NAS PEGADAS DE CLARA carta do ministro geral dos frades menores às irmãs pobres de santa clara
Caríssimas Irmãs Clarissas, Paz e Bem! Um inefável vínculo carismático cria uma profunda comunhão entre a Ordem dos Frades Menores e a Ordem das Irmãs Pobres. Esse vínculo, misterioso e real, é o da vida e pobreza do altíssimo Senhor Jesus Cristo e de sua Mãe santíssima, que Francisco e Clara abraçaram e viveram com amorosa dedicação até o fim. Ao mesmo tempo, une-nos um afeto recíproco, continuação daquele que Francisco e Clara tiveram em sua vida. Une-nos também, por vezes mais do que qualquer outra coisa, aquilo que aparentemente diferencia o carisma específico das Irmãs Pobres do carisma dos Frades menores, isto é, a opção contemplativa, como forma própria de Frei Francisco e de Irmã Clara viverem a paixão pelo Cristo e por seu Evangelho. Por isso, caríssimas Irmãs, com esta carta de saudação pela solenidade de Santa Clara e de participação em vossa alegria de filhas, desejo partilhar convosco algumas reflexões sobre a vida contemplativa, na esperança de que vós e nós possamos seguir o caminho da contemplação que nos foi traçado por Irmã Clara. O que é contemplação? Partamos de um texto da virgem Clara. Santa Clara escreve a Inês com o intuito de ensinarlhe a contemplar. Não lhe pede que fale, cante ou reflita, mas somente que ponha sua mente, sua alma e seu coração em Cristo Jesus: “Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a alma no esplendor da glória. Ponha o coração na figura da substância divina e transformese inteira, pela contemplação, na imagem da divindade” (3In 12-13). Nisso consiste a contemplação: pôr, colocar, ordenar a mente, a alma e o coração, de forma que estejam constantemente “voltados para o Senhor”, como diz São Francisco. Ele, e só Ele, deve ser o centro da capacidade de compreensão (a mente), o centro da capacidade de amar (o coração) e o centro da capacidade de viver no mundo de
Deus (a alma). Desse modo, a contemplação abarca toda a pessoa. Uma vida totalmente habitada por Cristo Na Legenda de Santa Clara lemos: “Eralhe familiar o pranto pela paixão do Senhor: ou hauria das sagradas chagas a amargura da mirra, ou sorvia os mais doces gozos. Embriagavam-na veementemente as lágrimas de Cristo sofredor e a memória reproduzia freqüentemente aquele que o amor lhe gravara fundo no coração” (LSC 30,1-2). Como para Irmã Clara a contemplação de Jesus Cristo estava no centro de sua vida, assim deve ser para as Irmãs Pobres, até poder dizer com Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). A contemplação de Cristo deverá levar-vos a vos sentir “ocupadas”, “habitadas”, “conquistadas” pelo próprio Cristo, cujo rosto está impresso em vosso coração para ser contemplado, como esteve no coração de Irmã Clara. Ao mesmo tempo, porém, a contemplação deve ocupar toda a vossa pessoa na sua interioridade mais profunda. Desse modo podemos dizer que, como para Santa Clara, também para nós, contemplar é viver em Cristo, com ele e nele. Contemplar é deixar-se atrair, abraçar por ele (cf. 4In 28ss), descobri-lo como a razão que dá sentido à vida, deixar-se possuir por ele, de forma a ser sua “mansão e sede” (3In 22), até sermos transformados nele. Para Santa Clara, como para São Francisco, a contemplação não é, pois, um pietismo passivo, mas uma caminhada de identificação com o Senhor até a transformação em “nova criatura” (Gl 6,15), de forma a poder dizer com Paulo: “para mim a vida é Cristo” (Fl 1,21). Uma viagem para a interioridade Para Clara, a contemplação não é também uma simples atividade exterior. No texto citado da terceira Carta a Inês, Clara não fala das faculdades exteriores, que ela conhece bem e às quais faz referência em seus escritos,
mas de uma atitude interior. Isso nos ajuda a compreender outros escritos de Clara. Na quarta Carta, escreve à “venerável” e “santíssima virgem” Inês: “Olhe dentro desse espelho todos os dias..., e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto” (4In 15). Aqui, o “olhar” não é uma atividade exterior, mas é o olhar da esposa para seu esposo (cf. Mt 25,6). É um olhar com o afeto que permite perceber profundamente o mistério da pessoa de Jesus Cristo esposo. É um “olhar” marcado totalmente pelo amor, um “olhar” do coração que ama e que reconhece, através do amor, que Jesus é o centro da própria vida. Nesse sentido, podemos dizer que somente a esposa tem condições de ter tal “olhar”, para perceber e ouvir a voz do amor que lhe está próximo. Somente a esposa de “coração puro” é capaz de ter semelhante olhar (cf. Mt 5,8). Uma atitude constante Exatamente porque os verbos “pôr” e “olhar” indicam em Clara uma atitude interior, a contemplação para ela não é reservada aos momentos de oração, mas se caracteriza por uma atitude permanente: “todos os dias”, “continuamente” (4In 15). A contemplação de Jesus como esposo necessita de constância, de tempo. Não basta “olhar” inconstantemente ou segundo as próprias necessidades ou gostos; é necessário “olhar constantemente”, “continuamente”, todos os dias”. Só a constância no “olhar” leva a intuir a glória e a beleza do esposo. Porém, a constância em “olhar” o exemplo, que é Cristo, deve ser acompanhada pela vigilância, como no caso das virgens sábias do Evangelho, que vão ao encontro do Senhor: “Ore e vigie sempre. Complete apaixonadamente a obra que você começou bem” (Er 13-14).
contemplação que nela aprendem tudo que deve ser feito ou evitado por elas, e de modo feliz aprenderam a deixar-se arrebatar com a mente em Deus, perseverando dia e noite nos louvores divinos e orações” (1Cel 20,3). Segundo esse texto, para as irmãs a contemplação não é um peso, um dever, mas uma alegria profunda – “aprenderam de modo feliz” –, a alegria que a esposa experimenta ao contemplar o rosto do esposo, mais ainda porque aqui se trata “do Rei dos reis”, “do Senhor dos senhores”, “do sumo Rei dos céus” (2In 1; 3In 1). Clara e suas Irmãs sabem que confiaram sua vida àquele cujo aspecto é o mais belo, cujo amor é o mais suave e, portanto, o amor dele as torna felizes (cf. 1In 9; 4In 1012). No coração de Clara, pode-se intuir o eco da esposa do Cântico dos Cânticos: “Melhores que o vinho são tuas carícias, melhor é a fragrância de teus perfumes, teu nome é um perfume refinado; por isso, as jovens de ti se enamoram” (Ct 1,3). Como pode ser um peso ficar com o esposo, sentir-se amado por ele? A transformação em Cristo “Para enfeitar-se toda, interior e exteriormente... das virtudes todas (4In 16-17). A contemplação leva à transformação interna e externa da pessoa contemplativa. O termo “virtude” está aqui para indicar a vida nova, a vida em plenitude, que se adquire graças ao “olhar” que permanece fixo no Espelho e, à luz do Espelho, fixo em si mesmo. O confronto livre e autêntico entre Cristo e a pessoa que contempla transforma a pessoa naquele em que resplendem todas as virtudes, sobretudo a pobreza, a humildade e o inefável amor (cf. 4In 18-26). Essas virtudes são o prêmio da contemplação. Desse modo, a contemplação, que tem como coração o amor nupcial, conduz ao amor total: “Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade, ó rainha do Rei celeste!” (4In 27).
Uma atitude feliz Referindo-se à forma de vida das Irmãs Pobres de São Damião, em 1228, quando Clara tinha 34 anos, Tomás de Celano escreve: “De tal modo alcançaram o mais alto grau da
Para Clara, a contemplação leva a uma vontade decidida de identificar-se, até o abraço unitivo, com o Senhor, na pobreza e no aniquilamento, descoberto nele graças à contemplação. E o sinal visível dessa
transformação em Cristo é o amor sem limites. Clara o dirá com uma terminologia de enamorada, tomada do Cântico dos Cânticos: “Suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor, proclame: Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor dos teus bálsamos, ó esposo celeste! Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega, até que tua esquerda esteja sob a minha cabeça, tua direita me abrace toda feliz, e me dês o beijo mais feliz de tua boca” (4In 29-32).
dar a razão de nossa opção vocacional. Jesus deve ser a alma de nossa oração e o centro de nossa vida. Que lugar ocupa a pessoa de Jesus em nossa vida? Se quisermos nos tornar contemplativos, devemos deixar-nos abraçar por Deus e por seu mundo. Contemplar é ter consciência de Deus em nossa interioridade: “Viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14,23). Contemplar é transformar-se em Jesus Cristo, ter os mesmos sentimentos de Cristo (cf. Fl 2,5).
Na contemplação, as Irmãs Pobres aprendem “o que devem fazer e evitar”, observa Celano. A contemplação não é uma “fuga” da vida, mas um compromisso para chegar a uma vida conforme a vida daquele que é o objetivo e a meta da contemplação.
Unidos a vós nesse dia solene, nós, Frades menores, participamos de vossa alegria e nos associamos em vosso louvor ao Deus altíssimo, a seu santíssimo Filho e ao Espírito consolador, pela graça da contemplação com a qual adornou sua serva, a virgem Clara. E, de minha parte, invoco sobre todas vós a plenitude das bênçãos divinas.
Minhas caríssimas Irmãs, nossa opção de vida só se justifica por Jesus Cristo; só Ele pode
Vosso irmão menor
Roma, 11 de agosto de 2006, Festa de Santa Clara.
Frei José Rodríguez Carballo ofm Ministro geral
Prot. N. 096943