairey com um dos pôsteres de Obama, Progress. O olhar do candidato é comparado à célebre mirada de Che Guevara na fotografia, por Alberto Korda.

anos, em 14 de fevereiro de 1984, ganhei um skate. Meus pais achavam que skates eram para os brigões, e acho que tinham razão”, contou certa vez. O skate e o punk-rock de The Clash, Sex Pistols e The Dead Kennedys forjaram, na sua adolescência, os contornos de sua cultura de street art. Seu anonimato foi definitivamente perdido por acaso. Em 1989, trabalhava em uma loja de skates em Providence para poder pagar os estudos na reputada Rhode Island School of Design, que acolheu alunos como David Byrne e Gus Van Sant. Como ele próprio confessa, pirateava tudo o que podia, fabricava t-shirts de grupos de rock e adesivos em série. Numa noite, ao folhear uma revista à procura de uma imagem para ensinar a um amigo como fazer um modelo, se deparou com o retrato de André The Giant (1946-1993), francês lutador profissional de vale-tudo nos Estados Unidos. Na hora, fez uma adesivo com o rosto do personagem acrescido da frase “André has a posse” (André tem uma gangue). Em pouco tempo, sua brincadeira estava espalhada e copiada por todo o lado, repercutindo em conversas de rua e mesmo em artigos na imprensa.

ROBIN HOOD DA ARTE

Os adesivos viraram cartazes, impressos com a palavra “Obey” (obedeça), que se tornou sua marca registrada, literalmente: Obey Giant Art Inc. Sua guerrilha artística nas ruas não trazia nenhuma mensagem objetiva, o que atraiu a


curiosidade, mas também gerou irritação nos passantes. Em um manifesto de 1990, definiu suas campanhas como uma “experiência de fenomenologia”, inspirada nas pensatas do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). “A fenomenologia visa antes de tudo a despertar o sentido do questionamento sobre o que nos rodeia. Os pôsteres Obey tentam estimular a curiosidade e levar as pessoas a questionar ao mesmo tempo o cartaz e a relação que tem com o seu entorno”, escreveu. Sua iconografia é assumidamente influenciada pelo construtivismo russo de Alexander Rodchenko e dos irmãos Stenberg, pela arte revolucionária chinesa, pela propaganda política totalitária em geral, pela pop art de Andy Warhol, pelos trabalhos de Barbara Kruger, Twist, Bansky, Robbie Conal ou John Van Hamersveld. Críticos o acusam de plágio por usar imagens de outros artistas sem citar a origem. Fairey diz se apropriar de “referências” e arroga como estratégia e humor artísticos o “roubo” de logotipos e o “sequestro” de ícones populares. Casado e pai de duas filhas, residente em Los Angeles, Fairey se faz cada vez mais raro nas ruas e mais presente nas galerias. Em recentes exposições em São Francisco e Londres, criações originais suas, das menores às maiores, foram vendidas entre US$ 80 e US$ 85 mil. Suas obras hoje integram o catálogo de prestigiadas coleções como as do New Museum of Design, de Nova York, San Diego Museum of Contemporary Art, Museum of Modern Art, de San Diego, ou Victoria & Albert Museum, de Londres. O skatista-punk agora é um artista-empresário de sucesso. Fundou a agência de design Studio Number One, criou a grife de roupas Obey, a

revista de cultura pop Swindle e a galeria de arte Subliminal Projects. Seus traços são requisitados para capas de CDs de grupos como Led Zeppelin e Smashing Pumpkins, de livros de George Orwell das edições Penguin, para o cartaz do filme Walk the Line (sobre a vida de Johnny Cash) e para publicidades de WalMart, Seven Up ou Volkswagen. Em resposta às frequentes acusações de ter renegado suas origens e se vendido à lógica capitalista, diz ser um Robin Hood da arte, que usa o mercado para continuar divulgando suas mensagens subversivas: “Fazer parte do mundo da arte comercial e compreendê-la é, de certa maneira, como uma infiltração. Porque sempre senti que grande parte do meu trabalho era uma reação à propaganda e uma forma de compreender como a propaganda funciona. Arte e comércio necessitam um do outro. As pessoas falam dessas coisas de um modo preto no branco”. Mas uma coisa não se pode negar: a street art é reconhecida por contestar, não apoiar o poder. Para pesquisadores americanos, artistas de rua aceitam a propalada vinculação de Obama com a comunidade em parte porque também atribuem ao seu próprio movimento raízes populares: o presidente eleito é visto como alguém que partilha seu ethos. “Não é legal entre os artistas de rua punk, rebeldes, apoiar algo que é tido como parte do establishment”, disse o próprio Fairey. Ou seja, se, à primeira vista, seu cartaz com o rosto do novo presidente dos Estados Unidos contradiz a cartilha da street art, depois de um olhar mais cuidadoso, se percebe que se trata de mais um legítimo efeito provocado pela arrasadora maré Obama. 07


artes

Marcel Duchamp

O homem que reinventou a roda O visionário que definiu o que hoje chamamos de arte, é tema de uma exposição em São Paulo é a maior já dedicada ao artista na América Latina Por Gisele Kato

N

a história da arte, a palavra “gênio” se aplica a pouquíssimos criadores. Da Vinci, Michelangelo, Picasso — e alguns outros. Dentro desse time, existe um grupo ainda mais seleto. São os que somam à palavra “gênio” uma outra: “visionário”. Os gênios visionários influenciam gerações posteriores e, assim, definem toda uma era. É como se dividissem a arte em antes e depois deles. Apenas dois nomes têm a carteirinha de sócios remidos desse clube: o italiano Giotto di Bondone (1267?-1337) e o francês Marcel Duchamp (1887-1968). Giotto é o responsável pelas noções de perspectiva e tridimensionalidade que moldaram a escola renascentista e nortearam a produção dos séculos seguintes (veja texto na página 44). Por muito tempo, grandes artistas alternaram entre obedecer aos parâmetros do mestre italiano e desafiá-los. Até que surgiu Marcel Duchamp. 08



A revolução perpetrada pelo francês é mais difícil de definir por causa de sua complexidade e da maneira anárquica com que ele mudou tudo na esfera artística. O conceito que orientou seu trabalho, no entanto, é bastante claro. Com Duchamp nasceu a idéia de que uma obra só está completa quando a ela se soma a interpretação do outro — no caso, o espectador. O maior artista do século 20 chegou a usar a expressão “arte retiniana” para definir as criações de seus antecessores, voltadas para a pura admiração da imagem captada pelos olhos. Ele não se contentava mais em jogar apenas com a visão: estimulava uma verdadeira troca intelectual com o admirador de suas peças. Pode-se dizer que tudo o que se chama hoje de arte contemporânea, das Marilyn Monroe de Andy Warhol às performances de Joseph Beuys, deriva, em alguma medida, de sua idéia seminal. Quarenta anos depois da morte de Duchamp e 60 depois de o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) receber dele o projeto para a coletiva que marcaria a abertura da instituição — que nunca foi montada porque um dos organizadores do evento fugiu como dinheiro destinado ao transporte das obras —, a mostra Marcel Duchamp: Uma Obra que não É uma Obra “de Arte” abre no dia 16, no próprio MAM, com 120 peças do artista. Trata-se de sua maior individual já apresentada na América Latina. Com obras primas como Porta-Garrafas, Roda de Bicicleta, O Grande Vidro, Fonte, L.H.O.O.Q., além da central Caixa-Valise e da derradeira Etant Donnés (Dados, em francês, no sentido de alguém que enumera algo; leia sobre alguns desses trabalhos ao longo desta reportagem), a exposição traz itens nunca exibidos no país. “Ele deixou uma produção muito rica e sem nenhuma linearidade. É, até hoje, uma figura inclassificável, difícil de explicar”, diz o curador Felipe Chaimovich, que assina uma mostra paralela, intitulada Duchamp- me, só com nomes brasileiros influenciados pelo 10

francês, também no MAM, no mesmo período.

A REVOLUÇÃO DA RODA

Percorrendo a exposição, é possível ver como a arte de Duchamp é desprovida de qualquer sentido heróico. Ele não desejava levar arte às massas nem beleza ao cotidiano. Estava interessado em pensar, e pensar com companhia. O mais claro e contundente convite de Marcel Duchamp nesse sentido são os ready-made. Ao tirar um objeto comum de seu contexto usual e elevá-lo à categoria de arte, ele anunciava ao mundo: a habilidade manual do artista já não basta para definir uma obra. Na nova realidade, tomada pelas mais diferentes possibilidades de reprodução, o pensamento do autor por trás de seu trabalho — enfim, a sua idéia — se torna o mais importante. Instalar, portanto, uma roda de bicicleta sobre um banco era um jeito de fazer com que o espectador deixasse de vê-la como parte da bicicleta e passasse a admirá-la por seus contornos — e só. A escolha do objeto que sofria esse deslocamento partia do artista, e isso ganhava valor. Nasceram assim, em seu ateliê, em Paris, em 1913, os dois primeiros ready-made da história, exatamente a Roda e o Porta-Garrafas. Dois anos depois, em 1915, Duchamp se mudou para Nova York, deixando o ateliê na França sob os cuidados de uma de suas irmãs. Ao limpar o quartinho, a jovem jogou fora o que, para ela, nada mais era do que objetos velhos e sem utilidade. Duchamp teve de desenvolver mais tarde outras versões de suas mais importantes criações em solo parisiense (entre elas, a Roda de Bicicleta; a imagem que aparece na capa de BRAVO! é uma segunda versão).

A NOVA roda de bicicleta


NOVA YORK DOS SONHOS

Se na França Duchamp inventou o ready-made, foi em Nova York que ele conseguiu sair do anonimato. A própria escolha da cidade americana é tida por muitos especialistas como um ato visionário. O pintor americano Willem de Kooning falava em Duchamp como “o movimento de um homem só”. E essa imagem era tudo o que a América precisava em tempos de reconstrução, depois da Segunda Guerra, exatamente quando Duchamp se popularizou. Nos Estados Unidos, ele começou dando aulas de francês e trabalhando como bibliotecário e terminou planejando a curadoria de grandes mostras. Provocou polêmica ao adotar um alter ego feminino, Rose Sélavy — pseudônimo com o qual assinava algumas de suas obras. Duchamp protagonizou também uma vida amorosa intensa.Casou-se três vezes, foi amante da escultora brasileira Maria Martins na década de 1940 e alimentou uma paixão nada secreta da mecenas Peg gy Guggenheim. Para além da vida pessoal movimentada, Duchamp encontrou na cidade americana tudo o que precisava para desenvolver seus objetos provocativos. Foi lá que comprou, logo na chegada, os dois grandes painéis de vidro que, colocados a princípio sobre cavaletes, deram

forma ao projeto O Grande Vidro, terminado oito anos depois, em 1923. Os oito anos em que Duchamp se debruçou sobre essa obra, preenchendo-a com elementos gráficos, justificam ao menos parte de sua complexidade. Hoje, estudiosos como o historiador de arte Giulio Carlo Argan dizem que a peça remete aos desejos mais profundos do homem, sobretudo o sexual. Na parte superior — tecnicamente uma pintura sobre vidro —, identifica-se com clareza uma noiva flutuando próxima a uma nuvem. Há muitas analogias e alusões humorísticas nessa obra-prima, que tem um segundo título: A Noiva Posta a Nu pelos seus Celibatários, Mesmo. Da obra, o poeta Octavio Paz disse tratar-se de um enigma: “Portanto, não é para ser admirada, e sim decifrada”. Nada mais duchampiano. A exposição do MAM reproduz a atmosfera do primeiro estúdio de Duchamp em Nova York. A reconstituição só foi possível por meio de umas poucas fotografias, algumas fora de foco, tiradas entre 1916 e 1918 por seu amigo Henri-Pierre Roché. Ele morava num, digamos assim, pardieiro, com gavetas abertas, travesseiros pelo chão e muita, muita poeira acumulada pelos cantos. Esse ambiente desprovido 11


de glamour também serviu de cenário para a criação de seu ícone Fonte, o famoso urinol que se torna arte ao ser transportado para uma exposição. A história é ilustrativa de como Duchamp era avançado para sua época. Em 1917, ele integrava a Sociedade dos Artistas Independentes, cuja principal finalidade era organizar exposições nos moldes do Salão dos Independentes em Paris, ou seja, sem jurados e sem premiações. A mostra Independents Art Exhibition logo se tornou a maior coletiva já promovida nos Estados Unidos, com 2.125 obras executadas por 1.200 participantes. O nome de Duchamp jamais apareceu nessa lista. Ele pagou as taxas exigidas, mandou a peça no prazo correto, mas, numa contradição a todo o espírito alardeado pelos promotores da exposição, teve sua criação barrada. A história do urinol, no entanto, acabou se tornando o assunto corrente entre os visitantes da mostra, graças a um artigo que o próprio Duchamp fez circular em uma revista de arte.

OS HERDEIROS DA REVOLUÇÃO

É difícil quantificar o legado de Duchamp já que, de certa maneira, ele está em toda parte. “Andy Warhol é um dos melhores exemplos dos herdeiros mais próximos desse legado duchampiano. Como Duchamp, ele arrancou objetos do seu contexto no cotidiano e lhes atribuiu uma aura de arte, para que fossem observados em sua pureza material e simbólica, dentro de um museu”, analisa o crítico e curador Ricardo Resende. “Poderia ainda falar em Joseph Beuys, Lygia Clark e Nelson Leirner, para ficar em apenas alguns herdeiros mais evidentes.” O alemão Beuys, tido como um dos precursores das performances artísticas, levou ao extremo sua vontade de conciliar a vida e a arte ao se trancar em um quarto com um coiote, para ser filmado, em tempo integral, durante quatro dias e quatro noites. A brasileira Lygia Clark, com suas experimentações sensoriais, interativas e terapêuticas, chegou até a recusar o rótulo de artista mais para o fim de sua carreira. E o brasileiro Nelson Leirner 12

“Há muitos Duchamps além do que fez o ready-made” comunga até hoje da ousadia debochada de Duchamp. Em 1967, ele mandou um porco empalhado ao 4º Salão de Arte Moderna de Brasília (a obra pertence hoje ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo). O júri aceitou o trabalho. O próprio Leirner, que figura entre os escolhidos para a coletiva paralela de Felipe Chaimo vich, é taxativo ao dissertar sobre a importância de Duchamp em sua obra: “Ele toca passado, presente e futuro, em um processo rotativo. Invejo o tempo que Duchamp ficou jogando xadrez”, brinca o artista, aludindo ao conhecido hobby do francês. A julgar pela sua produção reduzida, parece mesmo que Duchamp se distraía com os cavalos, torres e peões do tabuleiro enquanto esperava pacientemente que o público e a crítica entendessem a complexidade de suas criações. Até hoje, esse caminho não foi inteiramente percorrido. A forma como a imprensa lidou com sua morte, por embolia, em outubro de 1968, talvez seja um bom indicativo disso. Enquanto o jornal The New York Times cravou a notícia em sua primeira página, o diário parisiense Le Figaro publicou somente uma nota na coluna sobre as competições de xadrez, tal a falta de prestígio de Duchamp na França da época. “Há muitos Duchamps além do que fez o ready-made”, diz o crítico e curador Cauê Alves. A mostra em cartaz no MAM, com curadoria de Elena Filipovic, apresenta-se como uma oportunidade para conhecer também esses outros Duchamp. “Ele foi muito mais radical que Picasso ou Matisse. Digo isso não para diminuir o talento deles, mas para enfatizar o que Duchamp fez”, diz a curadora. Ela vai ao centro da questão. Picasso e Matisse foram gênios incontestáveis — mas, como já foi dito, muitos poucos foram, como Duchamp, visionários.


Eles criaram a vida moderna Gisele Kato

Cadeiras, poltronas, móveis de escritório. Muitos dos objetos que nos cercam são inspirados no estilo dos designers americanos Charles e Ray Eames. Seus filmes sobre casas, trens, brinquedos e galáxias distantes são exibidos no Brasil

13


O

lhe em volta. Sabe aquela cadeira de plástico tão comum quanto confortável? Ou aquela mesa de escritório com as gavetas adaptadas à parte inferior de um dos lados? E a famosa poltrona de couro macio, instalada na frente da TV? As peças têm algo em comum: a influência da dupla de designers norteamericanos Charles e Ray Eames. A herança do casal está presente na maioria dos itens de mobiliário que nos cercam, dos assentos nos aeroportos e rodoviárias às mesas e cadeiras usadas em casa e no trabalho. Se escolhermos imagens para retratar o século 20, certamente muitas viriam com uma invenção dos Eames. Agora repare na foto que ilustra a abertura desta reportagem, com o casal sobre uma moto Triumph. Feita para compor um cartão de Natal enviado aos amigos, ela revela a percepção, inédita, que Charles e Ray tiveram de que a própria imagem era tão importante quanto os objetos que desenhavam. Em outras fotos, posaram sentados em suas cadeiras ou, ainda, apenas com as estruturas delas. Para Charles e Ray, o design não excluía o estilo de vida um estilo americano que, surgido após o fi m da Segunda Guerra, seria exportado para o resto do Ocidente. Nesse novo mundo, de matérias-primas mais baratas, o design deveria melhorar a vida das pessoas, com praticidade aliada a beleza. Foi com essa concepção que o casal produziu, ao longo de 45 anos de trabalho, móveis, vitrines, brinquedos e até filmes parte deles em exibição no Brasil a partir deste mês. O local de trabalho de Charles e Ray, hoje desativado, refletia muito desse imenso legado. O ateliê localizado em Los Angeles possuía corredores com paredes de madeira articulada que podiam ser arranjadas de acordo com o número de ambientes

desejados, estantes gigantes abarrotadas de livros, maquetes, gavetas com papéis de diferentes texturas, cadeiras enfileiradas, ferramentas, protótipos, pôsteres e fotos acumulados em quatro décadas. Charles e Ray Eames passavam os dias numa espécie de castelo do Professor Pardal, cercados de objetos tão incríveis quanto improváveis, suas fontes de inspiração e dedicação. Do lado de fora do prédio, ficava um lindo jardim, o lugar preferido para almoços ao ar livre. E o resto tinha pouca importância. Amigo deles, o diretor de cinema Billy Wilder contava que os dois nunca se preocuparam com moda ou roupa. Sua imagem de Charles era sempre com uma calça larga e uma camisa aberta até o peito, enquanto Ray adotou como uniforme as camisetas de mangas curtas e as saias rodadas. Vestir-se formalmente, para ela, implicava pegar uma blusa limpa no armário. Ray interpretava o pedido por traje blacktie ao pé da letra e enrolava uma gravata preta no pescoço. Charles e Ray se conheceram em 1940, na Cranbrook Academy of Art, de Chicago. Nascida em 1912, Ray Kaiser, uma artista plástica conhecida, estudava tecelagem na instituição; já Charles, cinco anos mais velho, era professor do departamento de design industrial. Ali conheceram outro designer de móveis famoso, o italiano Harry Bertoia. Interessado em metais, o italiano trabalhou com joalheria e foi ele quem desenhou as alianças de Charles e Ray, que se casaram em 1941. Nessa época, Charles já havia desenvolvido seu primeiro grande sucesso, a Organic Chair, cadeira feita de folhas curvas de madeira compensada. A criação, assinada em parceria com o arquiteto finlandês Eero Saarinen, ganhou um prêmio do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York. A

“Vestir-se formalmente, para ela, implicava pegar uma blusa limpa no armário.”

14


segunda grande peça de Charles, a Lounge Chair, já foi criada em parceria com Ray, em 1956. Em uma combinação de couro e madeira, mais luxuosa, virou símbolo dos negócios bemsucedidos nos anos 60 e 70: nenhum executivo era realmente respeitado se não tivesse um modelo no escritório. Outro grande trabalho em dupla foi a própria casa do casal, em Pacific Palisades, na Califórnia, planejada em 1949 como parte de um programa promovido pela revista americana Arts & Architecture. Préfabricada e de baixo custo, com uma estrutura de aço e paredes e janelas que deslizam, a construção, espaçosa, iluminada e versátil, é adorada até hoje por arquitetos e designers do mundo todo. Charles e Ray também fizeram filmes, que revelam seus pontos de vista, processos criativos e intimidade. Foi mais de uma centena de curtas-metragens lançados entre 1950 e 1982. Na seleção que chega ao Brasil, serão 26 curtas, com duração entre 1 e 30 minutos, divididos em cinco núcleos, que separam temas científicos de históricos e experimentais. Entre os títulos escolhidos pelas curadoras e também cineastas Silvia Hayashi e Laura Faerman, estão obras-primas como Powers of Ten, que versa sobre o tamanho das coisas no universo, e 901: After 45 Years of Working, um documentário produzido pelo neto de Charles, Eames Demetrius, sobre o lendário escritório de Los Angeles. “Sou encantada por esses curtas que selecionamos para a mostra. Neles, vemos claramente

a faceta de investigação do mundo nutrida pelo casal. Eles usaram uma linguagem nada pretensiosa, tinham o desejo de fazer filmes educativos. Seu legado vai além das cadeiras que, invariavelmente, pensamos ao citar a dupla”, diz a curadora Silvia Hayashi. A sinergia que os unia deixou uma marca profunda na trajetória do design moderno agregando confronto e simplicidade à sofisticação. Por trás de suas idéias, esteve sempre um desejo forte de tornar o mundo um lugar melhor. O que a princípio pode soar ingênuo ganha outro sentido diante da produção dos Eames. Se hoje se fala tanto na era do design na grande indústria, talvez seja importante entender que essa história começa em 1941, quando Charles e Ray trocaram alianças.


capa

Em primeiro plano

Annie Leibovitz

Documentário revela a trajetória de uma das maiores fotógrafas de todos os tempos

O

documentário “Annie Leibovitz Life through a lens’’ revela muitas faces da mais famosa fotógrafa de rock e uma das maiores de todos os tempos. Muito reservada, ela se revelou inteira para as câmeras da irmã, Barbara, diretora desse documentário filmado para a TV pública americana, no ano passado, e exibido em janeiro deste ano, nesta terça e na quarta-feira, no Festival do Rio. Ela fez seu nome nos anos 70 como fotógrafa e editora de fotografia do jornal (depois revista) “Rolling Stone’’, mas incursionou pelo mundo das celebridades e da moda através das revistas “Vanity Fair” e “Vogue”, além da política, incluindo imagens marcantes da guerra na Bósnia, onde esteve instigada por sua mentora, a escritora Susan Sontag (1933 - 2004), definida 16

no filme como a outra metade dela por ser uma mulher de palavras, enquanto Annie é uma mulher de imagens. Tudo está fartamente documentado nos 90 minutos do filme, que passam num instante para quem se interessa pelo mundo dos anos 60 para cá. Filha de militar, família grande, Annie passou anos indo de um lado para o outro por conta das transferências do pai. As andanças eram sempre registradas em fotografias. Daí o interesse que acabou se tornando profissão. Um tanto ou quanto desinformado, o pai deixou que ela fosse morar em San Francisco com uma amiga, achando que seria seguro. O movimento hippie nascia na cidade, o lugar menos adequado para conceitos conservadores dele, mas uma época maravilhosa para Annie começar a registrar freneticamente tudo à sua volta.


17


O fundador da “Rolling Stone”, Jan Wenner, conta como a contratou quando o jornal acabara de nascer, em San Francisco, como porta-voz da contracultura. Ele fala de como Annie começou a se firmar lá dentro com imagens marcantes para o crescimento da empresa que, em 1978, mudou-se para a chique Quinta Avenida, em Nova Iorque, em busca de um lugar no mainstream. Annie fez dupla muito tempo com o desvairado escritor Hunter Thompson, que ela nunca viu careta, e também usou drogas: “ A cocaína fazia a gente pensar que estava pensando”, diz ela, numa frase genial para definir esta substância emburrecedora da mente humana. Este mergulho foi incentivado pelos Rolling Stones, que a contrataram para cobrir a turnê de 1975, o auge do período drogado da banda. Keith Richards ironiza que apostou num rápido colapso dela em meio à loucura stoniana, mas Annie segurou a onda. Jagger conta no filme ter se amarrado na capacidade dela de capturar movimentos da banda no palco. Annie diz que sua filosofia de trabalho era de que só se pode capturar de verdade a essência de quem se fotografa se você se tornar parte dele. E é isso que Jagger ressalta, ao mencionar a capacidade dela de se tornar parte da turma, a ponto de ninguém se importar com o clicar constante da sua máquina. Arnold Schwarzenegger faz eco a Jagger. Ele a conheceu em 1975 quando ainda era estrela apenas do mundo fisiculturista e conta da capacidade de Annie de se tornar “um dos rapazes” e deixar todo mundo à vontade diante de suas câmeras. 18

O documentário tem muitos depoimentos mais, entre eles de Mikhail Baryshnikov, da candidata presidencial americana Hillary Clinton, da editora de Vogue Anna Wintour, da atriz Demi Moore, fotografada grávida e nua para a ‘’Vogue’’ e muitos outros. A diva punk Patti Smith conta que não se reconheceu na foto escolhida por Annie para a capa de ‘’Rolling Stone’’, mas anos depois percebeu que se tornara aquela pessoa. Yoko Ono revela que ela e John se impressionaram com Annie desde a primeira sessão de fotos em 1971, quando ela ainda era pouco conhecida, porque não parecia interessada em Lennon como celebridade. “Ela estava mais interessada em nossa essência,” conta ela. As fotos foram para a reveladora entrevista em que John disse que o sonho acabou. A última sessão foi algumas horas antes de John ser assassinado, quando ele topou posar nu, abraçado a Yoko inteiramente vestida. Annie foi feliz num momento trágico: a foto capturou a alma do casal.



EXPEDIENTE

Ilustração

Flávia Lins

Diagramação

Flávia Lins Janayna Saeger Mileny Queiroga

Agradecimentos

Patrícia Amorim

Apoio

Faculdades Integradas Barros Melo


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.