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FRATELLI TUTTI: O CORAÇÃO DE FRANCISCO Pe. Gilvair Messias da Silva

Desde sua eleição, no dia 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio, ao tornar-se Francisco, tem mostrado com transparência o seu coração. A escolha de seu nome já o identifica ao projeto pastoral de seu pontificado. Sem ousadia nenhuma, podemos afirmar que o mundo habita seu coração e ele é um habitante do mundo. Em tudo, ele é secular, um homem preocupado com o seu tempo. Eclesialmente, sem vaidades e pobre de espírito, é “prudente como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,16). Sabe bem que se encontra no meio de lobos. Entendeu, desde o princípio, que seu serviço à Igreja é ser bispo de Roma, “presidindo as demais Igrejas na caridade” (de seu discurso inaugural). Contudo, sua atuação incomoda a muitos, por mostrar-se muito franco, espontâneo e polêmico em discursos. Não foge às perguntas do homem de nossos dias. Sua presença é sempre atual. Fratelli Tutti (Todos Irmãos) é a sua terceira encíclica, somada às cinco exortações apostólicas, contando propriamente um documento de peso em cada ano de seu pontificado. As declarações em entrevistas, catequeses, homilias e postagens diárias nas redes sociais nos mostram um Papa cuja preocupação fundamental é a irmandade entre os homens. Francisco não fala somente aos católicos. Ele se comunica com o mundo, com os grandes e pequenos. Toca impreterivelmente a pobreza em todas as suas facetas. Podemos ver neste seu mais novo documento suas intuições centrais, sendo talvez este o coração de seu magistério ao sintetizar abordagens presentes nos demais escritos. Fratelli tutti [sobre a Fraternidade e a Amizade Social] é como uma família ao redor da mesa em um almoço de domingo. Nela, todos os irmãos são contemplados, com a diversidade de problemas, desafios e esperanças.

Quem é o meu irmão? Clássica pergunta bíblica sobre quem é o irmão. Deus interpela Caim sobre onde estaria o seu irmão (Gn 4,9-10). Sua resposta é muito indiferente, nega-lhe qualquer compromisso e proteção. Em Jesus, Deus não pergunta do irmão, mas faz-se irmão até à mesa final da cruz, cuja Eucaristia reuniu a todos em seu sangue. O texto do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), mediante a pergunta de um especialista em leis sobre “quem seria o seu próximo”, traz uma questão de Jesus, tornada primordial: “quem é que se fez próximo?” Deste modo, ser próximo ou ser irmão é mais importante do que classificar os níveis de proximidade e de parentesco, algo comum na cultura judaica. À semelhança de Francisco de Assis, ao encontrar-se com o Sultão Malik-alKamil no Egito, o Papa Francisco toma os caminhos e trilhas do santo umbro e encontra-se com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb em Abu Dhabi. Juntos ouviram-se, ouviram o mundo a partir de escutas tão diversas e simultaneamente tão semelhantes. Fratelli tutti é resultado desta escutatória de Francisco. Ele nos fala a partir de Roma, mas com o coração de viajante, de quem foi longe para dizer aos que estão mais perto; fala-nos ainda como narrativa de um encontro de irmãos à beira da estrada do mundo. As sombras dum mundo fechado No primeiro capítulo, “As sombras dum mundo fechado”, o Papa olha para as barreiras impostas ao mundo nos últimos anos, as quais limitam o encontro de irmãos e impõem uma cultura do medo e da defesa da outra margem da estrada. Ele recorda que, após as guerras do século XX – tempestades e dilúvios da contemporaneidade, sinais de esperança cruzavam o céu da humanidade. Esforços foram alcançados no sentido de uma Europa unida, de uma integração latino-americana, de pacificação entre países em conflitos.


Contudo, a regressão está ante os olhares mais atentos. Cresce uma falsa nacionalização, como intento de unidade territorial, que não passa de um egoísmo das novas ideologias dos interesses nacionais. Francisco aponta a gravidade dos atuais colonialismos, disfarçados de abertura ao mundo. Trata-se meramente de uma abertura ao capital estrangeiro ou de uma liberdade econômica de potências mundiais para investimento em todos os países, geralmente mais pobres e com a economia local defraudada ante a invasão das forças externas. Os países bem-sucedidos são postos como modelos culturais para os mais pobres, desprezando toda a identidade da tradição. O “globalismo” empobrece as culturas locais. A unidade mundial não passa de uma falsa ideia quando o que ocorre é uma massificação dos povos. Dia após dia, vê-se que os países estão mais solitários e jogados à própria sorte, sem nenhuma fraternidade de seus contíguos. Um mundo de vizinhos é uma ilusão pregada por estes mercados exploradores, os quais são os primeiros a construir fronteiras e impedir aproximações. Assiste-se, portanto, ao espetáculo do mercado consumista imposto pelos grandes programadores econômicos, causando subsequentes formas de egoísmos e a corrosão da vida comunitária. Muitas conexões virtuais e pouco senso de realidade e de fraternidade são avistados nas redes sociais. Nestes circuitos, notícias falsas fomentam preconceitos, ódio e fanatismos, em tantos casos [infelizmente] por cristãos. Nestes espaços, eliminam-se as pessoas sem possibilidade alguma de diálogo, criando realidades de isolamento e aversões. São tempos nos quais o diferente de si mesmo é objeto de exclusão. Outra grande preocupação do Papa é a perda do sentido histórico, como se a liberdade humana autorizasse uma espécie de “desconstrucionismo” para um tempo sem antecedentes, de um egoísmo que rejeita a companhia do passado em vista de um presente que possa começar os seus fatos a partir do zero. Esta colonização cultural avança sobre o mundo de muitas formas, geralmente submetendo as consciências a um negacionismo dos grandes ensinamentos históricos, do esvaziamento e manipulação das “grandes palavras”. É a perda total do senso crítico, num adoecimento coletivo que outorga o mínimo de bom senso a uma integração usurpadora das conquistas comunitárias. Palavras como justiça, democracia, unidade, liberdade foram desfiguradas e esvaziadas. São agora dominadas por aqueles que as utilizam em títulos desprovidos de conteúdo e justificativas para o que chamam de defesa da verdade pura. A apologia de alguns valores disfarça a ferocidade destas novas formas de domínio, com estratégias que continuamente semeiam a desconfiança, nega qualquer pensamento histórico-científico elaborado e culpa toda e qualquer diversidade pelo sofrimento e desânimo presente. Neste caso, o vizinho caído na estrada é o inimigo! Francisco fala do descarte humano, quando muitos idosos são vistos como restos sociais. Cresce a pobreza em um tempo que desenterra o racismo dos escombros da humanidade, que aumenta as filas dos desempregados sem nenhum projeto satisfatório de cuidado aos que se encontram na linha da miséria. Uma mentalidade xenófoba defende países em justificativas político-econômicas liberais, tratando migrantes como perigosos à estabilidade nacional, sendo que estes apenas deixaram suas terras por razões de violência, guerras, perseguição e catástrofes naturais. Nos novos países, são tratados não raramente com desprezo e com direitos reduzidos, com restrições que tocam princípios humanos universais. Este fenômeno se apologiza através da continência nacional. Diante da pandemia, provoca Francisco, está superada toda pretensão nacionalista – ninguém pode e consegue salvar-se sozinho. O modelo econômico fundado no lucro não dá vez e tampouco voz a uma grande parte da população mundial, comprometendo assim os direitos humanos e ampliando as formas de violência. Abandonadas por este sistema utilitarista, as pessoas são entregues ao desamparo, ao medo, à insegurança – terreno fértil para o alastramento das máfias. A deterioração ética abre espaço para irresponsabilidade dos gestores, o que causa uma imensa frustração e sentimento de desespero ante toda forma de incerteza. A exploração desenfreada dos recursos naturais atropela a noção de economia solidária e o conhecimento primitivo dos povos originários das terras entregues ao superfaturamento.


Um estranho no caminho A parábola do bom samaritano indaga quanto às nossas identificações. Questão emblemática, pois a identificação estabelece limites. Nela está uma projeção de nós mesmos, portanto não fomos muito longe daquilo que já fazemos. A travessia para o outro lado da estrada, para a outra margem é a dinâmica da encarnação e da missão de Jesus. Não há “outro” sem um “eu” desnudado de si, esvaziado. Diante do outro, o caminho é o dele mesmo, desidentificando-se para que ele seja quem mesmo é. Só assim, reconhecemonos outro, a partir do que aparentemente não somos. Na linguagem do bom samaritano, todos temos um pouco de cada personagem – de salteador, de levita e sacerdote, de arruinado e ferido, de caridoso e bom. Francisco aponta que “a história do bom samaritano se repete: torna-se cada vez mais evidente que a incúria social e política faz de muitos lugares do mundo estradas desoladas, onde as disputas internas e internacionais e o saque de oportunidades deixam tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada” (n.71). Levita e sacerdote são figuras daqueles que se isolam da realidade ou que a negligenciam, passando ao largo. São representantes da indiferença e do desinteresse pelo outro. Quando esta situação é admitida institucionalmente, as figuras do desprezo ganham notoriedade em seus discursos de pureza e candura. Os asfixiados pelo pó da indiferença dos transeuntes sentem-se abandonados pelas instituições que deviam protegê-los. Tornar-se próximo [mesmo geograficamente, religiosamente e partidariamente não sendo] é o enfrentamento pessoal e humanitário que nos ensina o bom samaritano. Na peça de Terêncio, “O Atormentador de Si Mesmo”, uma máxima torna-se muito conhecida: "Homo sum; humani nil a me alienum puto” (Sou humano; nada do que é humano me é estranho). A expressão é atribuída a um escritor que antecede o evento Jesus Cristo, contudo compartilhada por Francisco ao recorrer aos princípios fundantes de humanidade, aparentemente dispersos na atualidade. Ele lamenta o tempo pelo qual a Igreja demorou a reconhecer e a condenar a escravatura e outras violências da história e pontua: “Todavia, ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o humanismo que inspira, deve manter vivo um sentido crítico perante estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se” (n.86). Pensar e gerar um mundo aberto No terceiro capítulo, o olhar de Francisco se dirige às periferias. Ele as define como lugares de “forasteiros existenciais”. Periférico é todo aquele que, mesmo em sua pátria, sente-se como se não pertencesse a ela. Ou, mesmo em sua família e comunidade, não se vê integrado ao meio. São “exilados ocultos”, tratados como corpos estranhos à sociedade, a qual cria barreiras para a inserção de pessoas com deficiência bem como negros, homossexuais, índios, sem teto e sem-terra, sem trabalho etc, todos sem verdadeira cidadania. O Papa não faz apologia a uma igualdade ilusória. Ele entende que a globalização acena este tipo de nulidade das diferenças, destruindo a riqueza das singularidades. O que é urgente, afirma Francisco, é que a família humana aprenda “a viver conjuntamente em harmonia e paz, sem necessidade de sermos todos iguais!” (n.100). Diante do homem desamparado da parábola, personagens transitam. São nomes, representações, grupos sociais, ideias e figuras altaneiras. Somente o pobre ignorado é anônimo, talvez para poder representar todas as vítimas da impassibilidade humana. Ao samaritano é dado o adjetivo “bom”, podendo indicar que o importante não é a função, a origem, a etnia e outras possíveis classificações dadas a alguém, mas indubitavelmente se ele é bom, se é caridoso e prestativo, se é capaz de compadecer-se, se não usa de fraudes em seus negócios (cf. Sl 111). “Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples fato de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento” (n.121). Francisco fala do crescimento atual de grupos


identitários, tornando-se separatistas a partir de critérios seletivos que desqualificam e, por vezes, criam tensões e violência àqueles que se opõem. Este fenômeno não fomenta uma relação de próximos, apenas sócios, a partir de específicos interesses comuns. Nem todas as pessoas nascem em famílias com adequadas condições econômicas. Algumas não têm necessidade de um Estado ativo, muito embora careçam de liberdade. Cabe a estas colaborar com aquelas que se encontram em lugar de miséria. O Papa roga que os empresários, no atributo de seus dons, colaborem com os pobres, sobretudo com a promoção de trabalho. Não desconsidera o direito à propriedade privada, como já expõe a doutrina da Igreja, mas o submete ao direito comum do destino universal dos bens da terra. Deste modo, ninguém é estrangeiro e estranho em um país. Para aquelas pessoas que vivem na escassez de recursos, cabe ao poder público socorrê-las em suas necessidades e compreender que não há crescimento econômico sem dignidade humana. “Investir a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas econômicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum” (n. 108). A sociedade é lugar de transmissão de valores, que começa na família, e se elabora por uma autêntica educação para o cuidado ao próximo e à casa comum. “Cada sociedade precisa garantir a transmissão dos valores; caso contrário, transmitem-se o egoísmo, a violência, a corrupção nas suas diversas formas, a indiferença e, em última análise, uma vida fechada a toda a transcendência e entrincheirada nos interesses individuais” (n.113). Para que tudo isso se garanta é intrinsicamente necessário que a ordem pública proteja a vida privada, tendo um Estado que dê o mínimo de condições ao exercício do bem-estar social, da justiça e da cidadania.

Um coração aberto ao mundo inteiro No quarto capítulo, o Pontífice apresenta algumas sugestões para a proximidade entre os irmãos. A primeira delas, refere-se aos migrantes, rejeitados em sua própria pátria, que merecem quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Não se trata aqui de uma mera oferta de programas assistenciais, mas de construir um caminho de emancipação humana com estes irmãos. Isso, contudo, não implica a perda da identidade de seus países de origem nem daqueles de acolhida. O rumo é o da cidadania, que renuncia ao conceito discriminatório de minorias, “que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da inferioridade” (n.131). O encontro de histórias culturais distintas não é destruição de valores, mas enriquecimento mútuo, acredita o Papa. Para ele, o momento pandêmico demonstra notoriamente que todos se salvam juntos ou morrem juntos. Nele, Oriente e Ocidente têm a oportunidade de um caminho de paz e de aprendizado comum. Do Oriente, o Ocidente pode encontrar remédios espirituais para a doença do materialismo. Do Ocidente, o Oriente pode encontrar elementos científicos, técnicos e culturais contra os conflitos e a divisão. Francisco, com isto, propõe um intercâmbio cultural fecundo. Ao pensar em um país, deve-se simultaneamente pensar na família humana. Os nacionalismos fechados são incapazes de gratuidade e colocam em risco a vida mundial. “Hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população” (n.153). Em “Querida Amazônia”, o Santo Padre já propõe o resgate das culturas ancestrais e sua valorização, sem cair em um certo “indigenismo”. Aqui ele considera que: “na realidade, uma sã abertura nunca ameaça a identidade, porque, ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma cópia nem mera repetição, mas integra as novidades segundo modalidades próprias” (n.148).


A política melhor No quinto capítulo, o Papa reitera a importância de uma autêntica amizade social para a comunidade humana por meio da eficiência política. Ela é, por sua natureza, lugar do bem comum e da caridade. “A boa política procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar os seus efeitos desagregadores” (n.182). Na parábola do Bom Samaritano, ao homem ferido foi oferecida uma estalagem, um lugar onde pudesse se recompor. A política não é mero discurso social, mas enfrentamento de problemas humanos comuns, é a caridade mudando as condições sociais de sofrimento com processos de fraternidade e de justiça. Entretanto, seu exercício atual é dificultado por dois fatos principais, os populismos e os liberalismos. Diferentemente de um líder popular, os populistas utilizam o povo para fins individuais, partidários, para uma elite que garante a manutenção do poder. “Os grupos populistas fechados deformam a palavra ‘povo’, porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De fato, a categoria ‘povo’ é aberta. Um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses, assumindo em si o que é diverso. E fá-lo, não se negando a si mesmo, mas com a disposição de se deixar mover, interpelar, crescer, enriquecer por outros; e, assim, pode evoluir” (n.160). Para os liberais, a categoria povo não é a relação de vínculos comunitários e culturais de um grupo, mas a soma de interesses individuais que coexistem em um determinado espaço. Para eles, o mercado por si só é capaz de resolver os problemas sociais. No entanto, hoje se vê que “sem formas internas de solidariedade e de confiança mútua” o mercado econômico não consegue cumprir seu papel. Atualmente não há um modo mais eficiente de pensar a política e a economia fora da participação popular, que reúna as forças dos movimentos populares às estruturas de governos locais e internacionais. Os problemas humanos são de todos, pertencem ao mundo. Não existe, sustenta o Papa, por exemplo, uma política social para os pobres, mas com os pobres. Uma visão político-econômica monocromática cria limites à participação e à integração de todos em questões que são comuns. Daí resultar-se necessário o fortalecimento de instituições internacionais eficazes e imparciais no combate às principais questões mundiais, dotadas de representatividade e de poder (como o de sancionar países, com base em seus próprios acordos). O amor social que é exercido através da política, alerta o Papa, deve levar necessariamente à superação mundial da fome. Alimento não é uma mercadoria qualquer do mercado. Assim, quando o preço dos alimentos é condicionado à especulação financeira, milhões de pessoas passam fome (Cf. n.189). Há que se tomar cuidado com determinadas políticas sociais que apenas “apaziguam” o pobre, deixando-o passivo diante de seus problemas.

Diálogo e amizade social Para qualquer exercício de fraternidade faz-se necessário o diálogo, ausente em nossos dias com a proliferação dos diversos egoísmos. Nenhuma boa política se faz sem ele. Entendamos aqui que diálogo não é conversa entre iguais, entre pessoas e grupos que se identificam. Por isso, ele exige maturidade psíquica, comunitária e social. Quem não dialoga pode imediatamente rever seus conceitos e crenças. Algo não vai bem! A intolerância ao diálogo é sintoma de fechamento em si mesmo ou em seu grupo. E a incapacidade de dialogar com as divergências, por melhor que seja alguém ou seu grupo, por mais nobres que sejam suas defesas, torna-o doentio. A incapacidade de διάλογος (diá+logos), de estar diante de um outro (dia) em produção conjunta de conhecimento (logos), é perigosa, ao atribuir ao adversário predicados humilhantes. Geralmente, quando isto ocorre na política, atinge o pior do ser humano em sua habilidade destrutiva. Todavia, na maioria das


ocasiões, há uma justificativa pública convincente de que o aviltamento é de ordem política, ideológica ou religiosa para salvaguardar a ordem social. “A falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar” (n.202). Por falta de diálogo, chega-se à grave negação de conquistas históricas, feitas com muita discussão e produção orgânica, às custas de interesses rasteiros perversos, capazes, inclusive, de rotular destrutivamente o que lhes é oposto. “Caso contrário, não poderia porventura suceder que os direitos humanos fundamentais, hoje considerados invioláveis, acabassem negados pelos poderosos de turno, depois de terem obtido o ‘consenso’ duma população adormecida e amedrontada?” (n.209). O Papa conclama a todos ao laborioso diálogo. Evidentemente que não se trata do caminho mais fácil, tampouco o mais tranquilo e breve. Porém, é a travessia do samaritano, o qual tornou-se bom porque foi capaz de atravessar a estrada, fazer companhia, ver e ouvir o oposto. Ele teve o prazer de conhecer o outro e de exercer sua amabilidade. O sacerdote e o levita poderiam ser os bons da parábola. Isso não aconteceu porque ficaram em si mesmos, não fizeram Páscoa, não atravessaram, não saíram de si. “O que conta é gerar processos de encontro, processos que possam construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com as armas do diálogo! Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro!” (n.217).

Percursos de um novo encontro

Aqui, no sétimo capítulo, Francisco abre os sulcos da paz. Diz-nos que sua conquista é, antes de tudo, um exercício penitencial em relação ao passado. A paz no mundo não se faz sem a cura do perdão. Há muitas cicatrizes e feridas ainda expostas de uma sociedade historicamente machucada. O caminho é ir à verdade dos fatos sem o espírito da vingança, mas com o desejo de reconciliação. “A verdade é contar às famílias dilaceradas pela dor o que aconteceu aos seus parentes desaparecidos. A verdade é confessar o que aconteceu aos menores recrutados pelos agentes de violência. A verdade é reconhecer o sofrimento das mulheres vítimas de violência e de abusos” (n.227). Geralmente, grupos hoje considerados antissociais provém de um grande desprezo histórico, marcado pela falta de inclusão social. A paz não se constrói com a homogeneização social ou com o aparelhamento de princípios (como igualdade, fraternidade, liberdade) para uns poucos. Trata-se de um processo lento e artesanal, de um trabalho conjunto com pesquisas comuns. Em muitos casos, a paz surge de muitos conflitos, os quais são positivos quando concorrem para “negociações transparentes, sinceras e pacientes”. O erro seria enterrar o conflito e cristalizar os clamores em silêncios apaziguados, para perpetuar uma sociedade sem memória. As atrocidades do passado devem ser lembradas para não serem repetidas. Apagar a chama da consciência coletiva é um dos maiores danos cometidos contra o ser humano. Por isso, os fatos históricos “devem ser recordados sempre, repetidamente, sem nos cansarmos nem nos anestesiarmos” (n.248). Não perder a memória dos acontecimentos atrozes significa não permitir que o mesmo erro recaia sobre a humanidade, muito embora seja necessário o perdão para não que não se utilizem as mesmas armas do passado no afã da vingança. A violência, de qualquer forma, deve ser destruída e não lhe cabe legitimidade. Neste aspecto, o Pontífice destaca sua aversão a todo tipo de guerra. “A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal” (n.261). Francisco sugere que todo investimento armamentista seja utilizado para a superação da fome e a promoção da paz. Deste modo, nem o pior de todos os criminosos merece a pena de morte, não obstante deva ser


punido – sem, contudo, ser morto. Este é um apelo de Jesus no alto da cruz, do qual todos somos testemunhas e anunciadores.

As religiões a serviço da fraternidade no mundo Para o caminho da fraternidade, do diálogo, do perdão e da paz, Papa Francisco conclama as religiões, a partir de seu encontro com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, a protagonizarem a esperança de um mundo novo. Esta é a grande contribuição que elas podem oferecer à humanidade. “Buscar a Deus com coração sincero, desde que não o ofusquemos com os nossos interesses ideológicos ou instrumentais, ajuda a reconhecer-nos como companheiros de estrada, verdadeiramente irmãos” (n.274). De outro lado, coibir a liberdade religiosa é colocar o homem diante de ídolos, expulsando-o do sentido de sua própria existência. Todo ato verdadeiramente religioso não permite o terrorismo, a violência fundamentalista ou a politização da fé. Os líderes religiosos são verdadeiros “dialogantes”, mediadores autênticos dos valores fundamentais da humanidade, dos quais não abrem mão. Com o Grande Imã, o Pontífice declarou “que as religiões nunca incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – em algumas fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens (…). Com efeito, Deus, o Todo-Poderoso, não precisa ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas” (n.285). O Papa encerra Fratelli Tutti convidando a todos para uma verdadeira fraternidade universal, a qual entende ser a natureza católica da Igreja – a amizade dos povos e culturas. Assim, da caridade de Roma pela qual preside as demais Igrejas, ele dialoga com o mundo no espírito do Vaticano II. Este é o coração de Francisco: universal. Cabem nele um líder sunita ou xiita de mãos dadas, os órfãos, as viúvas, os refugiados, os exilados de suas pátrias, as vítimas das guerras e dos conflitos, os prisioneiros e os torturados. Também cabe o desejo de fraternidade que vence as políticas integralistas e os sistemas econômicos que produzem miseráveis às custas de grandes capitais. Cabem, ainda, o Evangelho - capaz de descortinar as ideologias odiosas institucionalizadas na política e na religião - e até mesmo a misericórdia diante do pecador socialmente condenado. No coração de Francisco cabe a estrada e também o seu outro lado. No coração de Francisco, todos são irmãos! Este é o seu Pontificado, esta é a sua Igreja.


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