O Crepúsculo dos 88 Invernos

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Alice e Camila Machado

O Crepúsculo dos 88 Invernos

1ª edição


E

NCONTRO

Era manhã de inverno. O velhinho olhou pela janela e viu as primeiras gotas de chuva caírem no seu gélido gramado. Ele sentiu o cheiro da terra molhada. Era incrível para ele sentir o cheiro de algo que ele não sabia descrever, mas sabia que era cheiro de terra molhada. O velhinho sentou em sua poltrona de espaldar alto e pegou um embrulho que estava em cima de sua mesa de canto. Ele ficou encarando o pequeno pacote embrulhado tão cuidadosamente por um tempo até que, finalmente, ele decidiu abri-lo. Quando ele desfez o laço, encontrou um pequeno livro e um bilhete. Ele observou o livro enquanto deixava o bilhete em cima da mesinha. Era O Pequeno Príncipe o livro que ele tinha em mãos. O velhinho relutou um pouco, afinal, não estava velho demais para esse tipo de leitura? Mesmo com esse pensamento, ele pegou o livro, que era fino, e começou a folheá-lo. Logo na primeira página ele riu ao ver a imagem de uma jiboia que havia engolido um elefante. Ao constatar que não havia visto inicialmente um chapéu, mas uma cobra no desenho, o velhinho percebeu que talvez ainda fosse um pouco jovem para a leitura, ajeitando, assim, os óculos no rosto e mergulhando nas palavras do livro. Ainda no início da leitura, o velhinho ouviu uma batida na janela e se levantou para ver se via algo. Ele olhou, mas não tinha nada. Até que seus olhos pousaram na imagem de um pássaro caído no jardim. Ele observou aquela pequenina criatura parada. Parecia ter algo de errado com aquele pássaro. O velhinho, então, pegou um saco de alpiste que usava para fazer almofada e foi até onde estava o pássaro, para alimentá-lo. O pássaro continuou parado, exatamente onde estava antes. Foi aí que o velhinho percebeu que aquela linda ave estava com uma das asas quebrada. Ele se aproximou cautelosamente para ajudar aquele bichinho indefeso. Ambos estavam com medo – o pássaro de ser engaiolado e o velhinho de levar uma bicada no dedo. Ele foi cheio de cuidado ao tocar na asa


da ave, colocando uma tala improvisada nela. Depois, ele deixou o bichinho com um pouco de água e alpiste e voltou para a sua leitura. Eram quatro da tarde quando o velhinho acordou. Ele havia cochilado com o livro na mão. Ao se levantar para pegar um pouco de chá, ele viu o pássaro na sua janela. - Olha quem está aí! – Disse o velhinho. – Mas como você chegou até aqui? O velhinho acariciou o pássaro que observava o livro em cima da mesa. - Você gosta do livro? É O Pequeno Príncipe. Estou adorando a leitura. - E é sobre o quê? – Perguntou o pássaro. - Não sei, ainda estou no início. – Respondeu mecanicamente o velhinho. - Você consegue entender o que eu falo? – O pássaro estava espantado. De repente, o velhinho pareceu perceber o que estava acontecendo e parou. Ao fundo, singelas notas de “Young At Heart” soavam de seu pequeno aparelho de som. O velhinho adorava ler enquanto ouvia Frank Sinatra. Mas o que Sinatra diria se o visse falando com um passarinho? Ele tentou pensar em alguma fala, mas achou melhor deixar para outra ocasião. O velhinho simplesmente sentouse perto da janela e abriu um pequeno sorriso para o passarinho ao dizer: - Talvez seja porque eu sou jovem de coração e... – O passarinho o interrompeu, perguntando por que ele achava que essa era a resposta. O velhinho rapidamente pegou o seu livro e, então, mostrou a intrigante imagem da jiboia comendo o elefante (ou chapéu) para a ave. - O que você vê? – Ele perguntou. O pássaro prontamente respondeu que via uma jiboia comendo um elefante, embora ele achasse engraçado tal fato. - Eu também vi uma jiboia engolindo um elefante e sabe por quê? Porque, segundo esse livro, crianças conseguem ver essa imagem


dessa forma, então, suponho que como diz na música do Sinatra, eu seja jovem de coração. - E por que eu enxerguei a mesma coisa? – o passarinho perguntou em tom duvidoso. Ele não conseguia acreditar na resposta encontrada pelo velhinho. - Pelo seu instinto natural. - Mas eu poderia ter enxergado um chapéu! Todos os dias, eu vejo milhões e milhões de chapéus dos mais variados tipos. – Argumentou o passarinho, fazendo um som que parecia que ele estava prendendo o riso ao se lembrar de algum fato envolvendo um chapéu – ou era a cabeça de alguém? - Verdade, mas você viu primeiro uma jiboia, porque você está na cadeia alimentar dela como uma das presas, então, faz parte de você reconhecer um predador em potencial, no caso, a jiboia, para poder se defender. - Mas... – O pássaro tentou dizer algo, mas o velhinho se antecipou em responder. - Você me lembra muito um texto que eu li recentemente... Se não me falha a memória, era sobre os pormenores da ciência e como a sua origem influencia na sua credibilidade no meio científico. Por exemplo – o velhinho correu algumas páginas de O Pequeno Príncipe e parou na parte que falava sobre a descoberta do asteroide B 612 –, aqui, nessa parte do livro, vemos a história de um homem que descobriu o asteroide e, por causa de suas roupas características do país que veio, ele não foi levado a sério. Isso, até ele reaparecer com a mesma descoberta, mas desta vez, trajando roupas europeias. Assim é a ciência: maravilhosa, mas arrogante e, por muitas vezes, excludente. Percebendo a confusão na expressão do passarinho, o velhinho se levantou para procurar entre os papéis o texto em questão. Depois de revirar a sua organizada bagunça, ele finalmente encontrou o texto de Laraia sobre Cultura. - Aqui! – O velhinho vibrou ao encontrar o texto – Vejamos: Desde a antiguidade, foram feitas várias tentativas de explicar as diferenças de comportamento entre os homens, a partir das variações dos ambientes físicos e do aspecto biológico. No entanto, essas


diferenças não podem ser explicadas a partir desses aspectos, porque, na verdade, tudo está relacionado a educação e não ao lugar onde você nasceu ou as suas características biológicas, como etnia ou gênero. - Acho que estou começando a entender o assunto, mas não entendo por que você lembrou desse texto durante a nossa discussão inicial – indagou o passarinho. - É simples. Se eu fosse um passarinho como você ou, melhor ainda, uma galinha, talvez, ou simplesmente uma ave, provavelmente você teria aceitado, sem hesitar, a minha resposta como uma das possíveis hipóteses para estarmos nos falando. Porém, eu como um humano não sendo uma ave, estou em desvantagem, pois mesmo que eu concordasse com você que aquela imagem era um chapéu, você iria contestar de qualquer forma, só porque não temos a mesma origem. Envergonhado o passarinho pediu desculpas pela total descrença que sentira ao ouvir a explicação do velhinho sobre poder entendelo. O velhinho apenas assentiu e foi guardar o texto no mesmo lugar que estava antes. Nesse interim, o passarinho, após algumas reflexões, disse: - Mas isso não muda o fato de que eu poderia ter visto um chapéu. "Essa será uma discussão acalorada", pensou o velhinho, que, rindo, foi se sentar de novo, perto da janela. - Sabe, eu estava lendo o início do livro do Pequeno Príncipe e pensei em Descartes e... - Quem é Descartes? – interrompeu o passarinho. - Ah, era um filósofo que acreditava que a negação seria o caminho para o conhecimento. - E por que você pensou exatamente nesse filósofo? – questionou o pássaro. - Por causa dessa imagem. – O velhinho apontou para a figura do chapéu/jiboia. – Se Descartes visse isso, ele diria que é nem um chapéu nem uma jiboia, ou seja, nem um nem outro. - Como assim nem um nem outro?


- É simples, ou melhor, nem tanto. Descartes tinha como filosofia que a única verdade possível era a sua capacidade de duvidar, reflexo de sua capacidade de pensar. Logo, se não temos certeza do que a imagem é, como podemos afirmar que é um chapéu ou uma jiboia? Talvez ele até dissesse, para espanto do personagem, que aquele desenho, na verdade, era uma montanha! - Uma montanha?! – O pássaro perguntou, surpreso. - Isso mesmo. - Como alguém poderia afirmar que o desenho é uma montanha se o próprio autor do desenho disse que era uma jiboia que acabou de comer um elefante? As pessoas aceitariam essa hipótese? - Creio que sim – o velhinho, então, se ajeitou na poltrona e pigarreou um pouco, antes de continuar a falar - O status científico do ser humano só é aceito porque ele pensa, isto é, ele é um ser pensante. Isso explica por que, mesmo com a explicação do personagem, os adultos ainda enxergavam um chapéu. Na época em que ele fez o desenho, ele era uma criança e, segundo alguns estudos antropológicos, as crianças não são tidas como seres pensantes. - Suponho que nem os pássaros – constatou o passarinho. - Infelizmente. O velhinho olhou para o relógio e viu que já era bem tarde. Ele se levantou da poltrona e se despediu do passarinho, antes de ir dormir e esperar mais um novo dia. O passarinho com a sua asa quebrada foi pulando cada degrau na escada ao lado da janela e deu um curto salto para o galho de uma árvore, onde ele adormeceu.


R

ELATIVIDADE

O velhinho mal acordou e já foi pegando o livro para continuar a leitura. Ele não sabia o motivo, mas sentia muita vontade de ler cada vez mais a história do livro. Depois de mais algumas páginas, ele chegou à parte que falava sobre o encontro do pequeno príncipe com a rosa. De repente, foi inevitável. Algumas lembranças de seu passado inundaram a sua mente e ele se sentiu incapaz de continuar a leitura. Assim como a rosa do pequeno príncipe, a Rosa do velhinho também era vaidosa, nem um pouco modesta e gostava de atormentá-lo. Através da porta aberta, ele encarou o bilhete em cima da mesa e ficou se questionando o porquê de ela ter enviado aquele livro para ele. O velhinho sabia que tinha sido ela, mesmo sem ter lido o conteúdo do bilhete. Ele respirou fundo para afastar as lembranças e se levantou calmamente da cama. Como de costume, ele arrumou um pouco a casa, tomou um café bem forte e, com o livro em mãos, foi se sentar na poltrona perto da janela. A cada página que ele lia, mais e mais questões filosóficas vinham a sua mente. Sem que ele percebesse, quando o relógio marcou quatro horas da tarde, o passarinho pulou em cima da janela e ficou observando o velhinho lendo o livro. Sem ter como voar muito longe, a única distração do passarinho eram as conversas com aquele simpático senhor. - Olha só quem voltou! – exclamou o velhinho tão logo ele percebeu a presença do pássaro. - Fiquei curioso para saber o resto da história – revelou o passarinho. - Confesso que também fiquei. - Em qual parte você está? – perguntou o passarinho. - Já estou na metade do livro. Li bastante de ontem para hoje – constatou o velhinho.


- E o que Descartes acharia das coisas que acabou de ler? - Ele? Não sei... Estava pensando em outra pessoa – confessou o velhinho. - Quem? - Karl Marx – o pássaro então fez um som que parecia que estava reclamando. - O que houve? – o velhinho estava sem entender a reação do pássaro. - Karl Marx é o nome de um pássaro que anda me devendo uns favores. Não seria esse, seria? - Não, não. A menos que ele tenha reencarnado como um pássaro – brincou o velhinho. - Ok... E o que tem esse tal de Karl Marx? O velhinho voltou algumas páginas até chegar na parte do contador de estrelas. - Vou resumir brevemente essa parte: o pequeno príncipe encontrou um sujeito que vive contando estrelas e nada mais – o velhinho deu uma tossida de leve. – Ele... - Por que ele conta as estrelas? – interrompeu o pássaro. - Porque, como eu estava dizendo, as estrelas não tinham dono. Logo, ele era o dono delas, pois tinha sido ele a primeira pessoa a pensar em possuir as estrelas. - Que absurdo! Não seria mais fácil admirá-las? – questionou o passarinho. - É esse o ponto. Ao invés de ele admirar as estrelas, ele ficava as contando. E, como surgiam mais e mais estrelas a cada momento, ele ficava contando sem parar! – O velhinho deixou o livro cair no chão ao gesticular. – Foi aí que pensei em Karl Marx, porque ele lutava para que o homem não fosse prisioneiro do próprio trabalho e o contador de estrelas se auto intitulava um sério homem de negócios, sendo que ele era escravo do próprio trabalho. Tal como o acendedor de lampião. - Que acendedor de lampião?


- Depois de encontrar esse contador de estrelas, o pequeno príncipe se depara com um acendedor de lampião que vive apagando e acendendo o lampião, nunca tendo tempo para descansar. Sendo que nem ele mesmo sabe o motivo de ficar acendendo e apagando o lampião. Karl Marx diria que essa situação acontece porque o próprio trabalho alienado e a exploração da força do trabalho são vistos pelo lampião como parte do regulamento e não devem ser questionadas. É como uma matrix que esconde uma máxima escravidão do nascimento à morte. – O velhinho ajeitou os óculos e procurou uma melhor posição para ficar sentado na poltrona – acho que estou vendo filmes demais. - Como se fosse algo natural? Tipo uma ciência exata, onde dois mais dois sempre serão quatro e nunca seis? – indagou o passarinho. - Onde você viu isso? – perguntou o velhinho boquiaberto. - Uma vez, eu pousei na janela de uma escola e ouvi uma professora de física mencionar isso – explicou o passarinho. - Como sabe que ela era professora de física? - Porque eu conheço Einstein, ora! – o pássaro ficou exaltado. – Quer dizer, já ouvi falar nele. - E o que você achou dele? - Incrível, tinha uma cabeça ótima. Mas acho que não batia bem das ideias. - Por que você acha isso? – questionou o velhinho, com um tom de divertimento. - Como o tempo pode passar diferente para as pessoas de acordo com as condições em que elas se encontram? - Talvez porque, dependendo de onde você esteja, as coisas são relativas. - Como assim? - Digamos que você esteja em um momento terrível: um animal está te caçando. Você irá sentir o tempo passar lentamente, como se aquele momento nunca terminasse. Mas, agora, pense em algo bom... - Como estar aqui lendo o livro com você?


- Você acha isso? Obrigado – agradeceu o velhinho antes de prosseguir com a explicação. – Se você estiver aqui, lendo esse livro comigo, o tempo passará bastante rápido e você nem irá perceber, desejando que ele nunca termine. - Agora começa a fazer sentido para mim. - E você conheceu mais alguém da física? - Sabia que o avô do primo do meu amigo acertou uma maçã na cabeça do Newton? Ele estava tentando pegar a minhoca que estava dentro da maçã quando ela se soltou da árvore e caiu na cabeça dele. O velhinho apenas riu com a história. Com toda aquela conversa sobre tempo, ele percebeu que já estava ficando bem tarde e que ele estava cansado de ficar lendo. Então o velhinho se despediu do pássaro e terminou a leitura com o pequeno príncipe partindo para a Terra pensando na sua flor, enquanto ele também partia para a sua cama pensando na sua Rosa.


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OSA

- Não sei por quê, mas eu sentia que você iria voltar nesse mesmo horário – disse o velhinho ao conferir que o relógio marcava quatro horas da tarde – Como está a sua asa? - Melhor. Hoje até consegui voar um pouco – contou o passarinho. - Que bom. Vamos ao livro? - É o que eu mais quero! – exclamou o passarinho. - Eu já estou quase terminando o livro. Estou na parte em que o pequeno príncipe está prestes a voltar para o asteroide de onde veio. - Eu também terei que voltar em breve para o lugar de onde vim – o velhinho sentiu uma leve tristeza ao ouvir a constatação do passarinho. Era fato, é verdade. Mesmo assim, doía pensar nele indo embora. - Você me fez lembrar da raposa... - Raposa? Onde? – o passarinho ficou agitado. - Calma, é a raposa do livro – informou o velhinho. - Ah, sim. E o que tem ela? - Se deixou cativar... – ele disse mais para si mesmo do que para o pássaro. - Ela o quê? – tentou ouvir o pássaro.


- Desculpe – o velhinho se mexeu na cadeira como se tivesse acabado de sair de um transe – ela pediu para o pequeno príncipe cativá-la. - Como? - Tenho uma explicação bastante filosófica para isso. – Ele colocou o livro um pouco de lado. O passarinho, que estava na janela, voou para o ombro dele – Na ciência pós-moderna, temos alguns filósofos que falam sobre a questão da comunicabilidade. Nietzsche afirma que a comunicação é uma condição humana. No entanto, Deleuze e Guattari afirmam que a comunicação não é possível aos humanos, somente para alguns animais. - Finalmente! Passarinho 1, humano 0. – O velhinho riu com a piada. - Prosseguindo... A comunicação só é possível para alguns animais, porque eles transmitem uma informação exata, ou seja, na íntegra, para outros animais da mesma espécie. Bem diferente do que acontece com nós, seres humanos, que nos falamos por códigos cheios de significados e fazemos traduções deles constantemente. - E onde a raposa entra nessa história? – quis saber o passarinho. - A raposa é sábia. Assim que ela conhece o pequeno príncipe, ela diz que quer ser cativada e ele pergunta como. Ela então diz que ele deve se sentar bem longe dela no início e, aos poucos, ir se aproximando, mas sem falar nada em nenhum momento, porque, segundo ela, a linguagem é uma fonte de mal-entendidos. – O velhinho parou para pensar nas diversas situações desagradáveis que poderiam ter sido evitadas se muitos seguissem o pensamento da raposa. – Se levarmos em conta o que Deleuze e Guattari disseram, veremos que a raposa provavelmente estava certa. Mas,


se pensarmos em outro pensador, Habermas, veremos que o mundo é a comunicação e que, embora a ausência dela implicasse que a raposa seria cativada, o pequeno príncipe foi cativado pela rosa que apenas mentia e pelo personagem principal, se posso chama-lo assim, mesmo com ele sendo pessimista em alguns momentos. - E você? - O que tem eu? – perguntou o velhinho, que havia sido pego de surpresa pela pergunta. - Você alguma vez já foi cativado por alguém? - Se for como no livro, eu preciso revelar uma coisa que descobri. Na verdade, essa frase também sofreu com a tradução, mudando todo o sentido dela. - Como assim? - Era para ser “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que domestica” e não pelo que “cativas” – contou o velhinho. - É verdade que muda o sentido... – concordou o passarinho – mas não ficou bem melhor assim? - Creio que sim, mas isso reforça como a comunicação não é possível aos humanos porque estamos sempre fazendo as nossas próprias traduções e interpretações. - Isso é muito interessante, mas podemos voltar ao livro? Quero ouvir um pouco mais sobre a rosa do Pequeno Príncipe. Ela parece ser tão indiferente a ele, como... – Em meio a devaneios, o velhinho, de repente, interrompeu o passarinho. - Eu fui cativado uma vez, o nome dela era Rosa. Ela era exatamente como a do livro, totalmente indiferente e extremamente vaidosa.


Assim como no livro, éramos jovens demais e eu decidi ir embora. Quando voltei, ela já havia encontrado outra pessoa para compartilhar os seus sonhos. Então, tudo o que fiz foi comprar essa casa e criar um canteiro cheio de rosas para que eu me lembrasse dela sempre que eu olhasse para elas. Só que o inverno chegou e ela se foi junto das rosas. - Sinto muito... - Está vendo esse livro? – o velhinho apontou para “O Pequeno Príncipe”. – Foi ela quem me enviou. Acho que ela pensou que ia me fazer bem um pouco de leitura... O passarinho viu o bilhete que continuava no mesmo lugar, desde que o velhinho o havia deixado em cima da mesinha e, então, perguntou: - O que dizia o bilhete? - Não sei. Ainda não tive coragem de ler o bilhete. - E como você sabe que foi ela quem enviou esse livro para você? - Porque tem cheiro de rosas – revelou o velhinho. - Você não acha que está na hora de ler o bilhete? – incentivou o passarinho. O velhinho nada respondeu, apenas ficou encarando o papel em cima da mesa.


C

ATIVADO

Era uma linda manhã de inverno. O céu estava repleto de nuvens. O velhinho pegou o seu cachecol amarelo e o colocou no pescoço para se aquecer. Ele colocou um de seus velhos CDs – do Sinatra, é claro – para tocar e iniciou a leitura. Faltavam poucas páginas para encerrar o livro. Ele estava feliz porque iria finalizá-lo, mas estava triste porque isso significava que o passarinho iria embora. Repentinamente, o velhinho andou até a mesa e pegou o bilhete para ler. Estava assinado Rosa, como ele já esperava. O texto era bem curto. Ele leu e releu, até que finalmente sorriu aliviado. Não importava, de fato, o conteúdo do bilhete, só a confirmação de que a sua Rosa o amava. Ele então voltou para o livro. Eram três horas da tarde quando o velhinho ficou esperando ansiosamente pelo pássaro. Ele se sentia como a Raposa, olhando para o livro e pensando no seu querido pássaro. Mas, como ele já sabia e não podia evitar, seu amigo iria embora depois disso. Como era de costume, quando o relógio marcou quatro horas da tarde, o passarinho surgiu com um belo voo. Ele rapidamente pousou no ombro do velhinho. - Terminou de ler o livro? – quis saber de antemão. - Sim. - E o que achou da leitura?


- Eu fiquei pensando na parte em que o pequeno príncipe encontra um canteiro cheio de rosas parecidas com a dele. Ele fica incrivelmente chateado – refletiu o velhinho. - Acho que é porque a verdade dói – respondeu o passarinho. - Sim. Eu imagino esse momento como o Mito da Caverna de Platão... - O que é esse Mito da Caverna de Platão? – perguntou o passarinho. - Sabe, sentirei saudades dessas suas perguntas – o velhinho riu um pouco, antes de continuar – o Mito da Caverna é uma metáfora que tenta explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e como seria possível atingir o verdadeiro “mundo real”. - E como você pensou isso com a parte das rosas? - Quando o pequeno príncipe sai do planeta dele, é como se fosse o homem saindo da tal caverna. Ao encontrar as diversas rosas parecidas com a rosa que ele acreditava ser única em todo o universo, é como se fosse esse homem saindo da caverna e descobrindo a existência de um mundo muito maior do que ele imaginava. Em ambas as histórias, a verdade dói, mas têm finais diferentes. Com o pequeno príncipe, ele percebeu que a sua rosa continuava sendo única pelo significado que ela tinha e o homem sofreu com o significado da descoberta do novo. - Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas... – constatou o pássaro. - Exatamente, meu amigo. - Eu não queria esquecer tudo o que aprendi nesse curto tempo – disse o passarinho com uma cara triste.


- É triste esquecer as coisas, principalmente um amigo. Nem todo mundo tem um amigo. Você, passarinho, me cativou nesse curto tempo que estivemos juntos e agora irá me abandonar e eu terei que ficar apenas com as lembranças desse agora que não existirá mais no presente, mas no passado. - Sabe de uma coisa? Quando eu olhar para as nuvens no céu, eu me lembrarei de você. Porque elas parecem algodão e são acinzentadas tal como os seus cabelos. O velhinho se levantou para se despedir do passarinho enquanto ele voava para longe. E então ele sumiu por entre as nuvens. O velhinho? Ele ficou um pouco mais na janela, apenas olhando o céu. É verdade o que diz no livro: “a gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixa ser cativado”.


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