A Noiva do Conde Louco Loretta Chase
Um Conde cujas enxaquecas são consideradas um sintoma de loucura e que está à beira da morte, e uma ruiva de olhos verdes capaz de lhe dar o herdeiro que tanto deseja.
Revisão: Mel Formatação: Vicky
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Prólogo Devon, Inglaterra Junho de 1820 O Diabo tinha predileção por Dattmoor. Em 1638, desatou uma tormenta no Widdecombe, arrancou o telhado da igreja com um relâmpago e levou um menino que estava dormindo durante o serviço. E essa não foi mais que uma de suas muitas aparições pessoais. Satã aparecia com mais freqüência sob a forma de um enorme sabujo negro ou um potro fantasmagórico que galopava nos paramos. A ninguém surpreendia esta afeição, pois nada podia adaptar-se melhor à natureza satânica de Dartmoor. As tormentas castigavam as terras altas rochosas, que se erguiam, teimosas, no caminho dos montes do Atlântico. Ventos pesados e úmidos formavam redemoinhos nos vales e envolviam as aldeias em névoas impenetráveis, que cortavam durante dias toda comunicação e toda possibilidade de viajar. E depois estavam os pântanos que enchiam os buracos e fendas das terras altas e se contraíam e inchavam com cada mudança de clima e de estação. Atravessando este território hostil, retorciam-se estreitos caminhos de uma terra firme, mas inclusive estes podiam ser perigosos. De noite, em meio da névoa ou de uma tormenta, não era difícil que o viajante despreparado se perdesse e, se tinha um excesso de má sorte, escorregasse em um pântano do qual jamais poderia sair. Havia quem acreditasse que os pântanos eram armadilhas que o Diabo mesmo colocava, para chupar as vítimas diretamente até o inferno: isto dizia Aminta Camoys a seu filho. Era a primeira visita que Doam Camoys, de vinte e três anos, fazia a Dartmoor, e a primeira vez que via sua mãe desde o Natal. — Quanta consideração de Archicanalla depois de ser asfixiado lentamente pelas areias movediças, o desafortunado pecador se topará com as torturas do inferno, que afetarão menos a sua sensibilidade. A mulher assinalou um retalho de terra verde, em meio as desoladas extensões. — Há alguns de um verde viçoso, como esse. Há um maior, uns oitocentos metros mais adiante, mas é cinza, muito melhor para camuflagem. A tarde tinha sido luminosa e morna quando saíram a cavalgar, mas agora um vento gelado girava ao redor, e apareciam nuvens cinza que arrastavam a suas predecessoras brancas e envolviam a zona de paramos em sombras. — Obrigado pelas indicações, mãe — disse Dorian. — Mais estou convencido de que poderei encontrar o caminho do inferno. — Acredito que já o encontraste. — A mulher o olhou e riu — Tal mãe, tal filho. O filho se parecia com sua mãe de mais modos que os que qualquer podia suspeitar. Embora fosse muito mais alto, com mais de metro e oitenta, o parecido físico era inconfundível. Enquanto que seus rasgos eram nitidamente masculinos, na atualidade pálidos e inchados por meses de dissipação, procurada com tanta diligência como a que aplicava aos estudos, tinha o mesmo rosto de modelo exótico. Nesse momento, ninguém teria suspeitado que também a mãe fosse aficionada aos pecados da carne. O único que sabia, além de seus amantes, era precisamente o filho. Dorian
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era seu único confidente. "Minha mãe, a adúltera", pensou, contemplando-a. Igual a ele, detestava os chapéus, e até lhe incomodavam os que significavam uma modesta concessão à correção social. Tirou o chapéu logo que ficaram fora da vista da casa. O espesso cabelo negro, como o de seu filho, embora muito mais longo, castigava-lhe o rosto e o pescoço, agitado pelo vento que aumentava. E quando se voltou para ele, contemplou o mesmo olhar amarelo, fixo. Por causa da estranha cor de seus olhos e de seu olhar desconcertante, e também porque se isolava de qualquer um que se aproximasse muito, os companheiros do Eton lhe tinham posto o apelido de Gato. O apodo o seguiu para Oxford. — Será melhor que tome cuidado — lhe disse sua mãe. — Se seu avô descobrir que o motivo de sua palidez não é só o estudo, encontrará que esses planos que riscou com tanto cuidado serão varridos pela tormenta de sua ira. — Ensaiei o suficiente a ingenuidade para estar seguro de que não me descubra — disse Dorian— Pode ficar tranqüila; no Natal terei um aspecto enganosamente são, quando tiver que receber o discurso anual destinado a guiar minha conduta durante o resto do ano. Depois verei como revisa, possivelmente pela centésima vez, cada centavo dos relatórios acadêmicos, procurando uma desculpa para me fazer sair da universidade. Mas não encontrará essa desculpa, por mais que a busque. Terei meu título, com honras, ao final do seguinte término de Páscoa, e se verá obrigado a me recompensar com um ano de viagem ao estrangeiro, como tem feito com os outros. — E não retornará. — disse a mãe. Afastou-se e voltou à vista para os paramos que os rodeavam. — Se voltar, nunca estarei livre dele. Se não encontrar trabalho fora do país, estarei atado aos cordões de sua bolsa até o dia em que morra. Era uma perspectiva insuportável. O avô de Dorian, o conde do Rawnsley, era um déspota. O pai do Dorian, Edward, era o mais jovem dos quatro filhos do conde, que viviam todos em Rawnsley Hall, em Gloucester, com suas esposas e filhos, de onde Sua Senhoria podia controlar cada minuto de vigília em suas vidas. Os adultos podiam ir-se por breve tempo e até ficar em Londres durante a temporada, e os meninos, às vezes, iam à escola; mas Rawnsley Hall era o lar de todos eles ou sua a prisão, e o amo os governava de maneira absoluta. Sempre, em qualquer lugar que estivessem, deviam comportar-se e pensar como ele lhes tinha ordenado fazê-lo. Faziam-no porque não tinham alternativa. Não só controlava todo o dinheiro dos Camoys, mas também era um malvado. Esmagava o menor foco de rebelião e não tinha escrúpulos com respeito ao modo de fazê-lo. Por exemplo, quando as chicotadas, os sermões e as ameaças de condenação eterna não sortiam efeito com Dorian, lorde Rawnsley voltava sua indignação para os pais do menino incorrigível. Isso tinha resultado. Dorian não podia manter-se à margem, vendo como seus pais eram castigados e humilhados pelas faltas dele. Portanto, embora tivesse nascido com um caráter forte e rebelde, Dorian aprendeu desde muito pequeno a reservar seus sentimentos e opiniões. Como seu comportamento público estava estritamente regulado, quando único podia considerar próprio era sua mente, e esta era excepcionalmente boa. Isso também o tinha herdado da mãe, pois todos Camoys não se destacavam pela acuidade de seu intelecto. O desempenho do Dorian no Eton tinha sido tão brilhante que seu avô se viu obrigado a
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enviá-lo a Oxford. Do mesmo modo, um ano depois, lorde Rawnsley teria que lhe financiar um ano no exterior. Dorian disporia de um ano no continente para procurar trabalho. Estava seguro de que conseguiria sobreviver e não o preocupava a pobreza, ao começo. Já chegaria o momento em que ascenderia. Quando único devia fazer era concentrar-se, igual a nos estudos e manter sob estrito controle sua debilidade sensual. Ao pensar neste último, tanto sua atenção como seu olhar voltaram para sua mãe que se tirou as luvas e brincava com os anéis. Por Deus, como gostava das quinquilharias! E os vestidos na moda, e a sociedade e suas intrigas românticas. Perguntou-se por que teria ido a Dartmoor, pois, embora tenha nascido e se criado ali, não conjugava com sua natureza. Era uma mulher feita para a alegria em sociedade, as festas, as falações e os admiradores que buliam a seu redor. Dorian imaginava encontrá-la desesperadamente aborrecida e, entretanto, achou-a mais tranqüila do que recordava havê-la visto jamais. Supôs que se devia a recente enfermidade que tinha sofrido. Mas, de todo os modos, não podia deixar de perguntar-se por que tinha pedido que a levassem precisamente ali, quando o médico lhe sugeriu uma mudança de ar. O pai do Dorian lhe contou que tinha sido terminante a respeito. Dorian lhe aproximou: — Queria que pensasse em minha proposta de vir a ficar comigo, no continente. — Não seja ridículo — lhe respondeu sua mãe— Não posso viver em uma água-furtada. E não diga que ira sentir falta de mim — adicionou, irritada — Nunca te servi de nada. Fiz todo o possível para arrumar isso sozinha, coisa que, como bem sabe, não é nada fácil. Senhor, estou muito cansada disto. Não tem idéia do alívio que significa estar aqui, longe da tentação, das eternas conspirações, e planos e mentiras. E fingir, sempre fingir. Não é de sentir saudades que me doa a cabeça. Está tão acostumada a trabalhar que não sabe como parar. Quando não há nada em que pensar, faz algo. Apartou-se o cabelo do rosto, hábito que também tinha seu filho, e que sempre tinha irritado ao avô. — Esse é o problema dos segredos — disse a mulher — Nunca pode te liberar deles. Perseguem-lhe... como fantasmas. Dorian sorriu: — Seus pecados não são tão graves, mãe. Dizem que a avó do Bertic Trent troca de amantes como de chapéus. Aminta pareceu não ouvi-lo, enquanto deixava vagar o olhar pelas desoladas extensões que tinham diante. — Sonhei que meus pecados tornavam forma de fantasmas — disse em um tom estranho — Perseguiam, como as Fúrias dos mitos gregos. Era aterrador... e muito injusto. Não posso ir de encontro a minha natureza. Você o entende. Dorian a entendia muito bem. Embora odiasse essa debilidade em si mesmo, fizesse o que fizesse, não podia controlá-la. Não podia resistir à fragrância de uma mulher; quase não podia resistir pensar em qualquer uma delas. Portanto, essa necessidade o impulsionava... Deus, que distâncias percorria, a que subterfúgios recorria. E depois sempre ficava enojado. Dorian sabia que o de sua mãe não era tão mau, mas acontecia que ela estava sob uma constante vigilância, e ele não, e, além disso, como era mulher e menor, seus apetites também o eram. Entretanto, inclusive suas pequenas escapadas cobraram tributo em sua saúde. Dorian sabia que teria que fazer caso da advertência que isso significava. Fazia muito
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pouco que sua mãe estava recuperada. Fazia mais de seis meses que o senhor Budge, o famoso médico dos Camoys, tinha-lhe diagnosticado uma "consumição". Tinha passado todo esse tempo entre uma chaise longue e a cama. Dorian não podia permitir um período tão prolongado de debilidade. Se o fazia, atrasaria-se nos estudos... e se atrasaria a viagem ao exterior... e as amarras com seu avô se prolongariam... Ante a perspectiva tão sombria, sacudiu a cabeça. — É Dartmoor — disse, com ligeireza — Cada metro desta terra parece sofrer uma maldição. Não me assombra que sonhe com fantasmas e demônios. Sentiria saudades que não te acontecesse. Sua mãe riu, deu-lhe as costas e sentiu que sua melancolia se dissipava tão velozmente como se abateu sobre ela. Desde esse momento até o fim da visita de dois dias de Dorian, a mãe pareceu ser outra vez tão vivaz como sempre. Junto com outras lendas sobre o Dartmoor, contou-lhe todas as intrigas de Londres que tinha surrupiado a seus amigos e lhe relatou anedotas um tanto escandalosas que faziam ruborizar e rir ao pai, ao mesmo tempo. Afastado do Rawnsley Hall, Edward Camoys era mais humano, deixava de ser a marionete de seu pai e, entretanto, tratava a sua esposa como a uma menina desencaminhada, situação que veio bem aos dois durante anos. Quando Dorian partiu, tudo parecia estar bem. Não tinha idéia de que seu pai também tinha segredos que, à medida que transcorriam os meses, ao Edward Camoys se o fazia cada vez mais difícil ocultar. A freqüência das cartas da Aminta Carnoys era, no melhor dos casos, tão irregular como a do Dorian. Por isso não suspeitou de nada, embora não tivesse notícias dela até princípios de setembro. Não foi a não ser até pouco antes do Natal quando tio Hugo, o filho mais velho e herdeiro do conde, apareceu inesperadamente em Oxford e, soube depois, contra as ordens do conde, Dorian se inteirou da verdade. Logo, sem fazer caso das advertências de seu tio, Dorian alugou um carro de postas e rumou para o norte. Encontrou a sua mãe onde Hugo lhe disse que estava. Era um asilo para lunáticos, privado, exclusivo e muito caro. Dorian a encontrou em um pequeno quarto pestilento, atada a uma cadeira. Levava um vestido de algodão manchado e em seus pés delicados grosas e ásperas meias. Seu comprido cabelo negro estava oculto em uma calota escura. Ao princípio, não o reconheceu. Quando ao fim o fez, chorou. Dorian, em troca, não chorou, mas sim amaldiçoou por dentro, enquanto te desatava as cruéis ligaduras, coisa que atraiu ao empregado à carreira, mas o moço estava muito perturbado para adverti-lo. Levou a mãe à estreita cama, deitou-a e se sentou ao lado, lhe espremendo as mãos geladas, e escutou, com as vísceras lhe bulindo, o relato de sua mãe sobre o que lhe tinham feito. Contou-lhe que tinha adoecido outra vez e, em sua debilidade, revelou seus segredos. Agora o conde sabia de tudo, e por isso a encerrou, para castigá-la por ser uma mulher lasciva. Os cuidadores mortificavam sua carne para que se arrependesse: matavam-na de fome, vestiam-na com trapos pestilentos e a faziam dormir sobre lençóis sarnentos. Inundavam-na em banheiros gelados. Rasparam sua cabeça. Não a deixavam dormir: golpeavam à porta, chamando-a prostituta, Jezabel e lhe diziam que o Diabo ia procurar a alma dela.
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Dorian não sabia o que pensar. Embora a mãe soluçasse inverificado, seu discurso era coerente. Entretanto, o tio Hugo lhe disse que tinha atacado ao pai com uma faca e tentado incendiar a casa principal de Dartmoor. Que ouvia vozes, via coisas imaginárias e gritava que havia fantasmas e que garras cruéis lhe rasgavam a cabeça. Edward Camoys não tinha falado a ninguém sobre o estado de sua esposa e tratava de cuidá-la com ajuda do médico da zona, o doutor Kneebones. Mas o conde os tinha visitado em Dartmoor um mês antes e, horrorizado pelo que viu, chamou médicos de Londres. Chegaram à conclusão de que necessitava "o cuidado de peritos" e lhes recomendaram o manicômio privado do senhor Borson. — Não me olhe assim — chorava agora Aminta — Estava doente, nada mais, e a dor era espantosa, destroçava-me a cabeça de tal modo que não podia ver bem. Não podia pensar. Não pude conter a língua. Eram muitos segredos, Dorian, e eu estava muito fraca para não revelálos. OH. Por favor, querido, me tire deste lugar perverso. A Dorian não importou qual era a verdade. Só soube que não podia deixá-la ali. Procurou ao redor algo com que agasalhá-la, para mantê-la abrigada e poder levar-lhe mas só tinha as pestilentas roupas de cama. Estava arrancando as da cama quando voltou o empregado com reforços e o avô de Dorian. No instante em que o conde entrou, Aminta se converteu em uma diablesa. Vomitando obscenidades e ameaças com voz gutural, que ao Dorian custava acreditar que fosse dela, equilibrou-se para lorde Rawnsley. Quando Dorian tentou apartá-la, cravou-lhe as unhas na cara. Os empregados a sujeitaram e logo a algemaram à cama, onde alternou espantosos juramentos com soluços que partiam a alma. Como Dorian protestasse pelas dolorosas ataduras, os empregados, por ordens do conde, tiraram-no da habitação, e depois também do edifício. Expulso, Dorian se passeou ante a carruagem do avô, repassando a cena em sua mente uma e outra vez. Não podia deixar de estremecer-se, porque não conseguia sacudir a doentia compreensão do que sua mãe devia sentir. Em seus imprevisíveis momentos de lucidez, como o que gozava no primeiro momento que a encontrou, podia olhar ao redor e reconhecer seu próprio estado e o lugar onde estava. Pôde imaginar sua ira e sua pena ao ser tratada como um animal sem consciência. Também se imaginava com toda nitidez seu pânico ao perceber que lhe escapava o controle de si mesmo e que a escuridão se abatia sobre sua razão. Estava convencido de que sua mãe sabia o que estava lhe acontecendo porque o disse: disse-lhe que estava fraca e que não podia controlar-se. Sabia que sua mente, em outro tempo formidável, estava traindo-a, e isso era o pior. E por isso quando saiu o avô, Dorian se recompôs com grande esforço e, tragando o orgulho, suplicou-lhe: — Por favor, deixe-me levá-la a qualquer outro lugar — disse — Eu ajudarei a cuidá-la. Não tenho porque retornar a Oxford. Posso terminar mais adiante. Sei que meu pai e eu poderemos arrumar isso com a ajuda de um ou dois criados. Rogo-lhe isso, avô, me deixe... — Você não sabe nada disto — o cortou lorde Rawnsley com frieza— Não sabe nada dos ardis e subterfúgios de sua astúcia de louca. Fez seu pai fazer o papel de tolo, e hoje tem feito o mesmo contigo. E agora Borson diz que é impossível saber quanto dano causou que você pusesse de sua parte, contra os que sabem o que tem que ser feito, e que lhe fizesse promessas que não pode cumprir. Agora estará alterada durante dias, possivelmente semanas. — calçou as luvas — Mas sempre foi assim. Você sempre foi digno filho dela, tanto em temperamento como na aparência. E agora te propõe arruinar seu futuro para cuidar de uma pessoa a que jamais lhe
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importou ninguém, além de si mesmo. — É minha mãe — disse Dorian, rígido. — E minha nora — foi a severo réplica — Sei qual é meu dever para minha família. A cuidarei como é devido, e você retornará a Oxford, a cumprir suas obrigações. Duas semanas mais tarde, em meio a um violento ataque, Aminta Camoys se desabou e morreu. Morreu no manicômio que Dorian não pôde resgatá-la, enquanto ele estava em Oxford, sepultando sua ira e sua pena nos estudos, porque não tinha outra alternativa. Não tinha dinheiro nem poder para resgatá-la, e o avô era capaz de castigar a qualquer um que se atrevesse a ajudá-lo. Não contou a ninguém o acontecido, nem sequer ao Bertie Trent, o único amigo que tinha. Assim, ninguém mais que a família Camoys — e só existia a família imediata — soube que Aminta Camoys tinha morrido em meio a uma furiosa loucura, no custoso inferno que era o manicômio do senhor Borson. E nem mesmo então a deixaram em paz. O avô deixou que os malditos doutores esquadrinhassem seu pobre cérebro morto, para satisfazer sua tenebrosa curiosidade. A malha cerebral estava debilitada, e encontraram restos de hemorragia. Durante o último ataque, quebrado-se um copo sangüíneo, um de quão muitos podiam haver-se rolo em qualquer momento, pelo frágeis que estavam. Os médicos chegaram à conclusão de que seu prematura decadência tinha sido o primeiro indício externo da deterioração interna, que tinha começado muito antes. As dores de cabeça eram outros sintomas provocados pelo lento derrame. Afirmavam que ninguém pôde ter feito nada por ela. Simplesmente a ciência médica não tinha modo de detectar a tempo esses defeitos, nem de curá-los. E assim foi como Borson e seus associados se livraram de toda culpa como se não tivessem convertido os últimos meses de vida de Aminta em um inferno. E os Camoys se ocuparam de que tampouco recaísse nenhuma culpa sobre a família. Havia-se "precipitado em um súbito declive", foi a história que divulgaram, pois nenhum Camoys, embora fosse por matrimônio, podia estar louco. Nem um espinho de loucura tinha aparecido na família durante séculos, desde que Henri do Camoys chegou da a Normandia, com o Guillermo o Conquistador. Inclusive entre eles mesmos, nunca mencionavam a demência, como se assim pudessem fazer que a verdade se apagasse, como uma visita inapropriada. Ao Dorian convinha. Se fosse obrigado a escutar as pouco piedosas hipocrisias dos que apontavam sobre a loucura de sua mãe, teria corrido risco de cometer algum ultraje e ser destruído, como tinha sido ela. Depois do funeral, retornou a Oxford e sepultou seus sentimentos, como sempre, no estudo, era o único que podia fazer, o único que avô não conseguiria esmagar ou retorcer, para que servisse a seus tirânicos propósitos. Por isso, ao finalizar seus estudos, Dorian não só obteve o título mas também obteve algo que até então nenhum Camoys tinha obtido: ganhou o primeiro Utteris Humattioribus. Em Rawnsley Hall se realizou a tradicional celebração, a hipocrisia costumeira. Dorian nunca tinha sido, em realidade, um dos Camoys, e sabia que seu triunfo acadêmico incomodava enormemente à família, como um todo. Não obstante, deviam conservar a aparência de unidade familiar, e para Dorian foi mais fácil fingir, tendo a liberdade tão perto, tão poucas semanas, estaria no continente, e não retornaria até que seu avô estivesse enterrado na tumba, com seus insignes antecessores.
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Enquanto isso, Dorian podia desempenhar seu papel como o tinha feito durante anos e suportar a simulação e a hipocrisia da família. "Fingir, sempre fingir", havia dito sua mãe. E acreditou que sua mente se afundou sob tanto esforço. Muitos segredos, muito fraco para conservá-los. Dorian não sabia que os próprios não tinham sido os únicos segredos que sua mãe revelou. E não o descobriu até vinte e quatro horas depois da assim denominada celebração. E o único que pôde fazer Dorian foi ficar de pé e escutar, impotente, durante uma hora interminável, o arrepiante discurso que destruía e dispersava os pedaços de seus planos como se tivessem sido pó e o deixavam sem nada mais que o orgulho para sustentá-lo. Dorian foi expulso do Rawnsley Hall com seis libras e umas moedas no bolso. Isto se deveu a que lorde Rawnsley esperava que humilhasse a cabeça, pronunciasse discursos de arrependimento e suplicasse perdão e Dorian decidiu que o conde podia esperar até o Dia do Julgamento Final que o fizesse. O avô o apontou e chamou escravo dos apetites mais baixos, de seguir sem pudor e sem descanso um caminho que só podia conduzi-lo à loucura e uma morte odiosa por enfermidades vergonhosas contraídas da gente de baixo estofo que freqüentava. Embora Dorian soubesse que era certo, lhe ocorreu que poderia haver fundo além da vergonha, porque não sentiu nem um pouco de remorso em seu coração, só ira. Não se submeteria, não podia submeter-se ao avô nunca mais. Preferia passar fome e morrer em um imundo bairro baixo antes de retroceder, arrastando-se. Partiu sabendo que teria que sobreviver por seus próprios meios, pois o conde causaria problemas a qualquer um que ajudasse a seu neto errante. Então Dorian foi a Londres. Ali assumiu uma identidade nova e se converteu em parte das massas de seres insignificantes. Encontrou alojamento: um quarto úmido entre as moradias lotadas do East End, e emprego como estivador nos moles, de dia, e estagiário em um estudo jurídico, de noite. Em nenhum dos dois tinha futuro, mas não o tinha em sentido geral, pois as portas de todas as casas respeitáveis estavam fechadas para ele. Entretanto, embora o trabalho nos moles de vez em quando escasseava, os advogados o mantinham ocupado. Não havia muito perigo de que ficassem sem documentos. E quando a monotonia do trabalho ameaçava lhe esmagando o ânimo, podia comprar um pouco de distração passageira com uma rameira mais ou menos limpa e uma garrafa, por poucas moedas. Os meses foram convertendo-se em anos, e o avô seguia esperando que o neto pródigo voltasse arrastando-se a suas mãos, e este, que o avô morresse. Mas a epidemia de gripe que levou o pai de Dorian, o tio Hugo, a duas tias e a vários primos em 1826 deixou intacto ao amo e senhor de todos eles. Logo, no verão de 1827, de súbito Dorian adoeceu e começou a decair.
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Dartmoor, Devon Princípios de maio de 1828 Dorian estava de pé na biblioteca do Radmorc Manor, olhando pela janela ao longe, os paramos estendiam sua lúgubre beleza. Atraíam-no com força, como tinha acontecido em suas fantasias doentias durante os meses de sua enfermidade em Londres, quando caiu doente tão gravemente que estava muito fraco para sustentar a pluma sequer. Em agosto, Hoskins, o empregado de um advogado, encontrou-o quase inconsciente, jogado sobre um documento manchado de tinta. — Irei procurar a um médico. — Não. Médicos não, pelo amor de Deus. Dartmoor, me leve a Dartmoor. Tenho dinheiro economizado guardado debaixo das pranchas do chão. Hoskins poderia haver fugido com o pequeno cofre, e o céu sabia que necessitava de dinheiro, vivendo, como o fazia, de seu magro salário de empregado. Mas não só fez o que Dorian lhe pedia mas também ficou a cuidá-lo. Ficou inclusive depois de que Dorian se recuperou... ou isso pareceu. Mas essa aparente recuperação não enganou o mesmo Dorian. Do primeiro momento dessa enfermidade, igual à de sua mãe, anos antes, suspeitou que não era mais que o princípio do fim. Em janeiro, quando começaram as dores de cabeça, confirmaram-se suas suspeitas. À medida que passavam as semanas, os ataques se voltaram cada vez mais cruéis, como tinha ocorrido com os de sua mãe. A noite anterior à passada teve vontades de golpear a cabeça contra a parede. ... dor... dilaceradora na cabeça... não podia ver bem... não podia pensar. Agora compreendia bem o que sua mãe tinha querido dizer. Mas, mesmo assim, teria suportado a dor, não teria mandado procurar o Kneebones a manhã do dia anterior se não tivesse sido pelo espectro de débil luminosidade que viu. Foi então quando Dorian compreendeu que teria que fazer algo antes que as tênues ilusões visuais se convertessem em fantasmas, como tinha acontecido a sua mãe, e o levasse a violência, tal como tinha passado com ela. — Eu sei o que é — havia dito Dorian ao médico, quando o foi ver no dia anterior — Sei que é a mesma enfermidade do cérebro, e que é incurável. Mas preferiria terminar meus dias aqui, se puder. Preferiria não terminar como minha mãe, se pode evitar-se. Naturalmente Kneebones devia satisfazer-se a si mesmo e chegar a suas próprias conclusões. E Dorian sabia que havia uma só conclusão possível. A mãe tinha morrido oito meses depois da aparição da "quimera visual", os "fantasmas" que começasse a ver acordada, e não só em sonhos, como havia dito. O máximo que Kneebones podia lhe prometer eram seis meses. Disse que a degeneração avançava mais rápido que no caso de sua mãe, mercê a um "modo de vida insalubre". Não obstante, Kneebones lhe tinha assegurado que os ataques violentos podiam moderar-se com grandes doses de láudano. — Seu pai, por temor a uma overdose, foi muito parco com o láudano — lhe explicou o médico — Logo, quando foi seu avô, recriminou-me ter convertido à desventurada mulher em uma viciada no ópio. E depois apareceram os falsos peritos, que o denominaram "veneno" e disseram que tinha sido a causa das alucinações, se o único que fazia era as diminuir e tranqüilizar a sua mãe! Recordando a conversação, Dorian sorriu. O vício aos opiáceos era a menor de suas
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preocupações, e uma overdose ao seu devido tempo poderia lhe brindar um bem-aventurado alívio. Ao seu devido tempo, mas ainda não. Por fora, o viam saudável e forte, e no Dartmoor se viu livre do ódio a si mesmo que o perseguia desde seu último ano no Eton, quando o atraiu a tentação em forma de mulher e descobriu que não podia confrontá-la. Tal como havia dito sua mãe, neste lugar não havia tentações. Quando sentia o velho comichão e se sentia inquieto, cavalgava pelos páramos comprido e tendido, até que ficava exausto. Aqui acharia refúgio, e pensava desfrutá-lo todo o tempo que pudesse. Ouvindo passos no corredor, Dorian se afastou da janela e apartou o cabelo do rosto. Levava-o muito comprido para a moda, mas fazia anos que a moda tinha deixado de ter importância para ele, e certamente não lhe incomodaria quando jazesse no ataúde. Tampouco o incomodava muito pensar no ataúde fazia já um tempo. Tinha contado com vários meses para fazer-se à idéia de morrer. Agora, graças à promessa do láudano, lhe tinha aliviado a ansiedade. A droga o atordoaria, evitaria-lhe ter consciência plena do desventurado ser em que se converteria, e, ao mesmo tempo, os que o cuidavam não teriam motivos para temer por suas vidas. Morreria em meio de um pouco parecido à paz e à dignidade. Isso era melhor que as multidões de desventurados nas latrinas de Londres. Melhor que o que tinha suportado sua mãe, sem dúvida alguma. A porta da biblioteca se abriu e entrou Hoskins, trazendo uma carta. Pô-la de barriga para baixo sobre a mesa, e o selo ficou bem à vista. Era o selo do conde de Rawnsley. — Maldição! — exclamou Dorian. Abriu a carta, leu e a passou a Hoskins. — Agora entenderá por que preferi ser um João ninguém — disse Dorian. Hoskins se tinha informado da identidade verdadeira de Dorian no dia anterior, ao mesmo tempo em que soube do estado de saúde deste e que lhe brindou a oportunidade de partir, se o desejasse. Mas Hoskins tinha lutado e sido ferido em Waterloo. Depois dos horrores vividos ali, cuidar de um simples louco era um jogo de meninos. Mais ainda, para grande alívio de Dorian, a atitude de Hoskins seguiu sendo prática, com ocasionais raptos de humor patibular que lhe levantavam o ânimo. — Será o caráter irascível próprio da idade? — perguntou Hoskins, lhe devolvendo a carta — Ou o ancião cavalheiro sempre foi assim? — É insuportável. — respondeu Dorian — Acredito que é assim de nascimento. E muito convincente. Durante quase toda minha juventude, eu estava convencido de que sempre era o que tinha a culpa. Não há modo de tratar com ele, Hoskins. O único que se pode fazer é ignorálo. E isso não será fácil. Carrancudo, jogou uma olhada à carta. A tia sobrevivente, a viúva do Hugo, tinha estado de visita no Dartmoor pouco tempo antes e divisou ao Dorian em um de seus galopes pelos páramos. Logo lhe escreveu ao conde uma descrição muito exagerada do traje que usava Dorian para cavalgar — ou, mas bem, da falta dele — e lhe comunicou uma boa quantidade dos falatórios locais, grande parte das quais consistiam em especulações ignorantes sobre o excêntrico recluso que habitava Radmore Manor. A carta do conde ordenava apresentar-se Dorian — o cabelo talhado como correspondia e embelezado com decência — ante um conselho familiar em doze de maio e explicar sua
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atitude. Dorian jurou para seus adentro que se o queriam, teriam que ir buscá-lo e que nunca o apanhariam vivo. — Quer ditar uma resposta, senhor? — perguntou Hoskins — Ou a jogamos no fogo? — Eu mesmo escreverei a resposta. Do contrário, seria tachado de cúmplice e ele te faria sentir o peso de sua justa ira. — Esboçou um leve sorriso — Então, a jogaremos no fogo. Em doze de maio de 1828, o conde do Rawnsley e a maior parte de sua família próxima estavam reunidos na sala de Rawnsley Hall, no momento que uma parte do teto ancestral que tinham sobre eles escolheu para derrubar-se. Em questão de segundos, muitas toneladas de madeira, pedra e diferentes elementos decorativos os sepultaram e converteram ao Dorian Camoys — um dos escassos membros da família que não assistiram — no novo conde do Rawnsley. Em uma pequena sala de estar, em uma casa do Wiltshire, Gwendolyn Adams lia o periódico de semanas atrás onde se relatava o episódio, e o repassou várias vezes até estar segura de não ter passado por cima nenhum detalhe. Depois se concentrou nos outros três documentos que tinha sobre o escritório. A gente era uma carta escrita pela tia recém falecida do conde atual. Nela dizia que seu sobrinho se converteu em um selvagem. O cabelo lhe chegava até os joelhos e galopava meio nu pelos páramos, em um cavalo branco que tinha recebido o nome de um deus pagão sedento de sangue. O segundo documento era o rascunho de uma carta do conde a seu neto "selvagem". Gwendolyn pôde fazer uma idéia muito clara do motivo pelo que o herdeiro não tinha assistido ao funeral. O terceiro documento era a resposta do atual conde à odiosa carta do avô, e a fez sorrir pela primeira vez desde que o duque d'Abonville tinha chegado e lhe tinha feito essa extravagante proposta. A mãe de Abonville tinha sido uma do Camoys, a árvore francesa de que provinha o ramo inglês Camoys, séculos atrás, e, portanto, prima longínqua de Rawnsley. Além disso, Abonville era o prometido de Genevieve, avó do Gwendolyn e viscondessa viúva do Pembury. Os dois assistiram ao funeral dos Camoys, depois do qual, um advogado perseguido tinha pedido ajuda ao duque como parente varão mais próximo: terei que assinar documentos e atender qualquer quantidade de assuntos legais, e o atual lorde Rawnsley se negou a assumir tais responsabilidades. Nessa qualidade, o duque e Genevieve tinham viajado ao Dartmoor. Ali descobriram que o novo conde era vítima de uma enfermidade terminal no cérebro. O sorriso do Gwendolyn se esfumou. Bertie Trent, seu primo, estava muito aflito pela notícia. Nesse momento, estava oculto no estábulo, chorando sobre uma velha carta de seu amigo da infância, o Gato Camoys, tão enrugada e pregada que já resultava ilegível. A moça apartou os papéis e levantou a miniatura que Bertie lhe tinha dado. Supostamente o minúsculo retrato representava ao amigo do Bertie. Pintado fazia anos por um artista bastante inepto, não lhe dizia grande coisa. Entretanto, Gwendolyn, com seus vinte e um anos, tinha a cabeça muito bem posta para apoiar a decisão mais fundamental de sua vida em um retrato de pouco mais de cinco centímetros de diâmetro.
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Para começar, sabia que ela mesma não era nenhuma beldade, com seu nariz e queixo bicudos e esse impossível cabelo vermelho. E não estava convencida de que seus olhos verdes, aos que vários pretendentes tinham composto louvores, bastante parvos como certo, fossem suficiente compensação. Em segundo lugar, a atração física carecia de importância. Não pedia ao Rawnsley que se apaixonasse por ela, nem ela e ele. Abonville lhe tinha pedido que se casasse com o conde e tivesse um filho com ele, para evitar a extinção da descendência Camoys. E pediu a ela porque pertencia a uma família incrivelmente fértil, famosa por produzir muitos varões. Ambas as características eram cruciais, pois o conde do Rawnsley não tinha muito tempo para conceber um herdeiro. O médico lhe tinha dado seis meses de vida. Por desgraça, não havia nenhum documento que esclarecesse muito a enfermidade cerebral em si. O pouco que Genevieve e Abonville sabiam os tinha comunicado o criado do conde, Hoskins. Sua Senhoria não tinha devotado detalhes, e Genevieve acreditava que lhe surrupiar informação teria sido desconsiderado. Gwendolyn enrugou o sobrecenho. Nesse momento, entrou sua mãe no quarto e fechou com suavidade a porta. — Realmente está pensando-o? — perguntou-lhe, sentando-se perto do escritório de Gwendolyn — Ou só faz demonstração de dúvidas para o bem de papai? Sim, se tomou tempo para refletir, Gwendolyn não tinha dúvidas. Sabia que a tarefa que lhe encomendavam não seria agradável, mas não a angustiava no mais mínimo. As situações desagradáveis eram de esperar. As enfermidades o eram, já fossem da mente ou do corpo; se não tivesse sido assim, não teriam dedicado tantos esforços a fazê-las desaparecer. Mas, por outra parte, as enfermidades eram muito interessantes, e para o Gwendolyn os loucos eram os pacientes mais interessantes de todos. O caso de lorde Rawnsley, que combinava uma misteriosa doença neurológica com um comportamento aberrante, não podia ser mais fascinante. Se o Todo-poderoso lhe tivesse mandado uma carta assinada, ratificada por testemunhas e notários, não poderia haver-se sentido mais segura de que em sua infinita sabedoria — em relação à qual a moça tinha albergado dúvidas mais de uma vez — tinha criado a ela especialmente para este propósito. — Estava me certificando de que não houvesse nada em que pensar — disse Gwendolyn à mãe — Não o há. Mamãe a contemplou durante compridos instantes. — Sim, ouvi a chamada celestial tão claramente como você, e eu tampouco duvido. Mas papai é outra questão. Gwendolyn não o ignorava. Mamãe a entendia. Papai, em troca, não. Nenhum dos varões da família, incluíndo os Abonville. Gwendolyn estava segura de que a idéia do matrimônio tinha sido instilada no cérebro do duque por sua avó, ao mesmo tempo que o tinha convencido de que era dele. Por fortuna, Genevieve tinha um talento invejável para fazer que os homens acreditassem no que ela desejava muito. — Conviria que deixássemos que Genevieve o convencesse — disse Gwendolyn — Do contrário, demorará as coisas pondo montões de obstáculos desnecessários, e não temos tempo a perder. Não se pode saber quanto tempo Rawnsley conservará a razão, e terá que estar lúcido para as questões legais. Essa não era a única preocupação do Gwendolyn. Nesse mesmo momento, o conde do Rawnsley poderia estar em um de seus audazes rodeios, arriscando-se a uma queda fatal no pântano.
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E então jamais teria a oportunidade de fazer algo realmente valioso em sua vida, antes que pudesse expressar sua aflição, a mãe disse: — Genevieve já começou a abrandar a seu pai. Igual a mim, já sabia qual seria sua resposta. Irei abaixo e lhe farei gestos de que lhe dê o golpe de misericórdia. — levantou-se. — Obrigado, mamãe — disse Gwendolyn. — Não tem importância — repôs a mãe, com vivacidade — Não é o que eu teria querido para ti, embora vás ser condessa do Rawnsley. Se esse jovem não fosse amigo do Bertie, e se não tivesse cuidado do idiota de seu primo durante toda a carreira no Eton, e certamente salvando seu imprestável cangote centenas de vezes... —Lhe umedeceram os olhos e lhe tremeu a voz quando continuou: — Oh, Gwendolyn, não deveria deixá-la ir. Mas não podemos permitir que esse pobre moço morra sozinho. — Apertou o ombro de sua filha — Te necessita, e isso é quão único deve importar, eu sei. Dorian Camoys estava apanhado em sua própria biblioteca. Tinha passado menos de duas semanas desde que o duque do Abonville se apresentasse ante sua porta. E agora o francês estava de volta com uma licença especial e uma mulher que insistia em que Dorian se casasse com ela sem demora. Dorian poderia haver-se liberado do francês e de sua absurda petição sem nenhuma dificuldade. Mas, por desgraça, junto com lady Pembury e a moça que Dorian ainda não tinha conhecido e que não tinha desejos de conhecer, Abonville também tinha levado a seu futuro neto, Bertie Trent. E Bertie tinha metido na cabeça que seria o padrinho de bodas do amigo. Quando Bertie colocava algo na cabeça, era quase impossível fazê-lo desistir. Isso se devia a que Bertie era um dos homens mais estúpidos que tinha existido jamais. Fazia muito já que para o Dorian estava claro: essa era, precisamente, a razão de que Bertie fosse seu único amigo e não podia suportar a idéia de ferir seus sentimentos infantis. Era impossível enfurecer-se apropriadamente com o Abonville tratando, ao mesmo tempo, de não angustiar ao Bertie, que estava fascinado com a perspectiva de que seu melhor amigo se casasse com sua prima. — Não é mais que Gwen — dizia Bertie, construindo mal as frases, como sempre — Para ser uma garota, não está nada mal. Não é como Jess, mas não desejaria a ninguém que se casasse com minha irmã, e menos a ti, embora nesse caso fosse meu irmão, porque não me ocorre nada pior para um tipo que ter que escutá-la todo o dia. Dain sim pode dirigi-la, mas é maior que você e, mesmo assim, atreveria-me a dizer que lhe custa bastante. Mas eles já estão atados, assim está a salvo dela, e Gwen é muito diferente. Quando Abonville nos disse que queria te casar, e ele estava pensando que Gwen poderia servir, eu disse... — Bertie, eu não queria me casar — interrompeu Dorian — É um engano absurdo. — Eu não cometi nenhum engano — disse Abonville. Estava de pé ante a porta, com uma expressão grave no rosto distinto, os braços cruzados sobre o peito — Você deu sua palavra, primo. Disse que reconhecia seu dever e que casaria se encontrasse a moça disposta a fazê-lo. — Não importa o que disse se é que disse isso? — replicou Dorian, tenso — Quando você chegou, doía-me a cabeça e tinha ingerido láudano. Naquele momento, não estava em meus cabais. — Estava em um estado completamente racional.
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— Não é possível! — exclamou Dorian — Se tivesse estado lúcido, jamais teria aceito algo semelhante. Não sou um maldito boi. Não passarei meus últimos meses engendrando! Esse foi um engano. Os olhos azuis e redondos do Bertie começaram a umedecer-se. — Está bem, Gato — disse — Eu lhe apoiarei, como você sempre me apoiou. Mas, se não o tivesse prometido, Abonville não haveria dito que prometeu, nem teria falado com Gwen. Ela se sentirá muito decepcionada embora o superará, porque não é das que se deixam abater. Mas imagine que poderíamos ter sido primos, e, se fosses ter um pestinha, eu poderia ser o padrinho, sabe? Dorian jogou um olhar maligno ao detestável duque, e essa foi sua perdição. O tinha feito a cabeça de Bertie com a classe de idéias que tinha a segurança de fazer germinar em seu coração infantil: ser padrinho de bodas do amigo moribundo, converter-se em primo de Dorian e logo em padrinho de seus imaginários filhos. E o pobre Bertie, com seu coração transbordando boas intenções, jamais entenderia por que era impossível. Nunca entenderia por que Dorian queria morrer a sós. "Eu te apoiarei", havia dito e sem dúvida o faria. Se Dorian não se casava com sua prima, Bertie estaria com ele. De qualquer das duas maneiras, Dorian não teria possibilidades não o deixariam morrer em paz. Quando já não estivesse em condições de pensar por si mesmo, Bertie ou Abonville ou sua esposa convocariam a peritos para tratar ao demente. E Dorian sabia qual seria a conseqüência: morreria como sua mãe, encerrado como um animal, a não ser que antes se matasse. Mas não tinha pressa para ir à tumba. Ainda tinha tempo e intenções de desfrutá-lo, de desfrutar-se em sua saúde e sua força cada um dos momentos preciosos que ficavam. Fez esforços para acalmar-se. Não estava apanhado. Só dava a impressão, porque aí estavam, por um lado Bertie, tão leal como estúpido, falando de afilhados, e Abonville, pelo outro, bloqueando a porta. Ainda Dorian não estava débil e impotente, como tinha estado sua mãe. Encontraria o modo de livrar-se, sempre que mantivesse a cabeça fria. Meia hora mais tarde, Dorian galopava por um estreito atalho que levava ao Hagsmire. Ia rindo-se, porque seu estratagema tinha dado resultado. Tinha sido bastante fácil fingir um ataque súbito de remorsos. Anos de prática com seu avô deram ao Dorian a facilidade de fingir-se arrependido e agradecido pelos esforços de Abonville. Por isso, quando lhes pediu uns minutos para preparar-se antes do encontro com a noiva, os dois visitantes saíram da biblioteca. E ele por sua vez, saiu pela janela, atravessou o jardim e logo correu até os estábulos. Sabia que não o perseguiriam até o Hagsmire. Nem seu próprio moço de quadra se aventuraria por esse atalho tortuoso num dia como aquele, em que nuvens de tormenta rodavam pelo céu. Mas ele e Isis tinham enfrentado tormentas fora do Dartmoor muitas vezes. Havia tempo de sobra para encontrar o esquartejado montículo de granito onde se refugiaram tantas vezes, quando Dorian lutava contra os demônios internos que o empurravam para os velhos hábitos, a pausa ilusória do vinho e as mulheres. E, embora o buscassem, seu mal recebidos convidados nunca o encontrariam e desistiriam de esperar sua volta muito antes de que ele mesmo cedesse. Se não se submeteu nem a seus demônios internos nem a seu avô, não se renderia a um dominante nobre francês, obcecado pela genealogia.
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Nunca mais se submeteria ao dever. O novo conde do Rawnsley morreria em poucos meses, e esse seria o fim da aborrecida descendência Camovs. E, se Abonville não gostava, que arrancasse um dos ramos franceses e a plantasse aqui e fizesse que o pobre tipo se casasse com a prima do Bertie. Porque o único modo em que se casaria com o Dorian Camovs era que fosse até o Hagsmire em pessoa, com todo o cortejo nupcial e o sacerdote, e, mesmo assim, alguém teria que sujeitar ao noivo com um grande penhasco. Porque, antes de meter em sua vida a nenhuma mulher e lhe deixar ver como se desintegrava até converter-se em um animal sem consciência, preferia afundar-se em um poço insondável de areias movediças. Ao longe se ouviu o retumbar longínquo do trovão. Ou assim pareceu ao Dorian a principio, até que advertiu que, diferente do trovão, o retumbar era contínuo e crescia sem cessar em volume. E, quanto mais alto e perto se ouvia, menos parecia um trovão, e mais os cascos de um cavalo. Jogou um olhar atrás e depois outra vez adiante. Tratou de convencer-se de que a recente confrontação o tinha agitado mais do que suspeitava e que o que acreditava ouvir não era mais que um engano de seu cérebro decadente. Os caipiras ignorantes, que acreditavam na existência de duendes que moravam em todo Dartmoor, batizaram como Hagsmire esse lugar porque também estavam convencidos de que as bruxas enfeitiçavam essa zona. Quando havia névoa ou tormenta, montavam em corcéis fantasmagóricos e perseguiam as vítimas, até as fazer cair ao pântano. O golpear dos cascos aumentou de volume. "Aquilo" lhe aproximava. Olhou atrás, o coração agitado, os nervos tensos. Por mais que tratasse de convencer-se de que não podia estar ali, seus olhos lhe disseram o contrário: uma fêmea de aparência demoníaca, montada em um enorme baio. Uma juba desordenada de cabelos vermelhos ondulava grosseiramente ao redor de seu rosto. Cavalgava escarranchado, com audácia, e uma capa de cor clara voava atrás dela; tinha as saias impudicamente elevadas até os joelhos, mostrando os membros de brancura fantasma. Embora o olhar fosse muito breve, a momentânea distração resultou fatal, pois um instante depois Isis virou com excessiva brutalidade em uma curva. Dorian reagiu uma fração de segundo depois do devido, e a égua se deslizou pelo bordo do atalho, que se desmoronava com facilidade, e escorregou pelo pendente para o pântano que os esperava abaixo. A égua clara conseguiu retroceder com dificuldade do bordo do lodaçal, mas, ao fazê-lo, atirou a seu amo. Gwendolyn desembarcou de um salto, tomou a corda que tinha levado e desceu pelo pendente, até o bordo do pântano. A vários metros de onde ela estava, o conde do Rawnsley chapinhava em uma fossa de barro cinza. Nos escassos minutos que lhe levou chegar até o bordo, o conde se escorregou para o centro, e os esforços que fazia para fazer pé onde era impossível fazê-lo afundavam cada vez mais. Mas o lodo só chegava aos quadris, e com um olhar Gwendolyn comprovou que aquele pedaço de pântano tinha uma circunferência relativamente estreita. Ao mesmo tempo em que observava ao redor, aproximava-se da égua, emitindo sons tranqüilizadores. Registrava as furiosas maldições de Rawnsley, salpicadas com gritos que a insistiam a ir-se, mas não lhe fez o menor caso. — Trate de mantê-lo mais quieto possível — lhe disse, serena — O tiraremos em um minuto.
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— Afasta-se daqui! — gritou-lhe o conde — Deixe a meu cavalo em paz, bruxa maldita! Corre, Isis! Vai para casa! Mas Gwendolyn acariciava à égua sob a crina, e o animal se acalmava, apesar dos gritos e maldições de seu próprio amo. Gwendolyn soltou a correia do estribo, retirou o ferro e voltou a fechar a fivela da correia. Formou um laço com um extremo da corda passando pela correia e o atou. Depois levou a égua mais perto do atoleiro. Rawnsley tinha deixado de amaldiçoar e já não se removia tanto. Mas Gwendolyn não sabia se era porque tinha recuperado a calma ou porque estava fatigado. O que via era que estava afundado até a cintura. Rapidamente formou um laço no outro extremo da corda. — Agora, preste atenção — lhe disse, em voz alta — vou lançar — Cairá aqui, pedaço de estúpida... A moça lançou a corda. O homem estirou a mão e falhou. E lançou uma sã de maldições. Sem perder tempo, Gwendolyn retrocedeu e fez outro intento. Ao quinto intento, Dorian a apanhou. — Trate de agarrar-se com as duas mãos — lhe indicou — E não se esforce por ajudar. Faça de conta que é um tronco. Mantenha-se o mais quieto que possa. Sabia que era muito difícil, pois o instinto impelia a debater-se quando se sente que esta afundando-se. Mas, se lutava contra o pântano, afundaria-se mais rápido, e, quanto mais se afundasse, mais difícil seria tirá-lo. Inclusive nesse sítio, que era seguro, o chão empapado não era muito transitável. As botas do Gwendolyn se afundavam no barro até os tornozelos, e também Isis tinha que lutar com o barro, além de atirar do peso de seu amo, e com o poderio do atoleiro que o chupava para baixo. Mesmo assim, obteriam-no, assegurou-se Gwendolyn. Enrolou as rédeas em uma mão e tomou a correia e a corda na outra. Depois fez girar à égua de modo que ficasse de flanco com respeito ao pântano, e a fez dar os primeiros passos cautelosos para iniciar o resgate. — Devagar, Isis — murmurou. — Sei que quer lhe dar pressa, eu também, mas não podemos correr o risco de lhe arrancar os braços das articulações. Foi quanto escapou do barro, derrubou-se, mas Gwendolyn teve que deixá-lo enquanto voltava para caminho de ferradura com Isis. Embora o animal se mostrasse bom e paciente durante o resgate, agora estava inquieto e nervoso, e Gwendolyn tinha medo de que tropeçasse e escorregasse ao pântano se não o acalmasse. Não se podia atender a amo e cavalo ao mesmo tempo. Quando deixou ao Isis com o potro do Bertie, tirou um frasco de conhaque do bolso dos arreios e correu outra vez para o Rawnsley, que tinha recuperado a consciência. E, a julgar por seu aspecto e pelos sons que emitia, de muito mau aspecto. A juba negra cheia de barro do pântano, e amaldiçoava baixo enquanto o tirava do rosto e se incorporava. — Que o Diabo a leve e a cozinhe no inferno! —disse, entre dentes— Poderia haver-se matado você mesma e a meu cavalo. Disse-lhe que se fosse, maldita seja! Uma máscara de limo cinza esverdeado lhe pegava ao rosto. Entretanto, até embaixo dessa coberta, as feições pareciam mais fortes e acuradas que na miniatura. Este era um rosto de vigoroso modelado, e o da pintura, em troca, tinha um aspecto doentio e inchado. O resto de sua pessoa tampouco parecia muito doentio. As roupas do conde, empapadas de barro, aderiam aos ombros e as costas largas, a cintura estreita, as pernas largas toda sua figura feita de sólida musculatura.
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A realidade era tão diferente do retrato que, por um momento, Gwendolyn se perguntou se alguém lhe tinha feito uma brincadeira e aquele não era Ruwnsley. O homem tirou as luvas pegajosas de barro, limpou os olhos com elas e a olhou e a moça ficou paralisada, com o fôlego retido na garganta, ao tempo que seu coração se saltava um batimento. Bertie lhe contou que o chamava Gato porque assim lhe diziam os companheiros da escola, e agora Gwendolyn compreendia por que. Os olhos do conde do Rawnsley eram amarelos. Não do castanho próprio dos humanos, nem cor avelã, a não ser um tom ambarino dourado, de felino. Eram os olhos de um predador da selva, que ardiam brilhantes e perigosos. Por sorte, Gwendolyn não era das que se deixam intimidar facilmente. A impressão passou tão rápido como tinha chegado, e se ajoelhou junto a ele para lhe oferecer o frasco com mão firme. Também sua voz foi firme quando respondeu: — Nenhuma bruxa que se respeite acataria as ordens de um simples mortal. Se o fizesse, seria expulsa ignominiosamente da reunião de bruxas. Dorian lhe arrebatou o frasco e bebeu, sem apartar seu olhar amarelo do rosto da jovem. — Talvez você ignore que as melhores bruxas vêm ao Dartmoor em busca de seus familiares — continuou. — É de rigor contar com um gato negro. E como você é o único disponível... — Não estou disponível, e não sou nenhum maldito gato, pequeno feto do inferno! E já sei quem é você. A aborrecida prima, não é verdade? Só um parente do Bertie seria capaz de vir galopando ao pântano dessa maneira louca, e vagar por aí, arriscando a um cavalo, e também seu próprio corpo fraco, para salvar a um homem da confusão em que ela mesma o colocou. E eu não pedi para ser salvo, que o Diabo a confunda! A mim dá no mesmo já tenho um pé na tumba ou acaso não o hão dito? — Sim, já sabia disto — respondeu com calma. — Mas não vim até aqui para me dar por vencida ante o primeiro obstáculo. Já sei que dá no mesmo. Compreendo que o pântano poderia lhe haver evitado colocar uma pistola na cabeça ou pendurar-se, ou qualquer outro método que lhe ocorresse. Mas também poderá fazer isso depois, quando já estivermos casados. Lamento o inconveniente, meu lorde, mas não posso permitir que morra antes da cerimônia, pois, se assim fosse, eu jamais teria meu hospital. Já antes Gwendolyn tinha obtido bons resultados lançando afirmações temerárias. Esta vez também deu resultado. Dorian se tornou um pouco atrás, e a expressão furiosa se tornou bem mais perplexa. — É bastante simples — continuou. — Eu necessito a você, e você me necessita embora saiba que não tem por que acreditá-lo, pois não sabe quase nada sobre mim. Levantou a vista. — Estamos a ponto de nos empapar. Teríamos que procurar refúgio pelos cavalos, digo, pois a você tampouco incomodaria morrer de uma pneumonia. Isso não é um inconveniente. Esperar que passe a tormenta nos dará ocasião de conversar a sós. — Oh, não, está equivocada — disse Dorian. A voz lhe saiu como um grasnido. Tinha a garganta inflamada de tanto lhe gritar objeções, às que a moça não tinha emprestado ouvidos. Ignorando a mão tendida, ficou de pé com dificuldade. Ao fazê-lo, descobriu que era mais difícil manter-se em pé que incorporar-se.
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Ao parecer, os pântanos não só o tragavam. O que sua mãe não lhe tinha explicado era que, primeiro, mastigavam-no. Tentavam arrancar a pele de cima dos ossos e reduzir músculos e órgãos a uma geléia. Cada milímetro de seu corpo lhe pulsava dolorosamente. Não fez conta. — Não haverá conversações privadas — disse, lhe aferrando o braço e subindo com ela o pendente. — Não temos nada que dizer. Eu a levarei de volta à casa, e você se irá logo por onde veio. — Não acredito que isso seja boa idéia — repôs a jovem. Sua voz se manteve serena, e não fez o menor esforço por soltar o braço. Dorian a soltou de repente e desejou não ter sujeitado esse braço magro de uma maneira tão torpe, pois, assim, ela não tinha mais alternativa que segui-lo, a menos que pensasse ficar a viver no Hagsmire. Começou a subir a costa sozinho. Depois de um instante, a moça o seguiu. — Por que escapou? — perguntou-lhe. — Tive um ataque de loucura. Seguiu avançando trabalhosamente. — Isso costuma acontecer aos que conversam durante qualquer período de tempo com o Bertie — disse Gwen — Às vezes, tenho que sacudi-lo, pois, do contrario, seguiria sem cessar, e a gente perderia por completo a ilação do que está dizendo e se aturdiria tratando de segui-lo. — Eu tenho muito carinho ao Bertie — repôs Dorian, em tom frio. — Eu também — disse ela. — Mas é incrivelmente estúpido, não é certo? A prima Jessica diz que nasceu com um pé na boca, e que, depois, não pôde tirá-lo. Tenho a impressão de que jurou a você devoção eterna. Quando saiu a me dizer que você tinha fugido, chorava copiosamente, e não houve modo de lhe extrair uma explicação inteligível. E Abonville só disse que ele tinha cometido um terrível engano e que Genevieve devia me levar de volta à estalagem. — É evidente que lhe fez tanto caso ao Abonville como a mim — respondeu Dorian, irritado — Ao parecer, a palavra "vá-se" não tem significado para você. — Se sempre fizesse o que me dizem, nunca obteria nada — repôs Gwendolyn. — Por sorte, Abonville sabe que eu não obedeço ordens às cegas. Por isso, quando afirmei que devia vir buscá-lo, e minha avó esteve de acordo, ele levou ao Bertie outra vez à biblioteca, e foram diretamente se apoderar do conhaque. Tinham chegado ao caminho de ferradura. Dorian queria subir ao cavalo e partir para não ter que ouvi-la, mas os músculos de suas pernas já não lhe obedeciam. Tinha o cabelo pegajoso com lama do pântano e esse barro frio lhe gotejava pelo pescoço. Devido a isso, emprestava como um zurre, mas estava tão cansado e estremecido que não se importou. Cambaleando-se chegou até um penhasco e se sentou, contemplando suas calças empapadas enquanto esperava que lhe normalizasse a respiração e lhe aquietasse o cérebro. — Parece que houve um mal-entendido — disse a moça. Dorian não entendia por que não se mantinha afastada dele, se devia ser óbvio que estava transtornado. Para Dorian, ao menos, era óbvio. Apartou-se uma mecha de cabelo pegajoso dos olhos e a olhou. Embora já não lhe parecia tão demoníaca como antes, quando galopava atrás dele, seguia vendo-a como a uma bruxa. Uma bruxa jovem, com seu pequeno nariz e seu queixo afiados, seus rasgados olhos verdes e esse cabelo, essa massa selvagem de cabelos vermelhos. Não era sequer um vermelho normal, a não ser um estranho marrom com matizes de fogo, inclusive sob a luz tênue da tormenta que se morava.
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Mesmo assim, por mais que fosse pouco comum, ao Dorian custava acreditar que tivesse confundido a esta jovem inglesa com uma das donzelas de Satã. Reprovou se haver supracitado. Se tivesse ficado com os dois homens e argumentado com eles de maneira paciente e racional, mas não o tinha feito. Em troca, tinha fugido da tentação, sim, mas eles estariam persuadidos de que tinha fugido de uma simples moça e já não teriam dúvidas de que estava louco. Certamente Abonville o ataria examinar, e o declarariam louco campos mentem. — Que me condenem ao inferno! —murmurou. — Não queria importuná-lo, — disse a moça — mas não posso entender bem o que aconteceu. O que lhe disseram de mim que o fez fugir? Estive me espremendo o cérebro, mas o único que me ocorreu foi Bertie. — Não sabia o que fazer com ele! — exclamou — O muito estúpido quer ficar comigo até o trágico final, e jamais me liberarei dele sem recorrer à violência. "E então me encerrarão", acrescentou para si. — Eu posso fazer que se vá. — disse Gwen — Sou uma das poucas pessoas que, realmente, podem comunicar-se com ele. Isso é tudo? — Tudo — repetiu. — Não isso não é tudo. Quero que todos vocês se vão. Não necessito ao Bertie perto, soluçando quando aparecer a menor amostra de meu estado. Não necessito ao Abonville para que me diga o que é bom para mim e o que devo fazer. Sofri isso toda minha vida. E, sobre tudo, não necessito uma esposa, maldita seja! Os demônios que moravam em seu peito gritaram que era uma esposa, precisamente, o que mais necessitava, e evocaram imagens eróticas que Dorian se apressou a dissipar. Na frente da moça apareceram rugas. — É estranho. Não acredito que Abonville tenha entendido mal. Entende perfeitamente o idioma, ou acaso você trocou de idéia com respeito ao matrimônio? Queria que me explicasse isso, milord, por favor. É muito difícil responder com sensatez em uma situação, quando se está por completo às escuras de... — Não troquei que opinião — a interrompeu, contendo uma louca ansiedade por alisar aquela frente jovem, muito jovem — Lembro vagamente da visita de Abonville e da sua avó, embora não quando se produziu, e que ele me explicou por que fomos primos, mil vezes longínquos. Isso é quão único lembro, e é assombroso que recorde tanto, tendo em conta que tinha bebido quase quatro litros de láudano pouco antes de que ele chegasse. A expressão da moça se esclareceu. — Ah, agora entendo. Há indivíduos que se tornam muito dóceis sob a influência dos opiláceos. Deve ter estado de acordo com cada palavra que pronunciou ele, embora não tinha você idéia do que estava dizendo. Ao longe retumbou o trovão e no céu se amontoaram nuvens negras. Dava a impressão de que ao Gwcndolyn não afetava o mau tempo absolutamente. Limitava-se a olhar ao Dorian com tranqüila concentração. Aquele firme olhar verde começava a despertar um perigoso desejo em seu peito, e também lutou contra ele. — Tratei de lhe explicar — disse rígido — mas se negou a me escutar. — Não me surpreende. — respondeu a moça — Estava convencido de que o Rawnsley que encontrou a primeira vez estava em seus cabais, porque aceitou com sensatez tudo o que Abonville dizia. Hoje, quando você o negou, inclinou-se por lhe atribuir a negativa a um ataque passageiro de loucura. — Essa idéia cruzou minha cabeça — murmurou Dorian. — Muitos reagem do mesmo modo ante um comportamento aparentemente irracional. Em lugar de escutar o que você dizia, talvez tenha querido fazê-lo raciocinar, repetindo uma e
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outra vez seu próprio ponto de vista, do mesmo modo que alguém faz repetir aos meninos as tabuadas de multiplicar. Até os médicos peritos, que deveriam saber como são as coisas em realidade, acreditam que esse é um modo "iluminado" de tratar aos indivíduos em estado de agitação. Franziu o nariz bicudo: — É muito irritante. Não me surpreende que você tenha perdido a paciência e fugido. — De todos os modos, esse foi um engano — disse Dorian— Teria que haver ficado e raciocinado com ele. — Teria sido uma perda de fôlego — repôs Gwen com vivacidade — O que está em dúvida é o seu equilibro mental. A explicação deve provir de alguém cuja saúde mental não esteja em interdição. Eu o explicarei, e me emprestará atenção. Fez uma pausa e olhou ao redor. — A tormenta não se aproxima com tanta urgência como eu esperava. Por uma vez, a Providência nos demonstra certa consideração. Chatearia-me muito ter que retornar sem ter a menor idéia do que é que tinha passado. Mas não se pode obrigar a um homem a cumprir uma promessa que formulou não estando em seus cabais. Bertie lhe havia dito que ela não era das que se deixavam abater. Mesmo assim, o ligeiro matiz de resignação na voz da moça o fez sentir-se culpado. Gwen lhe tinha salvado a vida. Embora não estava seguro de que queria salvar-se, apreciava a coragem e a eficiência com que tinha atuado a moça. Também o tinha tranqüilizado. E o escutou. Entendeu-o. Apartou a vista e se perguntou até que ponto lhe devia uma explicação e até onde podia confiar em si mesmo. Uma rasgada linha de fogo apareceu sobre uma colina longínqua. Os céus retumbaram. Dorian olhou outra vez a jovem. — Não lhe parece um tanto tardio? — perguntou-lhe — Me refiro a que procure uma esposa neste preciso momento. A jovem se encolheu de ombros. — Posso entender o que significa para você. Mas não é muito diferente do homem decrépito que se casa com uma moça, coisa que acontece bastante freqüentemente. Dorian sabia que acontecia. Semelhante matrimônio equivalia há uns meses, possivelmente alguns anos, de cuidar de um inválido babão. Sem dúvida, a perspectiva de uma viuvez, rica e independente devia ser suficiente compensação. Mas ele não era dos que reprovaria a uma mulher a atuar por cobiça, pois ele mesmo nunca tinha sido nenhum santo. Mais ainda, sabia que certas mulheres tinham um grau notável de tolerância. Haveria, acaso, muita diferencia entre deitar-se com um homem que parecia um cadáver e deitar-se com outro que era um caipira bêbado, insaciável enquanto sentisse a necessidade e arisco e estúpido depois? Essa era a classe de homem que ele tinha sido fazia pouco tempo. Estremeceu-se pela lembrança do passado e pelo que lhe proporcionaria o passado se submetesse a sua parte mais rasteira e aceitasse o que lhe oferecia. — Seria conveniente que empreendêssemos a volta — disse a jovem — Você está cansado, molhado e gelado. Dando-a volta, foi aonde estava seu cavalo Dorian se levantou e a seguiu, aliviado de que não lhe tivesse pedido mais explicações. E, embora já houvesse dito mais do que queria dizer, desejava lhe contar mais, lhe explicar. Mas isso significaria lhe descrever a vida sórdida
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que tinha levado e a indefesa imbecilidade que o esperava. "É melhor deixar as coisas como estão", disse-se. Ao parecer, a moça aceitava a situação. Chegaram até onde estava o potro baio, e Doriam estava tão concentrado se dizendo a si mesmo que lhe convinha morder a língua que não se deteve pensar, mas sim elevou à moça e a acomodou sobre a arreios. Recordou muito tarde que era uma arreios de homem. Mas a jovem passou a perna por cima e se instalou comodamente escarranchado, exibindo com ingenuidade, ante a vista de Dorian, vários centímetros de roupa interior feminina. Entre as anáguas sujas de barro e as botas incrustadas de lama, as meias sujas encerravam uma panturrilha esbelta e curvilínea. Dorian se apartou, amaldiçoando-se entre dentes. A moça não necessitava ajuda. Dorian poderia ter montado seu próprio cavalo e empreendido a volta a casa, deixando que ela se arrumasse sozinha. Acabava de escapar do pântano, e ninguém esperaria que se mostrasse cavalheiresco em semelhantes circunstâncias, e, sem dúvida, esta não era uma mulher indefesa. Não devia permitir a sua mente que vagasse pelo passado. Não teria que enlouquecê-la, nem aproximar-se o suficiente para ver como eram as pernas de Gwendolyn. Já percebia como se debilitava sua resistência, era consciente das desculpas que elaborava sua mente traiçoeira, as falsas desculpas nas que não devia confiar. Se cedesse à tentação, não haveria alívio nem liberação para ele. Até então, nunca tinha havido só um esquecimento temporário que depois o deixava cheio de desprezo por si mesmo apressou-se a aproximar-se de Isis e montou rapidamente. Não é por nada Gwendolyn Adams era neta de uma famosa femme fatale. Embora Genevieve, não tenha herdado o cabelo negro, nem o rosto impactante ou as maneiras sutilmente sedutores, sim, tinha herdado certos instintos. Não teve muitas dificuldades em interpretar a expressão do conde do Rawnsley quando seu exótico olhar amarelo lhe posou na perna. Tampouco teve muita dificuldade em interpretar sua própria reação, quando esse mesmo olhar se entreteve um par de frações de segundo mais do que permitia a delicadeza. Teve a impressão de que dos olhos do homem saltava uma cálida faísca para sua perna e que acendia um pequeno fogo que subiu por debaixo de suas anáguas como uma ferida até além do joelho e lhe fazia cócegas as coxas com sua maliciosa tibieza antes de lhe formar um redemoinho na boca do estômago. Agitou nela sensações das que tinha ouvido falar, mas que jamais experimentou em si mesmo. Nunca sonhou que o conde louco do Rawnsley despertasse nela tais sensações, mas, para falar a verdade, nada era como ela tinha esperado. Tinha lido o relacionado com as areias movediças e a tremenda pressão que exerciam. Estava segura de que Dorian devia sentir-se como se lhe tivesse passado por cima uma correria de touros. Entretanto, tinha-a levantado com tanta facilidade como se tivesse recolhido uma margarida da fina capa de terra de Dartmoor. Nesse momento, observava-o acomodar seu corpo comprido e poderoso a arreios com um só movimento fluido, como se não tivesse estado fazendo nada mais exaustivo que recolher flores silvestres. Perplexa, seguiu o conde em silencio pelo estreito e ondeante atalho de ferradura. Chovia, mas sem convicção. Ao parecer, a tormenta se desviou para o sudeste.
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Rawnsley ia ao trote firme em seu cavalo, sem jogar um único olhar atrás, para sua companheira. Gwendolyn não tinha dúvidas de que teria saído ao galope do Hagsmire, do mesmo modo desesperado em que tinha entrado, se o cavalo não estivesse cansado. Sem dúvida com a melhor intenção, Abonville o tinha posto em um estado de extrema agitação. Existia a possibilidade de que voltasse a acontecer, e era muito provável que o duque tomasse a pior das decisões pelo melhor dos motivos. Gwendolyn viu acontecer muitas vezes a médicos ambiciosos, ansiosos de fazer montanhas de dinheiro, provavam suas absurdas teorias em casos perdidos, e as famílias, por carinho, acessavam cegamente, impulsionadas pelo desespero. Mas os médicos não eram mais que homens, e com os homens tudo era sempre questão de sorte. Em certas circunstâncias, os doutores eram propensos a combater as enfermidades como se as vítimas e as enfermidades fossem, ambas, seus inimigos mortais. E depois os médicos se assombravam de que os pacientes se voltassem hostis. O que necessitava Rawnsley era uma amiga. Mas nesse momento, graças ao Abonville e o pobre estúpido do Bertie, considerava Gwendolyn como uma inimizade. — Malditos sejam. — murmurou — Para embrulhar as coisas, nada como os homens. Estava revisando à larga litania de ofensas cometidas pelos varões da espécie, quando Rawnsley deteve sua égua. Gwendolyn advertiu que o atalho se alargou e havia espaço suficiente para cavalgar um ao lado do outro. Rawnsley estava esperando que lhe pusesse ao mesmo tempo, compreendeu-o com assombro. Reanimou-se um pouco. A experiência lhe tinha ensinado a não atracar a conclusões apressadas e menos otimistas. Quando ela chegou a seu lado, Dorian disse, voltando a avançar: — Você se referiu a um hospital. A voz era rouca e insegura, e não era difícil lhe diagnosticar esgotamento e perturbação interior. Este último era mais difícil de analisar. O homem não a olhava a ela, mas bem fixava a vista à frente, e o comprido cabelo molhado lhe caía sobre a cara, lhe ocultando a expressão. — Estive tentando adivinhar por que você veio a casar-se com um louco moribundo – continuou — Disse que me necessitava. Deduzo que é o dinheiro o que necessita. — Lançou uma breve gargalhada — Evidentemente o que outro motivo haveria? Era um modo bastante brutal de dizê-lo. De todos os modos, era bastante certo, e Gwendolyn tinha decidido ser franca com ele desde o começo. — Em efeito, necessito o dinheiro para construir um hospital. — disse — Tenho idéias bastante definidas sobre o modo em que deve fazer-se, e também dos princípios que têm que guiar seu funcionamento. Para obter meus objetivos, sem negociação nem compromisso, necessito não só recursos consideráveis, mas também influencia. Como condessa de Rawnsley, teria ambas as coisas. Como sua viúva, estaria em condições de atuar com independência. E, como é o último varão de sua família, eu não teria que responder ante ninguém. Jogou-lhe um olhar: — Já vê que tive em conta todos os detalhes de sua situação atual, milord. Dorian olhava adiante, apartou-se o cabelo empapado da cara, mas mesmo assim, Gwen não podia interpretar sua expressão, embora não viu nela sinal de indignação nem de aborrecimento. — Meu avô se revolveria em sua tumba. — disse Dorian, depois de uns momentos — Uma mulher, a condessa de Rawnsley, construindo um hospital com a fortuna da família. Tanto dinheiro desperdiçado em camponeses.
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— Os ricos não necessitam hospitais. — repôs — Podem pagar médicos que fiquem junto a eles e os atendam ante o menor mal-estar. — E tem a intenção de dirigi-lo segundo seus princípios. — lhe disse — Meu avô tinha uma péssima opinião da inteligência feminina. Uma mulher com idéias próprias, segundo seu ponto de vista, era uma perigosa aberração da Natureza. — Olhou-a, e se apressou a apartar a vista— Me oferece você uma tentação quase irresistível. — Isso espero. Não existe na Inglaterra outro homem que reúna as circunstâncias mais apropriadas a minhas aspirações. Entendi-o quase imediatamente, e estava desesperada por chegar aqui antes que você se matasse. Como vê, estou muito mais desesperada por me casar com você do que você possa estar de casar-se com qualquer uma. — Desesperada. — repetiu, com outra breve gargalhada — Eu sou a resposta a suas preces, verdade? A garoa estava convertendo-se em uma franca chuva, e os relâmpagos estalavam nos borde da terra pantanosa. Mas já não estavam longe da casa e partiam por terra mais baixa que antes. Dorian parecia estar pensando no lema. Gwendolyn esperava em silêncio, contendo os desejos de orar. Não queria tentar ao destino a que jogasse outra de suas brincadeiras práticas. Já o tinha salvado de um pântano, conformou-se com uns olhares de soslaio ao homem com o que tinha vindo casar-se. À medida que a chuva ia lavando parte do barro, embora o rosto ainda estivesse sujo, a nobreza do perfil era indiscutível. Era extremamente arrumado isso era algo que Gwen não esperava. É que estava acostumada a esperar sempre o pior. Mas a possibilidade de que fosse atrativo não tinha entrado em seus cálculos. Quando o homem voltou a falar, estava ajustando esses cálculos. — Vim aqui a terminar minha vida em paz. — disse — Esperava que, se ficava sozinho neste sítio isolado e não incomodasse a ninguém, ninguém me incomodaria. — Mas viemos nós e pusemos tudo a perder. — disse a moça — Entendo quão frustrado deve se sentir. Dorian se voltou para ela. — Abonville não me deixará em paz, não é assim? — Farei tudo o que possa para persuadi-lo com respeito aos seus desejos. — repôs Gwen, cautelosa. Não podia lhe prometer que Abonville se manteria afastado para sempre, mas tampouco queria usar ao duque como ameaça. Não queria que Rawnsley sentisse a necessidade de esconder-se nas saias de uma mulher. Um dos aspectos mais desagradáveis de estar doente era sentir-se impotente e depender em grau supremo de outros. — Se eu fizer o que ele pede e me casar com você, é provável que me deixe tranqüilo, ao menos por um tempo — disse Rawnsley — O problema é que a teria a você perto e, entretanto... O olhar se posou na perna da moça e logo ascendeu, deteve-se, pensativo, em seu rosto e voltou sua atenção ao caminho. — Faz quase um ano que não estou com uma mulher — continuou, tenso — Havia resolvido deixar atrás esse tipo de questões. Mas, ao parecer, essa classe de santidade não está em minha natureza, e um ano não é suficiente para cultivar semelhante virtude. Acredito que necessitaria décadas. — concluiu, com amargura. Gwendolyn não chegou ali esperando essa classe de "santidade" a que se referia. Estava disposta a deitar-se com ele e tratar de ter um filho, sem lhe importar a aparência que tivesse ou como se comportasse. Se, ao pensá-lo, não lhe tinha parecido um castigo desoladamente
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cruel, mal poderia alarmá-la ou desgostá-la neste momento. Se um comprido celibato — e, sem dúvida, para um homem um ano devia parecer uma eternidade — e uma olhada a sua perna inclinavam a decisão em seu próprio favor, ela não tinha objeções. — Se o que quer dizer é que não me encontra horrenda, me alegro. — Você não tem idéia do que poderia eximir — lhe resmungou — Não tem idéia da classe de homem que sou. — Considerando o que chegaria a ganhar com este matrimônio, seria absurdo, por não dizer ingrato, de minha parte me chatear por seus defeitos pessoais — repôs — Eu tampouco sou perfeita. Deixei bem em claro que meus motivos são mercenários. Você pôde comprovar que sou desobediente e de língua afiada. E eu sei que não sou uma grande beldade. Também sou obstinada: é um traço de família, sobretudo nas mulheres de minha geração. De fato, poderia chegar um momento em que a perda da razão lhe pareça um alívio. — Senhorita... senhorita... Diabos, não recordo — disse Dorian — Sei que não é Trent, mas... — Meu sobrenome é Adams. Gwendolyn Adams. Dorian franziu o sobrecenho. — Senhorita Adams, eu gostaria de saber se está tratando de me convencer de que me case com você ou de que me suicide. — Simplesmente queria lhe assinalar quão vão resulta, nas pressentes circunstâncias, falar de nossos respectivos defeitos de caráter. E queria ser sincera com você. A parte maliciosa do Gwendolyn não desejava ser sincera com ele. Compreendia que a Dorian preocupava a possibilidade de que suas urgências masculinas lhe nublassem o entendimento. A parte maliciosa não só esperava que essas urgências ganhassem, mas também a insistiam às provocar com as táticas femininas que empregavam outras garotas. Mas isso não era justo. Tinham girado pelo estreito atalho que levava aos estábulos. E embora agora a chuva golpeasse com mais força, Gwendolyn escutava, sobre tudo, o pulsar de seu próprio coração. Não queria partir derrotada, mas tampouco queria ganhar com recursos sujos. Deduziu que mostrar as pernas constituía um recurso sujo, por mais que sua pouco decorosa maneira de montar tivesse sido impulsionada pela pressa e pelo fato de que não houvesse a arreios para damas. Por isso, quando entraram no curral, dirigiu-se para o bloco para desmontar. Mas Rawnsley apeou antes que ela chegasse e, quase no mesmo momento, estava junto ao cavalo que Gwen montava. Um instante depois elevava os braços e a sujeitava da cintura. As mãos eram mornas, o apertão, firme e seguro. Sentia a indolência que emitiam e que contagiavam a seu próprio corpo, ao tempo que observava como os músculos dos braços se avultavam sob as mangas da camisa molhada. Elevou-a com a mesma facilidade que se tivesse sido um espírito. E embora não tinha nenhum temor de que a deixasse cair, apoiou-se nos poderosos ombros. Foi um reflexo. Foi instintivo. Baixou-a lentamente, e não a soltou até que os pés da moça tocaram o chão. Olhoua, e o intenso olhar amarelo apanhou o de Gwen lhe fazendo pulsar mais forte ainda o coração. — Chegará o momento em que já não terei poder sobre ti — disse, em tons baixos que lhe fizeram cócegas os nervos — Quando minha mente se derrube, pequena bruxa, ficarei a sua mercê me acredite, que pensei nisso. Perguntei-me o que fará comigo, então, o que será de mim. Nesse momento, uma das perguntas que a inquietavam ficou respondida. Dorian era consciente do perigo em que se achava. Seus temores eram quão mesmos ela sentia por ele.
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Ainda, a mente do homem funcionava bem. Mas seguiu falando, antes de que pudesse tranqüilizá-lo. — Posso imaginar o que acontecerá, mas não importa, porque sou o homem que sempre fui. A sentença de morte não mudou nada. — Apertou com mais força as mãos na cintura da moça — Teria que me haver deixado no pântano — lhe disse, os olhos lhe queimando o rosto — Não teria sido agradável, mas a Providência não garante a todas as criaturas uma morte agradável e sem dor. E eu estou bem preparado para a minha. Mas veio você, resgatou-me, e agora... Soltou-a de repente e retrocedeu. — É muito tarde. Gwendolyn compreendeu que não estava em condições de escutar frases tranqüilizadoras. Estava zangado consigo mesmo e, se não confiava em si mesmo, não devia estar disposto a confiar no que ela dissesse. Acreditaria que estava lhe seguindo a corrente, como se fosse um menino. Por isso, fez um gesto de assentimento vivaz e prático. — Isso me soa como um sim — disse — Embora contra sua melhor opinião, mas, de todos os modos, parece um sim. — Sim, maldita seja. Malditos todos vocês. Farei-o — resmungo. — Alegra-me sabê-lo — disse. — Claro que te alegra. Está desesperada por ter seu hospital, e eu sou a resposta a suas preces de solteira. — deu-se a volta — Ao parecer, eu também estou desesperado depois de um ano de celibato, é provável que aceitasse me casar com sua avó, que o Diabo me confunda. Afastou-se a pernadas pelo caminho que ia até a casa. Dorian foi direito a biblioteca, com a bruxa de cabelos vermelhos pega a seus calcanhares. Abriu de repente a porta. Abonville se passeava frente à chaminé, Genevieve lia um livro, Bertie construía um castelo de naipes. Dorian entrou e se deteve uns passos do vão da porta. Abonville se deteve bruscamente e o olhou fixo. Genevieve deixou o livro e elevou a vista. Bertie saltou da cadeira, os naipes voaram ao redor e caíram revoando no tapete. — Pelos trovões de Júpiter! — exclamou — O que te aconteceu, Gato? — Sua prima me fez cair a um pântano. — disse Dorian, em tom normal — Depois me tirou. Logo, acordamos nos casar. Hoje. Pode ser meu padrinho das bodas, Bertie. Os dois maiores não se alteraram, Bertie abriu a boca, logo a fechou. Retrocedeu um passo, franzindo o sobrecenho. Dorian olhou à senhorita Adams, que acabava de entrar e se colocou junto a ele. — Alguma objeção, senhorita Adams? — perguntou — Ou reserva? — Claro que não. Pode realizar cerimônia quando você queira. — Entendo que tudo foi preparado para umas núpcias rápidas. — disse Dorian — Se tiver ao sacerdote por aí, podemos fazê-la agora. Olhou ao trio de parentes, preparando-se para uma explosão de histeria. Acreditavam-no louco, e sabia que, nesse momento, parecia-o. A chuva não tinha feito mais que diluir o barro do pântano, que lhe jorrava da roupa empapada e gotejava sobre o tapete. Ninguém pronunciou uma palavra. Ninguém se moveu. Exceto a bruxa, que não emprestou a seus parentes mais atenção que se tivessem sido estátuas, das que constituíam uma esplêndida imitação. — Se sentirá mais cômodo depois de um banho — disse — E de ter comido algo. E de uma sesta. Sei que está esgotado.
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Em efeito, doía-lhe cada um dos músculos. Quase não podia ficar em pé. — Posso me pôr mais cômodo logo — disse, lançando um olhar desafiante ao terceto mudo — Quero me casar já. — Eu também queria me lavar e me trocar — disse Gwen. Aproximou-se e arrastou do punho enlameado da camisa do Dorian — Me levará um tempo mandar procurar a minha donzela, minha roupa, e também o sacerdote. Estão todos esperando na estalagem, junto com nossos advogados. Eles podem vir também, de modo que você possa assinar os acertos. Estou segura de que não quererá esperar assim, empapado, a que cheguem todos. Advogados. Sentiu que o invadia um pânico gelado. Examinariam-no, para certificar-se de que sabia o que estava fazendo. Fazia muito pouco tempo, o matrimônio de quatorze anos do conde do Portsmouth tinha sido anulado, tendo em conta que ele não estava em seu são julgamento quando o contraiu. A senhorita Adams não quereria arriscar-se a sofrer uma anulação e a perder assim todo direito sobre sua fortuna e o título que necessitava para ter influência. Mas e se descobriam que não estava em seu são julgamento?... estremeceu-se. — Olhe-se — insistiu a moça — Está tremendo, milord. Bertie, deixa de abrir a boca como um peixe e ajuda em algo. Leva a seu obstinado amigo acima antes que se deprima, e diga aos criados preparem o banho e lhe tragam algo de comer. Genevieve, você manda alguém à estalagem trazer o que necessito, por favor. Abonville queria falar com você. Ninguém protestou, nem um pouco. Bertie se apressou a aproximar-se do amigo confundido, tirou-o do braço e o tirou pela porta da biblioteca. Momentos depois, quando chegaram à escada, Dorian viu que Hoskins corria entre os serventes e se dirigia à biblioteca. Perguntou-se se a bruxa teria arrojado um feitiço sobre todos eles. — Eu, em seu lugar, não perderia tempo — lhe advertiu Bertie — Se Gwen nos pega vagabundeando, dará um ataque, e eu preferiria que não, ao recordar como uma vez lhe deu um, e a mim ainda me ressonam os ouvidos. Não era que não tinha razão. Nós não ouvimos bem, não? Aferrou o braço do Dorian e o arrastou. — Vamos, Gato, Gwen disse banho quente, e nisso também tem razão, Por Deus. Parece essa porcaria que trouxe o gato, e, não lhe ofenda, mas cheira a não sei o que. — Já te hei dito que me atirou de um pântano — disse Dorian — A que quer que cheire, depois de me haver dado um mergulho de cabeça em um lodaçal pestilento? Dorian se sacudiu e começou a subir sozinho, pois não queria que seu amigo, muito ansioso, arrastasse-o pelas escadas. Bertie os seguiu. — Bom, se você não tivesse fugido, ela não teria que ter saído para te buscar —disse—. Não entendo porquê o fez. Disse-te que ela não era como Jess, não o disse isso? Disse-te que Gwen era uma boa garota. Acaso crê que te deixaria te atar a qualquer mulher abominável? Acaso não somos amigos? Não nos cuidamos um a outro? Bom, eu acredito que sim; ao menos eu o fiz, mas você esteve longe muito tempo e nunca me disse onde estava. Mas nunca foi de mandar cartas, e eu nunca fui de respondê-las, de todos os modos, e suponho que não te teria informado de que eu havia tornado de Paris. Tinham chegado ao patamar. Bertie olhou, preocupado, ao Dorian. — Mas agora está tudo bem, não? Quero dizer, se tivesse que olhá-la ao outro lado da mesa, no café da manhã, não te equivocaria nas lonjuras, não é certo? "Se a contemplasse ante a mesa do café da manhã, o mais provável seria que saltasse em cima dela e a devorasse", pensou Dorian. Ainda se maravilhava de ter podido limitar-se a lhe
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pôr as mãos na cintura, depois de lhe haver visto a expressão tenra e encantada dos olhos quando a ajudasse a desmontar. Nenhuma mulher o tinha cuidado assim. Baixo esse olhar, a razão, a consciência e a vontade se derreteram, e o tinham deixado indefeso, quase tremendo de desejo. Inclusive nesse momento, de só recordá-lo, não podia reunir um ápice de sentido comum. — Eu gosto de seus olhos — disse ao Bertie — E sua voz não é desagradável. Não me parece tola nem afetada. Dá a impressão de ser uma moça capaz e sensata — adicionou, evocando a aterradora eficiência com que o tinha tirado do pântano. A expressão afligida de Bertie se dissipou e foi substituída pelo sorriso estúpido e afável que lhe tinha ganho o coração fazia anos. — Vê, já sabia que o compreenderia, Gato. Sensata, esse é o término. Diz-te o que terá que fazer, e lhe diz isso com simplicidade, de modo que saiba como fazê-lo. E, quando Gwen diz que o fará, vai e o faz. Disse que iria atrás de ti, e nós tivemos que ficar quietos, com a boca fechada, e nos apartar de seu caminho. E ela o fez, e você retornou, e há dito que a aceita, e agora tudo está bem, não? "Já tenho toda a vida em ordem outra vez", pensou Dorian, "tudo ao alcance da mão, meu breve futuro tão cuidadosamente planejado."Kneebones o tinha prometido, e podia confiar em que cumpriria sua parte do trato: láudano, tudo o que Dorian necessitasse para manter-se tranqüilo, para deixá-lo morrer em paz. Mas agora não podia prever o que aconteceria. Poderia lhe dizer a sua noiva o que queria, mas não obrigá-la a fazê-lo. Podia fazê-la formular promessas, mas não obrigá-la a cumprir. Em pouco tempo mais, não teria poder sobre ela. Mas não podia apartar o futuro de sua mente, porque não podia dissipar a lembrança da tenra expressão daqueles olhos. Não podia pensar em outra coisa que na noite iminente e na pequena bruxa entre seus braços. Cheirei, Senhor, e se lhe falhava a mente e a machucava, então, o que? Forçou um sorriso para tranqüilidade do Bertie. — É como você diz, Bertie — respondeu com ligeireza — Toda em ordem, e todos felizes. Umas horas depois, Gwendolyn estava sentada em um banco de pedra no jardim do conde do Rawnsley, contemplando o sol sangüíneo que descendia depois de uma colina próxima. Fazia muito que a tormenta tinha ido chatear a outra parte de Dartmoor, deixando o ar fresco e limpo. Gwen estava limpa e vestida com esmero, com o vestido de seda verde que Genevieve lhe trouxera de Paris, e o rebelde cabelo domesticado por um tempo, em um montículo relativamente ordenado de cachos no cocuruto. Oxalá se mantivesse assim para quando Rawnsley saísse da reunião com os advogados. O cabelo do Gwendolyn era a desgraça de sua vida. As Autoridades Estabelecidas, com seu perverso senso de humor, tinham-lhe concedido o cabelo de papai, em lugar do de mamãe. Não lhe incomodava muito a cor, que, pelo menos, era interessante, mas tinha muito, uma mixórdia de cachos, saca-rolhas e curvas, cada um com vontade própria, e todos loucos. O cabelo, que era a antítese de sua personalidade: equilibrada, firme e ordenada, era difícil que as pessoas a levassem a sério, como se ser mulher não o fizesse já bastante difícil. Graças a essa massa enlouquecida de cachos vermelhos e saca-rolhas, cada pessoa que a conhecia representava outra árdua batalha para demonstrar quem era ela em realidade. Oxalá as toucas voltassem a estar na moda. Tratou de imaginar como seria a juba negra do Rawnsley quando estava limpa e penteada. Não havia o tornado a ver desde que Bertie fizesse cargo dele. Perguntou-se por que levaria o cabelo tão comprido, se seria um simples ato de vaidade masculina ou de desafio
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contra as convenções em geral, ou, mais provavelmente, contra seu estrito avô, em particular. Gwendolyn podia entendê-lo. Entretanto, a rebeldia não explicava por que o conde se parecia tão pouco a seu retrato em miniatura. O rosto inchado da pintura dava a impressão de pertencer a um homem corpulento. Que Gwendolyn acabava de conhecer não tinha um grama de carne demais em toda sua figura de mais de um metro e oitenta. A camisa e as calças empapadas, que lhe pegavam ao corpo como uma segunda pele, não revelavam graxas ou gordura, a não ser músculos esbeltos e tensos. Qualquer que fosse o mal que o afligia, sem dúvida estava confinado aos limites da mente. Gwendolyn viu que a luz do sol crepuscular estendia uma mancha vermelha sobre as sombras dos páramos que foram aprofundando-se, enquanto procurava em sua memória o índice de enfermidades mentais. Perguntou-se que enfermidade corresponderia ao "desmoronamento" ao que Dorian se referiu. Estava pensando em aneurismas quando ouviu passos que rangiam sobre o cascalho do atalho. Ao dar a volta, viu seu prometido que avançava para ela, o rosto sério, aferrando uma folha de papel na mão direita. Nesse momento, as hipótese médicas, junto com outras questões intelectuais, afundaram-se nos rincões mais remotos da mente do Gwendolyn. Quando se deteve ante ela, não pôde fazer outra coisa que contemplá-lo, sentindo que o coração adotava um ritmo errático, que fazia cantarolar o sangue nas veias. Levava uma jaqueta de fina lã negra, cujo elegante corte realçava sua figura forte e atlética. O olhar da jovem escorregou pelas calças, também ajustados, até as pontas resplandecentes dos sapatos, e logo subiu como uma flecha, outra vez ao rosto. Limpo de todo vestígio do pântano, seu pálido rosto parecia cinzelado em mármore. O comprido cabelo negro reluzia como seda, frisando-se sobre os ombros largos. Um ardente olhar ambarino apanhou o de Gwen. Se tivesse sido uma mulher como todas, teria se desvanecido. Mas nunca tinha sido uma mulher como todas. — Por Deus, é terrivelmente arrumado! — exclamou, quase sem fôlego —Te asseguro que nunca vi nada igual. Por um instante, o cérebro me paralisou. Milord, devo te dizer que está muito bem limpo. Mas, a próxima vez, preferiria que me avisasse antes de aparecer, assim me dá ocasião de me preparar para a investida. Algo escuro chispou naqueles olhos ambarinos. Logo uma comissura da dura boca se curvou. — Senhorita Adams, tem você um modo interessante, único, de fazer comprimentos. O rastro de um sorriso a desorientou ainda mais. — É uma experiência única — repôs — Nunca me tinha passado, até agora, que me nubla-se o cérebro, estando completamente acordada. Pergunto-me se o fenômeno terá sido cientificamente documentado e que explicação fisiológica se propôs. Os olhos de Gwen estavam algo fora de foco, e seu olhar escorregava outra vez para baixo, até que se deteve no papel. O documento a devolveu bruscamente à realidade. — Parece um documento oficial — disse — Suponho que se trata dessas bobagens legais. Tenho que assiná-lo? Dorian olhou para a casa. Quando voltou a atenção a ela, seu meio sorriso se dissipou e sua expressão era outra vez dura.
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— Quer passear comigo? O olhar atrás deu a Gwendolyn uma idéia bastante aproximada de qual poderia ser o problema. Mas se reservou os comentários e caminhou junto a ele em silencio por um atalho bordado de rosas. Quando chegaram a um sítio rodeado de matas que os ocultavam à vista da casa, Dorian falou: — Me diz que, em vista de meu prognosis, é necessário nomear um guardião que vigie meus assuntos — disse, com voz não muito firme — Abonville propõe desempenhar esse papel, por ser meu parente masculino mais próximo. É uma proposta razoável, com a que meu próprio advogado está de acordo. Herdei muitas propriedades que devem ser protegidas quando eu estiver incapacitado para atuar com a responsabilidade. Gwendolyn se sentiu invadida por uma quebra de onda de indignação. Não entendia por que tinham que incomodá-lo com questões de semelhante índole em uma ocasião como esta. Quando único tinha que assinar eram os acordos matrimoniais. Não deviam lhe pedir que estampasse sua assinatura em documentos que pusessem sua vida inteira em jogo. — Protegidas contra quem? — perguntou — Parentes ambiciosos? Segundo Abonville, não restam mais Camoys que umas poucas anciãs murchas. — Não se trata só das propriedades — disse. A voz era tensa e o semblante, uma máscara branca. Gwen quis estirar a mão e aliviar seu torvelinho interior e a tensão, mas temeu que lhe parecesse compaixão. Arrancou uma folha de rododentro e percorreu o contorno com o dedo. — A guarda legal inclui custódia de minha pessoa — disse Dorian — Como não posso ser responsável por mim mesmo, devo ser considerado como um menino. Dorian não era ainda irresponsável, nem remotamente infantil. Gwendolyn havia dito a Abonville. Sabia que seu reprimenda tinha acalmado ao duque, mas era muito esperar que seus discursos obtivessem, por fim, apaziguar seu instinto superprotetor. Recordou que tinha boas intenções. Supunha que para ela o matrimônio seria uma dura prova, e desejava compartilhar a carga. Gwen não podia esperar que seu futuro avô entendesse realmente suas capacidades, tendo em conta que nenhum dos homens de sua própria família as entendia. Nenhum deles tomava a sério os estudos médicos da moça. Seus esforços e dedicação seguiam sendo, no que aos varões se referiam, "a pequena afeição de Gwendolyn". — É muito difícil pensar com claridade — prosseguiu Rawnsley, com a mesma ferocidade controlada — com um par de advogados e um futuro avô tão ansioso rondando a meu redor. E não me serve de nada que Bertie se cale, pois teve que meter o lenço para obtê-lo e, mesmo assim, não podia deixar de soluçar. Saí para me esclarecer a cabeça porque, maldição. — apartou-se o cabelo da cara — De fato, não me sinto razoável com respeito a isto. Tive vontades de mandá-los ao diabo. Mas meu próprio advogado esteve de acordo com eles. Se eu me houvesse oposto, me acreditariam irracional. Gwendolyn o entendeu, tinha medo de terminar encerrado em um manicômio. Pareceu-lhe bom sinal que tivesse ido a ela com o problema. Mas sabia que não tinha sentido aferrar-se ao que podia ser, parou-se frente a ele. Dorian não a olhou. — Meu lorde, espero que esteja informado de que a lei de 1774 que regula os manicômios protege às pessoas contra ser encerradas sem causa — disse — Na atualidade, só um grupo composto por imbecis e lunáticos criminosos poderia te considerar no compasso mentem. Não é preciso que firmes nenhum papel estúpido que esses sujeitos odiosos agitem ante sua cara para demonstrar que está cordato.
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— Devo demonstrar a Abonville — disse, tenso — Se chegar à conclusão de que estou louco, levará-te. Gwendolyn duvidava de que a perspectiva fosse intolerável para ele. Sabia que tinha aceitado casar-se com ela pelo que acreditava que eram os motivos equivocados. Duvidava que tivesse contraído um amor fulminante nas últimas horas. Era muito mais provável que tivesse ido provar. E, se fracassava, teria a prudência de deixá-la ir. Gwendolyn já tinha sido provada, entre outros, por dementes certificados, e este homem não estava mais doente que ela, nesse momento. Entretanto, não cometeu o engano de imaginar que essa prova seria mais fácil ou menos perigosa. Tinha-o julgado perigoso do momento em que voltou para ela aqueles estranhos olhos amarelos. Estava segura de que teria plena consciência do efeito que causava e de que sabia como usá-lo. Suas suspeitas resultaram confirmadas quando seu olhar amarelo se cravou no dela. — Senhorita Adams, o que fica de minha razão me diz que você representa para mim uma complicação infernal e que me conviria me livrar de você. Mas a voz da razão não é quão única escuto e poucas vezes lhe presto atenção — adicionou. O olhar baixou, deteve-se na boca da moça e seguiu baixando até o sutiã. Sob as capas de seda e as anáguas, a carne do Gwen se arrepiou sob o lento escrutínio e as sensações lhe estenderam até os dedos. Dorian tentava inquietá-la. Estava obtendo-o maravilhosamente. Mas lhe esperava a loucura e a morte, e, junto a isso suas próprias preocupações pareciam insignificantes. Quando o poderoso olhar ambarino voltou para rosto, Gwendolyn já tinha conseguido recuperar parte de sua compostura. — Não estou segura de que tenha identificado corretamente a voz da razão — disse — Mas estou muito segura de que, se Abonville tenta me afastar, me dará um ataque. Passei por boa quantidade de moléstias para me preparar para as bodas. Minha cabeça está cheia de fivelas e minha donzela me apertou tanto o espartilho que é um milagre que meus lábios não se puseram azulados. Levou-lhe quase uma hora engomar e enganchar este vestido, e, certamente, eu estarei três horas tratando de me tirar isso. — Eu lhe posso tirar isso em um minuto — repôs ele com voz baixa — E será um prazer te liberar do espartilho. Não te convém colocar essas idéias em minha cabeça. "Como se não estivessem já nela", pensou Gwen. Como se não a tivesse advertido: fazia um ano que não estava com uma mulher. E embora soubesse que estava pondo a prova sua fortaleza de donzela, o tom da voz do Dorian lhe estremeceu os nervos. Era mais alto que ela. E mais pesado. E mais fluente. Uma parte do Gwen quis fugir. "Mas não está a ponto de sofrer um ataque de loucura violenta", reprovou-se a si mesma. Estava fingindo, pondo-a a prova, e deixar-se intimidar não era o modo de ganhar sua confiança. — Não sei por que me conviria — disse — Não quero te ser indiferente. — Seria melhor para ti que fosse. Não se tinha aproximado um milímetro, mas a voz baixa e os olhos reluzentes exerciam uma pressão sufocante. Gwendolyn recordou que o Todo-poderoso lhe tinha posto obstáculos no caminho quase desde o dia em que nascera, e tinha enfrentado muitas vezes homens decididos a vencê-la ou assustá-la. Isso lhe dava a suficiente prática para lutar com este homem.
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— Sei que represento uma complicação infernal — disse — Compreendo que se sente pressionado, e também entendo seu ressentimento para consigo e suas urgências masculinas que lhe impulsionam a atuar contra sua melhor opinião. Mas não tem em conta o lado bom. Uma falta de tais apetites indicaria carência de saúde e de força. Gwen viu a faísca de surpresa nos olhos dele, um instante antes que a ocultasse. — Deveria considerar como um sinal positivo suas urgências animais — insistiu — Não está tão alienado como crê. — Ao contrário — disse Dorian — Me vejo muito pior do que tinha imaginado. Dirigiu a vista de seus olhos dourados até ponto do ombro esquerdo do Gwen, onde terminava o decote do vestido e começava a pele, imediatamente, a moça cobrou aguda consciência de cada centímetro quadrado de sua própria pele. Ouviu um rangido e, ao olhar para baixo, viu que o papel ficava espremido no punho apertado do homem. Dorian também o olhou. — Quase não importa o que é o que assinei — disse — Nada do que deveria importar importa. O coração do Gwen marcava um ritmo duplo, acelerando o curso do sangue por suas veias, preparando-se para voar. — Maldita seja — disse o homem. Avançou. Ela conteve o fôlego. Tirou-a dos ombros. — Eu sim que sou um bom sujeito, né? Aceita um ataque, por favor. Eu te mostrarei um ataque. Antes que pudesse exalar, lhe aferrou a nuca com uma mão, jogou-lhe a cabeça atrás e posou sua boca na de Gwen. Dorian lembrou a si mesmo que a culpa tinha sido dela, não teria que havê-lo cuidado desse modo que o derretia. Não teria que ter estado tão perto e apanhá-lo com sua fragrância, tão rica e embriagadora como o ópio para seus sentidos famintos. Mas bem, teria que ter fugido, em lugar de ficar tão perto e obrigá-lo a tomar consciência da pureza de porcelana de sua pele. Não pôde menos que desejar essa pureza, essa suavidade, como não pôde impedir de apoderar-se dela. Estampou sua boca premente sobre a de Gwen, suave, tremente, e esse sabor doce, limpo o fez estremecer, não soube se de prazer ou de desespero. No que a ele se referia, o estremecimento era um vazio dentro dele, um vazio eterno, impossível de encher. Embora só tivesse sido por sua prudência, teria que haver-se detido aí. Sabia que não tinha remédio. Que esta inocente não poderia saciá-lo. Nenhuma mulher, por perita e habilidosa que fosse, tinha-o obtido até o momento. Mas os lábios de Gwen eram tão suaves, mornos e dóceis à pressão dos de Dorian que teve que aproximá-la mais a si, procurando a calidez daquele corpo jovem, enquanto gozava da ingênua rendição de sua boca inocente. Apertou-a contra si, cobiçando seu calor e suavidade. Apertou-a contra seu corpo faminto, afundando o beijo, procurando desesperadamente mais como sempre. Sentiu-a tremer, mas não pôde deter-se, ainda não. Não pôde evitar que sua língua explorasse os mistérios da boca do Gwen, segredos femininos que prometiam tudo. Atraído pelo aroma, o gosto, o contato, deslizou-se para a escuridão. Acariciou a costas, ouviu o sussurro da seda sob seus dedos e a sentiu mover-se respondendo a suas carícias. Essa foi sua perdição, porque Gwendolyn se entregou à carícia como se o tivesse feito muitas vezes antes, como se pertencesse aos braços de Dorian, como se sempre tivesse pertencido. Calidez... suavidade... curvas sinuosas sob seda sussurrante, um corpo que se derretia contra o seu perfume feminino que o envolvia e a pele...
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Percorreu com os lábios a bochecha acetinada, e Gwen suspirou. O suave som acendeu a disposta chama interior do desejo. Os dedos do Dorian encontraram um fechamento... — Se está tratando de me assustar — ouviu a voz difusa, enquanto o fôlego do Gwen lhe fazia cócegas a orelha — não te sai bem. As mãos se imobilizaram. Elevou a cabeça e a olhou. Gwen abriu os olhos, e o encantado olhar verde ficou em foco. Imediatamente, o de Dorian se dissipou, baixo esse escrutínio penetrante. — Estava sofrendo um ataque de loucura — disse, consciente de que sua voz, algo rouca, expressava outra coisa. Apartou a vista do olhar da moça, que o apanhava, e retrocedeu. Mechas de cachos vermelhos tinham escapado das fivelas e lhe caíam, selvagens, ao redor do rosto rosado e do pescoço. O vestido estava um pouco torcido. Retrocedeu e se olhou as mãos, temeroso de recordar onde tinha estado e o que podiam haver feito a uma inocente, por pertencer a um caipira lascivo como ele. — O que é o que passa contigo? — perguntou-lhe — Por que não me detiveste? Tem uma idéia do que poderia haver feito? Gwen arrastou o vestido para acomodá-lo. — Tenho uma idéia bastante aproximada — respondeu — Conheço os mecanismos da reprodução humana, como disse a minha mãe. Mas ela acreditou seu dever maternal me explicar isso por si mesmo. Alisou-se o sutiã. — Devo dizer que assinalou um par de sutilezas que eu desconhecia. E, como era de esperar, Genevieve me instruiu mais à frente, ainda. Cheguei à conclusão de que não é tão simples como acreditava. — colocou-se outra vez um par de fivelas no cabelo — Com isto não quero dizer que não tenha experimentado consideráveis elucidações sob sua tutela, milord — se apressou a adicionar Gwen — Uma coisa é que contem como são os beijos íntimos, e outra muito distinta experimentá-los em carne própria. O que é o que olhas assim? — observou-se a si mesma — Esqueci que algo? Tenho algo solto? — Girou, lhe apresentando as esbeltas costas — Preciso me grampear algo? — Não. "'Graças a Deus", adicionou Dorian para si. Gwen se deu a volta outra vez e lhe sorriu. Sua boca era muito larga. Dorian o notou antes e sentiu e saboreou cada átomo dessa boca. Não recordava havê-la visto sorrir antes. Se a viu, tinha-o esquecido, pois era uma curva larga e doce que o enlaçava como um encantamento. Não sabia como resistir a sua cálida promessa. Não sabia como lutar contra ela e contra si mesmo, simultaneamente. Ignorava como afastá-la, tal como deveria fazê-lo, pois Gwendolyn lhe provocava desejos desesperados para abraçá-la. Pareceu-lhe que não sabia como fazer nada. O documento que lhe pediram que assinasse, os motivos que lhe deram para fazê-lo, obrigaram-no a enfrentar-se ao que tinha tentado ignorar. E se aproximou dela tratando de assustá-la, pela segurança da própria Gwen e a paz de sua consciência. E entretanto, Dorian, que em outra época tinha sido capaz de fazer tremer a rameiras endurecidas, não podia provocar a menor ansiedade nesta moça, como tampouco conseguia despertar sua própria consciência débil. Em outra época tinha sido capaz. Tempo passado, antes dos dores de cabeça, antes que a enfermidade começasse seu insidioso trabalho de sapa.
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Então chegou a resposta, congelando-o, o fio débil que unia vontade e ação, mente e corpo, e estava rompendo-se. Segundo Gwen. Dorian estava são e forte, mas era só a aparência externa. A mente em degeneração já estava minando sua vontade, deu-se a volta, para que Gwen não lhe adivinhasse o desespero no rosto. Controlaria-a. Só necessitava um momento. Tinha-o surpreendido, isso era tudo. — Rawnsley. Sentiu a mão dela na manga. Quis sacudir-lhe mas não pôde, como tampouco tivesse podido sacudir a percepção da presença de Gwendolyn. O sabor dela durava em sua boca e seu perfume o rodeava. Recordou o tenro olhar desses olhos tão belos, e o sorriso com mornas promessas. E ele estava gelado, congelado até o tutano. "E sou muito egoísta, muito fraco para renunciar a ela", pensou com resignada amargura. Levantou a mão e cobriu a dela. — Não quero voltar para essa maldita biblioteca e escutar seus discursos solenes nem ler seus podres documentos — disse, com simplicidade — Assinei os acordos. Você terá seu hospital. Suficiente. Quero me casar já. Gwen lhe apertou o braço. — Estou pronta — disse —Faz horas que o estou. Dorian a olhou, e lhe sorriu. Mornas promessas. Passou o braço dela sob o seu, e foram juntos de retorno à casa. Teve que apelar a toda sua vontade para não correr. O sol desaparecia, a lápide fechava e os envolvia em sua bendita escuridão. Logo, essa noite, estariam casados. Logo, subiriam ao quarto de Dorian, à cama. E então... Que Deus os ajudasse aos dois. Entraram e cruzaram depressa o vestíbulo. Viu que a porta da biblioteca estava aberta e a luz se derramava sobre o corredor na penumbra, voltou-se para falar com a mulher e então os viu-os tênues, mas inconfundíveis, na periferia de seu campo de visão. Diminutos relâmpagos de luz. Piscou, mas não se esfumaram. Revoaram, faiscando com maldade, nos limites de sua visão. Fechou os olhos, mas seguiu vendo-os emitindo seu aviso de morte. Abriu os olhos, e aí estavam, fatais, inexoráveis. Não, ainda não. Tão logo não. Tratou de afastá-los, embora soubesse que era inútil. Só lhe responderam, faiscando, imperturbáveis: logo, muito em breve. — Isto é culpa dele! — reprovou o senhor Kneebotes ao Hoskins — Disse que a frágil saúde de meu paciente não podia suportar nenhum esforço. Disse-lhe que terei que mantê-lo isolado de qualquer fonte de agitação nervosa. Nada de periódicos, nada de visitas. Já viu o que lhe provocaram as novidades sobre a família: três ataques em uma semana. E, entretanto, permitiu você que três desconhecidos se abatessem sobre ele no momento em que estava mais vulnerável. E agora... — Se um homem se converter em Par do reino, tem que inteirar-se — repôs Hoskins — Além disso, ataque ou não ataque, para ele foi um alívio saber que o ancião cavalheiro já não poderia incomodá-lo mais. E quanto a permitir a entrada de desconhecidos, eu gostaria de ver você fechando a porta na cara a lady Pembroke, sendo a avó do único amigo que tem meu patrão. Talvez não fosse correto eu dizer a ela o que passava ao senhor, mas me pareceu melhor lhe advertir de antemão que não estava tão forte como parecia, e que seus nervos já não estavam temperados como antes. — O qual significa que não teriam que havê-lo submetido a nenhuma classe de agitação — replicou Kneebones.
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— Com todo respeito, senhor, você faz semanas que não o vê — disse Hoskins — Talvez esteja capacitado para julgar sobre seu estado do ponto de vista médico, mas não conhece seu caráter nem seus desejos. Eu tive mais de nove meses para conhecê-lo, e lhe asseguro que quão último quer é que o tratem como a uma mulher propensa aos desmaios, — Jogou um olhar ao Gwendolyn — Espero que não se ofenda, senhora — Absolutamente — respondeu. — Nunca em minha vida sofri um desmaio. O veterano sorriu. Kneebones a olhou, carrancudo. Tinha essa expressão do momento em que ela o recebeu na sala, depois que teve visitado seu paciente. Não tinham acontecido dez minutos do começo da conversação quando estalaram as hostilidades. Hoskins, que esperava fora, no corredor, correu dentro e se lançou a defendêla, sem advertir que Gwendolyn não necessitava defesa. Não obstante, a atitude resultou útil, pois a discussão do criado com o médico esclareceu ao Gwendolyn um par de temas, e o céu era testemunha de que necessitava a maior claridade que pudesse obter. Ao parecer, Rawnsley estava decidido a mantê-la na mais completa ignorância com respeito a sua enfermidade. Minutos depois que retornaram à casa, depois do episódio no jardim, Gwendolyn tinha notado algo estranho. Nas horas que seguiram, enquanto Gwendolyn organizava tudo, tinha observado a mudança do conde. Quando chegou a hora da cerimônia, a voz do Dorian era monótona e seus movimentos, trabalhosos e lentos, como se ele fosse feito de cristal e pudesse romper-se em qualquer momento. Os dedos que deslizaram os anéis de bodas nos seus estavam mortalmente sorvetes, as unhas brancas como giz, depois de celebrada as bodas, quando já tinham estampado seus nomes como marido e esposa, Rawnsley lhe confessou que lhe doía a cabeça e que ia deitar se. Gwendolyn fez partir a seus parentes, como lhe pediu, explicando que o conde necessitava absoluta tranqüilidade. Dorian passou a noite de bodas na cama, com a garrafa de láudano. Tinha fechado com chave a porta do quarto, sem deixar entrar nem sequer ao Hoskins. Essa manhã, Gwendolyn lhe levou o café da manhã em pessoa. Quando golpeou a porta do dormitório e o chamou com voz suave, lhe disse que interrompesse esse barulho infernal e que o deixasse em paz. Como os criados não pareciam muito alarmados por essa conduta, Gwen esperou com paciência até as últimas horas da tarde, antes de mandar procurar o Kneebones. Quando o doutor saiu do quarto, o dono fechou outra vez a porta com chave e Kneebones se negou a lhe comentar o estado do paciente. Gwendolyn o observava, tranqüila, sem fazer caso da expressão ameaçadora do médico. Fazia anos que os médicos varões a olhavam com ira, coléricos e irritáveis. — Queria saber que dose de láudano tem prescrito — disse-lhe — Não posso ir ao quarto de meu marido e decidi-lo por minha conta, e estou muito inquieta. Para um paciente muito dolorido, é fácil perder a noção da quantidade que ingeriu e quando foi a última vez que o consumiu. A intoxicação com láudano não costuma melhorar a capacidade de calcular nem a memória. — Agradeceria que não me dissesse o que tenho que fazer, senhora — replicou o médico, rígido — comentei os benefícios e os riscos de meu paciente embora não acredito que possa lhe fazer nenhum bem, depois de ter passado pelo que passou. Uma impressão forte atrás de outra, coroada por um casamento apressado com uma mulher a que não conhece absolutamente. É
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como se o tivessem assassinado. Seria o mesmo que lhe tivessem dado uma martelada na cabeça. — Eu não observei sintomas de choque. — disse Gwendolyn — O que sim observei... — Ah, sim, durante sua larga relação com Sua Senhoria. — a cortou Kneebones, lançando ao Hoskins um olhar frio — A senhora o conhece há trinta e seis horas? Ou menos! Gwendolyn conteve um suspiro. Com este sujeito, não chegaria a nada, acordo quase todos outros médicos que tinha conhecido, com a bendita exceção do senhor Eversham. Como lhes chateava que os interrogassem, como adoravam fazê-los misteriosos, e os que tudo sabiam. Muito bem, ela também conhecia esse jogo. — Observei que as alucinações são de pouca duração — disse. Kneebones se sobressaltou, mas se recuperou imediatamente e adotou uma expressão cautelosa. Gwen poderia lhe haver esclarecido que tinha recebido treinamento para observar, mas não disse nada de seus próprios antecedentes, nem das conclusões que tirou o ver que Rawnsley piscava irritado e agitava as mãos no ar ante seu rosto, como tratando de tirar teias de aranhas. Se Kneebones decidia deixá-la na ignorância, cabia-lhe esperar o mesmo tipo de trato. Dirigiu-lhe um muito leve sorriso. — Acaso Sua Senhoria não o há dito, senhor? Sou bruxa. Mas não posso lhe fazer perder seu valioso tempo. Tem outros doentes que atender e eu tenho que ir pôr meu caldeirão sobre o fogo e sair a procurar outro turno de olhos de salamandra. A boca do Kneebones formou uma linha severa e, sem acrescentar palavra, saiu a grandes pernadas. O olhar do Gwendolyn se cruzou com a do Hoskins, tão aprazível. — Não conheço a dose — lhe disse o criado — Quando único conheço é o aspecto da garrafa e que há mais de uma. Depois de um sonho infestado de pesadelos, Dorian despertou inquieto, com terríveis dores. A cabeça lhe pulsava sem cessar por dentro, sentia um ardor como de bílis. Lentamente, com cuidado, incorporou-se até ficar sentado e tomando a garrafa da mesinha de noite, a levou aos lábios. Vazia. "Já?", perguntou-se, aturdido. A tinha terminado em uma só noite? Ou tinha passado várias noites em meio da névoa opressiva da dor e os opiáceos? Não importava. Tinha visto outra vez aparições chapeadas, desde esse dia, levitaram lentamente da periferia e piscavam desde cada lugar aonde olhava. Tinha visto os preparativos para as bodas em meio de ondulações faiscantes que se balançavam no ar como as ondas de um mar de fantasmas. Depois, por último, as faíscas chapeadas se desvaneceram e teve a impressão de que penetravam em seu crânio como facas ao vermelho vivo. Agora compreendia por que sua mãe afirmava que os 'fantasmas" tinham cruéis garras, e por que gritava e se arrancava os cabelos. Tentava arrancar-se essas garras que a martirizavam. Até lhe custava esforço recordar que não existiam fantasmas nem garras, que não eram mais que fantasias de doente. Perguntou-se quanto tempo mais estaria em condições de distinguir entre a fantasia e a realidade, quanto tempo, até que começasse a confundir aos que o rodeavam com fantasmas e demônios e ou atacá-los, em ataques de fúria inconsciente. Mas prometeu a si mesmo que não o atariam, Kneebones lhe tinha prometido que o láudano o tranqüilizaria, que, junto com a dor, levaria os fantasias.
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Dorian se aproximou mais à mesinha de noite e abriu a porta. Colocou a mão e encontrou o cilindro de porcelana. O apoiou no regaço e tirou o plugue. A garrafa estreita, colocada dentro de um pano de lã, estava dentro. O elixir da paz possivelmente da paz eterna. Tirou-a e, com mão tremente, apoiou o cilindro sobre a mesa de noite. Depois vacilou, mas não pela perspectiva da eternidade. Não, era um ser muito baixo e superficial para isso. No que pensou foi na bruxa, em sua boca branda e seu corpo esbelto e curvilíneo. E essa imagem bastou para decidi-lo a pensar nas mais nobres razões para evitar os riscos de láudano: se morria antes de consumar o matrimônio, este poderia resultar anulado e ela não teria seu hospital e, além disso, tinha o dever de conceber um herdeiro. "E a mim o que importará o hospital de Gwendolyn e o fim dos Camoys, quando estiver morto?", pensou. Tampouco ela teria ido, e bem estaria, e que Deus não permitisse que deixasse um filho. Com a sorte que tinha, o filho herdaria a mesma enfermidade do cérebro, viveria pouco tempo e morreria da mesma maneira humilhante, Desentupiu a garrafa. — Em seu lugar, eu tomaria cuidado — lhe chegou da escuridão uma voz conhecida — Está casado com uma bruxa. E se o converti em uma poção de amor? O quarto estava negro como o Hades. Não podia vê-la, não podia enfocar nada, com essa dor pulsante, mas a cheirava. O aroma exótico e estranho o arrancou desse retumbante mar de dor como uma mão fantasma e o trouxe para a consciência. — Também poderia ser uma poção que te converta em gato — adicionou. Não a ouvia aproximar-se, transpassar! Martelar incessante de sua cabeça, mas percebia a tênue fragrância, que se voltava cada vez mais rica, mais intensa. Jasmim? Dedos magros e mornos encerraram os seus, gelados. Tratou de falar. Moveu os lábios, mas não emitiu som algum. A dor lhe golpeou o crânio. Contraiu-lhe o estômago. A garrafa lhe caiu das mãos. — Sinto-me mau — boquejo — Cristo, eu...interrompeu-se quando outra coisa, fria, redonda e suave lhe apoiou nas mãos uma bacia. O corpo lhe estremeceu com violência. Logo o único que atinou a fazer foi sustentar a bacia, inclinar a cabeça e entregar-se a uma série de espasmos incontroláveis. Náuseas. Sacudiram-no sem cessar. Deixaram-no indefeso. E todo o tempo, sentiu as mãos mornas sobre ele, sustentando-o. Ouviu sobre ele os tenros murmúrios. — Sim, isso. Não se pode evitar. É uma dor de cabeça com náuseas. Uma porcaria, verdade? Dura horas e horas. Depois não se vai tranqüilamente, não é assim? Ao contrário, sai de ti te rasgando, e parece que leva suas vísceras consigo. Estou segura de que isso é o que parece, mas dentro de um momento se sentirá melhor. Isso. Já está. Não foi um momento a não ser uma eternidade, e Dorian não soube se já tinha terminado ou estava morto. Os espasmos já não lhe sacudiam o corpo, mas não podia elevar a cabeça. Gwen o sujeitou antes que caísse na asquerosa confusão da bacia. Levantou-lhe a cabeça e lhe apoiou uma taça nos lábios. Cheirou hortelã e algo mais. Não soube o que era. — Enxágüe a boca — lhe ordenou, serena. Muito fraco para protestar, obedeceu. O preparado de sabor penetrante lhe tirou o sabor desagradável da boca. Quando terminou, Gwen o ajudou brandamente a recostar-se sobre os travesseiros.
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Tendeu-se ali, exausto, e percebeu certo movimento. A bacia tinha desaparecido, e com ela a pestilência. Pouco depois, um pano fresco e úmido lhe posou na cara. Suave, rápida, eficiente, limpando-o e refrescando-o, estava seguro de que devia protestar, ele não era um menino de peito. Mas não conseguiu reunir energias suficientes. Logo ela se foi outra vez, por um tempo infinito e, durante a ausência do Gwen, a dor o penetrou outra vez. E, embora não fosse tão feroz como antes, aí estava, esmagando-o. Esta vez, quando a fragrância voltou, com ela chegou uma luz: uma só vela. Viu aproximar a silhueta em sombras. A luz o obrigou a fazer uma careta. Gwen se afastou e deixou a vela sobre o suporte da chaminé. Retornou junto à cama. — Ao que parece, ainda não se sente bem — disse, com soma suavidade — Não sei se é a dor de cabeça original ou os efeitos residuais do láudano. Então Dorian recordou a garrafa que lhe tinha tirado: — Láudano — disse, afogando-se — Me dê a garrafa, bruxa. — Depois, possivelmente — lhe respondeu — Agora tenho que exercer meu feitiço. Crê que poderá te colocar sozinho no caldeirão ou devo chamar o Hoskins para que te ajude? O "caldeirão" da bruxa era um banho fumegante, e o feitiço era o que exercia sustentando uma bolsa de gelo sobre a cabeça de seu flamejante marido, enquanto fervia o resto de sua pessoa. Ao menos isso foi o que interpretou Dorian da explicação que lhe deu. Não teve inconvenientes em decidir que o que menos queria na vida era sair da cama e cambalear-se até o piso de baixo, até o quarto de banho. Mas, quando soube que os criados estavam preparados para levá-lo em braços, trocou de idéia. Não suportava que ninguém o carregasse para levá-lo a nenhum lado. — Suas extremidades estão geladas — lhe disse sua esposa, lhe entregando uma bata. Apartou a vista enquanto ele a punha, zangado — Por cima do pescoço, está muito quente. Seu organismo está desequilibrado, entende? Devemos corrigir isso. Ao Dorian não importava estar desequilibrado. Por outra parte, não podia suportar que ela o visse estendido, impotente e tremendo como um menino pequeno. Por isso, arrastou-se da cama, cruzou a tombos a habitação e saiu pela porta. Rechaçando a mão que Gwen lhe tendia para ajudá-lo, saiu do quarto e desceu as escadas. Encontrou o pequeno recinto ladrilhado cheio de vapor perfumado de lavanda. Nos pequenos nichos da parede titilavam velas. A névoa perfumada, a leveza, a luz suave o envolveram e o atraíram. Extasiado, caminhou até o bordo da banheira. Tinham colocado toalhas no fundo e penduradas dos flancos. Sua fúria impotente se dissipou em meio dessa doce suavidade e calma, tirou-se de um puxão a bata e se meteu, gemendo enquanto se deslizava na água fumegante e o calor penetrava em seus músculos doloridos. Um momento depois, um pequeno travesseiro apareceu sob seu pescoço. Abriu os olhos. Encantado pela deliciosa suavidade e a água tentadora, esqueceu a existência da bruxa e que estava completa e totalmente nu. — A única coisa que tem que fazer é lhe encharcar — lhe disse — Se apóie no travesseiro. Eu farei o resto. Não pôde recordar o que era o descanso e se crispou quando a suave bolsa de gelo se apoiou sobre sua cabeça. — Eu a sustentarei — disse Gwen — Não tem que preocupar-se de que se escorregue.
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A bolsa de gelo era a menor de suas preocupações. Olhou dentro da água. A banheira não era a mais funda do mundo. Podia ver suas posses masculinas com toda claridade. E embora fosse tarde para decoros, colocou uma parte da toalha sobre a zona e pôs a mão em cima para que não doa-se. Ouviu um som afogado, suspeitosamente parecido a uma risada, mas se negou a levantar a vista. — Não é nada que não tenha visto antes — disse a bruxa —, embora admito que os outros eram recém-nascidos ou cadáveres de adultos, penso que o equipamento é, em essência, o mesmo em todos os varões. Algo se removeu na mente preguiçosa do Dorian. Apoiou a cabeça e fechou os olhos, tratando de reunir fragmentos e peças dispersos. O hospital, idéias definidas e princípios. Os parentes dela confundidos, obedecendo-a. A falta de temor. A bacia em suas mãos, no instante mesmo em que a necessitou a tranqüila eficiência. Começou a entender, embora não de todo. Muitas mulheres tinham experiência no cuidado de doentes, e entretanto... Voltou a pensar a última novidade. Podia entender o que referia aos recém-nascidos. Muitíssimas mulheres viam meninos nus, mas cadáveres de adultos varões? — A quantos leitos de morte assistiu, senhorita Adams? Não abriu os olhos. Era mais fácil pensar sem tratar de olhar ao mesmo tempo. Ainda lhe doíam os olhos. Apesar de que a dor estava minguando, seguia presente. — Já não sou a senhorita Adamas — repôs — Estamos casados. Não me diga que o esqueceste. — Ah, sim. Por um momento, me escapou da cabeça. Por isso os cadáveres. Estou muito interessado em seus cadáveres, lady Rawnsley. — Eu também o estava. Mas não acreditaria as dificuldades com que me topei. Admito que os cadáveres frescos não são fáceis de conseguir. Mas essa não é desculpa para que os médicos varões sejam tão egoístas a respeito. Pergunto-te: como vai uma pessoa aprender se não lhe permitem nem sequer presenciar uma dissecação? — Não tenho a menor idéia. — É ridículo — disse Gwen —. Finalmente tive que jogar mão do recurso de desafiar a um dos alunos do senhor Knighily. Esse fanfarrão condescendente afirmou que eu perderia meu café da manhã, deprimiria-me e cairia ao chão de pedra, sofrendo uma severa concussão. Apostei-lhe dez libras que não. — Fez uma pausa — Ao fim, foi ele o que se derrubou. — Na voz da moça vibrou um tranqüilo matiz de triunfo — Tirei a rastros ao desacordado, pois não queria me tropeçar com ele por acaso, e continuei eu mesma com a dissecação. Foi muito esclarecedora. Não se pode aprender nenhuma fração de tudo isso de uma pessoa viva. Não pode ver nada. — O que te frustra — murmurou o marido. — Assim é. Imaginei que seria suficiente demonstrando uma vez que podia fazê-lo, mas não. Foi à única vez que tive os instrumentos em minhas mãos e um cadáver todo para mim. Quando único obtive foi permissão para observar, e teve que ficar no mais absoluto segredo, para que minha família não se inteirasse. Inclusive com os pacientes, os vivos, não bastou com que demonstrasse minha competência ante ninguém. Enquanto o senhor Knightly esteve a cargo, só podia estar presente se fosse discreta. O devia dirigir tudo e as simples mulheres deviam obedecer ordens, embora estivessem apoiadas nas teorias mais antigas. Depois dos olhos fechados, Dorian podia ver agora a resposta com absoluta claridade.
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Um dia antes, essa revelação o teria impulsionado a sair fora do banho, correr como se o levassem os demônios e chegar até o lodaçal mais próximo. No presente, uma parte de sua mente lhe sugeriu que fugir não era uma má idéia. Mas estava tão cômodo, com os músculos relaxados na água fumegante, a cabeça torturada agradavelmente fresca... E disse com muita calma: — Sendo assim, não sente saudades que te equilibrasse sobre a possibilidade de ter seu próprio paciente. "E, antes que passe muito tempo. seu próprio cadáver", acrescentou, para si entre dentes. Embora, na verdade, não importava. Se ela queria dissecar seus restos, Dorian não estaria em condições de objetar-lhe Gwen não respondeu imediatamente. Dorian manteve os olhos fechados, desfrutando da névoa perfumada que flutuava a seu redor. Também se percebia a fragrância da mulher, rica e profunda, entrelaçando-se com a atadura. Não sabia se era esse perfume ou a cura o que o fazia sentir-se tão ligeiro. — Não quero dar a impressão de que todos os membros da profissão médica são uns imbecis — disse ao fim Gwen — Mas não posso confiar em que Abonville saiba distingui-los. E com o Bertie seria pior. Se emanarem em mandar especialistas de Londres e do Edimburgo, e terá que ver o destruam-no que tem para colocar a pata. — Entendo: vieste... a me salvar. — Do manicômio médico — se apressou a lhe esclarecer Gwen — Não sou uma fazedora de milagres, e sei que são pouquíssimas as enfermidades mentais que se curam. Além disso, não sei muito da tua — adicionou, com um rastro de irritação — O senhor Kneebones fala com tanta obstinação como o fazia o senhor Knighlly. Sabia que era inútil discutir com ele. Poucas vezes serve de algo falar como sempre, terei que demonstrar minha capacidade. Dorian recordou a maneira ágil, tranqüila, com que ela o tinha tirado do pântano. Recordou a fria firmeza com que fez frente a seus esforços por assustá-la para que fugisse. Recordou os cuidados serenos e eficientes de uns momentos atrás, quando ele teve aquelas náuseas tão desagradáveis. Pensou no cômodo que se sentia nesse momento. Fazia meses que não se sentia tão tranqüilo. Não podia recordar com exatidão quantos. De fato, não recordava quanto fazia que havia se sentido tão em paz. Alguma vez o tinha estado? Não podia evocar nenhum momento em que não estivesse irritado consigo mesmo por sua debilidade, e bulindo de ressentimento para seu avô, quem, como os médicos dos que Gwen falava, teimava em dirigir tudo. Abriu os olhos e girou lentamente a cabeça para olhá-la. Sustentava a bolsa de gelo, ao tempo que trocava de foco os olhos verdes para encontrar-se com o olhar dele. Perguntou-se se esse frio desapego seria próprio dela ou se teria preparado para suprimir as emoções e assim poder sobreviver em um mundo que não confiava nela nem a aceitava. Dorian sabia o que era isso e quanto custava essa preparação. — A umidade causa efeitos estranhos em seu cabelo — disse, resmungão. Todos seus cachos e saca-rolhas minúsculos pareciam brotar em todas direções, formando uma espécie de nuvem avermelhada. Inclusive no ar seco pareciam vivos e tratando de fazer que lhes desejasse muito. — "Que diabos faz seu cabelo?", deviam perguntar médicos. E não é de sentir saudades que não pudessem emprestar muita atenção ao que dizia. — Não teriam que haver-se distraído — repôs a moça — Não é uma atitude profissional.
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— Como grupo, os homens não são muito inteligentes — disse — Ao menos não de maneira constante. Temos momentos de lucidez, mas nos distraímos com facilidade. Ah, ele sim que se distraía com facilidade. A névoa vaporosa se instalou sobre ela. Sobre sua pele de porcelana brilhava um fino rocio. Cachos úmidos lhe pegavam ao redor das orelhas. Ao Dorian lhe ocorreu apartá-los e seguir seu delicado contorno com a língua. Imaginou aonde iriam sua boca e sua língua se ele o permitia à carne úmida do pescoço do Gwen, baixando até o oco da garganta. Deixou escorregar o olhar pelo decote, logo mais abaixo, aonde o tecido umedecido se pegava à curva dos peitos. Minha, pensou. E depois já não pôde pensar no futuro. Quase não pôde pensar em nada. — Certos homens, podem distrair — disse Gwen — Às vezes. Sobretudo você. Se Dorian não tivesse tido consciência tão aguda e ofegante da presença do Gwen, não teria captado o leve tremor de sua voz. — Ah, bom, mas eu estou louco. O que sentia bem podia ser loucura. Sob a ponta da toalha, à parte do Dorian que jamais atendia a razões despertava de seu torpor. — Supõe-se que este tratamento tem efeito soporífero — disse Gwen, lhe escrutinando o rosto. Não parecia inquieta a não ser perplexa, coisa que o teria divertido se tivesse estado em condições de fazer observações objetivas. Impossível. Estava sentada perto de seu ombro, no bordo da banheira. As pernas recolhidas sob o vestido, e a mente rasteira de Dorian estava concentrada no que havia debaixo. Tirou a mão da água e a apoiou na borda curva da banheira, a milímetros do bordo do vestido. — Tratamento? — disse — Acreditava que era um feitiço. — Sim, bom, não devo haver posto suficiente olho de salamandra. Teria que induzir um adormecimento prazeroso. — Meu cérebro está ficando sonolento. Tocou com os dedos a musselina franzida e a aferrou. Carrancuda, ela fixou a vista na mão. — Tem dor de cabeça — lhe disse. Dorian brincou com o volante. — No momento, isso não me parece muito importante. Embora a dor perdurasse, já não lhe importava. O que sim lhe importava era a lembrança traiçoeira do que havia debaixo da musselina. Retirou a mão. Suaves sandálias de couro uns centímetros de tornozelo de belas curvas e nada de meias. — Não leva meias — disse, em tom tão nebuloso como sua mente — Onde estão suas meias, lady Rawnsley? — Me tirei — respondeu—São muito caras, de Paris, e me dava muita raiva correr o risco de que se enganchassem em uma lasca quando entrei por sua janela. Apanhou-lhe o tornozelo. — Entrou pela janela. Não olhou a perna apanhada. — Para entrar em seu quarto. Preocupava-me que consumisse muito láudano. E resultou que não era uma preocupação exagerada. A mescla dessa garrafa que tinha não estava corretamente diluída. Gwen havia dito que não podia deixá-lo morrer antes da cerimônia. Aparentemente, tampouco queria deixá-lo morrer antes de consumar o matrimônio.
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E ele alma negra e podre, tampouco queria morrer antes de fazê-lo. — Teve que me salvar. — Tinha que fazer algo. Não sei nada de abrir fechaduras, e derrubar a porta teria armado muito escândalo, por isso escolhi o caminho da janela. Milord, sua mão não está esfriando-se outra vez? — Não. — Acariciou-lhe o tornozelo — Você a sente fria? — Não sabia se era você ou eu. — Tragou saliva — Estou o bastante esquentada. Dorian levantou mais o vestido e deslizou a mão pela perna de curvas perfeitas que tinha descoberto. "Ela quer seu hospital", disse-se, "e está disposta a pagar o preço." E ele queria percorrer com a boca essas pernas adoráveis para cima, até. Seu olhar voou até o cabelo, aos selvagens cachos vermelhos. Evocou uma imagem do que acharia ao final do percurso, na união das coxas. Depois seu olhar apanhou a dela, suave e doce. Então esteve perdido. Saiu da água, estirou o braço para ela, enlaçou-lhe a estreita cintura com um braço, atraiu-a para ele. Sentiu o ar nas costas, em contraste com o quente da água, mas o que era a calidez dela. — Pegará um esfriamento — lhe advertiu Gwen, sem fôlego — Quer que te traga uma toalha seca — Não, vêem mim —disse, com voz rouca. Não esperou a que o luzisse, mas sim a elevou em seus braços molhados e gozou estreitamente comprido momento. Logo se inundou com ela no caldeirão fragrante, e, quando a água os envolveu, sua boca encontrou a dela e se afundou mais, além da salvação em saborosas promessas. "Isto não é nada profissional", reprovou-se Gwendolyn, ao tempo que rodeava com os braços o pescoço de seu marido. Era bem sabido que a excitação das paixões exacerbava os dores de cabeça patológicas. Infelizmente em nenhuma parte da bibliografia médica tinha encontrado remédio para casos nos que se excitavam as paixões do medico. Não sabia que antídoto aplicar quando a mais leve carícia do paciente disparava tumultuosas palpitações do coração e uma brusca ascensão de temperatura, até chegar ao ponto da febre. Não sabia que paliativo aliviaria a pressão de uma boca perversamente sensual sobre a sua ou que elixir poderia rebater essa poção endemoninhada que saboreou quando a língua do paciente se enlaçou à sua. Percebeu que a água lhe lambia os ombros e que seu vestido ondulava a superfície do modo mais audaz, mas não pôde reunir a suficiente objetividade clínica para fazer algo a respeito. Estava preocupada com cada centímetro daquele homem, duro e morno sob suas mãos, e não podia lhes impedir que se movessem sobre os ombros fortes e os planos suspensórios e tensos do largo peito. Não lhe bastava. Não conseguia resistir o desejo de saborear a pele suave, banhada pela água separou-se da boca tirana e percorreu a mandíbula e o pescoço molhados com os lábios, enquanto seguia explorando com as mãos a esplêndida anatomia. — Oh, o músculo deltóide e o peitoral major — murmurou, aturdida. Tão bem desenvolvido. Percebeu o desejo cada vez maior e a audácia das carícias de Dorian e compreendeu que sua própria reação o incitava. Mas as carícias do homem também a incitavam. Sentiu o peso das mãos dele sobre seus peitos, uma pressão cálida a fazia sentir dor e, de uma vez, empurrar contra suas mãos, procurando mais… a boca sensual sobre seu pescoço fazia chover beijos que lhe borbulhavam sob a pele e a faziam estremecer-se de impaciência. A língua malvada o fazia cócegas a orelha. A enlouquecia por cima das salpicaduras, ouviu o
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grunhido animal que emitiu Dorian quando ela tremeu sem poder controlar-se e se mergulhou nele, como se pudesse nadar sobre sua pele. Era o que queria. Não lhe bastava nenhuma cercania. A água as roupas tantas coisas entre os dois, obstáculos… — Faz algo — boquejo, forcejando com o vestido. Tirou o sutiã, mas o tecido empapado não se rasgava. — Tira-o — disse-lhe. — Não posso suportá-lo. Sentiu que os dedos do homem lutavam em suas costas com as cintas. — Está muito encharcada — disse Gwen, febril — Não poderá as desatar, as rompa. — Espera, te acalme. A voz era rouca. A mão da mulher baixou até o ventre do homem. Dorian conteve o fôlego. — Gwendolyne, pelo amor de Deus. — Date pressa. — Espera. Fechou sua boca sobre a dela e dissipou a louca pressa da moça com um beijo interminável, exaustivo. Gwen se aferrou a ele, sua boca pega a do homem, enquanto ele a elevava em seus braços, tirava-a da água e a colocava sobre as toalhas molhadas. Quando, ao fim, cortou o beijo embriagador, Gwen abriu os olhos e viu um cegante olhar ambarino. Dorian se ajoelhou sobre ela, escarranchado de seus quadris. Sua pele escorregadia reluzia à luz das velas. A água jorrava do comprido cabelo negro. Contemplou-o, enfeitiçada. Enquanto Dorian levava a mão ao decote do vestido e, com um só puxão, rasgou-o até a cintura. — Já está contente , bruxa? — murmurou — Sim. — tendeu-se para ele e o atraiu para si, desesperada-se por sentir a pele de seu marido contra a sua. Beijos quentes, apressados, na fronte de Gwen, no nariz, nas bochechas, e mais, descendo pela garganta, até evaporar-se sobre os peitos. Esses beijos ardentes consumiram o feitiço, e a loucura voltou. Gwen entrelaçou os dedos no cabelo do Dorian para lhe impedir que se afastasse. Necessitava mais, embora não sabia bem o que. Sentiu a boca de seu marido perto do casulo erguido do peito, e o primeiro contato lhe provocou descargas elétricas sob a pele, para algum lado um lago interior que ela ignorava que existisse. Era selvagem e escuro, uma selva palpitante de sensações. Dorian a levou a escuridão, arrastando-a mais ao fundo com as mãos, a boca, a voz baixa e entrecortada. Caíram os restos do vestido e, com eles, os últimos vestígios da razão. Ficou perdida no perfume masculino e em seu sabor pecaminoso, no assombroso poder daqueles músculos sob a pele tensa e suave. Queria que se metesse dentro dela, sob sua pele. Queria que formasse parte dela. Tampouco foi suficiente quando ele pôs a mão entre suas pernas, no mais íntimo dos refúgios, e Gwen se arqueou contra a carícia, exigindo mais. Dorian a acariciou de formas secretas que a fizeram gemer e retorcer-se sob sua mão, mas não foi suficiente. As provocadoras carícias se deslizaram, mas fundo, mais dentro. Os espasmos a sacudiram quentes, deliciosos, mas não lhe bastou. Tremeu ao bordo de um precipício, apanhada entre o prazer selvagem e um desejo irracional, inevitável, de mais, de algo mais.
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— Deus querido — ofegou, retorcendo-se como quão demente era — Faça-o. Por favor. — Logo. — Foi um sussurro áspero — Não está preparada. É seu primeira... —Date pressa. — Sentia o membro pulsando contra sua coxa. Cravou-lhe as unhas nos braços— lhe dê pressa. Amaldiçoando Dorian lhe apartou os dedos. Gwen não podia lhe tirar as mãos de cima. Deslizou as mãos pelo ventre dele, para o lugar onde a levava o instinto. Achou o membro grosso, quente. Imenso. Sua mão não podia abrangê-lo. — Oh, Meu Deus — murmurou. — Detenha. Por Cristo, Gwen, não me apresse. Poderia te machucar e... — Oh, Deus. Sinto muito, tão forte e vivo. Quase não sabia o que estava dizendo. Acariciou a carne aveludada, perdida em um tórrido assombro. Ouviu um estranho som estrangulado. O começou a acariciá-la outra vez, levando-a a essa frustrante loucura. Apartou a mão dele, enquanto um feroz prazer a arrastava para o precipício. Logo chegou, em um veloz impulso, e uma sensação aguda que a devolveu bruscamente à realidade. Tragou ar e piscou. — Deus do céu. Era enorme. Não se sentia a gosto. Mas tampouco se sentia do todo mal. Não de tudo. — Disse-te que doeria. Ela percebeu a dor que expressava sua voz. "É minha culpa", reprovou-se. Não teria que haver-se deixado surpreender. Agora Dorian pensaria que lhe tinha causado um dano permanente. — Só ao princípio — disse, trêmula — É normal. Não tem que te deter por mim. — Não vai ser muito melhor. Gwen se olhou nos olhos resplandecentes e viu a tristeza que aparecia neles. — Então, me beije — murmurou — Me concentrarei nisso e ignorarei o resto. Estirou a mão, colocou os dedos na espessa juba úmida e o aproximou dela. Ele a beijou com ferocidade, o desejo quente que sentiu nele acendeu o dela. Esse elixir do diabo a embriagou, e a dor e a tensão se dissolveram em um nada. Dorian começou a mover-se dentro dela, ao princípio lentos impulsos, que logo foram acelerando-se. Gwen se moveu com ele, deixando que seu corpo respondesse de maneira instintiva, com regozijo. No ritmo íntimo do desejo, a paixão voltou, mais ardente que antes. Ficou unida a ele, e isso era o que necessitava que fossem um, levá-lo com ela ao bordo do abismo, e mais à frente à última explosão de encantamento ardente e depois afundar-se com ele na doce escuridão da liberação. Um tempo depois, envolta na bata de seu marido, Gwendlyn se sentou ao estilo dos alfaiates, perto do pé da cama. Tinha empilhado um montão de travesseiros sob as costas do Dorian, e ele estava sentado com as pernas estiradas sob as mantas, porque Gwen insistiu em que mantivesse os pés abrigados. A orgia no banheiro os tinha deixado famintos. Atacaram a despensa e se escapuliram às escondidas para o dormitório dele, com uma bandeja de substanciosos sanduíches, dos que deram conta em pouco tempo. Embora o banho, fazer o amor e a comida melhoraram o ânimo do Dorian de maneira drástica, ainda não estava de todo tranqüilo.
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Gwendolyn captava as olhadas de soslaio que lhe lançava sob as negras pestanas quando acreditava distraída. Quis saber o que significavam esses olhares afligidos. Nesse momento, só um aspecto do caráter de seu marido ficava iluminado para ela. Quando se enfrentava a uma morte horrenda nas areias movediças, tratou de afastá-la porque tinha medo de que ela caísse. Esteve disposto a suportar o tratamento médico e um possível fechamento em um manicômio com tal de não submetê-la a casar-se com ele. Embora estivesse informado dos riscos mortais do consumo de láudano sem supervisão, encerrou-se sozinho no dormitório para não deixar que ela presenciasse suas misérias. Em síntese, o conde do Rawnsley tinha uma nervura protetora de quase dois quilômetros de comprimento e de quase seis de profundidade. Não acreditava estar superestimando-o. Tinha suficiente experiência com seu pai, seus irmãos, tios e primos para reconhecer esse rasgo. O estado de alerta não a ajudava absolutamente para recuperar a distância clínica, que já estava em perigosa situação de deterioração. O mero feito de olhá-lo paralisava o intelecto. Quando recordava o que lhe tinham feito essa boca sensual, essas mãos fortes e elegantes e esse corpo comprido e musculoso, todo o cérebro do Gwen, junto com seu coração e todos os outros órgãos e músculos que possuía, convertiam-se em geléia. A voz bronca quebrou o ensimismamento. — Acredito que não deveria ficar aqui — disse Dorian, com delicadeza. Gwen, que estava olhando as mãos, levantou a vista. A expressão aparentemente cortês lhe provocou um tombo no coração. Adivinhou por que queria tê-la fora da vista. Era muito provável que tivesse passado a maior parte do tempo, desde que saíram do quarto de banho, arranjando uma forma cortês de lhe dizer que preferia não repetir a experiência. Mas Gwendolyn já tinha sido rechaçada inumeráveis vezes, e ainda estava viva. — Entendo — disse, em tom frio, com o rosto acalorado — Sei que me comportei de maneira escandalosa. Nem eu sei o que pensar de mim mesma. Nunca, jamais, em toda minha vida, reagi assim ante ninguém. Na mandíbula do Dorian se crispou um músculo. — Não é que tenha tido tantos pretendentes — se apressou a adicionar Gwen — Não sou uma coquete e, embora fosse, não tinha muito tempo para noivos. Não queria me fazer tempo — balbuciou, vendo que a expressão do marido ficava mais tensa — Mas as garotas estão obrigadas a apresentar-se em sociedade e, é obvio, os homens acreditam que alguém é igual às outras, e uma não tem mais remédio que fingir que é assim. E devo admitir que sentia curiosidade por saber como era que me cortejassem e me beijassem. Mas não tinha nada de especial, e não era nem a metade de interessante que as "Ervas" do senhor Culpeper. Digamos. Se contigo tivesse acontecido o mesmo, estou segura de que me teria comportado de maneira muito mais decorosa aí, abaixo, no quarto de banho. Me teria concentrado no tratamento médico, em lugar de fazer o ridículo. Mas não pude me comportar como é devido, e realmente lamento. Quão último queria era te resultar desagradável. Com um suspiro, começou a mover-se para descer da cama. — Gwendolyn. Tinha a voz estrangulada. Gwen se deteve e o olhou. — Não me resulta desagradável?— disse, tenso — Absolutamente. Palavra de honra.
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Gwen ficou como estava, ajoelhada perto do bordo do colchão, esforçando-se por interpretar a expressão de seu marido. — Como te ocorre que estava aborrecido? — perguntou — O que fiz contigo foi quase uma violação. Estava perturbado, mas consigo mesmo, não com ela. E a causa era essa nervura protetora. A moça tratou de recordar o que tinha contado Genevive a respeito dos homens e da primeira vez, mas sua mente era um embrulho. — Oh, não, não foi assim, em nada — lhe assegurou — É tão tenro, e eu valorizo isso, realmente. Sei que não devia atuar como um general: "Um isto", "Faz aquilo". "Date pressa". Mas não pude evitá-lo. Algo... — Fez um gesto de perplexidade — algo me dominou. — Isso que te dominou foi seu lascivo marido — repôs Dorian, turvo — E não devia me permitir semelhante atitude. — Mas estamos casados — argüiu Gwen — Era seu direito, e para mim foi um prazer, e... — Com o rosto ardendo, acrescentou com audácia: — Me alegra de que tenha sido lascivo, milord. Haveria-me sentido muito decepcionada se não o tivesse sido, porque queria que me possuísse desde... — Franziu o sobrecenho — Bom, não estou segura de quando começou, mas sei que o desejava depois que me beijou. — Repto para ele — Queria que não se preocupasse por mim. — Supunha-se que isto ia ser um acerto de negócios — disse Dorian, e lhe apareceram sombras nos olhos — Ninguém se teria informado se o matrimônio não se consumava. Sua posição era bem segura. Não teria que te haver meio doido. Não tem experiência. Não sabe como preservar seus sentimentos. Seu coração é muito brando. Gwen se apoiou sobre os talões. — Entendo. Aflige-te que fique comprometida sentimentalmente, — Está-o — afirmou — Acaba de me dizer isso embora eu mesmo o notei. Eu gostaria que pudesse ver o modo em que me olha. Por Deus!, acaso era tão evidente? É obvio que sim. Ela não era como Genevieve nem como a prima Jessica. Gwendolyn sabia que carecia de sutileza. Mas tinha tanto senso de humor como sentido comum, e esses foram os que a salvaram. — Como uma colegial apaixonada, quer dizer? — Sim. — Bom, o que esperava? É terrivelmente arrumado. Dorian se inclinou para frente, com os olhos entrecerrados. — Tenho uma enfermidade cerebral. Minha mente está desintegrando-se em pedaços. E dentro de poucos meses serei um cadáver que se apodrece! — Já sei — repôs Gwen — Mas não está louco ainda. E, quando o estiver, não será meu primeiro lunático como tampouco seria meu primeiro cadáver. — Não se casou com os outros! Não se deitou com eles! — Jogou atrás as mantas e ficou a caminhar a pernadas, em esplêndida nudez, até a janela — Nem quero ser seu paciente — disse, olhando por volta da escuridão de fora — E agora sou seu amante. E você está encantada. É algo macabro. Não lhe teria parecido macabra se tivesse podido ver-se como o via ela, alto e forte, tão formoso à luz das velas.
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— Você mesmo disse: a Providência não brinda a todas suas criaturas com uma morte bela — disse — Não dá a cada um de nós o que queremos. Não me converte em homem, para que possa ser médico. Saiu da cama e se aproximou dele. — Mas agora não lamento absolutamente ser mulher — lhe disse — Me fez celebrá-lo, e sou o bastante prática e egoísta para querer desfrutar dessa alegria todo o tempo que possa. Dorian se deu a volta, com semblante sombrio. — Oh, Gwen. Então ela compreendeu que não o teria muito tempo. A expressão lúgubre, o desespero na voz de Dorian lhe disseram que as coisas eram piores do que pareciam. "Mas esse é o futuro", disse-se. Apoiou-lhe uma mão no peito: — Temos esta noite — disse com suavidade. A fez alegrar-se de ser mulher. Temos esta noite, havia dito. Nem mesmo São Pedro, respaldado por uma hoste de mártires e anjos, teria podido resistir a ela. Teria deixado que as portas do Céu se fechassem a suas costas, a teria estreitado entre seus braços, e se teria dedicado em corpo e alma a fazê-la feliz, embora se condenasse por toda a eternidade. Assim, Dorian elevou em braços à tola apaixonada da sua esposa, levou-a até a cama e lhe fez o amor outra vez. E gozou outra vez do encantamento de que lhe fizessem o amor, de ser desejado, de que confiasse nele. E depois, com a condessa adormecida entre seus braços, ficou acordado, duvidando de se estaria vivo ou morto, porque não podia recordar quando havia sentido o coração tão docemente em paz como nesse momento. Só quando o primeiro raio débil do dia que começava se meteu na habitação, lhe ocorreu algo parecido a uma explicação. Nunca, em toda sua vida, fazia nada bom por ninguém. Não tinha feito outra coisa que fantasiar resgatando a sua mãe de um mundo ao que não pertencia e levar-lhe ao continente, onde ela já não teria que fingir nem mentir. Quando ao fim foi visitá-la, deixou passar todas as pistas que sua mãe deixou cair, e seguiu adiante, sem preocupar-se. Se, em troca, tivesse prestado atenção e ficasse para ajudar seu pai a cuidá-la, poderiam haver-se adiantado ao avô e aos "especialistas". Inclusive no manicômio, quando pareceu que era muito tarde, não teria por que havê-lo sido se Dorian tivesse usado o cérebro inteligente que herdou. Teria que ter pressionado sobre o orgulho adotado e o sentido do dever de seu avô e convencê-lo de maneira paulatina. Sua mãe tinha passado anos enganando ao velho tirânico. Se tivesse sido necessário, Dorian poderia havê-lo feito também. E teria que havê-lo feito logo, quando caiu a tocha, em lugar de fugir do Rawnsley Hall como um menino caprichoso. Assim talvez tivesse obtido algo. Poderia ter usado o dinheiro e a influência do conde com bons fins, em projetos de ensino, por exemplo, para investigação, ou talvez em algum cometido político. Todos morriam, alguns antes, outros depois. Não era motivo para choramingar. Mas morrer sem outra coisa que lamentos e arrependimentos era patético. Dorian compreendeu que era isso o que vinha inquietando os últimos meses. Mas agora sua alma estava tranqüila. Por ela. Afundou o nariz na juba revolta de sua esposa. Tinha-a feito feliz. A fez perdoar ao Todopoderoso por havê-la feito mulher. Sorriu, compreendeu que não era pouco. Gwen queria ser médico. E o que era tão importante como isso era que queria usar o dinheiro e a influência do conde de Rawnsley com bons fins.
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"Muito bem", disse para si. "Não poderei lhe dar um título acadêmico, mas te darei o que possa." E essa devia ser a conclusão correta, porque sua mente se aquietou e, pouco depois, dormiu. Depois do café da manhã, Dorian a levou aos páramos, ao sítio onde sua mãe o tinha levado oito anos antes. Ajudou ao Gwendolyn a apear-se, aproveitando para lhe dar um breve beijo, e a levou a um penhasco que estava a um lado do atalho, tirou-se a jaqueta, tendeu-a sobre a pedra fria e a convidou a sentar-se em cima, coisa que Gwen fez com sorriso absorto. — Ontem à noite disse que eu não era seu primeiro lunático — começou dizendo. — Oh, claro que não — lhe assegurou — O senhor Eversham, que se fez cargo da prática do senhor Knightly, estava muito interessado pelas doenças neurológicas e me deixou ajudá-lo em vários casos. Nem todos os pacientes eram irracionais. Mas a senhorita Ware tinha seis personalidades diferentes, segundo o último cálculo, e o senhor Bowes tinha propensão à demência violenta, e a senhora Peebles, que sua alma afligida descanse em paz... — Depois poderá me contar esses detalhes — a interrompeu Dorian — Só queria estar seguro de que ontem à noite te entendi bem. Não sei se prestava suficiente atenção, lamento dizê-lo. Não prestei atenção desde que você chegou. — Como pode dizer semelhante coisa? — exclamou — Você é o único homem, além do Eversham, que me levou a sério. Não riu da idéia do hospital e não se horrorizou pelas dissecações. — Vacilou um instante — Embora seja certo que é superprotetor, sei que isso forma parte de sua natureza, e que é uma inclinação muito nobre e cavalheiresca. — Superprotetor? — repetiu — É assim como o considera, Gwen? Assentiu. — Quer me proteger de tudo desagradável. Por um lado, é encantado sentir-se cuidada. Mas, por outro, é um pouco frustrante. Dorian pôde entender de que modo a tinha frustrado, Gwen não queria ignorar o que se referia a sua enfermidade. Tinha-a tratado como a uma mulher tola, como fizeram outros homens. — Isso imagino. — Para evitar estreitá-la entre seus braços "superprotetores", coisa que muito desejava, uniu as mãos depois das costas — Tem uma mentalidade médica. Não vê as coisas como nós, os leigos. Para ti, a enfermidade é objeto de estudo, e os doentes, fontes de conhecimento. Seus padecimentos não lhe resultam nauseabundos, quão mesmo não me resultaria isso uma obra de Cicerón. — Fez uma pausa, e começou a acalorar-se — Em outros tempos, considerei-me um estudioso. Os clássicos. — Sei. — Seus olhos verdes tinham uma tenra expressão de admiração — Bertie diz que obteve uma distinção. — Sim, não só sou um tipo arrumado. — disse, com uma breve gargalhada — Tenho cérebro. — Incômodo, apartou a vista, para os páramos — Em outra época, eu também tinha planos, como você. Mas não os havia pensado bem, e tudo terminou em uma confusão. Oprimiu-lhe a garganta. Disse a si mesmo que era absurdo sentir-se inquieto. Preparou-se para dizer-lhe tudo. Sabia que era o correto. Gwen precisava conhecer os fatos, todos, para tomar decisões sensatas com respeito a seu próprio futuro. Na atualidade, seu vínculo com ele não era muito mais que o amor de uma esposa flamejante e uma resposta à paixão física que compartilharam. Depois que lhe contasse todo o concernente a seu passado e o que lhe proporcionava o futuro, se Gwen decidia ir-se, logo recuperaria o equilíbrio. Se preferia ficar, ao menos o faria com os olhos abertos, preparada para o pior. Se queria
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demonstrar respeito pela mente e a personalidade de sua esposa e convicção nas metas dela, tinha que lhe dar a alternativa de escolher, e aceitar a decisão que adotasse, e viver — e morrer — com as conseqüências. — Dorian? Dorian fechou os olhos, que doce soava seu nome nos lábios dela. Isso tampouco o esqueceria, acontecesse o que acontecesse ou pelo menos o recordaria enquanto seu cérebro funcionasse, voltou-se para ela sorrindo, enquanto se tirava da cara o cabelo que o vento agitava. — Sei que quer ouvir os fascinantes detalhes de minha enfermidade — disse — Estava tratando de decidir por onde começar. Gwen se sentou mais erguida, e a expressão suave e amorosa foi substituída por aquele olhar verde firme que tanto o intrigou a primeira vez que se viram. — Obrigado, meu querido — disse, já em tom profissional — Se não se importa, eu gostaria que começasse por sua mãe. Essa noite, depois do jantar. Gwendolyn se sentou à mesa da biblioteca e fez uma lista de textos médicos que queria que lhe enviassem. Dorian se sentou junto ao fogo, folheando um volume de poesia. Sabia que não tinha sido fácil para ele lhe falar do passado, mas estava segura de que lhe faria bem. "Tinha muitas coisas encerradas dentro", pensou Gwendolyn, voltando o olhar a ele. As pessoas que faziam isso estavam acostumadas a exagerar as situações de maneira desproporcionada, e o que piorava as coisas era a ignorância de Dorian em matéria de ciência médica. Por exemplo, as quimeras visuais que descreveu eram fenômenos fisiológicos comuns a muitas enfermidades neurológicas, e não aberrações, como ele acreditava. Mais ainda, Dorian não tinha compreendido bem o caso de sua mãe, nem o difícil que era o tratamento dos dementes. Tampouco compreendeu que, freqüentemente, os médicos não tinham modo de saber, até depois da morte, se o cérebro estava fisicamente prejudicado. Até ela mesma não estava segura de que o senhor Borson teria dirigido o caso com prudência. Dorian elevou a vista e a surpreendeu contemplando-o. — Tem seu cenho de médica — lhe disse — Por acaso estarei jogando espuma pela boca sem sabê-lo? — Estava pensando em sua mãe — respondeu Gwen — No cabelo, por exemplo. Não sei se cortá-lo era a única solução. O semblante do Dorian ficou rígido, mas só um momento. — Não sei que outra coisa poderiam ter feito. — disse, lentamente — O arrancava em mechas ensangüentadas, conforme diziam meu pai e meu tio. Acredito que não sabia que era seu próprio cabelo. Devia acreditar que eram garras. As garras imaginárias das Fúrias. Gwendolyn se levantou da cadeira, aproximou-se de seu marido e lhe apartou o cabelo da cara. Dorian lhe sorriu. — Dou-te permissão para cortar-me o cabelo, Gwen. Teria que havê-lo feito eu, faz semanas... Ou pelo menos, para minhas bodas. — Mas essa é a questão. Não quero que corte o cabelo. — Não o levo assim por nenhum capricho louco que você deve consentir. — lhe disse — Tive motivos práticos que já não têm importância.
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— Eu acreditei que o fazia por despeito a seu avô — disse Gwen — Se tivesse sido meu avô, estou segura de que eu teria feito algo para chateá-lo. — Pensou um instante — Calças. Teria levado calças. Dorian riu. — Ah, não, eu não era tão audaz. Quando fui a Londres, preocupava-me que alguém pudesse me reconhecer e dissesse a meu avô onde estava. Nesse caso, teriam castigado a minha caseira e a meus empregadores por dar ajuda e comodidade ao inimigo. Tinha-lhe falado de sua estadia em Londres, quando trabalhava como um escravo, noite e dia. O trabalho nos moles explicava a existência desses músculos, que a tinham intrigado sobremaneira. Era estranho ver esse desenvolvimento da parte superior do corpo entre a nobreza, mas não entre os trabalhadores e os pugilistas. — Com aparência de excêntrico, e talvez algo perigoso, o recluso mantém a raia os curiosos — prosseguiu — Os faz desistir de entrometer-se nos assuntos pessoais dele. É óbvio que tais preocupações se estenderam aqui, ao Dartmoor pelo menos enquanto viveu meu avô. — Bom, alegra-me de que não fosse prático e não te cortasse o cabelo para as bodas — disse Gwen — Vai muito bem com seus rasgos exóticos. Não tem muito aspecto de inglês. Ao menos, não do modo comum. Fez uma pausa, impressionada por uma idéia, tornou-se atrás para observá-lo e sorriu. Dorian lhe apanhou a mão, arrastou-a para ele e a fez sentar-se em seu regaço. — Será melhor que não ria de mim, doutora Gwendolyn — disse com severidade — Os loucos não tomam muito bem essas atitudes. — Estava pensando na prima Jessica e em seu marido — disse Gwendolyn —. Daín tampouco tem uma aparência comum. Ao parecer, ela e eu temos gostos similares em matéria de homens. — Certamente gostam dos monstros, e a ti os lunáticos. — Você eu gosto. — disse, encolhendo-se contra ele. — Como posso não gostar? Ontem passei horas falando de pouco mais que sintomas médicos e asilos para loucos. E você me escutou como se fosse poesia e quase caiu a meus pés. É uma lástima que não tenha nenhum tratado médico. Estou seguro de que não terei que ler mais que um par de parágrafos, e te voltará luxuriosa e começará a rasgar minha roupa. "Quando único tem que fazer para que me volte luxuriosa é estar aí de pé ou sentado", pensou Gwen. Tornou-se atrás. — Você gostaria? — Que me rasgue a roupa? Claro que eu gostaria. — Inclinou a cabeça e lhe murmurou no ouvido — Recorda que estou mentalmente desequilibrado. Gwen jogou um olhar para a porta. — E se entrar Hoskins? Dorian deslizou a mão dela pela abertura de sua camisa. — Diremos que é um tratamento. Gwen se voltou para ele. Entre o chiado de risadas, nos olhos do Dorian emergiu o desejo, feroz e quente. Um dia, muito em breve, essa fera cálida se tornaria perigosa, possivelmente fatal. Mas Gwen confrontaria esse momento quando chegasse. Enquanto isso se sentia feliz de arder entre seus fortes braços. Levantou a mão dele e a levou a seu peito. — Me toque — sussurrou — Me enlouqueça também, Dorian. Ao dia seguinte, teve um ataque.
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Acabavam de terminar o café da manhã quando Gwen viu que piscava, impaciente, e agitava as mãos no ar perto de sua cara. Dorian se surpreendeu fazendo-o e riu. — Sei que é inútil — disse — Suponho que se trata de um reflexo. Gwendolyn se levantou da cadeira e se aproximou dele. — Se for à cama agora e tomar uma dose de láudano, apenas te dará conta quando começar a dor de cabeça. Dorian se levantou e foi acima com ela, com expressão preocupada. Gwen o ajudou a despir-se e notou que sua visão não estava tão danificada como para não poder encontrar os peitos dela. Acariciou-os, enquanto ela lutava com o pescoço da camisa. — Está de muito bom humor — lhe disse, quando ao fim conseguiu deitá-lo e cobri-lo — Se não soubesse a verdade, suspeitaria que meu senhor me enganou, para me atrair a seus aposentos. — Oxalá fosse uma mureta — repôs, piscando — Mas aí estão essas malditas, piscando os olhos e piscando. E você tinha razão, Gwen não são como fantasmas. Você as há descrito melhor. "Como chocar contra um poste de sistema de iluminação", disse. "Primeiro vê estrelas, depois sente a dor." Eu gostaria de saber o que foi o que convenceu a meu cérebro de que sofri um golpe na cabeça. Ela sabia bem. — Disse-lhe que terei que isolá-lo de qualquer fonte de agitação nervosa — havia dito Kneebones. Ele era um médico de verdade, com décadas de experiência. Entendia a enfermidade, tinha estudado durante meses à mãe do Dorian. — Já há vista o que lhe provocaram as novidades sobre a família: três ataques em uma semana. Recordou a conversação do dia anterior, e lhe remoeu a consciência. — Já entendo o que foi — disse, tensa — Ontem te obriguei a reviver as experiências mais dolorosas de sua vida. E não me conformei com um panorama geral, não. Pressionei-te para te tirar os detalhes, inclusive do relatório postmorten de sua mãe. Deveria ter compreendido que era muito esforço para fazer de uma só vez. Não posso acreditar que não fui capaz de prevê-lo. Pergunto-me onde deixei minha sensatez. Começou a mover-se para ir procurar a garrafa de láudano, mas Dorian lhe aferrou a mão. — Eu me pergunto onde a deixaste agora — lhe disse — Gwen, fez-me revisar o passado. A conversação de ontem não me fez mais que bem. Aliviou minha mente em cem sentidos diferentes. Ele a puxou pela mão. — Sente-se. — Tenho que ir procurar o láudano. — Não o quero. Pelo menos, até que se volte insuportável. Esse é o único motivo que me levou a tomá-lo até agora. Não estava seguro de poder confiar em mim mesmo. Mas posso confiar em ti. Não sou seu primeiro louco. Você sabe quando preciso receber estupefacientes. — Também sei que a dor é terrível — disse Gwen — Não posso permitir que esteja aí tendido, suportando-o. Tenho que fazer algo, Dorian. Dorian fechou os olhos e relaxou o semblante. — Começou, não é assim? Lutou para manter a voz baixa e regular.
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— Não quero ingerir estupefacientes — disse, em tom sereno — Quero ter a mente clara. Se devo estar incapacitado fisicamente, eu gostaria de aproveitar para pensar, enquanto ainda possa. Gwendolyn afogou com firmeza sua consciência, que gritava. A culpa não o ajudaria, recordou-se que tinha chegado aí com expectativas modestas. Esperava aprender, ao mesmo tempo que aliviava o sofrimento do doente, até onde fosse possível. Nunca se tinha feito iluda de curar o que a ciência médica quase não podia entender, e muito menos tratar. Não esperava apaixonar-se por ele quase imediatamente. Mas isso só trocava seus sentimentos, e não teria mais remédio que viver com eles. Mesmo assim, não permitiria que a governassem, nem se deixaria tentar para rogar um milagre, quando o que em realidade tinha que fazer era escutá-lo, lhe brindar o que necessitava e encontrar o melhor modo de subministrar-lhe. — Quer pensar — disse, franzindo o sobrecenho. — Sim. Sobre minha mãe, e o que disse dela. Sobre meu avô. Os especialistas. A loucura. — apoiou-se um polegar na têmpora — Não acredito que me tenha rompido um vaso sangüíneo, e entretanto vejo desfilar meu passado ante mim. — Com sorriso torcido, acrescentou — E começa a ter sentido. Gwen sentiu uma quebra de onda de alarme, mas a conteve sem piedade. — Muito bem — disse com calma — Nada de soporíferos. Mas bem provaremos com estimulantes. Gwendolyn lhe deu café. Muito forte e em grandes quantidades. Duas horas e inumeráveis xícaras depois, Dorian estava completamente recuperado, e sua esposa o contemplava como se acabasse de levantar-se de entre os mortos. Estava de pé junto ao fogo, as mãos enlaçadas frente a ela, a expressão, uma cômica mescla de preocupação e perplexidade, enquanto o via colocar a roupa. — Começo a suspeitar que acreditava que me tinha rompido um vaso sangüíneo —lhe disse Dorian, enquanto se abotoava a calça — Ou estava a ponto de me acontecer. Sua expressão cômica se desvaneceu e deixou passo à conhecido olhar firme. — Não sei o que pensar — lhe disse — Sinceramente estou confundida. Duas horas, do princípio ao final. Isto não tem sentido do ponto de vista médico. — Disse-te que senti com toda claridade como se aliviava a pressão depois da quarta taça — disse — Como se tivesse liberado minha cabeça de um torno. Talvez o café liberou meu organismo da pressão e... — sorriu — ... passou ao urinol. — Tem propriedades diuréticas. — É óbvio. — Mas não deveria ter reagido assim. — Lhe formaram rugas na fronte — Talvez eu interpretei mal seu relato do relatório da autópsia, mas não sei como. O caso de sua mãe não era muito insólito. — Eu gostaria de saber o que é o que a preocupa — lhe disse Dorian — Esteve tagarelando incoerências sem me dar conta? Mostro sinais de mania? A extraordinária sensação de bem-estar é um sinal de alarme? Gwendolyn, se estiver às portas da morte, eu gostaria de ser informado. Gwen soltou um suspiro trêmulo. — Não sei. Tinha pensado que a dilatação dos copos sangüíneos e o aumento de fluxo sangüíneo, talvez aumentados pelo derrame, dispararam a aura e a dor. Mas para que cessasse a dor os copos deveram contrair-se outra vez e diminuir o fluxo sangüíneo e se supõe que suas células e seu tecido estão muito fracos e danificados para fazê-lo tão rápida e completamente.
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Dorian recordou o que Gwen lhe havia dito com respeito à função do cérebro. — Entendo. — disse —Teme que algo tenha talhado o fornecimento de sangue com muita brutalidade, possivelmente de uma forma perigosa e anormal, e que este seja um alívio ilusório e temporário. — Não poderia dizê-lo. A voz da mulher era um pouco trêmula. "Possivelmente cairia morto no próximo minuto", pensou Dorian. Isso não parecia possível. Nunca se havia sentido mais vivo. De todos os modos, não queria correr nenhum risco. Aproximou-se dela e a atraiu a seus braços e a beijou, com um beijo comprido e apaixonado, até que ela se relaxou contra ele. Seguiu beijando-a, acariciando-a e a levou até a cama. Isto não era o que pensava fazer. Só queria estar seguro de que ela entendia como se sentia com respeito a ela. Mas, uma vez que começaram, não puderam deter-se. Em pouco tempo, a roupa que pouco antes se pôs ficou esparramada pelo chão junto com a dela, e Dorian se perdeu, inundou-se nela, no mar quente do desejo. E depois, enquanto permaneciam deitados juntos, com os membros entrelaçados, descobriu que seu coração ainda pulsava e seu cérebro funcionava e lhe disse o que tinha feito por ele. Ontem lhe tinha falado de seu passado libertino, esperando que se horrorizasse e desgostasse. Em troca, Gwen desprezou, impaciente, sua preocupação, considerando como um comportamento masculino normal o beber e sair com mulheres. Falou-lhe de sua mãe, da criatura lamentável e monstruosa em que se converteu, e a Gwendolyn não lhe moveu um cabelo. — É como a consumição. — disse, reduzindo os horrores a uma série lógica de feitos fisiológicos — Não se pode dizer que suas infidelidades e segredos a piorassem ou provocassem o desmoronamento final. Seu matrimônio era insatisfatório. Por isso sabemos, as intrigas românticas poderiam ter reduzido a tensão emocional e demorar o inevitável em lugar de apressá-lo. Se Dorian ficasse com sua mãe, poderia havê-la agitado mais, porque Aminta tinha um laço emocional mais forte com ele que com o pai. Essa era a teoria de Gwen. Mais ainda, disse-lhe que era preciso pôr na devida perspectiva as condições do manicômio. Nesses casos, era freqüente que ficassem destruídas as faculdades morais. Os pacientes podiam parecer calmos e racionais sem ter mais consciência ou controle de seus pensamentos e de seus atos que se fossem marionetes às que as células cerebrais danificadas atiravam dos fios. E, conscientes ou não, freqüentemente esqueciam por que estavam zangados ou tristes, igual esqueciam os princípios básicos da higiene, e inclusive os quais eram ou onde imaginavam que tinham estado uns minutos antes. Isso lhe fez compreender que talvez sua mãe não tinha tido que suportar contínuas humilhações e dores, porque a maior parte do tempo estava vivendo em seu mundo próprio, onde quase nada podia alcançá-la. — Realmente aliviaste minha mente — disse Dorian a sua esposa — Nem meu avô me parece já tão monstruoso. Mas bem lamentável, com sua ignorância, seu temor do que não compreendia, e sua dependência dos especialistas. Mas você não é como ele nem seus preciosos especialistas. Tem talento para fazer que o incompreensível tenha sentido. O reduz a proporções manejáveis. Até este último ataque parece pouco mais que uma maldita moléstia.
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Gwen se incorporou sobre o cotovelo e lhe observou o rosto. — Talvez, porque estiveste menos agitado e seu cérebro não trabalhou com tanta intensidade — lhe disse — Disse que precisava pensar, e parece que suas reflexões foram positivas. É possível que o tratamento mais benéfico consistisse em estimular esses pensamentos em lugar de te adormecer. — Fazer amor me sugere grande quantidade de pensamentos positivos. — lhe disse — Possivelmente tenhamos que considerá-lo também como um tratamento benéfico. Gwen arqueou uma sobrancelha. — Não recordo nada na literatura médica que recomende sexo como tratamento. Dorian colocou os dedos entre o cabelo revolto do Gwen e a atraiu para si. — Possivelmente não tenha lido suficientes livros. Três semanas depois, Dorian estava na porta da sala de sua esposa, observando-a ler, carrancuda, um folheto. Os livros tinham chegado fazia duas semanas, e ele e Hoskins a ajudaram a converter a sala em escritório. Os livros médicos formavam filas na prateleira. O escritório já não estava tão ordenado. Folhetos, cadernos de apontamentos e folhas de tamanho oficio se amontoavam ao azar. Dorian se apoiou no marco da porta e, cruzando os braços, observou a sua preocupada esposa. Sabia o que estava procurando. Não um padre, porque não havia, a não ser as chaves da "resposta positiva" ao tratamento. Embora jamais o admitisse, Dorian sabia que tinha esperanças de lhe prolongar a prudência, se não à vida. Tinha os melhores motivos para cooperar com ela. Estaria agradecido de desfrutar de um mês mais, até de um dia mais. E, entretanto, essa busca teimosa oprimia seu coração por ela. Não era tão "prática e egoísta" como afirmava. Importavam-lhe muito seus pacientes. Até lhe importou o senhor Bowes, cuja demência fazia que os ataques da mãe de Dorian, por comparação, parecessem meros incômodos. Mas, no presente, não era simples questão de que lhe importasse. Dorian temia que a dedicação de Gwendolyn fosse exagerada, que acontecesse a necessidade de esclarecimento à obsessão. A noite anterior tinha murmurado em sonhos algo a respeito de "inconstância idiótica", "lesões" e "sintomas prodrômicos". Tinha a tentação de mandar de volta os livros e de lhe ordenar que deixasse, que desistisse, antes que a atacasse uma febre cerebral. Mas não podia privá-la do que era uma oportunidade de aprender única em sua vida, nem demonstrar falta de respeito por sua maturidade, intelecto e competência. Por sorte, estava em condições de arranjar algo como uma solução, porque sua mente, em que pese a dois ataques mais, ainda funcionava. O último, na semana anterior, tinha durado vinte e quatro horas, até que Dorian fez que Gwen lhe desse uma dose de xarope de ipecacuana, para fazê-lo vomitar. Depois dormiu como um tronco outro meio-dia. Mas se recuperou com a mesma sensação de bem-estar e de lucidez que experimentaram nas duas ocasiões anteriores. Estava seguro de que isso se devia a que sua esposa tinha exorcizado os demônios do medo, a vergonha e a ignorância, reduzindo assim a pressão emocional sobre o cérebro prejudicado. Sabia que o alívio era temporário, e não pensava desperdiçá-lo. Não tinha futuro, mas Gwen sim, e Dorian tinha passado a última semana se ocupando do futuro dela.
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— É mau momento para interromper? — perguntou-lhe. Gwen elevou a cabeça, sua expressão preocupada se desvaneceu e pareceu sair o sol nesse sorriso infinito que ainda lhe provocava um tombo no coração. — Nunca é mau momento para ti — lhe disse — É a mais bem-vinda das interrupções do mundo. Dorian se separou do marco da porta, foi até o escritório e se encarrapitou no bordo. Posou a vista no folheto que ela tinha deixado quando ele se aproximou: "Uma descrição da Mania Idiopática Aguda tal como se manifesta..." — É um dos estudos de Eversham — lhe explicou — Mas seu comportamento não coincide com o modelo. Dorian levantou o trabalho e o folheou. — Pergunto-me como faz para entender algo deste caos. — Deixou o folheto e levantou um livro magro — Este é pior ainda. Se eu tentasse ler a primeira frase, poria-me a uivar e só são três quartos de página. — São médicos, não escritores — disse Gwendolyn — Teria que ver como escrevem à mão. É um milagre que os impressores não estejam já no manicômio. — Sua letra não é para presumir — lhe disse, com um olhar significativo à desordenada pilha de folhas de tamanho oficio cobertas com a escritura impossível do Gwen. A moça franziu o nariz. — Sim, minha escrita é muito feia. Não como a tua. Estou segura de que foi o melhor copista que tiveram jamais os advogados londrinos. — Eu adoraria copiar suas notas de maneira legível — lhe disse — De fato, eu... Interrompeu-se, com a mente perdida nas lembranças. Era algo que lhe havia dito. Algo relacionado com um "mal-entendido". Ao surpreender a expressão afligida pelo Gwen, encolheu-se de ombros. — Estou bem. Minha mente divagou, isso é tudo. Interrompi-te por um motivo concreto, e o jargão médico e sua escrita horrorosa me distraíram. — Revolveu-lhe o cabelo — Vim te pedir que me acompanhe a visitar Athcourt. — Athcourt? — repetiu, sem entender. — Escrevi ao Dain faz uns dias — lhe explicou — Necessito conselho sobre certas questões de negócios. Agora ele é membro da família, sua propriedade está a uns poucos quilômetros a sudeste daqui e, por isso ouvi, é um excelente administrador. — Athcourt tem fama de ser uma das propriedades mais prósperas e melhor administradas do reino — disse Gwendoiyn, assentindo — Estou segura de que sua perícia para os negócios é sólida. — De qualquer modo, convidou-me com cordialidade. Dorian tirou uma carta do bolso e a deu. Enquanto Gwen a lia, começou a lhe tremer a boca. — Esse homem é um malicioso incorrigível. E isto que é? — Começou a ler em voz alta: — "Se esse pateta do Trent ainda anda por aí, poderia trazê-lo também, pois só resultaria um desastre se o deixássemos a seu próprio arbítrio. Mas você já sabe o que se espera de ti em tal caso". — Elevou a vista — Parece que se conhecem melhor do que eu supunha. Dorian riu. — Dain ainda estava no Eton quando Bertie chegou. — explicou — Mais ou menos uma vez a cada quinze dias, Bertie caía pelas escadas ou tropeçava em algo, ou, de algum modo, as engenhava para cruzar-se no caminho de Sua Senhoria. Por fortuna, eu estava perto a primeira vez e apartei Bertie antes de que Dain se ocupasse dele com métodos mais violentos. Depois
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disso, cada vez que seu primo aparecia ante a presença satânica, Sua Senhoria me chamava: "Camoys", dizia, do mais frio. "Voltou. Faça-o ir-se." E então eu me ocupava de fazer desaparecer ao Bertie. — Posso imaginar ao Dain fazendo-o. E a ti também. — Aplaudiu-lhe o braço — É sua nervura protetora. — Era meu instinto de conservação. — corrigiu Dorian, indignado — Eu tinha apenas doze anos e Dain, já aos dezesseis, era grande como uma casa. Não tinha mais que posar uma de seus mãos em minha cabeça para me esmagar como a um inseto. — Riu — Entretanto, eu o admirava muito. Teria dado algo por poder sair impune como ele das coisas que fazia. A risada do Gwendoiyn foi um som delicioso. — Eu também — disse — Não é difícil imaginar porquê tem a Jessica cativada. Ou por que isso a ofende tanto. — Me ocorreu que você gostaria muito de visitá-la, enquanto Dain e eu falamos de negócios. — Eu adorarei. — Devolveu-lhe a carta — Me alegra que tenha pensado no Dain como assessor comercial. É melhor que Abonville. O duque é estrangeiro e pertence à outra geração. — Sabia que tinha reservas com respeito a ele. — É um homem maravilhoso, mas pode chegar a ser muito paternal. Dorian vacilou. Não queria inquietá-la, mas, por outro lado, tampouco podia acontecer o tempo que ficava evitando toda menção do que lhes esperava. — Então espero que não te incomode se terminar por fazer que meu guardião legal seja Dain, em vez dele — disse, com calma. Houve uma pausa insignificante, e logo disse: — Se eu tivesse dificuldades e você não estivesse em condições de me ajudar, não haveria ninguém a quem preferiria ter a meu lado. Cruzou o olhar claro e firme com o de seu marido. Dorian imaginava quanto lhe custava tanta compostura e firmeza, e isso o perturbava. Mas não podiam fingir que sempre teriam um ao outro, porque não era assim. Inclinou-se e a beijou. — Assim é como me sinto — disse. Tornou-se atrás e riu — Se tivermos que escolher um aliado, é melhor que escolhamos o maior que possamos encontrar. Uns dias depois, foram a Athcourt, com a intenção de ficar dois dias. Terminaram ficando uma semana. Dain resultou estar bem informado — e obstinado para expressar sua opinião — em uma variedade de assuntos, e muito em breve os dois homens discutiam felizes, como velhos amigos ou como irmãos, perseguiram-se um ao outro pelo vasto parque de Athcourt e pelos páramos circundantes, praticaram esgrima e tiro. Um dia Dain se encarregou de ensinar a Dorian certos detalhes finos do pugilismo, e se pegaram em uma esquina do curral, enquanto as esposas os animavam. O filho ilegítimo do Dain também vivia no Athcourt. Era um demônio de peralta, de oito anos, a que Dain se referia orgulhoso chamando-o Semente do Demônio. Ao princípio, o pequeno Dominick olhava com cautela a Dorian, mas ao cabo de dois dias estava convidando o conde do Rawnsley a visitar sua casa da árvore. Dorian soube que isto significava uma honra. Até o momento, só seu pai adorado tinha acesso ao refúgio e era iniciado em seus mistérios. Assim, Dorian voltou de Athcourt com os joelhos e os cotovelos raspados, a afirmação do Dain de que atenderia com zelo os assuntos de Gwendolyn e o louco desejo de ter um filho.
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Disse que era ridículo ansiar um filho ao que não veria nascer e concentrou suas energias em concretizar o sonhado hospital de Gwendolyn. Dain esteve de acordo com ele em que nem o título nem as riquezas compensariam o fato de que era uma mulher, e, além disso, jovem. Teria que enfrentar a muitos homens, e poucos deles deviam ter uma visão realista das capacidades femininas. — Posso enfrentar os homens — havia dito Dain — mas talvez necessite instruções precisas. Não sei nada de hospitais, nem mesmo dos de dia, e acredito que sua senhora tem em mente algo novo. — Não sei se será tão precisa como seria de desejar quando chegar o momento — respondeu Dorian — Eu já detecto sinais de tensão emocional. Ocorreu-me que, se começássemos agora com o projeto, seria uma distração saudável. Mais ainda, se eu estiver diretamente comprometido em sua fundação, outros o considerarão com mais seriedade. Se o conde do Rawnsley diz que a construção deve ser um perfeito hexágono, por exemplo, outro tipo não se atreverá a dizer que, em realidade, deve ser um cubo perfeito, e começará a brigar com outro que opina que deve ser um octógono, segundo as mais altas autoridades. Mas bem todos murmurarão: "Sim, milord. Um hexágono, é óbvio", e tomarão nota de cada uma de minhas palavras com o maior dos cuidados, como se viessem diretamente do trono do Altíssimo. Dain riu, mas algo em seu olhar escuro pôs nervoso ao Dorian. — Sou muito otimista? — perguntou-lhe — Se você duvidar de minha capacidade, Dain, eu queria... — Só me perguntava por que diabos não corta o cabelo — disse Dain — Sim bem eu duvido de que uma mudança de penteado não afetará sua credibilidade, afinal de contas é um Camoys, me resultaria um chateio se tivesse que cuidá-lo, como se não houvesse muitas confusões para organizar o projeto. Dorian sorriu, submisso. — A minha esposa gosta. — E você, pobre tolo, está deslumbrado. — Dain lhe lançou um olhar compassivo e riu — Bom, então suponho que mais racional que agora não será nunca. Eu diria que façamos o melhor que se possa. Dorian estava decidido a fazer o melhor que pudesse. Por isso, a segunda noite depois da volta ao lar, explicou a Gwendolyn a idéia que tinha a respeito de começar com o hospital. Gwen lhe disse que era uma idéia excelente, e pareceu muito entusiasta, mas Dorian não pôde desembaraçar-se da sensação de que a mente de sua esposa estava em outro lado: em sua maldita enfermidade e seus rebeldes mistérios. Estava muito tentado de arreganhá-la. Mas, em troca, conteve a tentação e lhe fez amor. A tarde seguinte, instalaram-se na biblioteca para falar em detalhe da questão, e estava igual. Falou com entusiasmo de suas idéias e aceitou fazer um esboço de plano para o edifício em si, descrevendo as funções das diferentes áreas. E, entretanto, Dorian teve a sensação de que sua mente não estava por inteiro na questão. Os dias que seguiram, Gwen continuou trabalhando alegremente com ele, transformando seus sonhos em feitos ordenados e especificações, mas o matiz de distração persistia. Dorian o agüentou com paciência, dela tinha aprendido que, freqüentemente, era possível combinar vários tratamentos para atacar o conjunto de sintomas de uma doença. Um remédio para esse tipo de dores de cabeça, por exemplo, era combinar láudano com
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ipecacuana, o primeiro para amortecer a dor e o segundo para aliviar a náusea induzindo o vômito. Do mesmo modo, idealizou um tratamento combinado para ela. Um dos "remédios" chegou uma semana depois da volta de Athcourt. Doam-se estábulo no estudo do Gwen e deixou o pacote sobre o escritório, enquanto a esposa acertava com o cozinheiro o menu do dia seguinte. Depois saiu da casa, para ocupar-se da segunda parte do remédio. Uma hora depois, Gwendolyn, de pé no estudo, olhava ao Hoskins, perplexa. — Foi ao Okehampton — disse o criado pela segunda vez — Tinha uma entrevista. Algo relacionado com o hospital. — Ah. Ah, sim, com o senhor Dobbin. — Gwendolyn se deu a volta — Recordou-me isso durante o café da manhã, e eu, como uma parva, esqueci-o. Devo ter a mente em qualquer outro lugar. Obrigado, Hoskins. Gwen ficou na entrada, com a vista fixa no grosso que havia sobre o escritório, enquanto os passos do Hoskins se afastavam. Fechou a porta, voltou para escritório e recuperou a carta, com mãos trementes, Era do senhor Borson, o médico que tinha cuidado da Aminta Camoys. Era em resposta a uma carta de Dorian. Tinha escrito ao Borson quinze dias atrás, sem dizer a ela. Dorian tinha encostado uma nota à carta do Borson: "Eis aqui, doutora Gwendolyn com todos os deliciosos detalhes acidentados. Espero te encontrar se retorcendo em um ataque de luxúria incontrolável quando retornar". Gwen leu a nota pela décima vez e já não pôde controlar-se, tampou-se a cara com as mãos e chorou, mas não pela resposta de Borson, mas sim pelo que havia custado obtê-la a seu marido, escrever para pedir um favor a um homem que considerava como o torturador de sua própria mãe, se não o assassino. Dorian o tinha feito pelo bem de Gwendolyn, e isso era o que lhe espremia dolorosamente o coração, e por isso chorou como uma esposa e não como a doutora que pretendia ser. Ou que acreditou poder ser, 0u se imaginou capaz de ser, reprovou-se não estar comportando-se de maneira muito capaz, enxugou as lágrimas e lhe ocorreu que depois haveria tempo de sobra para chorar. Toda uma vida, se optava por dedicar-se à pena e jogar pelo muro os dons que Deus lhe tinha dado e tudo o que seu marido tentava lhe deixar. Dorian sabia que ela tratava de aprender e tentava ajudá-la de todos os modos que podia. Não tinha por que chorar. Sabia que ao Dorian fazia feliz ajudá-la. Mais ainda, na carta do Borson havia informação de fato valiosa. Compreendeu-o a primeira olhada. E até tinha incluído uma cópia do relatório pós-morte, que resolveria vários enigmas persistentes, assim que Gwen pudesse concentrar-se como era devido. E continuar concentrada, coisa que, ultimamente, custava-lhe. Esqueciam-lhe coisas, perdia coisas. Passou uma semana inteira com a Jessica, até que se deu conta de que a prima estava grávida. Gwendolyn não foi capaz de conciliar os sintomas mais simples: prova físicas que nenhum estudante de medicina teria visto, por não falar já do estado de ânimo característico. Enquanto Gwendolyn esteve ali, Jessica, que nunca chorava, tinha estalado em lágrimas sem razão aparente, e várias vezes perdeu a paciência por assuntos dos mais corriqueiros. Jessica não disse nada a respeito, e Gwendolyn, por discrição, absteve-se de perguntarlhe. Afinal de contas, ainda estava nos primeiros dias, e o primeiro trimestre era um período muito incerto...Trimestre... doze semanas... sintomas...
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Gwendolyn olhou sem ver o relatório da autópsia. Fazia mais de seis semanas que estava casada. Sua última menstruação tinha ocorrido duas semanas antes das bodas. O relatório lhe caiu dos dedos inertes, e deixou cair o olhar sobre seu ventre. — Oh, meu Deus. —murmurou. Dorian estava no vestíbulo privado da estalagem Golden Hart, no Okehampton, mas não com o fictício senhor Dobbin a não ser com o Bertie Trent, cujo rosto quadrado estava crispado em uma careta dolorosa. Isso se devia a que estava tratando de pensar. — Bom, Eversham necessita dinheiro — disse, ao fim — Mas não é a classe de tipo que se leva bem com outras pessoas, pois, se o fosse, teria ficado no Chippenham, coisa que até o Gwen disse, mas com ela se levava bem, e a tia Claire gostava bastante, porque era o único que sabia como tratar os ataques dela. — Não tem que levar-se bem com outros — lhe disse Dorian — Quando único faz falta é que nos diga o que fazer. Dain e eu estivemos de acordo em que necessitamos a um médico com experiência no comitê de planejamento do hospital. Também necessitava alguém capaz de falar com Gwendolyn em seu mesmo idioma, e também fazê-la escutar e enfrentar-se aos fatos. E cuidar-se mais. Mas Dorian tinha explicado tudo isso em sua carta. O grosso estava sobre a mesa, entre ele e Bertie, que o olhava com ar de dúvida e que, por alguma razão, ainda era relutante a apoderar-se dele. — É informação do hospital — lhe disse Dorian. Isto era certo em parte, mas o grosso consistia em cópias dos materiais enviados pelo Borson, de modo que Eversham chegasse munido de feitos, para seu encontro intelectual com Gwendolyn — Espero que a proposta lhe resulte irresistível. Se não, conto com que você utilize seus inigualáveis poderes de persuasão. Como fez com o Borson. Assim que Dorian compreendeu que tinha que lhe escrever ao Borson, também compreendeu que faria falta mais de uma carta. Os médicos tendiam a opor-se e gostavam de conservar segredos; isso o havia dito Gwendolyn. Além disso, no geral estavam muito ocupados com os pacientes para atender a correspondência. Como não queria correr o risco de esperar meses, Dorian decidiu procurar Bertie. O que ao Trent faltava de inteligência o tinha de leal e teimado. Era leal ao Dorian, e insistiria com toda teima até que Borson lhe desse o que tinha ido procurar. E assim foi, quando este compreendeu que não tinha outro modo de livrar-se de Bertie. Dorian confiava em que a lealdade e a obstinação do Bertie também dariam resultado com Eversham. O herói de Gwendolyn não parecia à classe de indivíduo que acode correndo quando um nobre estala os dedos. — Mas, se não resultar, podemos tentar outra coisa — adicionou Dorian, ao ver que Bertie seguia carrancudo — Sei que será mais difícil que tratar com Borson. O que estamos lhe pedindo ao Eversham é que abandone seu consultório, levante suas coisas e parta, coisa nada insignificante. E inclusive se aceitar, entendo que necessitará um pouco de tempo para arrumar seus próprios assuntos. Mas quero que te certifique de que entenda que estou disposto a cobrir todos os gastos e usar minha influência cada vez que se necessite,te assegure de convencê-lo de que sou um homem de palavra, Bertie, que isto não é um capricho de louco. Se tiver dúvidas, pode escrever ao Dain. Bertie piscou com força.
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—Você não está louco, Gato. Não mais que eu e, te olhando bem, melhor que antes. Ela te tem feito bem, não é certo? — Claro que não estou louco — disse Dorian — E tudo graças a Gwendolyn. É maravilhosa e eu me sinto muito feliz — acrescentou, com um sorriso. "E quero que ela seja feliz", acrescentou, para si. A expressão de Bertie se esclareceu, e em seus claros olhos azuis brilhou uma luz. — Sabia que você gostaria, Gato. Sabia que te faria bem. Dorian entendeu o que significava essa luz e não lhe custou imaginar o que Bertie queria acreditar. Mas Bertie não tinha lido o comentário de Borson sobre o relatório post mortem, e, embora o tivesse feito, não teria entendido nenhuma fração do que conseguiu entender Dorian. E isso era muito mais do que tinha feito sete anos antes, muito antes de que Gwendolyn lhe explicasse o referido à auto-suficiência do cérebro, que era o que o fazia tão suscetível de destruição. Bertie não entendia que essa destruição não podia reparar-se nem deter-se, que nem Gwendolyn podia obtê-lo. Não sabia que, quando começava o declive, continuava sem cessar, como tinha passado com o Rawnsley Hall, que ia desintegrando-se silenciosamente sob a superfície, até que o teto caiu. Bertie acreditava que "bem" equivalia a "curado", e Dorian não teve coração para lhe explicar a diferença. — Eu gosto muitíssimo, Bertie — lhe disse — E me tem feito um bem imenso. Gwendolyn queria construir o hospital em Dartmoor. O que significava que queria ficar ali de maneira permanente. Estava ante a janela da biblioteca, olhando fora, e Dorian a via desesperada. Estava de pé ante a mesa onde pouco antes tinha deixado vários esboços arquitetônicos do hospital e insistia em que lhe respondesse à pergunta que lhe tinha feito todos os dias, os últimos cinco dias, não tinha querido pressioná-la. Desde seu encontro clandestino com Bertie, tinham passado duas semanas e Dorian não tinha recebido resposta. Enquanto isso, Gwendolyn tinha adoecido. Seu semblante alternava entre uma palidez intensa e um violento soneojo, e estava irritável, sem dúvida porque dormia mal. A noite passada se incorporou dos travesseiros, balbuciando algo assim como extravasando de uma ou outra coisa. — Gwendolyn, não pode viver aqui — disse, em voz calma, mas com a mente agitada por imagens futuras da esposa que o preocupavam. — Eu gosto deste lugar — disse — Do momento que cheguei, estou me sentido como em meu lar. — Este clima não é saudável. Até nos vales se fixa a umidade e.. — Os pobres não podem costear o traslado de seus parentes doentes aos alojamentos da costa, nem viajar ida e volta para visitá-los. — deu-se a volta — As pessoas dos páramos necessitam de um hospital moderno. E a umidade não é importante. E banho é úmido e frio, e pessoas em todos os estados possíveis de enfermidade e decrepitude vivem aqui enquanto recebem as águas. — Este não é um sítio saudável para ti. — insistiu — Leva aqui só dois meses e…… Se tirou os cabelos. Diga-o, ordenou-se. Era hora de deixar de fingir. Sua esposa estava doente, e era ele quem a adoecia; portanto, era hora de enfrentar-se com isso, com ou sem o Eversham.
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“Esse tipo já deveria estar aqui, maldito seja", pensou Dorian, Eversham saberia o que fazer, o que dizer. O considerava um médico perito, brilhante. Resolveria o enigma que exasperava tanto a Gwendolyn e a faria ver os fatos de frente. — Não está bem — disse Dorian — Não come nem dorme bem, está cansada e não se mostra razoável. A outra noite esteve duas horas zangada, porque disse que o jantar era "aborrecido". — A cozinheira tinha que usar especiarias — disse Gwen, rígida, com as mãos formando punhos aos lados — Mandei as buscar em Londres e disse à cozinheira tudo relacionado com o escarro, a congestão, e como reduzir a pressão por excesso de fluidos, mas ela não me fez caso e o que fez foi... papa. Dorian suspirou. Tinha falado com o Hoskins, quem, a sua vez, falou com a cozinheira, que afirmou que as especiarias picantes provocariam indigestão a Sua Senhoria, e isso era o que lhe impedia de dormir pelas noites. A cozinheira havia dito que qualquer um sabia que "revolviam o sangue". — A cozinheira está preocupada com você. — lhe disse — Todos estamos preocupados com você. Gwen pôs os olhos em branco. — Oh, que encantador. Estou a ponto de fazer uma descobrerta médico, e ninguém coopera, porque lhes colocou na cabeça que devem preocupar-se. — Foi até a mesa — Se eu fosse homem, aceita como cientista, só estaria "preocupado" com meu trabalho. Mas, como sou uma mulher, o que acontece é que tenho um ataque de hipocondria, e devem me rebaixar o sangue. Rebaixar-me isso. Estampou o punho contra a mesa — Poucas vezes ouvi idéias tão medievais. Já é um milagre que possa pensar, sequer, com semelhante nuvem de tolices e ansiedade turvando o ambiente ao redor. Como se não fosse suficiente problema concentrar-se neste conc... — interrompeu-se, olhou, carrancuda, os desenhos, e se afastou da mesa, indo para a porta. — Necessito ar fresco. Mas Dorian chegou antes e se interpôs. — Gwen, está chovendo — lhe disse — E você... — O resto da frase se perdeu, quando lhe olhou o rosto, que estava avermelhado. E o busto ascendia e baixava rapidamente, como se tivesse deslocado quilômetros, e, franziu o sobrecenho — O vestido se encolheu. Gwen se olhou. — É um milagre que possa respirar — lhe disse ele — Me surpreende que as costuras do espartilho não se abram. Gwen retrocedeu um passo. — Não é surpreendente — repôs, apartando o olhar — Isto se passa a todas as mulheres de minha família. Somos tão óbvias... — Lançou um suspiro comprido e trêmulo — Estou... grávida. — Oh. — cambaleou-se contra a porta — Já entendo. Sim, claro. O quarto estava escuro e girou a seu redor, ao tempo que dentro dele caiu outra escuridão, como um peso enorme. Doeram-lhe os olhos e a garganta, e seu coração era uma cunha de dor dentro do peito. — Não! — gritou a mulher — Não te atreva a te dar por vencido, Dorian! Não pense em te pôr doente agora. Jogou-se nele, que tinha os braços cruzados, e os abriu, por reflexo, para abraçá-la. Apoiou a cabeça contra o peito enfermo. — Estou feliz — lhe disse, trêmula — Quero a nosso filho. E quero que você esteja.
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— Oh, Gwen. — Não é impossível — lhe disse — Quando único precisamos são sete meses mais. — tornou-se atrás e lhe dedicou um sorriso tão trêmulo como sua voz — Se eu fosse uma elefanta, seria diferente o período de gestação é de vinte meses e meio. Dorian conseguiu lançar uma gargalhada tremente. — Sim, vejamos o lado positivo. Ao menos, não é uma elefanta. — Para o final, terei uma aparência similar. Não quererá te perder esse espetáculo, verdade? Dorian entrelaçou os dedos na cabeleira selvagem. — Não, não me perderia isso, meu amor. Está me apresentando uma tentação irresistível. — Isso espero. — Aplaudiu-lhe o peito — As motivações do paciente podem ter um efeito muito pronunciado no tratamento; isso é o que diz Eversham. — A voz já tinha quase o timbre frio e normal — Teria que lhe haver dito antes, mas é um período inseguro, e não queria fazer que te iludisse inutilmente. Mas talvez exagerei com as precauções. Não é freqüente que as mulheres de minha família abortem. "Sete meses mais", pensou Dorian, antes que sua esposa chegasse, tinham-lhe dado menos, e já fazia dois meses que Gwen estava. E, entretanto, estava melhor que sua mãe nesta etapa. As visões não tinham piorado, não degeneraram em demônios. Seu ânimo seguia sendo relativamente estável. Não sofria de súbitos acessos de melancolia ou de inexplicável alegria ou fúria. Em lugar disso, gozava do feroz encantamento de fazer amor com ela e dos momentos de tranqüila alegria de trabalhar juntos, fazendo planos para algo que valia a pena. Segundo Borson, sua mãe tinha estado coerente até o final. Louca e vivendo em um mundo próprio, perverso, mas coerente, e ardilosa, às vezes até malvada. Possivelmente não se teria fundo nesse mundo infestado por demônios se o mundo real tivesse sido mais pormenorizado para com ela e lhe tivesse devotado alegria e a sensação de ser útil e apreciada, digna de carinho. Possivelmente poderia ter vivido um pouco mais e morrido de maneira mais aprazível. Não era impossível. "Uns meses mais", disse-se. O suficiente para ver o menino. Que maravilhoso seria. E, se resultava impossível, pelo menos teria dado um filho a Gwendolyn, que sem dúvida lhe alegraria o coração e dissiparia qualquer inclinação que tivesse de persistir no duelo por ele. Contudo, o desejo do Gwen de ficar ali não era bom sinal. Convinha-lhe começar uma nova vida em outro lugar, afastar-se das lembranças tristes. Mas em qualquer momento chegaria Eversham, tranqüilizou-se Dorian. O admirado professor lhe faria ver as coisas de outro modo. Dorian atraiu a sua esposa estreitando-a contra si. — Tentarei manter uma atitude positiva — lhe prometeu, com voz suave. —E tem que falar com a cozinheira —murmurou ela, com a boca apoiada na camisa—. lhe recorde quem é o doutor nesta casa. Ordenei-lhe curry para o jantar, e tem que estar quente. Dorian riu entre dentes. — Sim, carrancuda. — Beijou-a no cocuruto — Mas antes vejamos o que pode fazer o doutor Dorian para adoçar seu ânimo. Dez dias depois, Gwendolyn recordava a conversação e os métodos empregados pelo Dorian para lhe adoçar o ânimo. Após, tinha usado as mesmas técnicas: beijá-la, acariciá-la até
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dissipar a irritação, tirando-a desse aspecto irritante, atraindo-a a seus braços fortes para levála ida e volta ao paraíso, e deixá-la aturdida de encantamento. Agora, sentada no consultório do Kneebones, concentrou-se nessas sensações deliciosas para conter-se, para não deixar-se levar pela irritação e lhe causar danos corporais graves, talvez fatais, ao médico. Em realidade, não era a primeira vez que se humilhava ante os doutores, e Dorian era muito mais importante que seu próprio orgulho. Dedicou ao Kneebones um sorriso de desculpa. — Só queria saber se esse material prova, com certeza, o que foi que fez que o cérebro da senhora Camoys sofresse um colapso. Kneebones a olhou carrancudo e logo ao relatório que tinha na mão. — Nestes casos, não se pode provar absolutamente nada, fazem-se inferências lógicas, apoiando-se em feitos observáveis e na história do paciente. A senhora Camoys não bebia em excesso nem ingeria ópio, que é o que conduz a insanidade tóxica. Não sofreu febre alta antes nem durante a desintegração. E, se tivesse recebido um golpe na cabeça, como você supõe, não lhe parece que o médico da família, Budge, teria mencionado esse pequeno detalhe em seu comentário da história médica? — E se o ignorava? — insistiu Gwendolyn. — Budge é um homem competente. Suponho que sabe reconhecer uma conclusão quando a vê. — Mas a gente não pode, simplesmente, as ver — disse — A senhora tinha amantes. E se um dos amantes o fez? Se lhe provocou um traumatismo tão grave como o que estamos dizendo, talvez não lhe recordasse. — Inclinou a cabeça — Por acaso, interrogou você à dama de companhia? Freqüentemente os criados sabem mais dos segredos da família que os membros desta. Kneebones se tirou os óculos e se esfregou os olhos. — Pergunto-me como é que, a esta altura, lorde Rawnsley não está com camisa de força — murmurou. — Eu também me pergunto isso. Se não fosse assim, eu não teria vindo a chateá-lo. Sei que tem que haver uma explicação lógica, mas não posso achá-la. Kneebones colocou outra vez as lentes sobre o nariz. — Isso pode ser por causa de uma imaginação hiperativa e muito melodramática, e uma falta de atenção aos fatos observáveis. — Me diga no que me equivoco. O homem empurrou o relatório da autópsia para ela. — Suponhamos que sua pequena teoria é correta, lady Rawnsley. Suponhamos que o estado da senhora Camoys se desencadeou como resultado de um golpe na cabeça, recebido muitos meses antes da aparição dos sintomas de loucura traumática, como está acostumado a acontecer. Que diferença faria? Na história do filho aparecem abundantes episódios de violência física febre, alcoolismo, por não falar de outra quantidade de estados mórbidos de organismo, todos de conseqüências similares. Possivelmente isto não lhe ocorreu. Tampouco parece dar-se conta de que um homem pode herdar um temperamento e, com ele, a predisposição a um estilo de vida irracional; autodestrutivo. Não tem em conta a degeneração moral do paciente, o comportamento racional e a aparência selvagem. Seja qual for o dano inicial os sintomas indicam com claridade uma deterioração progressiva. Ante esto último, a frágil paciência de Gwen explodiu. Ficou de pé.
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— Meu marido não é nem foi nunca degenerado, irracional ou autodestrutivo — disse, com rigidez — Tem um poderoso instinto de preservação. Não teria sobrevivido nem um mês nos inquilinatos londrinos, e menos ainda anos. — Recolheu o relatório da autópsia o meteu em sua bolsa — Me custa acreditar que lhe tenha passado isto por alto — lhe disse — e tampouco que você, um homem de ciência, tenha-lhe diagnosticado insanidade só em virtude de como leva o cabelo. Saiu a pernadas. Lorde Rawnsley ignorava que sua esposa tinha estado discutindo com Kneebones no Okchampton. Supôs que estava fazendo um percurso de possíveis convocações para o hospital com o Hoskins e discutindo com ele porque o criado tinha ordens de encontrar defeitos a todos os lugares, e de mantê-la entretida até a hora do chá. Sem saber que sua esposa se dirigia a toda parte para a casa nesse mesmo momento, obstinadamente imune às táticas dilatórias do Hoskins, Dorian estava de pé junto à chaminé da biblioteca. Tinha as mãos estreitamente enlaçadas à costas e a vista fixa no desconcertante jovem e cavalheiresco médico. Eversham estava de pé junto à mesa. Tinha terminado de folhear as últimas notas do Gwendolyn e agora esquadrinhava pensativo ao Dorian. — No caso de sua mãe, aproximou-se muito à verdade. — disse Eversham — Me ocorreu a mesma teoria quando li sua carta e as cópias do material de Borson. — Esboçou um sorriso tênue — E devo acrescentar que estavam muito bem escritas, milord. — Minha escritura não tem importância. — disse Dorian — Ia você me dizer o que soube no Gloucestershire. Ocorreu que a chegada do Eversham se viu demorada por um percurso da propriedade do Rawnsley Hall, em procura de informação sobre a Aminta Camoys. Fez o percurso em parte porque a carta do Dorian despertou sua curiosidade médica e em parte pela litania lacrimosa do Bertie Trent elogiando as nobres e heróicas qualidades de Dorian. Levou-lhe vários dias localizar à antiga dama da mãe. — Prefere que seja delicado, ou direto e brutal? — perguntou Eversham. O coração do Dorian se agitou. — Prefiro que seja brutal. — Sua mãe tinha um romance com seu tio Hugo. — disse Eversham, em tom neutro — Se encontravam reunidos em segredo, no tanque da propriedade, quando a dama de sua mãe foi avisar-lhes que o avô tinha retornado inesperadamente. A sua mãe entrou em pânico, tropeçou e se golpeou a cabeça contra uma pia de pedra. Como deu a impressão de que se recuperava imediatamente, não viram motivo para que chamassem o médico, sobre tudo considerando que corriam o risco de que se revelassem as circunstâncias do acidente. Eversham prosseguiu explicando que as concussões podiam ser enganosas: trauma interno sem evidências externas que, em ocasiões, não manifestava sintomas visíveis durante semanas, meses, e até anos, e a essa altura era difícil relacionar os sintomas com um acidente de aparência inofensiva, de muito tempo antes. Por isso foi mal diagnosticada desde o começo, como afligida por uma "degeneração" ou desmoronamento constitucional. — Talvez você ignore — disse Eversham — que o funcionamento do cérebro... — Sei como é — o interrompeu Dorian — Gwendolyn me explicou isso, e também como se produz o desmoronamento. Eversham assentiu. — Ao parecer, derruba-se mais ou menos do mesmo modo depois de um trauma, um golpe, por exemplo, como por causa de várias outras enfermidades diferentes. A questão é que sua mãe, milord, evidentemente sofreu um trauma grave, coisa impossível de herdar.
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Tomou uma das folhas com as notas do Gwendolyn. —Mais ainda, Sua Senhoria não detectou em você nenhum dos sintomas habituais na degeneração cerebral. Não me surpreende, pois não há tal degeneração. Eversham dirigiu ao Dorian um olhar afirmativa. — Está você notavelmente bem de saúde, — acrescentou — sobre tudo se tivermos em conta que pertence à classe alta. Seu cérebro está em excelentes condições de funcionamento. Tanto sua escrita, que evidencia um controle motriz superior, como a apresentação lógica e ordenada de informação muito pessoal e tinta de conteúdos emocionais, não deixam lugar a dúvida.— Voltou a concentrar-se na folha que tinha na mão— Não registra letargia nem fadiga, dificuldade para descansar nem sonolência. Tampouco dificuldades com a atenção aos detalhes e de concentração, como demonstra com toda claridade sua proposta para o hospital. — esclareceu a voz — E acredito que as funções reprodutoras estão... bem... funcionando. — Elevou a vista, sorrindo — O felicito, milord. Esse é um sucesso ditoso para esperar com impaciência, não é assim? Sua Senhoria só tinha conseguido assimilar a novidade de um trauma que ele não pôde ter herdado. Levou-lhe certo tempo captar o resto e, durante esse tempo, limitou-se a cravar a vista no Eversham, com expressão estúpida. Passou um tempo mais até que conseguiu falar. — O que está você dizendo? — perguntou, aturdido — Que espere com impaciência. Eu tenho... Você tem... — jogou-se o cabelo atrás — Não terá acontecido algo por alto? Essas coisas. As "visões", "primeiro vê estrelas, depois se sente a dor". Minha esposa disse que se tratava de fenômenos comuns a muitas enfermidades neurológicas. Eversham assentiu. — É certo, são bastante comuns. Entre outros, são os sintomas clássicos da enxaqueca. Deduzo que essa é sua afecção. — Enxaqueca? — repetiu Dorian — Como em... "hemicrânia"? — Não é uma simples dor de cabeça, que é o que a maioria da gente entende por "enxaqueca", a não ser dores de cabeça muito fortes, que debilitam. Mesmo assim, não são fatais. — Está me dizendo — insistiu Dorian, marcando as palavras — que todo este tempo... — Sentiu calor no rosto—... todos estes meses estive me comportando como um herói trágico e o único que tenho é uma maldita dor de cabeça Eversham franziu o sobrecenho, pôs outra vez o papel na pilha com outros e os endireitou, enquanto Dorian registrava o silêncio e se perguntava com o que se encheria. Eversham acabava de lhe dizer que eram enxaquecas. Que não eram fatais. Então por que vacilava? Gwendolyn acreditou ouvir a voz do Dorian, mas, quando chegou à porta da biblioteca, tudo estava silencioso dentro. Abriu para jogar uma rápida olhada e certificar-se. Nesse momento, outra voz masculina muito familiar rompeu o silêncio. — Queria poder lhe dizer outra coisa, milord, mas é uma doença incurável. Embora haja sido estudada durante séculos, segue sendo um enigma médico. Ainda não encontrei dois casos exatamente iguais. Não estou seguro de poder lhe prometer alívio, coisa que lamento profundamente, porque sei que é muito dolorosa. E não posso lhe prometer, tampouco, que não passará a sua descendência, pois existem sólidas evidências de que se herda a predisposição. Ao Gwen lhe escapou um soluço afogado. Duas cabeças masculinas giraram com brutalidade, e duas olhadas, uma azul, outra dourada, posaram-se nela antes que pudesse retroceder.
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—Oh —disse — Lhes peço perdão. Não quis interromper, apressou-se a fechar a porta e fugiu. Gwendolyn correu, cega, pelo corredor, abriu a porta principal, transpô-la, baixou os degraus e correu direto a topar-se com Bertie. — Gwen, aonde vai... Passou junto a ele e correu para o potro, que uma dos moços de quadra estava levando ao estábulo. Arrebatou-lhe as rédeas ao moço. Bertie correu atrás dela. — Gwen, o que passou? Inclinou-se e juntou as mãos. — Não me diga que o Gato se foi outra vez — disse, ajudando-a a subir — Pensei que se levaria bem com o Eversham, e estava a ponto de ir dizer ao Dain quando vi dobrar pelo atalho, e nunca em minha vida fiquei tão estupefato, supõe-se que estaria em... — Gwendolyn! Bertie girou em redondo. — Aí tem, Gwen. Não se foi. O que é o que...? — Me solte o pé, Bertie. Soltou-o, mas ao mesmo tempo os alcançou Dorian e sujeitou a rédea. — Minha querida, não sei o que é que você... — Estou um pouco desenquadrada — disse, afogando-se — Necessito dar um passeio. Para me limpar a cabeça. — O que precisa é uma xicará de chá — lhe replicou, em tom tranqüilizador — Sei que te causou impacto ver o Eversham, mas eu... — Oh, oxalá nunca tivesse vindo! — soluçou. Tremeu-lhe a voz e lhe encheram os olhos de lágrimas — Mas isso é uma tolice, sei. Sempre é melhor conhecer os fatos. E você me fez tão feliz e eu te amo e sempre te amarei, sem importar o que passe. Quebrou-lhe a voz e, com ela, o último resíduo de controle. Chorou sem consolo, e, quando Dorian estirou os braços, sujeitou-a da cintura e a fez apear, quão único atinou a fazer foi aferrar-se a ele, soluçando. — Doçura, eu também te amo com todo meu coração — lhe disse com ternura — Mas acredito que entendeste algo mal. — Não, ouvi. — gemeu — Ouvi o que dizia Eversham e ele sabe. É um verdadeiro doutor. Disse que era incurável. Kneebones tinha razão e eu estava equivocada, devia saber. — Em efeito o entendeste mal. — disse Dorian, lhe entrelaçando os dedos no cabelo — Os especialistas de Londres, Borson e Kneebones estavam equivocados. Eu também. Você estava mais certa que todos nós. Sinto-me como um completo imbecil. Mas seu Eversham diz que meu cérebro funciona e que um não pode herdar uma concussão, portanto deduzo que terá que carregar comigo e minhas malditas enxaquecas por tempo indefinido. Gwen elevou a cabeça e, através das lágrimas, viu o fulgor da verdade nos olhos ambarinos. — Enxaquecas? — Ele as chama enxaquecas. — disse Dorian — Temo que a Providência te gastou outra brincadeira. Fez semelhante trajeto para cuidar e consolar a um louco moribundo em seus últimos meses de desgraça e fazer progredir a causa da ciência médica estudando um caso fascinante. — Sorriu — E te ficaste ligada com um tipo perfeitamente são, com uma aborrecida e antiquada dor de cabeça.
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Gwen estirou o braço e jogou atrás o cabelo do marido, piscando através das lágrimas que seguiam caindo, embora já não tivesse nenhum motivo para chorar. — Bom, de qualquer modo, amo-te. — lhe disse. Ouviu que o potro soprava e, ao dar a volta, viu que a moço o levava aos estábulos e que Bertie, com ar preocupado, corria outra vez para eles. — Pelos cantos fúnebres do Júpiter, digo, Por Deus, Gato, o que aconteceu? Por que chora? Jamais a vi fazê-lo. — É perfeitamente normal, Bertie. — respondeu Dorian, lhe aplaudindo as costas—. Sua prima vai ter um filho. Por isso está sensível. — Ah. Bom. Oh, isso significa que... Oh, sim. Que estupendo. Seriamente. — Vivaz, Bertie lhe aplaudiu a cabeça — Bem feito, primo. — E você poderia ser o padrinho. —Dorian se apartou para ver a expressão de sua esposa— Parece-te bem isso, verdade, meu amor? Gwendolyn riu entre lágrimas. — Oh, sim. Claro que Bertie será o padrinho. Soltou as lapelas do Dorian e se enxugou os olhos. — E você terá um precioso hospital, com encantadores médicos novos, de idéias modernas — lhe disse o marido, lhe alcançando seu próprio lenço — E faremos que o pesado do Kneebones se afaste para que não interfira nem interponha obstáculos ou discuta com as pessoas sensatas. Mandaremo-lo como médico privado para que atenda às anciãs Camoys no Rawnsley Hall. Se, até agora, não as mataram seu próprio médico ruim e os medicamentos que lhes receitaram, é pouco provável que Kneebones possa lhes fazer algum dano. Gwen riu outra vez e se limpou o nariz, que, certamente, estaria tão vermelha como seu cabelo nesse momento. E, a julgar pela expressão do Bertie, seu cabelo também devia ser todo um espetáculo. — Já está, vê? — disse Dorian ao primo — Já é quase a mesma de sempre. Bertie a olhava com ar dúbio. — Está toda vermelha e com manchas. — Só necessita tempo, para adaptar-se — disse Dorian — Sabe o que acontece? Resulta que Gwen deverá carregar comigo por... Oh, só Deus sabe por quanto tempo. Pobre garota. Veio até aqui para consolar a um louco moribundo em seus últimos dias trágicos e agora... — E agora resulta que o único de que sofre o Gato é uma forte dor de cabeça—disse Gwen, com voz não muito firme ainda — É só enxaqueca, Bertie. O primo piscou. — Enxaqueca? — Sim, querido. — Como os ataques de tia Claire? — Sim, como minha mãe. — E o tio Frederick? E o tio avô Mortimer? — Sim, querido. — Bom. — Os olhos do Bertie refulgiram, e os esfregou — Mas eu sabia que tudo ia sair bem, desde o começo, como te disse. O que quero dizer, Gato, é que não tudo está exatamente bem. É doloroso. O tio avô Mortimer se golpeia a cabeça contra a parede. Mas a enxaqueca ainda não matou a nenhum de nós. — Aplaudiu o ombro de Dorian, depois lhe aferrou a mão e a sacudiu com energia. Depois abraçou a Gwendolyn. Por fim, com o rosto avermelhado, apartou-se — Por Júpiter. Um menino, Por Deus. Padrinho. Enxaquecas. Bom. Tenho sede. Continuando, esfregando-os olhos, correu para a casa.
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Uma hora depois, enquanto Bertie recuperava o equilíbrio emocional no quarto de banho, Dorian e sua esposa viam como se afastava o maltratado carro do senhor Eversham pelo atalho. — Temos que lhe conseguir um carro melhor — disse Dorian — As pessoas julgam pelas aparências, e aos médicos jovens custa inspirar confiança. Mas uma boa bagagem daria a impressão de uma prática rentável. Se o considerarem muito procurado, duvidarão menos de sua habilidade. — Pensa em tudo — disse Gwendolyn — é sua veia protetora e eu estou começando a suspeitar que é uma reminiscência das origens feudais dos Camoys, quando o senhor do feudo cuidava de toda sua gente. — Não seja parva — lhe respondeu — Trata-se de algo prático. Terá bastante que fazer entre atender doentes e fiscalizar a construção do hospital para, além disso, ter que pensar em satisfazer suas próprias necessidades e envolver-se nas rivalidades e a política da região. — Sim, querido — disse, obediente — É algo prático. — E você terá bastante que fazer sem te precipitar a defendê-lo várias vezes ao dia ou me chatear com isso. Já a pequenez fica bastante fastidiosa sem isso. Não posso te permitir que esteja brigando com todo o Dartmoor. Viram como a carruagem girava depois de uma colina e desaparecia da vista. — Está se pondo o sol — disse Dorian — Os duendes, os fantasmas e as bruxas devem estar arrumando-se para as orgias da noite. Voltou a vista ao Gwen. — Quer dar um passeio? Gwen lhe colocouu a mão pelo oco do cotovelo e caminharam juntos pelo jardim. Levou-a até o banco de pedra onde a tinha encontrado esperando-o, tranqüila, umas semanas atrás, sentou-se e a fez sentar-se em seu regaço. O sol se abatia sobre uma colina, ao longe. Seu resplendor incendiava as nuvens pulverizadas como almofadões de penugem de uma cama celestial, azul, verde e violeta. — Segue querendo construir em Dartmoor? — perguntou-lhe. Gwen assentiu. — Eu gosto deste lugar, e a ti também. E temos ao Dain e a Jessica perto. — Necessitaremos uma casa maior para criar uma família. — Olhou atrás, à modesta casa principal — Poderíamos adicionar uma asa. Não seria muito grandiosa. Mas Rawnsley Hall foi grandioso e dava a sensação de uma imensa tumba. Estava impaciente por sair dali. De fato, agora mesmo estou tentado em desistir das reparações e varrer com toda essa maldita pilha de escombros. — Você não gosta, mas talvez seu herdeiro sim — disse a moça —Se o reconstruir, poderia oferecer-lhe como presente de bodas. Acariciou-lhe o ventre com delicadeza. — Está segura de que há um varão aí? — Não, mas em algum momento o teremos. — Inclusive antes de compreender que poderia haver "algum momento", soube que me faria igualmente feliz ter uma menina. — Ah, bom, é que tem um rincão de ternura para as mulheres em seu coração — disse — Mas também sabe conquistar aos meninos, por isso eu não tenho preferências nesse sentido. Será um pai carinhoso e dedicado. E isso é bom — adicionou, franzindo o sobrecenho —, porque as mulheres de minha família são mães mas bem negligentes. O que passa é que estão sempre criando, e isso as faz distraídas, entende?
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— Então, eu cuidarei dos meninos. Porque quero muitos, e você terá que te ocupar do hospital, além disso. Gwen lhe jogou o cabelo atrás. — Tem talento para fazer previsões. — Fui abençoado com muitas coisas boas que esperar — disse Dorian — Por exemplo, ver elevar o hospital do chão. Descobrir quais das idéias e os princípios médicos modernos podem aplicar-se e quais não. As possibilidades. Os limites. — Moveu a cabeça — Me admira o muito que aprendi sobre medicina as últimas semanas e quão interessante resulta. Até tem certa poesia, sua própria lógica e seus próprios enigmas, como qualquer objetivo intelectual. E brinda a mesma sensação maravilhosa de descobrimento quando os mistérios resolvem. Hoje hei sentido isso quando Eversham me explicou aonde lhe tinham levado suas notas. — Beijou-a na fronte — Estou muito orgulhoso de ti. — Deveria estar orgulhoso de você mesmo — disse Gwen — Não me pôs obstáculos no caminho, embora queria fazê-lo para me proteger de mim mesma. Pelo contrário, tratou por todos os meios a seu alcance de me ajudar a resolver o mistério, escrevendo ao Borson e mandando procurar Eversham. — Eversham não se parece com nenhum outro médico que eu tenha conhecido. Tem idéias próprias. Enquanto estava lavando o rosto, perguntei-lhe porquê te tinha aceito como colega. Disse-me que, nos velhos tempos, as mulheres eram as curadoras de muitas comunidades. Mas os ignorantes consideravam suas artes curativas como magia, que, por sua vez, está associada com o Demônio. Por isso as censurava e as perseguia como bruxas. — Riu entre dentes — Assim foi como compreendi que eu estava acertado desde o começo: casei-me com uma bruxa. E ele também tinha razão, pois você é uma curadora. Curou meu coração. Isso era o que estava doente. Gwen lhe rodeou o pescoço com os dedos. — Você também me curou, Gato. Fez que a parte do médico e da mulher se convertesse em uma só. — Porque eu amo ambas as partes — disse com suavidade — Todas as suas partes. Toda você. Gwen sorriu com esse sorriso infinito e, entrelaçando os dedos no cabelo dele, atraiu-o para si e o beijou lenta, profunda, languidamente. Enquanto Dorian se detinha com ela na suavidade perdurável desse momento, o estreito arco vermelho do sol se afundou depois de uma colina resplandecente. Um fino fio de luz refulgiu no horizonte. A neblina noturna se meteu pelos ocos e fendas dos páramos, e as sombras se expandiram, alargaram, envolvendo na escuridão os atalhos que serpenteavam. A brisa que aumentava fez ao Dorian elevar a cabeça. — Uma bela noite de Dartmoor. — murmurou — Em momentos como este, é fácil acreditar na magia. — Seu olhar se topou com a expressão doce da mulher — Você é magia para mim, Gwen. — Porque sou sua bruxa, e você é meu devoto parente. — Isso sou. — Sorriu-lhe — Façamos um filtro, feiticeira. Gwen compôs seu adorável cenho médico. — Muito bem. Mas antes tem que me ajudar a encontrar olhos de salamandra. Dorian riu. Logo, elevando à esposa em braços, o conde do Rawnsley se levantou e a levou ao interior da casa.
Fim 68