A Cartomante e Outro Contos
Machado De Assis
A Cartomante e Outros Contos
@Editora_Firb
2017
ASSIS, Machado A Cartomante e Outros Contos 1a edição Antologia de contos de domínio público de Machado de Assis organizada por Monique Costa, aluno de editoração das Faculdades Integradas Rio Branco. Textos em domínio público http://machado.mec.gov.br/obra-completa-menu-principal-173/166-conto Edição: Monique Costa Projeto Gráfico: Monique Costa Capa: Monique Costa L200 A Cartomante e Outros Contos / ASSIS, Machado. São Paulo, Editora @Editora_Firb, 2017 96 p.: 148,5 x 210 mm ISBN 000000000000000000
1. Literatura Brasileira
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Sim, eu me faço de forte, mas já chorei no meu quarto, em silêncio, a porta fechada, travesseiro no rosto, chorei por dentro, sofri. Mas sabe o que tudo isso resultou; nada, é preciso aprender a crescer, viver, ser ‘gente grande’ e enfrentar os próprios problemas. (Dom Casmurro) Machado de Assis
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Prefácio
Machado de Assis um dos nossos grandes romancistas e o maior dos nossos contistas. Nascido na cidade do Rio de Janeiro 21 de junho de 1839. Os contos deste volume foram extraídos da obra numerosa e variada do contista, essas histórias se identificam não apenas através do estilo do autor, mas ainda das singularidades de uma imaginação bastante caprichosa.
MACHADO DE ASSIS
A Cartomante
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A CARTOMANTE
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amlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que 11
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havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio 12
A CARTOMANTE
de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradá13
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vel, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas ewww.nead.unama.br 4 pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura 14
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a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu 15
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que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando 16
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o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. “Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...” Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: “Vem, já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu 17
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opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... “ Que perdia ele, se... ? Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... 18
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— A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso. — As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da 19
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cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta 20
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e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
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Antes da Missa
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ANTES DA MISSA
A
NTESDAMISSACONVERSADEDUASDAMAS(D.LAURA entra com um livro de missa ira mão; D. BEATRIZ vem recebê-la) D. BEATRIZ Ora esta! Pois tu, que és a mãe da preguiça, Já tão cedo na rua! Aonde vais? D. LAURA Vou à missa: A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez; Subi para puxar-te as orelhas. Tu és A maior caloteira... Espera; não acabes. D. BEATRIZ O teu baile, não é? Que queres tu? Bem sabes Que o senhor meu marido, em teimando, acabou. “Leva o vestido azul” -- “Não levo” --“Hás de ir” [ --”Não vou”.] Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos, Fico que não sei mais o que fazer de mim. Chorei de raiva. Às dez, veio o tio Delfim; Pregou-nos um sermão dos tais que ele costuma, Ralhou muito, falou, falou, falou... Em suma, (Terás tido também essas coisas por lá) O arrufo terminou entre o biscoito e o chá. D. LAURA Mas a culpa foi tua. D. BEATRIZ Essa agora! D. LAURA O vestido Azul É o azul-claro? aquele guarnecido De franjas largas? D. BEATRIZ Esse. D. LAURA Acho um vestido bom. D. BEATRIZ Bom! Parece-te então que era muito do tom Ir com ele, num mês, a dois bailes? D. LAURA Lá isso É verdade. D. BEATRIZ Levei-o ao baile do Chamisso. D. LAURA Tens razão; na verdade, um vestido não é Uma opa, uma farda, um carro, uma libré. D. BEATRIZ Q ue dúvida! 23
MACHADO DE ASSIS
LAURA Perdeste uma festa excelente. D. BEATRIZ Já me disseram isso D. LAURA Havia muita gente. Muita moça bonita e muita animação. D. BEATRIZ Q ue pena! Anda, senta-te um bocadinho. D. LAURA Não; Vou à missa. D. BEATRIZ Inda é cedo; anda contar-me a festa. Para mim, que não fui, cabe-me ao menos esta Consolação. D. LAURA (indo sentar-se) Meu Deus! Faz calor! D. BEATRIZ Dá cá O livro. D. LAURA Para quê? Ponho-o aqui no sofá. D. BEATRIZ Deixa ver. Tão bonito! E tão mimoso! Gosto De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto Que custou alguns cem... D. LAURA Cinqüenta francos. D. BEATRIZ Sim? Barato. És mais feliz Do que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas; Custou caro, e trazia as folhas amarelas, Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor. Foi comprado em Paris; D. LAURA Ah! Mas eu tenho ainda o meu fornecedor. Ele é que me arranjou este chapéu. Sapatos, Não me lembra de os ter tão bons e tão baratos. E o vestido de baile? Um lindo gorgorão Gris-Perle; era o melhor que lá estava. D. BEATRIZ Então,Acabou tarde? D. LAURA Sim; à uma, foi a ceia; E a dança terminou depois de três e meia. Uma festa de truz. O Chico Valadão, Já se sabe, foi quem regeu o cotilhão. D. BEATRIZ Apesar da Carmela? Apesar da Carmela. D. BEATRIZ Esteve lá? D. LAURA Esteve; e digo: era a mais bela Das solteiras. Ves-
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ANTES DA MISSA
tir, não se soube vestir; Tinha o corpinho curto, e mal feito, a sair Pelo pescoço fora. D. BEATRIZ A Clara foi? D. LAURA Que Clara? D. BEATRIZ Vasconcelos. D. LAURA Não foi; a casa é muito cara. E a despesa é enorme. Em compensação, foi A sobrinha, a Garcez; essa (Deus me perdoe!) Levava no pescoço umas pedras taludas, Uns brilhantes... D. BEATRIZ Q ue tais? D. LAURA Oh! falsos como Judas! Também, pelo que ganha o marido, não há Que admirar. Lá esteve a Gertrudinha Sá; Essa não era assim; tinha jóias de preço. Ninguém foi com melhor e mais rico adereço. Compra sempre fiado. Oh! aquela é a flor Das viúvas. D. BEATRIZ O uvi dizer que há um doutor. . . D. LAURA Que doutor? D. BEATRIZ Um Dr. Soares que suspira, Ou suspirou por ela. D. LAURA Ora esse é um gira Que pretende casar com quanta moça vê. A Gertrudes! Aquela é fina como quê. Não diz que sim, nem não; e o pobre do Soares, Todo cheio de si, creio que bebe os ares Por ela... Mas há outro. D. BEATRIZ O utro? D. LAURA isto fica aqui; Há coisas que eu só digo e só confio a ti. Não me quero meter em negócios estranhos. Dizem que há um rapaz, que quando esteve a banhos, No Flamengo, há um mês, ou dois meses, ou três, Não sei bem; um rapaz... Ora, o Juca Valdez! D. BEATRIZ O Valdez! D. LAURA Junto dela, às vezes, conversava A respeito do
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mar que ali espreguiçava, E não sei se também a respeito do sol; Não foi preciso mais; entrou logo no rol Dos fiéis e ganhou (dizem), em poucos dias, O primeiro lugar. D. BEATRIZ E casam-se? D. LAURA A Farias Diz que sim; diz até que eles se casarão Na véspera de Santo Antônio ou São João. D. BEATRIZ A Farias foi lá a tua casa? D. LAURA Foi; Valsou como um pião e comeu como um boi. D. BEATRIZ Come muito, então? D. LAURA Muito, enormemente; come Que, só vê-la comer, tira aos outros a fome. Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu Que varreu, num minuto, um prato de peru, Quatro croquetes, dois pastéis de ostras, fiambre; O cônsul espanhol dizia “Ah, Dios quê hambre!” Mal me pude conter. A Carmosina Vaz, Que a detesta, contou o dito a um rapaz. Imagina se foi repetido; imagina. D. BEATRIZ Não aprovo o que fez a outra. D. LAURA A Carmosina? D. BEATRIZ A Carmesina. Foi leviana; andou mal. Lá porque ela não come ou só come o ideal... D. LAURA O ideal são talvez os olhos do Antonico? D. BEATRIZ Má língua! D. LAURA (erguendo-se) Adeus! D. BEATRIZ Já vais? D. LAURA Vou já. D. BEATRIZ Fica! D. LAURA Não fico. Nem um minuto mais. São dez e meia. D. BEATRIZ Vens Almoçar? D. LAURA Almocei.
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D. BEATRIZ V ira-te um pouco; tens Um vestido chibante D. LAURA Assim, assim. Lá ia Deixando o livro. Adeus! Agora até um dia. Até logo, valeu? Vai lá hoje; hás de achar Alguma gente. Vai o Mateus Aguiar. Sabes que perdeu tudo? O pelintra do sogro Meteu-o no negócio e pespegou-lhe um logro. D. BEATRIZ Perdeu tudo? Não tudo; há umas casas, seis, Que ele pôs, por cautela. a coberto das leis. D. BEATRIZ Em nome da mulher, naturalmente? D. LAURA Boas! Em nome de um compadre; e inda há certas pessoas Que dizem, mas não sei, que esse logro fatal Foi tramado entre o sogro e o genro; é natural Além do mais, o genro é de matar com tédio. D. BEATRIZ Não devias abrir-lhe a porta. D. LAURA Que remédio! Eu gosto da mulher; não tem mau coração; Um pouco tola... Enfim é nossa obrigação Aturarmo-nos uns aos outros. D. BEATRIZ O Mesquita Brigou com a mulher? D. LAURA Dizem que se desquita. D. BEATRIZ Sim? D. LAURA Parece que sim. D. BEATRIZ Por que razão? D. LAURA (vendo o relógio) Jesus! Um quarto para as onze! Adeus! Vou para a Cruz. (Vai a sair e Pára) Cuido que ela queria ir à Europa; ele disse Que antes de um ano mais, ou dois, era tolice. Teimaram, e parece (ouviu-o ao Nicolau) Que o Mesquita passou da língua para o pau. E lhe fez um discurso hiperbólico e cheio De imagens. A verdade é que ela tem no seio Um sinal roxo; enfim vão desquitar-se. D. BEATRIZ Vão Desquitar-se! D. LAURA Parece até que a petição Foi levada a juízo. Há
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de ser despachada Amanhã; disse-o hoje a Luisinha Almada Que eu, por mim, nada sei. Ah! feliz, tu, feliz, Como os anjos do céu! Tu sim, minha Beatriz Brigas por um por um vestido azul; mas chega o urso Do teu tio, desfaz o mal com um discurso, E restaura o amor com dois goles de chá! D. BEATRIZ (rindo) Tu nem isso! D. LAURA Eu cá sei. D. BEATRIZ Teu marido? D. LAURA Não há Melhor na terra; mas... D. BEATRIZ Mas... D. LAURA Os nossos maridos! São, em geral; não sei... uns tais aborrecidos. O teu, que tal? D. BEATRIZ É bom. D. LAURA Ama-te? D. BEATRIZ Ama-me. D. LAURA Tem Carinhos por ti? D. BEATRIZ Decerto. D. LAURA O meu também Acarinha-me; é terno; Inda estamos na lua De mel. O teu costuma andar tarde na rua? D. BEATRIZ Não. D. LAURA Não costuma ir ao teatro? D. BEATRIZ Não vai. D. LAURA Não sai para ir jogar o voltarete? D. BEATRIZ Sai Raras vezes. D. LAURA Tal qual o meu. Felizes ambas! Duas cordas que vão unidas às caçambas. Pois olha, eu suspeito, eu tremia de crer Que houvesse entre vocês qualquer coisa... Há de haver Lá um arrufo, um dito, alguma coisa e... Nada? Nada mais? É assim que a vida de casada Bem se pode dizer que é a vida do céu. Olha, arranja-me aqui as fitas do chapéu. Então? Espero-te hoje? Está
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dito? D. BEATRIZ Está dito. D. LAURA De caminho verás um vestido bonito: Veio-me de Paris; chegou Pelo Poitou. Vai cedo. Pode ser que haja música. Tu Hás de cantar comigo, ouviste? D. BEATRIZ O uvi. D. LAURA Vai cedo. Tenho medo que vá a Claudina Azevedo, E terei de aturar-lhe os mil achaques seus. Quase onze, Beatriz! Vou ver a Deus. Adeus!
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Antes a Rocha Tapéia
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omo é que me achei ali em cima? Era um pedaço de telhado, inclinado, velho,estreitinho, com cinco palmos de muro por trás. Não sei se fui ali buscar alguma coisa; parece que sim, mas qualquer que ela fosse, tinha caído ou voado, já não estava comigo. Eu é que fiquei ali no alto, sozinho, sem nenhum meio de voltar abaixo. Começara a entender que era pesadelo. Já lá vão alguns anos. A rua ou estrada em que se achava aquela construção era deserta. Eu, do alto, olhava para todos os lados sem descobrir sombra de homem. Nada que me salvasse; pau nem corda. Ia aflito de um para outro lado, vagaroso, cauteloso, porque as telhas eram antigas, e também porque o menor descuido far-me-ia escorregar e ir ao chão. Continuava a olhar ao longe, a ver se aparecia um salvador; olhava também para baixo, mas a idéia de dar um pulo era impossível; a altura era grande, a morte certa. De repente, sem saber de onde tinham vindo, vi em baixo algumas pessoas, em pequeno número, andando, umas da direita, outras da esquerda. Bradei de cima à que passava mais perto: — Ó senhor! acuda-me! Mas o sujeito não ouviu nada, e foi andando. Bradei a outro e outro; todos iam passando sem ouvir a minha voz. Eu, parado, cosido ao muro, gritava mais alto, como um trovão. O temor ia crescendo, a vertigem começava; e eu gritava que me acudissem, que me salvassem a vida, pela escada, corda, um pau, pedia um lençol, ao menos, que me apanhasse na queda. Tudo era vão. Das pessoas que passavam só restavam três, depois duas, depois uma. Bradei a essa última com todas as forças que me restavam: — Acuda! acuda! Era um rapaz, vestido de novo, que ia andando e mirando as 31
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botas e as calças. Não me ouviu, continuou a andar, e desapareceu. Ficando só, nem por isso cessei de gritar. Não via ninguém, mas via o perigo. A aflição era já insuportável, o terror chegara ao paroxismo... Olhava para baixo, olhava para longe, bradava que me acudissem, e tinha a cabeça tonta e os cabelos em pé... Não sei se cheguei a cair; de repente, achei-me na cama acordado. Respirei à larga, com o sentimento da pessoa que sai de um pesadelo. Mas aqui deu-se um fenômeno particular; livre de perigo, entrei a saboreá-lo. Em verdade, tivera alguns minutos ou segundos de sensações extraordinárias; vivi de puro terror, vertigem e desespero, entre a vida e a morte, como uma peteca entre as mãos destes dois mistérios. A certeza, porém, de que tinha sido sonho dava agora outro aspecto ao perigo, e trazia à alma o desejo vago de achar-me nele outra vez. Que tinha, se era sonho? Ia assim pensando, com os olhos fechados, meio adormecido; não esquecera as circunstâncias do pesadelo, e a certeza de que não chegaria a cair acendeu de todo o desejo de achar-me outra vez no alto do muro, desamparado e aterrado. Então apertei muito os olhos para não despertar de todo, e para que a imaginação não tivesse tempo de passar a outra ordem de visões. Dormi logo. Os sonhos vieram vindo, aos pedaços, aqui uma voz, ali um perfil, grupos de gente, de casas, um morro, gás, sol, trinta mil coisas confusas, que se cosiam e descosiam. De repente vi um telhado, lembrei-me do outro, e como dormira com a esperança de reatar o pesadelo, tive uma sensação misturada de gosto e pavor. Era o telhado de uma casa; a casa tinha uma janela; à janela estava um homem; este homem, cumprimentou-me risonho, abriu a porta, fez-me entrar, fechou a porta outra vez e meteu a chave no bolso. 32
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— Que é isto? perguntei-lhe. — É para que nos não incomodem, acudiu ele risonho. Contou-me depois que trazia um livro entre mãos, tinha uma demanda e era candidato a um lugar de deputado: três matérias infinitas. Falou-me do livro, trezentas páginas, com citações, notas, apêndices; referiu-me a doutrina, o método, o estilo, leu-me três capítulos. Gabei-os, leu-me mais quatro. Depois, enrolando o manuscrito, disse-me que previa as críticas e objeções; declarou quais eram e refutou-as uma por uma. Eu, sentado, afiava o ouvido, a ver se aparecia alguém; pedia a Deus um salteador ou a justiça, que arrombasse a porta. Ele, se falou em justiça, foi para contar-me a demanda, que era uma ladroeira do adversário, mas havia de vencê-lo a todo custo. Não me ocultou nada; ouvi o motivo, e todos os trâmites da causa, com anedotas pelo meio, uma do escrivão que estava vendido ao adversário, outra de um procurador, as conversações com os juízes, três acórdãos e os respectivos fundamentos. À força de pleitear, o homem conhecia muito texto, decretos, leis, ordenações, citava os livros e os parágrafos, salpicava tudo de perdigotos latinos. As vezes, falava andando, para descrever o terreno — era uma questão de terras —, aqui o rio, descendo por ali, pegando com o outro mais abaixo; deste lado as terras de Fulano, daquele as de Sicrano... Uma ladroeira clara; que me parecia? — Que sim. Enxugou a testa, e passou à candidatura. Era legítima; não negava que pudesse haver outras aceitáveis; mas a dele era a mais legítima. Tinha serviços ao partido, não era aí qualquer coisa, não vinha pedir esmola de votos. E contava os serviços prestados em vinte anos de lutas eleitorais, luta de imprensa, apoio aos amigos, obediência aos chefes. 33
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E isso não se premiava? Devia ceder o seu lugar a filhos? Leu a circular, tinha três páginas apenas; com os comentários verbais, sete. E era a um homem destes que queriam deter o passo? Podiam intrigá-lo; ele sabia que o estavam intrigando, choviam cartas anônimas... Que chovessem! Podiam vasculhar no passado dele, não achariam nada, nada mais que uma vida pura, e, modéstia à parte, um modelo de excelentes qualidades. Começou pobre, muito pobre; se tinha alguma coisa era graças ao trabalho e à economia — as duas alavancas do progresso. Uma só dessas velhas alavancas que ali estivesse bastava para deitar a porta abaixo; mas nem uma nem outra, era só ele, que prosseguia, dizendo-me tudo o que era, o que não era, o que seria, e o que teria sido e o que viria a ser — um Hércules, que limparia a estrebaria de Áugias —, um varão forte, que não pedia mais que tempo e justiça. Fizessem-lhe justiça, dando-lhe votos, e ele se incumbiria do resto. E o resto foi ainda muito mais do que pensei... Eu, abatido, olhava para a porta, e a porta calada, impenetrável, não me dava a menor esperança. Lasciati ogni speranza... Não, cá está mais que a esperança; a realidade deu outra vez comigo acordado, na cama. Era ainda noite alta; mas nem por isso tentei, como da primeira vez, conciliar o sono. Fui ler para não dormir. Por quê? Um homem, um livro, uma demanda, uma candidatura, por que é que temi reavê-los, se ia antes, de cara alegre, meter-me outra vez no telhado em que...? Leitor, a razão é simples. Cuido que há na vida em perigo um sabor particular e atrativo; mas na paciência em perigo não há nada. A gente recorda-se de um abismo com prazer; não se pode 34
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recordar de um maçante sem pavor. Antes a rocha Tarpéia que um autor de má nota.
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Chinela Turca, de Machado de Assis Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. A chinela turca Vede o bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas. Duarte estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que este nosso clima, tão avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro. Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do bacharel. - Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconse37
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lhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom. - Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair? - Vou ao Rio Comprido. - Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não? Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse: - Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz... fiz um drama. - Um drama! exclamou o bacharel. - Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza. Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a idéia de afrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minuciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o sou38
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be, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estréia, prometeu que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empalideceu quando viu o major, trêmulo de bemaventurança, abrir o rolo que trazia consigo. - Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço. Duarte procurou desviar aquele cálice de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinqüenta e cinco minutos, enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscrito. - Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete? Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo. O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e oi-
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tenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um envenenamento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento. Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília; via-a com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o ruge-ruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma 40
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grande convicção. Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos.Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do dramaturgo na pedra da calçada. Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido. Por que não fêz ele isso a mais tempo? disse o rapaz suspirando. O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo. - A esta hora? exclamou Duarte. - A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delito grave. - Um delito! - Creio que me conhece... - Não tenho essa honra. - Sou empregado na polícia. - Mas que tenho eu com o senhor? de que delito se trata? - Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias. O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da 41
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existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante hora. - Há de perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor. Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que fosse um doido ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada. - Ah! ah! disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano. 42
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Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação. - Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia... - Nós não somos da polícia, interrompeu friamente o homem magro. - Ah! - Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu? - Não, senhor. - Há de entender logo mais. Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos. - Chegamos, disse o homem gordo. Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas, - provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro, - seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais.
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Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência. Era talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado. Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, - a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que ali morassem ladrões. Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz o principio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mais que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal. - Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado? Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as idéias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não 44
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opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cinqüenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara. - Conhece-me? perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala. - Não, senhor. - Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto... - Oh! decerto! interrompeu Duarte. - Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela. O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca,segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente: - Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta casa? - Vai sabê-lo, respondeu tranqüilamente o velho. A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro. - Chinela de criança, não lhe parece? disse o velho. - Suponho que sim. 45
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- Pois supõe mal; é chinela de moça. - Será; nada tenho com isso. - Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona. - Casar! exclamou Duarte. - Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela. Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina. Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, deleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem-aventurança, como raras vezes há de ter tido a terra. Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação. Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora. - Meu caro doutor, esta é a noiva.A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar. - Três coisas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante... - Veneno! interrompeu Duarte. - Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte 46
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do céu. Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair. - O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinqüenta contos. Esta pérola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre. O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menor; travou-lhe da mão e disse: - Levante-se! - Não! Não quero! Não me casarei! - E isto? disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola. - Mas então é um assassinato? - É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha! Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho: - Quer fugir? - Oh! Sim! exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava. - Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo. - Oh! Padre! disse baixinho o bacharel. - Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada. A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a que47
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da foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo. - Que é isso? perguntou ele rindo. Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara. Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa. Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o major Lopo Alves. O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente: - Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro. Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga. - Então! Que tal lhe pareceu? - Ah! excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se. 48
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- Paixões fortes, não? - Fortíssimas. Que horas são? - Deram duas agora mesmo. Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: - Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.
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A Igreja do Diabo
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A IGREJA DO DIABO
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APÍTULO PRIMEIRO DE UMA IDÉIA MIRÍFICA Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nadaregular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez. — Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo. Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul. CAPÍTULO II ENTRE DEUS E O DIABO Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no 51
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logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor. — Que me queres tu? perguntou este. — Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos. — Explica-te. — Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros... — Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura. — Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa idéia, não vos parece? — Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor. — Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental. — Vai. — Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra? — Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja? 52
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O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse: — Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura... — Velho retórico! murmurou o Senhor. — Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos... Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo. — Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto 53
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gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez? — Já vos disse que não. — Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão? — Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega. — Negas esta morte? — Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los... — Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai! Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra. CAPÍTULO III A BOA NOVA AOS HOMENS Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os de54
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leites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas. — Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vedeme gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada. Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu”... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande 55
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cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento. As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs. Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do 56
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homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele. Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, por57
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que essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria. CAPÍTULO IV FRANJAS E FRANJAS A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo. Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros. A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram 58
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até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro. Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse: — Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão 59
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têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.
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a manhã de um sábado, 25 de abril, andava tudo em alvoroço em casa de José lemos. Preparava-se o aparelho de jantar dos dias de festa, lavavam-se as escadas e os corredores, enchiamse os leitões e os perus para serem assados no forno da padaria defronte; tudo era movimento; alguma coisa ia acontecer nesse dia. O arranjo da sala ficou a cargo de José Lemos. O respeitável dono da casa, trepado num banco, tratava de pregará parede duas gravuras compradas na véspera em casa do Bernasconi; uma representava a Morte de Sardanapalo; outra a Execução de Maria Stuart. Houve alguma luta entre ele e a mulher a respeito da colocação da primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um grupo de homens abraçado com tantas mulheres. Além disso, não lhe pareciam próprios dois quadros fúnebres em dia de festa. José lemos, que tinha sido membro de uma sociedade literária, quando era rapaz, respondeu triunfantemente que os dois quadros eram históricos. E que a história está bem em todas as famílias. Podia acrescentar que nem todas as famílias estão bem na história; mas este trocadilho era mais lúgubre que os quadros. D. Beatriz, com as chaves na mão, mas sem a melena desgrenhada do sonêto de Tolentino, andava literalmente da sala para a cozinha, dando ordens, apressando as escravas, tirando toalhas e guardanapos lavados e mandando fazer compras, em suma, ocupada nas mil coisas que estão a cargo de uma dona de casa, máxime num dia de tanta magnitude. De quando em quando, chagava Dona Beatriz à escada que ia ter ao segundo andar, e gritava: – Meninas, venham almoçar! 61
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Mas parece que as meninas não tinham pressa, porque só depois das nove horas acudiram ao oitavo chamado da mãe, já disposta a subir ao quarto das pequenas o que era verdadeiro sacrifício da parte de uma senhora tão gorda. Eram duas moreninhas de truz as filhas do casal Lemos. Uma representava ter vinte anos, outra dezessete; ambas eram altas e um tanto refeitas. A mais velha estava um pouco pálida; a outra, coradinha e alegre, desceu cantando não sei que romance do Alcazar, então em moda.. parecia que das duas a mais feliz seria a que cantava; não era; a mais feliz era a outra que nesse dia devia ligarse pelos laços matrimoniais ao jovem Luís Duarte, com quem nutria longo e porfiado namoro. Estava pálida por ter tido uma insônia terrível, doença de que até então não padecera nunca. Há doenças assim. Desceram as duas pequenas, tomaram a benção à mãe, que lhes fez um rápido discurso e foram à sala para falar ao pai. José lemos, que pela sétima vez trocava a posição dos quadros, consultou as filhas sobre se era melhor que a Stuart ficasse do lado do sofá ou do lado oposto. As meninas disseram que era melhor deixá-la onde estava, e esta opinião pôs termo às dúvidas de José lemos que deu por concluída a tarefa e foi almoçar. Além de José Lemos, sua mulher Dona Beatriz, Carlota (a noiva) e Luísa, estavam à mesa Rodrigo Lemos e o menino Antonico, filhos também do casal Lemos. Rodrigo, tinha dezoito anos e Antonico seis; o Antonico era a miniatura do Rodrigo; distinguiam-se ambos por uma notável preguiça, e nisso eram perfeitamente irmãos. Rodrigo desde as oito horas da manhã gastou o tempo em duas coisas; ler os anúncios do Jornal e ir à cozinha saber em que altura estava o almoço. 62
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Quanto ao Antonico, tinha comido às seis horas um bom prato de mingau, na forma de costume, e só se ocupou em dormir tranqüilamente até que a mucama o foi chamar. O almoço correu sem novidade. José lemos era homem que comia calado; Rodrigo contou o enredo da comédia que vira na noite antecedente no Ginásio; e não se falou em outra coisa durante o almoço. Quando este acabou, Rodrigo levantou-se para ir fumar; e José Lemos encostando os braços na mesa perguntou se o tempo ameaçava chuva. Efetivamente o céu estava sombrio, e a Tijuca não apresentava bom aspecto. Quando Antonico ia levantar-se, impetrada a licença, ouviu da mãe este aviso: – Olha lá, Antonico, não faças logo ao jantar o que fazes sempre que há gente de fora. – O que é que ele faz? perguntou José Lemos. – Fica envergonhado e mete o dedo no nariz. Só os meninos tolos é que fazem isto: eu não quero semelhante coisa. O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado em lágrimas. D.Beatriz correu logo atrás para acalentar o seu Benjamin, e todos os mais se levantaram da mesa. José Lemos indagou da mulher se não faltava nenhum convite, e depois de certificar-se que estavam convidados todos os que deviam assistir à festa, foi vestir-se para sair. Imediatamente foi incumbido de várias coisas: recomendar ao cabeleireiro que viesse cedo, comprar luvas para a mulher e as filhas, avisar de novo os carros, encomendar os sorvetes e os vinhos, e outras coisas mais em que poderia ser ajudado pelo jovem Rodrigo, se este homônimo do Cid não tivesse ido dormir para descansar o almoço. 63
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Apenas José Lemos pôs a sola dos sapatos em contato com as pedras da rua, Dona Beatriz disse a sua filha Carlota que a acompanhasse à sala, e apenas ali chegaram ambas, proferiu a boa senhora o seguinte speech: – Minha filha, hoje termina a sua vida de solteira, e amanhã começa a tua vida de casada. Eu, que já passei pela mesma transformação, sei praticamente que o caráter de uma senhora casada traz consigo responsabilidades gravíssimas. Bom é que cada qual aprenda à sua custa; mas eu sigo nisto o exemplo de tua avó, que na véspera da minha união com teu pai, expôs em linguagem clara e simples a significação do casamento e a alta responsabilidade dessa nova posição... D. Beatriz estacou; Carlota que atribuiu o silêncio da mãe ao desejo de obter uma resposta, não achou melhor palavra do que um beijo amorosamente filial. Entretanto, se a noiva de Luís Duarte tivesse espiado três dias antes pela fechadura do gabinete de seu pai, adivinharia que D. Beatriz recitava um discurso composto por José Lemos, e que o silêncio era simplesmente um eclipse de memória. Melhor fora que D. Beatriz, como as outras mães, tirasse alguns conselhos do seu coração e da sua experiência. O amor materno é a melhor retórica deste mundo. Mas o Sr. José Lemos, que conservara desde a juventude um sestro literário, achou que fazia mal expondo a cara metade a alguns erros gramaticais numa ocasião tão solene. Continuou D. Beatriz o seu discurso, que não foi longo e terminou perguntando se realmente Carlota amava o noivo, e se aquele casamento não era, como podia acontecer, um resultado 64
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de despeito. A moรงa respondeu que amava o noivo tanto como a seus pais.
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A mãe acabou beijando a filha com ternura, não estudada na prosa de José Lemos. Pelas duas horas da tarde voltou este, suando em bica, mas satisfeito de si, porque além de ter dado conta de todas as incumbências da mulher, relativas aos carros, cabeleireiro, etc., conseguiu que o tenente Porfírio fosse lá jantar, coisa que até então, estava duvidosa. O tenente Porfírio era o tipo do orador de sobremesa; possuía o entono, a facilidade, a graça, todas as condições necessárias a esse mister. A posse de tão belos talentos proporcionava ao tenente Porfírio alguns lucros de valor; raro domingo ou dia de festa jantava em casa. Convidava-se o tenente Porfírio com a condição tácita de fazer um discurso, como se convida um músico para tocar alguma coisa. O tenente Porfírio estava entre o creme e o café; e não se cuide que era acepipe gratuito; o bom homem, se bem falava. Melhor comia. De maneira que, bem pesadas as coisas, o discurso valia o jantar. Foi grande assunto de debate nos três dias anteriores ao dia das bodas, se o jantar devia preceder a cerimônia ou vice-versa. O pai da noiva inclinava-se a que o casamento fosse celebrado depois do jantar, e nisto era apoiado pelo jovem Rodrigo, que com uma sagacidade digna de estadista, percebeu que, no caso contrário, o jantar seria muito tarde. Prevaleceu entretanto a opinião de D. Beatriz que achou esquisito ir para a igreja com a barriga cheia. Nenhuma razão teológica ou disciplinar se opunha a isso, mas a esposa de José Lemos tinha opiniões especiais em assunto de igreja. Venceu a sua opinião. Pelas quatro horas começaram a chegar convidados. Os primeiros foram os Vilelas, família composta de Justiniano 66
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Vilela, chefe de seção aposentado, D. Margarida, sua esposa, e D. Augusta, sobrinha de ambos.
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A cabeça de Justiniano Vilela, - se se pode chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas, - era um exemplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer cabeças grandes. Afirmavam, porém, algumas pessoas que o talento não correspondia ao tamanho, posto que tivesse corrido algum tempo o boato contrário. Não sei de que talento falavam essas pessoas; e a palavra pode ter várias explicações. O certo é que um talento teve Justiniano vilela, foi a escolha da mulher, senhora que, apesar dos seus quarenta e seis anos bem puxados, ainda merecia, no entender de José Lemos, dez minutos de atenção. Trajava Justiniano Vilela como é de uso em tais reuniões; e a única coisa verdadeiramente digna de nota eram os seus sapatos ingleses de apertar no peito do pé por meio de cordões. Ora, como o marido de D. Margarida tinha horror às calças compridas, aconteceu que apenas se sentou deixou patente a alvura de um fino e imaculado par de meias. Além do ordenado com que foi aposentado, tinha Justiniano Vilela uma casa e dois molecotes, e com isto ia vivendo menos mal. Não gostava de política; mas tinha opiniões assentadas a respeito dos negócios públicos. Jogava o solo e o gamão todos os dias, alternadamente; gabava as coisas so seu tempo, e tomava rapé com o dedo polegar e o dedo médio. Outros convidados foram chegando, mas em pequena quantidade, porque à cerimônia e ao jantar só devia assistir um pequeno número de pessoas íntimas. Às quatro horas e meia chegou o padrinho, Dr. Valença, e a madrinha sua irmã viúva, D. Virgínia. José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e cerimonioso, repeliu brandamente dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia 68
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toda a gravidade era pouca.
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Depois, com uma serenidade que só ele possuía, entrou o Dr. Valença e foi cumprimentar a dona da casa e as outras senhoras. Era ele homem de seus cinqüenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às maneiras. O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo. Insisto neste ponto porque é a maior prova de inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave; e indagando o que era gravidade, pareceu-lhe que não era nem o peso da reflexão, nem a seriedade do espírito, mas unicamente certo mistério do corpo, como se lhe chama La Rochefoucauld; o qual mistério, acrescentará o leitor, é como a bandeira dos neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre. Podia-se dar uma boa gratificação a quem descobrisse uma ruga na casaca do Dr. Valença. O colete tinha apenas três botões e abria-se até ao pescoço em forma de coração. Um elegante claque completava a toilette do Dr. Valença. Não era ele bonito de feições no sentido afeminado que alguns dão à beleza masculina; mas não deixava de ter certa correção nas linhas do rosto, o qual se cobria de um véu de serenidade que lhe ficava a matar. Depois da entrada dos padrinhos, José Lemos perguntou pelo 70
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noivo, e o Dr. Valença respondeu que não sabia dele. Eram já cinco horas. Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia, ficaram desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela confessou ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma coisa antes. Era justamente o que estava fazendo o jovem Rodrigo Lemos, desde que percebeu que o jantar viria lá para as sete horas. A irmã do Dr. Valença, de quem não falei detidamente por ser uma das figuras insignificantes que jamais produziu a raça de Eva, apenas entrou manifestou logo o desejo de ir ver a noiva, e D. Beatriz saiu com ela da sala, deixando plena liberdade ao marido que encetava uma conversação com a interessante esposa do Sr. Vilela. – Os noivos de hoje não se apressam, disse filosoficamente Justiniano; quando eu me casei fui o primeiro que apareceu em casa da noiva. A esta observação, toda filha do estômago implacável do ex-chefe de seção, o Dr. Valença respondeu dizendo: – Compreendo a demora e a comoção de aparecer diante da noiva. Todos sorriram ouvindo esta defesa do noivo ausente e a conversa tomou certa animação. Justamente, no momento em que Vilela discutia com o Dr. Valença as vantagens do tempo antigo sobre o tempo atual, e as moças conversavam entre si do último corte dos vestidos, entrou na sala a noiva, escoltada pela mãe e pela madrinha, vindo logo na retaguarda a interessante Luísa, acompanhada do jovem Antonico. Eu não seria narrador, exato nem de bom gosto se não dissesse que houve na sala um 71
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murmúrio de admiração. Carlota estava efetivamente deslumbrante com o seu vestido branco, e a sua grinalda de flores de laranjeira, e o seu finíssimo véu, sem outra jóia mais que os seus olhos negros, verdadeiros diamantes da melhor água. José Lemos interrompeu a conversa em que estava com a esposa de Justiniano e contemplou a filha. Foi a noiva apresentada aos convidados, e conduzida para o sofá, onde se sentou entre a madrinha e o padrinho. Este, pondo o claque em pé sobre a perna, e sobre o claque a mão aperta_a numa luva de três mil e quinhentos, disse à afilhada palavras de louvor que a moça ouviu corando e sorrindo, aliança amável de vaidade e modéstia. Ouviram-se passos na escada, e já o Sr. José Lemos esperava ver entrar o futuro genro, quando assomou à porta o grupo dos irmãos Valadares. Destes dois irmãos, o mais velho que se chamava Calisto, era um homem amarelo, nariz aquilino, cabelos e olhos redondos. Chamava-se o mais moço Eduardo, e só se diferenciava do irmão na cor, que era vermelha. Eram ambos empregados numa Companhia, e estavam na flor dos quarenta para cima. Outra diferença havia: era que Eduardo cultivava a poesia quando as cifras lho permitiam, ao passo que o irmão era inimigo de tudo o que cheirava a literatura. Passava o tempo, e nem o noivo, nem o tenente Porfírio davam sinais de si. O noivo era essencial para o casamento, e o tenente para o jantar. Eram cinco e meia quando apareceu finalmente Luís Duarte. Houve um Glória in excelsis Deo no interior de todos os convidados. Luís Duarte apareceu à porta da sala, e daí mesmo fez uma cortesia geral, cheia de graça e tão cerimoniosa que o padrinho lha invejou. 72
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Era um rapaz de vinte e cinco anos, tez mui alva, bigode louro e sem barba nenhuma. Trazia o cabelo apartado no centro da cabeça. Os lábios eram tão rubros que um dos Valadares disse ao ouvido do outro: parece que os tingiu. Em suma, Luís Duarte era uma figura capaz de agradar a uma moça de vinte anos, e eu não teria grande repugnância em chamar-lhe um Adônis, se ele realmente o fosse. Mas não era. Dada a hora, saíram os noivos, os pais e os padrinhos, e foram à igreja, que ficava perto; os outros convidados ficaram em casa, fazendo as honras dela a menina Luísa e o jovem Rodrigo, a quem o pai foi chamar, e que apareceu logo trajado no rigor da moda. – É um par de pombos, disse a Sra. D. Margarida Vilela, apenas saiu a comitiva. – É verdade! disseram em coro os dois irmãos Valadares e Justiniano Vilela. A menina Luísa, que era alegre por natureza, alegrou a situação, conversando com as outras moças, uma das quais, a convite seu, foi tocar alguma coisa ao piano. Calisto Valadares suspeitava que houvesse uma omissão nas Escrituras, e vinha a ser que entre as pragas do Egito devia ter figurado o piano. Imagine o leitor com que cara viu ele sair uma das moças do seu lugar e dirigir-se ao fatal instrumento. Soltou um longo suspiro e começou a contemplar as duas gravuras compradas na véspera. – Que magnífico é isso! exclamou ele diante do Sardanapalo, quadro que achava detestável. – Foi papai quem escolheu, disse Rodrigo, e foi essa a primeira palavra que pronunciou desde que entrou na sala. – Pois, senhor, tem bom gosto, continuou Calisto; não sei se 73
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conhecem o assunto do quadro... – O assunto é Sardanapalo, disse afoitamente Rodrigo. – Bem sei, retrucou Calisto, estimando que a conversa pegasse; mas pergunto se... Não pode acabar; soaram os primeiros compassos. Eduardo, que na sua qualidade de poeta, devia amar a música, aproximou-se do piano e inclinou-se sobre ele na posição melancólica de um homem que conversa com as musas. Quanto ao irmão, não tendo podido evitar a cascata de notas, foi sentar-se ao pé de Vilela, com quem travou conversa, começando por perguntar que horas eram no relógio dele. Era tocar na tecla mais preciosa do ex-chefe de seção. – É já tarde, disse este com voz fraca; olhe, seis horas. – Não podem tardar muito. – Eu sei! A cerimônia é longa, e talvez não achem o padre... Os casamentos deviam fazer-se em casa e de noite. – É a minha opinião. A moça terminou o que estava tocando; Calisto suspirou. Eduardo, que estava encostado ao piano, cumprimentou a executante com entusiasmo. – Por que não toca mais alguma coisa? disse ele. – É verdade, Mariquinhas, toca alguma coisa da Sonâmbula, disse Luísa obrigando a amiga a sentar-se. – Sim! a Son... Eduardo não pode acabar; viu em frente os dois olhos repreensivos do irmão e fez uma careta. Interromper uma frase e fazer uma careta podia ser indício de um calo. Todos assim pensaram, exceto Vilela, que, julgando os outros por si, ficou conven74
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cido de que algum grito agudo do estômago tinha interrompido a voz de Eduardo. E, como acontece às vezes, a dor alheia despertou a própria, de maneira que o estômago de Vilela formulou um verdadeiro ultimatum, ao qual o homem cedeu, aproveitando a intimidade que tinha na casa e indo ao interior sob pretexto de dar exercício às pernas. Foi uma felicidade. A mesa, que já tinha em cima de si alguns acepipes convidativos, apareceu como uma verdadeira fonte de Moisés aos olhos do ex-chefe de seção. Dois pastelinhos e um croquette foram os parlamentares que Vilela mandou ao estômago rebelado e com os quais aquela víscera se conformou. No entanto D. Mariquinhas fazia maravilhas ao piano; Eduardo encostado à janela parecia meditar um suicídio, ao passo que o irmão brincando com a corrente do relógio umas confidências de Dona Margarida a respeito do mau serviço dos escravos. Quando Rodrigo, passeava de um lado para outro, dizendo de vez em quando em voz alta: – Já tardam! Eram seis horas e um quarto; nada de carros, algumas pessoas já estavam impacientes. Às seis e vinte minutos ouviu-se um rumor de rodas; Rodrigo correu à janela: era um tuburi. Às seis e vinte e cinco minutos todos supuseram ouvir o rumor dos carros. – É agora, exclamou uma voz. Não era nada. Pareceu-lhes ouvir por um efeito (desculpem a audácia com que eu caso este substantivo a este adjetivo) por um efeito de miragem auricular. Às seis e trinta e oito minutos apareceram os carros. Grande alvoroço na sala; as senhoras correram ás janelas. Os homens olharam uns para os outros como conjurados que medem as 75
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suas forças para uma grande surpresa. Toda a comitiva entrou. As escravas da casa, que espreitavam do corredor a entrada dos noivos, causaram uma verdadeira surpresa à sinhá moça, deitando-lhe sobre a cabeça um dilúvio de folhas de rosa. Cumprimentos e beijos, houve tudo quanto se faz em tais ocasiões. O Sr. José lemos estava contentíssimo, mas caiu-lhe água na fervura quando soube que o tenente Porfírio não tinha chegado. – É preciso mandá-lo chamar. – A esta hora! murmurou Calisto Valadares. – Sem o Porfírio não há festa completa, disse o Sr. José Lemos confidencialmente ao Dr. Valença. – Papai, disse Rodrigo, eu creio que ele não vem. – É impossível! – São quase sete horas. – E o jantar já nos espera, acrescentou D. Beatriz. O voto de D. Beatriz pesava muito no ânimo de José Lemos; por isso não insistiu. Não houve remédio senão sacrificar o tenente. Mas o tenente era homem das situações difíceis, o salvador dos lances arriscados. Mal acabava D. Beatriz de falar, e José lemos de assentir mentalmente à opinião da mulher, ouviu-se a escada a voz do tenente Porfírio. O dono da casa soltou um suspiro de alívio e satisfação. Entrou na sala o longamente esperado conviva. Pertencia o tenente a essa classe feliz de homens que não têm idade; uns lhe davam 30 anos, outros 35 e outros 40; alguns chegavam até os 45, e tanto esses como os outros podiam ter igualmente razão. A todas as hipóteses se prestavam a cara e as suíças castanhas do tenente. Era ele magro e de estatura meã; vestia com certa graça, e, comparado com um boneco não havia 76
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grande diferença. A única coisa que destoava um pouco era o modo de pisar; o tenente Porfírio pisava para fora a tal ponto, que da ponta do pé esquerdo à ponta do pé direito, quase se podia traçar uma linha reta. Mas como tudo tem compensação, usava ele sapatos rasos de verniz, mostrando um fino par de meias de fio de Escócia mais lisas que a superfície de uma bola de bilhar.
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Entrou com a graça que lhe era peculiar. Para cumprimentar os noivos arredondou o braço direito, pôs a mão atrás das costas segurando o chapéu, e curvou profundamente o busto, ficando em posição que fazia lembrar (de longe!) os antigos lampiões das nossas ruas. Porfírio tinha sido tenente do exército, e dera baixa, com o que andou perfeitamente, porque entrou no comércio de trastes e já possuía algum pecúlio. Não era bonito, mas algumas senhoras afirmavam que apesar disso era mais perigoso que uma lata de nitroglicerina. Naturalmente não devia essa qualidade à graça da linguagem, pois falava sibilando muito a letra s; dizia assim: Asss minhasss botasss... Quando Porfírio acabou os cumprimentos, disse-lhe o dono da casa: – Já sei que hoje temos coisa boa! – Qual! respondeu ele com uma modéstia exemplar; quem ousará levantar a voz diante de ilustrações? Porfírio disse estas palavras pondo os quatro dedos da mão esquerda no bolso do colete, gesto que ele praticava por não saber onde havia de por aquele fatal braço, obstáculo dos atores novéis. – Mas por que veio tarde? perguntou D. Beatriz. – Condene-me, minha senhora, mas poupe-me a vergonha de explicar uma demora que não tem atenuante no código da amizade e da polidez. José Lemos sorriu olhando para todos e como se destas palavras do tenente lhe resultasse alguma glória para ele. Mas Justiniano Vilela que, apesar dos pestelinhos, sentia-se impelido para a mesa, exclamou velhacamente: 78
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– Felizmente chegou à hora de jantar! – É verdade; vamos para a mesa, disse José Lemos dando o braço a D. Margarida e a D.Virgínia. Seguiram-se os mais em procissão. Não há mais júbilo nos peregrinos de Meca do que houve nos convivas ao avistarem uma longa mesa, profusamente servida, alastrada de porcelanas e cristais, assados, doces e frutas. Sentaram-se em boa ordem. Durante alguns minutos houve aquele silêncio que precede a batalha, e só no fim dela, começou a geral conversação. – Quem diria há um ano, quando eu aqui apresentei o nosso Duarte que ele seria hoje noivo desta interessante D. Carlota? disse o Dr. Valença limpando os lábios com o guardanapo, e lançando um benévolo olhar para a noiva. – É verdade! disse D. Beatriz. – Parece dedo da Providência, opinou a mulher de Vilela. – Parece, e é, disse D. Beatriz. – Se é o dedo da Providência, acudiu o noivo, agradeço aos céus o interesse que toma por mim. Sorriu D. Carlota e José Lemos achou o dito de bom gosto e digno de um genro. – Providência ou acaso? perguntou o tenente. Eu sou mais pelo acaso. – Vai mal, disse Vilela que, pela primeira vez levantara a cabeça do prato; isso que o senhor chama acaso não é senão a Providência. O casamento e a mortalha no céu se talha. Ah! o senhor acredita nos provérbios? É a sabedoria das nações, disse José Lemos. Não, insistiu o tenente Porfírio, repare que para cada provér79
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bio afirmando a coisa contrária. Os provérbios mentem. Eu creio que foi simplesmente um felicíssimo acaso, ou antes uma lei de atração das almas que fez com que o Sr. Luís Duarte se aproximasse da interessante filha do nosso anfitrião. José lemos ignorava até aquela data se era anfitrião; mas considerou que da parte de Porfírio não podia vir coisa má. Agradeceu sorrindo o que lhe pareceu cumprimento, enquanto se servia da gelatina que Justiniano Vilela dizia estar excelente. As moças conversavam baixinho e sorrindo; os noivos estavam embebidos com a troca de palavras amorosas, ao passo que Rodrigo palitava os dentes com tal ruído, que a mãe não pode deixar de lhe lançar um desses olhares fulminantes que eram as suas melhores armas. – Quer gelatina, Sr. Calisto? perguntou José Lemos com a colher no ar. – Um pouco, disse o homem de cara amarela. – A gelatina é excelente! disse pela terceira vez o marido de D. Margarida, e tão envergonhada ficou a mulher com estas palavras do homem que nãopode reter um gesto de desgosto. – Meus senhores, disse o padrinho, eu bebo aos noivos. – Bravo! disse uma voz. – Só isso? perguntou Rodrigo; deseja-se uma saúde historiada. – Mamãe: eu quero gelatina! disse o menino Antonico. – Eu não sei fazer discursos: bebo simplesmente à saúde dos noivos. Todos beberam. – Quero gelatina! insistiu o filho de José Lemos. 80
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D. Beatriz sentiu ímpetos de medéia; o respeito aos convidados impediu que ali houvesse uma cena grave. A boa senhora limitou-se a dizer a um dos serventes: – Leva isto a nhonhô... O Antonico recebeu o prato, e entrou a comer como comem as crianças quando não têm vontade: levava uma colherada à boca e demorava-se tempo infinito rolando o conteúdo da colher entre a língua e o paladar, ao passo que a colher, empurrada por um lado formava na bochecha direita uma pequena elevação. Ao mesmo tempo agitava o pequeno as pernas de maneira que batia alternadamente na cadeira e na mesa. Enquanto se davam estes incidentes, em que ninguém realmente reparava, a conversa continuava seu caminho. O Dr. Valença discutia com uma senhora a excelência do vinho Xerez, e Eduardo Valadares recitava uma décima à moça que lhe ficava ao pé. De repente levantou-se José lemos. – Sio! sio! sio! gritaram todos impondo silêncio. José lemos pegou num copo e disse aos circunstantes: – Não é, meus senhores, a vaidade de ser ouvido por tão notável assembléia que me obriga a falar. É um alto dever de cortesia, de amizade, de gratidão; um desses deveres que podem mais que todos os outros, dever santo, dever imortal. A estas palavras a assembléia seria cruel se não aplaudisse. O aplauso não atrapalhou o orador, pela simples razão de que ele sabia o discurso de cor. – Sim, senhores. Curvo-me a esse dever, que é para mim a lei mais santa e imperiosa.
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A
Eu sereníssima bebo aos meus República amigos, a estes sectários do coração, a estas vestais, (Conferência tanto masculinas do cônego como Vargas) femininas, do puro fogo da amizade! Aos Meus meus senhores, amigos! à amizade! Ao Antes falar de verdade, comunicar-vos o únicouma homem descoberta, que percebeu que reputo a nulidade de aldo discurso gum lustre para de José o nosso Lemos país,deixai foi o Dr.que Valença, vos agradeça que aliása não prontiera águia.com dão Por que isso acudisses mesmo levantou-se ao meu chamado. e fez umSei brinde que aos uminteresse talentos oratórios vos superior do anfitrião. trouxe aqui; mas não ignoro também, - e fora ingratidão Seguiu-se ignorá-lo, a estes -que dois um pouco brindesdeosimpatia silêncio pessoal de uso, se atémistura que Ro-à drigo dirigindo-se vossa legítima curiosidade ao tenentecientífica. Oxalá possa eu corresponder Porfírio a ambas.perguntou-lhe se havia deixado a musa em casa. –Minha É verdade! descoberta queremos não éouvi-lo, recente;disse datauma do fim senhora; do anodizem de 1876. que fala tão Não a divulguei bem! então, - e, a não ser o Globo, interessante diário desta – Eu, capital, minha nãosenhora? a divulgaria respondeu ainda agora, Porfíro- com por uma aquela razão modésque tia de um achará fácil homem entrada queno se supõe vosso um espírito. S. João Esta Boca obra de Ouro. de que venho falar-vos, Distribuiu-se carece de o champanhe; retoques últimos, e o tenente de verificações Porfírio levantou-se. e experiênVilela, cias complementares. que se achava Mas um opouco Globo distante, noticioupôs quea um mãosábio em forma inglês de concha aatrás descobriu linguagem da orelha fônica direita, dos ao insetos, passoe que cita Calisto o estudo ficando feito um olhar com as moscas. profundo Escrevi sobrelogo a toalha para aparecia Europaestar e aguardo contando as resposos fios do tecido. tas com ansiedade. José lemos Sendo chamou certo,a porém, atençãoque da pela mulher, navegação que nesse aémomento rea, inventoservia do padre uma Bartolomeu, castanha gelada é glorificado ao implacável o nome Antonico; estrantodos os geiro, enquanto mais estavam o do nosso com ospatrício olhos no mal orador. se pode dizer lembrado dos –seus Minhas naturais, senhoras! determinei meus senhores! evitar a Disse sorte Porfírio; do insigne nãoVoador, irei esquadrinhar vindo a estanotribuna, âmago da proclamar alto e bom som, à face do universo, história, que muito essa mestra antes daquele da vida, sábio, o que eera fora o himeneu das ilhas nas britânicas, priscas da humanidade. um modesto naturalista Seria lançar descobriu a luvacoisa do escárnio idêntica,àse faces fez com imacuela ladas superior. obra desta brilhante reunião. Todos nós sabemos, senhoras e senhores, o que é o himeneu. O himeneu é a rosa, rainha dos vergéis, abrindo as pétalas rubras, para amenizar os cardos, os abrolhos, os espinhos da vida... 83
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Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, – Bravo! se lhe perguntasse:Credes que se possa dar um regime social – Bonito! às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, com vós –todos, Se o himeneu porque éé impossível isto que eu crer acaboque de jamais expor aos se vossos chegasse sen-a tidos auriculares, organizar socialmente não é mister esse articulado explicar o arisco, gáudio,solitário, o fervor, os apenas ímpetos de ao disposto amor, trabalho, as explosões e dificilmente de sentimento ao amor.com Pois que bem,todos esse imnós estamos fi-lo possível à roda eu. deste altar, celebrando a festa do nosso caro e prezadíssimo Ouço um amigo. riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre José vencer Lemos oscurvou preconceitos. a cabeçaAaté aranha tocarparece-vos com a ponta inferior, do nariz jusnuma pêra tamente porque que tinha não adiante conheceis. de si, Amais enquanto o cão, D. Beatriz prezais voltandoo gato e a-segalinha, para o Dr. e não Valença, advertis queque lhe aficava aranha ao não pé, dizia: pula nem ladra como o cão,não – Fala muito mia como bem! Parece o gato,um não dicionário! cacareja como a galinha, não zuneJosé nem Porfírio mordecontinuou: como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono– Sinto, como senhores, a pulga. não Todos ter um essestalento bichosdigno são do o modelo assunto...acabado davadiação – Não apoiado! e do parasitismo. está falando A muito mesmabem! formiga, disseram tão gabada muitas por vozes em qualidades certas volta do orador. boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, – Agradeço e funda aa bondade sua propriedade de V. Exas.; roubando mas eua persisto alheia. A naaranha, crença de que não senhores, nãotenho nos aflige o talento nem capaz defrauda; de arcar apanha comas um moscas, objetonosde tantainimigas, sas magnitude. fia,tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, – Não apoiado! de ordem, de previsão, derespeito e de humanidade? Quanto – V. aos Exas. seusConfundem-me, talentos, não hárespondeu duas opiniões. Porfírio Desde curvando-se. Plínio até Não tenho Darwin, os esse naturalistas talento; do masmundo sobra-me inteiro boa formam vontade,um aquela só coro boa vontade de admiração com que em torno os apóstolos desse bichinho, plantaramcuja no maravilhosa mundo a religião teia a do Calvário, vassoura inconsciente e graças adoeste vosso sentimento criado destrói podereiem resumir menosem deduas um palavras oEu minuto. brinde repetiria aos noivos. agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, Senhores, porém,excede duas flores onasceram prazo, sou emconstrangido diverso canteiro, a abreviá-la. ambas pulcras, ambas Tenho-os aqui, rescendentes, não todos, mas ambas quase cheias todos; de tenho, vitalidade entredivina. eles, Nasceram esta excelente umamonografia para outra; de era Büchner, o cravo eque a rosa; coma tanta rosa vivia subtileza para o cravo, ao vida estudou cravopsíquica vivia para dos aanimais. rosa: veio uma brisa e comunicou os perfumes das duas flores, e as flores, conhecendo que se ama84
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vam, Citando correram Darwin uma para e Büchner, a outra. é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo. Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças para arremeter a um trabalho que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem. Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu arácnide, e a análise da língua. O objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa atenção. 85
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A brisa apadrinhou essa união. A rosa e o cravo ali consorciados no amplexo da simpatia: a brisa ali está honrando a nossa reunião. Ninguém esperava pela brisa; a brisa era o Dr. Valença. Estrepidosos aplausos celebraram este discurso em que o Calvário andou unido ao cravo e à rosa. Porfírio sentou-se com a satisfação íntima de ter cumprido o seu dever. O jantar chegava ao fim: eram oito horas e meia; vinham chegando alguns músicos para o baile. Todavia, ainda houve uma poesia de Eduardo Valadares e alguns brindes a todos os presentes e a alguns ausentes. Ora, como os licores iam ajudando as musas, travou-se especial combate entre o tenente Porfírio e Justiniano Vilela, que, só depois de animado, pode entrar na arena. Esgotados os assuntos, fez Porfírio um brinde ao exército e aos seus generais, e Vilela outro à união das províncias do império. Neste terreno os assuntos não podiam escassear. Quando todos se levantaram da mesa, lá ficaram os dois brindando calorosamente todas as idéias práticas e úteis deste mundo, e do outro. Seguiu-se o baile, que foi animadíssimo e durou até às três horas da manhã. Nenhum incidente perturbou esta festa. Quando muito podia citar-se um ato de mau gosto da parte de José Lemos que, dançando com D. Margarida, ousou lamentar a sorte dessa pobre senhora cujo marido se entretinha a fazer saúdes em vez de ter a inapreciável ventura de estar ao lado dela.
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Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas D. e noventa. margaridaDuas sorriu;forças mas oserviram incidenteprincipalmente não foi adiante.à empresa de as Às congregar: duas horas -retirou-se o emprego o Dr. daValença língua com delas,a desde família,que sempude que discerni-la um pouco, e o da sentimento de terror que lhesperdesse infundurante a noite, e apesar familiaridade da reunião, di. minhasequer estatura, vestes talares, o uso do mesmo idioma, um Aátomo da as gravidade habitual. Calisto Valadares, esfizeram-lhes queem eraque eu ao filha deus mais das aranhas, desdeBeatriz então quivou-se na crer ocasião moça de eDona adoraramme. ia cantar ao piano. Os mais foram-se retirando a pouco e pouco. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música. Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, - o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade. Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam87
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-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena. A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos. Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crêlo. 88
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O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado “das inscrições”.
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No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos. A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringiase o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas. Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes dompartido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; - outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, - é 90
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o partido curvilíneo.
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MACHADO DE ASSIS
Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: - as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo. Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. 92
A SERENÍSSIMA REPÚBLICA
Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as inscrições. Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a idéia das malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. 93
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Este livro foi impresso em abril de 2017 e encadernado pelos alunos do curso de Editoração das Faculdades Integradas Rio Branco. As fontes de texto utilizada é Adobe Caslon Pro