Modos de Desaprender a Arquitetura

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Arquitetura e Urbanismo - ARQ013 Docente: Margarete Leta Discentes: Juliana Alencar e Lucas Carvalho 2


SUMÁRIO

1. DESAPRENDER É APRENDER?

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2. MEMÓRIA

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3. QUAIS HISTÓRIAS VOCÊ CONHECE?

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4. POR QUE SER UM BEIJA-FLOR?

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5. ACADEMIA

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6. QUEM FOI QUE DISSE?

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7. O QUE É ARQUITETURA

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8. COMO FAZER?

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9. PERMACULTURA

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A pandemia do coronavírus e os diversos acontecimentos que nos marcaram em 2020, demonstraram que não temos tanto controle assim da realidade como imaginávamos. A conta da imensa degradação ambiental causada, incentivada e perpetuada pelos seres humanos, pelos desmatamentos, queimadas e minerações, não demorou a chegar. O resultado veio para mostrar que a degradação ambiental é degradação humana e se tratarmos com negligência o meio ambiente, uma hora iremos arcar com as consequências. Na Arquitetura e no Urbanismo isso não é diferente. Vivemos em uma sociedade que insiste em fazer uma arquitetura baseada na forma ocidental de se construir, uma arquitetura que não representa a sociedade brasileira e despreza os saberes tradicionais. Essa mesma arquitetura é responsável por essas degradações mencionadas acima. A cultura do concreto, do dinheiro, das grandes construtoras, do mercado imobiliário é a cultura da degradação ambiental e humana. Com esse livreto, não temos a pretensão de dar respostas para essas questões. Em uma realidade como a nossa, marcada pelo negacionismo e pela ignorância, não podemos mais encarar uma informação como verdade única. Não existe só um conhecimento. Para nós, o conhecimento é algo que se 5


constrói, desconstrói, para que assim, possamos construí-lo de novo. Pode ser que com essa lógica, possamos contribuir para que esse planeta precário deixe de ser o lugar do ser precário e passe a ser lugar do ser questionador. Nesse sentido esse material que vem com um objetivo único, o de que você estudante, profissional da área ou pessoa que se interesse pelo tema, reflita e questione o que você acredita que seja fazer arquitetura, para que assim, talvez, você queira desaprender para aprender.

A frase que dá nome a essa questão e que influenciou o próprio nome do livreto foi inspirada na live “A busca do desaprender” organizada pelo laboratório de arquitetura Sem Muros com a Mariana Montag disponível no Instagram do grupo: @sem_muros. Disponível em: https://www.instagram.com/ tv/CBoYKl1HOvf/.

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Você já deve ter ouvido a frase “um povo sem memória é um povo sem futuro”. Para os fãs de futebol, a imagem do Estádio Nacional Julio Martínez Prádanos, localizado no Chile, provavelmente é uma das primeiras a vir à mente. Essa frase, originalmente em espanhol, foi escrita nesse estádio para que os chilenos nunca se esqueçam da ditadura sangrenta provocada por Augusto Pinochet. Isso porque quando não mantemos uma constante lembrança do passado, nos tornamos suscetíveis a repetir os mesmos erros no presente. Você busca analisar a vida de forma crítica? Você tem consciência da sua identidade e do seu povo? O líder indígena Ailton Krenak1 afirma que cultivar a memória é uma escolha de enxergar o mundo de forma crítica. E é exatamente essa consciência que possibilita que as pessoas se mantenham “de pé” diante às constantes afrontas sofridas, seja ela de cunho social, político ou econômico, podendo chegar até mesmo a ferir a dignidade humana. É a força que nos possibilita a capacidade de ação e de reação e a que legitima a criar uma narrativa do mundo que você vive. Por esse motivo é importante um povo cultivar a memória de quem são e entender sua identidade e o contexto que estão inseridos. Quando o oposto acontece e se nasce em um 8


lugar em que a memória lhe é privada, nós deixamos de analisar as mensagens de maneira crítica e passamos a aderir a ela automaticamente, o que pode ser extremamente perigoso. Essa relação pode ser feita também com o famoso “Mito das Cavernas” de Platão. Nessa analogia, o filósofo nos conta as fases que um ser humano passa para sair da “caverna”, onde ele é refém de diversos mecanismos de controle e de alienação para que seja sempre mantido dentro dela. Porém, quando esse ser adquire senso crítico, ele avança em cada fase da alienação, até finalmente sair. E é isso o que a memória nos proporciona, artifícios para nos enxergar dentro da alienação e manipulação, para, assim, buscar sempre sair dela.

1. KRENAK, Ailton. Vozes da Floresta. Le Monde Diplomatique Brasil, 2020. (59 min.). Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=KRTJIh1os4w&t=2651s. Acesso em: 10 jan. 2021

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O que resgatar significa para você? Para muitas pessoas, resgatar é salvar algo ou alguém que não poderia se salvar sozinho. Essa ideia de que alguém precisa ou deve ser resgatado coloca o “salvador’’ numa posição de superioridade em relação ao outro. Quem são esses outros ao qual são destinados os tais “resgates”? Esse tipo de narrativa pode ser muito perigosa ao tratar grupos de pessoas como “necessitados” ou estigmatizar os modos de vida que eles possuem. Isso, dentre várias outras formas, legitima a interferência de poderes externos nos indivíduos rotulados como indigentes e vagabundos e até mesmo em povos originários, sob o argumento de ajuda. As pessoas “resgatadas”, contra a sua vontade ou não, são inseridas em um modelo econômico e social com o pretexto de saírem da condição denominada a elas de “pobreza”. Não significa que não existam situações reais em que o resgate seja necessário, como quando os bombeiros resgataram as vítimas do rompimento das barragens em Brumadinho-MG e em Mariana-MG. A questão aqui são os momentos em que esse nome é usado para tornar legítimo, no olhar da sociedade, que atitudes invasivas e desrespeitosas à diversi11


dade humana continuem acontecendo. Quem disse que essas pessoas querem ser resgatadas? Será que elas querem deixar de viver da maneira que vivem para se adequar à maneira ocidental de ocupar o espaço? A ativista e escritora Chimamanda Adichie1 alerta sobre os perigos de uma história única. Ao longo da trajetória do ser humano na Terra, é comum que sejam conhecidas histórias que favorecem quem as conta, o que significa que uma narrativa não é suficiente para descrever ou determinar o que é ou foi a vivência de um povo. Adichie nos mostra que ao contar uma história única sobre um local ou uma sociedade repetidamente, acaba-se descartando toda a complexidade e potencialidades desses lugares, resumindo-os a uma única definição e ponto de vista. Quando um povo ou uma etnia são diagnosticados pelos poderes vigentes, por exemplo, como pobre e carente, ou até mesmo como preguiçosos e selvagens, nós os destituímos de todas as outras características que eles têm, tirando deles sua dignidade e os colocando em uma posição de sub-humanidade. Portanto, o que seria a escassez? Alguns podem relacionar a falta de dinheiro, outras podem dizer que seja a carência de recursos... de qualquer maneira, todos tratam a ideia da falta. O membro do grupo Al Borde, David Barragán2, conta sua experiência com essas narrativas, que não passam de versões da mesma história, sobre o conceito de escassez. Ele relata que, para as pessoas do meio urbano, os indivíduos que moram em áreas rurais sofrem da escassez, nesse caso de dinheiro, ou seja, a cidade é vista como rica. Ao mudar a perspectiva, porém, para a qualidade, procedência e acesso a alimentos naturais e orgânicos, a população rural se destaca, pois eles mesmos plantam o que comem e pescam os próprios peixes, enquanto que na cidade, é bem mais difícil encontrar tais alimentos frescos e sem algum tipo de aditivo, 12


isso quando os preços não são altos, limitando ainda mais o acesso. Então, onde está a escassez? Ela muda, quando a história contada muda. O mesmo se aplica a questões acerca de necessidades e pobreza. O que são as necessidades básicas? Elas se aplicam a todas as realidades? E a pobreza, se resume apenas ao contexto econômico? Nas palavras de Majid Rahnema4, ex-ministro iraniano e ex-membro do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Seguindo um consenso alcançado nas elites do mundo sobre o diagnóstico da doença (subdesenvolvimento e falta de renda), bem como sobre sua cura (desenvolvimento econômico e tecnológico), um pelotão de peritos, políticos, planejadores, burocratas, sócioeconomistas e até mesmo antropólogos, começaram a agir como ‘pauperologistas’, procurando aperfeiçoar o discurso e o exercício relativos à pobreza mundial.

Essa cultura desenvolvimentista define quais devem ser nossas necessidades, desejos, o que somos no contexto mundial e como devemos viver. Somos a cada dia ensinados a sermos mais parecidos com os países tidos como desenvolvidos e menos parecidos com a nossa própria cultura e com as nossas formas de viver. Como afirmou Rahnema no “Dicionário do Desenvolvimento - guia para o conhecimento como poder”4, O ‘mundo único’ proposto procura substituir os milhares de mundos reais e pulsantes por um único não-mundo, uma empresa econômica totalmente acultural e amoral,

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cujo único objetivo é servir aos interesses de seus acionistas.

Por esse e tantos outros motivos, não podemos nos enganar acreditando que a mesma história contada em diferentes versões são narrativas diversas, quando, na realidade, elas retratam a mesma ideia. Daí, também, a importância das referências. Pois, se você procura ou tem a seu dispor apenas materiais que contam a mesma história, então sua concepção dos temas abordados perderá a riqueza de detalhes deixados de lado e se resumirá a apenas ao que lhe foi dito. Um exemplo disso, é colocado pela professora indígena Creuza Krahô3. Ela relata que os antropólogos ao pesquisar os Krahô só entrevistam os homens. Desse modo, as histórias contadas não são totalmente verídicas pois diversas ações são as mulheres que realizam e os homens que contam. Como as histórias do povo Krahô estariam completas, se somente os homens as contam? A professora nos responde, não estão completas. E não estarão enquanto as outras histórias desse povo não forem contadas também pelo ponto de vista das mulheres. Por isso, é importante sempre a busca por referências que fogem do convencional, para assim, ampliar o imaginário e fortalecer a memória crítica. E dessa forma, não reproduzir a dinâmica de poder hegemônica no mundo, em que o ser desenvolvido, ocidental, branco e escolarizado, tenha sempre o poder da fala e defina quem é o outro e quais são suas necessidades melhor que ele mesmo. Afinal, trazendo a reflexão para o ramo do projeto, o arquiteto conhece as necessidades e os desejos melhor que quem vive no lugar? Ou esses indivíduos têm a autonomia de eles mesmos definirem isso, contarem suas próprias histórias?

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1. ADICHIE, Chimamanda. The danger of a single story. Tedglobal, 2009. (19 min.). Disponível em: https://www.ted.com/ talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_ story#t-52926. Acesso em: 05 jan. 2021. 2. BARRAGÁN, David. Arquitectura e Innovación Social. Archivo de Ideas Recibidas, 2020. (34 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7LgIABvImuE&feature=emb_title . Acesso em: 06 jan. 2021. 3. KRAHÔ, Creuza Prumkwyj. Mulheres-cabaças. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 11, página 110 - 117, 2017. Disponível em: https://piseagrama.org/mulheres-cabacas/. 4. SACHS, Wolfgang (ed.). Dicionário do desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vorazes, 2000. 399 p. Tradução de: Vera Lúcia M. Joscelyne, Susana de Gyalokay e Jaime A.Clasen.

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Estamos todos no mesmo barco? Vemos muitas pessoas afirmarem que sim, que é uma reação em cadeia e, eventualmente, aquilo que gerou consequências ruins, seja o que for, alcançará aqueles que estão no topo. Essa afirmação nos faz refletir, será que quem está desfrutando da sua alta posição política ou social vai ser realmente afetado? E se sim, é no mesmo grau que o restante da sociedade? A atual pandemia de COVID-19 nos fez enxergar que, apesar de todos em algum momento serem atingidos pela epidemia global, as pessoas que mais sofrem com toda certeza não são as mais favorecidas econômica, social ou politicamente. Na verdade, esses indivíduos possuem recursos a seu constante favor, para, quando se encontrarem em momentos de crise, não sofrerem as mesmas consequências que o resto da população, que se encontra em lugares mais “baixos” da hierarquia de prioridades, sofre. Portanto, de quem são os lugares do mundo? Eles claramente são de quem paga por eles, mesmo sabendo que deveriam ser de todos. Está cada vez mais claro que poucas são as pessoas que têm o poder de contar a sua própria narrativa e escolher seu próprio destino no mundo em que vivemos. Não é de hoje 17


que assistimos indivíduos considerados pela sociedade como parte da sub-humanidade, terem sua história silenciada, seu modo de vida extinto e seus recursos destruídos. Vemos essa cultura do desenvolvimento consumindo o mundo e suas riquezas e tomando para si, como se fosse algo que pode ser tomado. Ailton Krenak2 alerta que essa abstração da natureza e dos seus habitantes, leva às corporações a agirem impunemente e a justificarem sua interferência no planeta, como se ele fosse uma matéria plástica que pode ser puxada e esticada. A terra é tida como algo que pode ser comprado, como um simples objeto, quando na verdade ela faz parte de um organismo vivo muito maior e extremamente essencial para nossa existência. E são esses e tantos outros exemplos que mostram que não estamos no mesmo barco, talvez na mesma tempestade. A diferença é que uns têm os recursos para se salvar e sair ilesos, enquanto que outros vêem seu barco virar junto com a próxima onda que passa. Isso nos faz questionar, também, o que pode ser feito para mudar essas dinâmicas hegemônicas de poder. Como uma pessoa pode mudar uma sociedade? Às vezes, acreditamos que o que está ao nosso alcance é pouco e a diferença no mundo, seria, da mesma forma, quase mínima. No documentário “Dirt! The Movie”1, vemos um conto sobre uma floresta que está pegando fogo, e os animais que vivem nela, encurralados. Eles, muitas vezes sendo animais maiores, acreditavam que não havia nada que pudesse ser feito e, portanto, permaneciam paralisados. Um pequeno beija-flor, porém, vendo toda a situação, gota por gota, foi tentando apagar o fogo, enquanto animais bem maiores que ele e que poderiam carregar muito mais água, estavam só olhando a floresta queimar. Esse curto conto, nos faz pensar em quem queremos ser: os animais encurralados e que não vêem solução para o problema, ou o pequeno beija-flor, que mesmo de gota em gota, 18


busca dar o seu melhor para apagar o fogo? Uma iniciativa, mesmo parecendo pequena, pode ter um potencial enorme. Krenak2 afirma isso, através do que ele coloca como micropolítica, ao falar que: Em diferentes lugares, tem gente lutando pra esse planeta ter uma chance, por meio da agroecologia, da permacultura. Essa micropolítica está se disseminando e vai ocupar o lugar da desilusão com a macropolítica. Os agentes da micropolítica são pessoas plantando horta no quintal de casa, abrindo calçadas para deixar brotar seja lá o que for. Elas acreditam que é possível remover o túmulo de concreto das metrópoles. (p.21).

E não é só isso que pode ser feito, existem milhares de micropolíticas que podemos exercer em oposição a essa macropolítica vigente. E assim, de gota em gota, vamos apagando esse fogo que está queimando nossa diversidade, nossas culturas, nossa autonomia… E você, o que acha que pode fazer na sua realidade?

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1. DIRT! The Movie. Direção de Bill Benenson e Gene Rosow. Produção de Bill Benenson, Gene Rosow e Eleonore Dailly. Roteiro: Gene Rosow, Linda Post e Laurie Benenson. Música: Jorge Corante. [S.I]: Common Ground Media, 2009. (86 min.), son., color. Legendado. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=l-3uDm9O0PA. Acesso em: 18 dez. 2020. 2. KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Schwarcz, 2020. 126 p.

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Você que está inserido neste ramo já deve ter parado para perceber o quão diferente são as grades curriculares dos cursos de arquitetura e urbanismo. Entretanto, existe uma coisa que nós podemos ter certeza: a academia não ensina tudo. Mas você já parou para pensar no que ela ensina e não ensina? Ou se existe arquitetura fora da Academia? Ou até se o ensino que a gente tem hoje é relacionado à realidade de hoje? Uma das grandes discussões frequentes sobre esse assunto é em relação ao que você aprende na academia e a prática da profissão. É muito comum que o estudante, cheio de conceitos teóricos e referências técnicas se choque com o mercado de trabalho bem diferente do que aprendeu. O grande problema aqui é a falta de prática, do fazer. Existem alguns projetos como o Rural Studio, projeto pedagógico da Escola de Arquitetura da Universidade de Auburn, no Alabama, Estados Unidos, que inserem o fazer no cotidiano do estudante, Ele reúne estudantes e professores em um laboratório de ensino, pesquisa e extensão, onde projetos são desenvolvidos com a participação da comunidade e posteriormente a construção de casas e espaços

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coletivos para assentamentos pobres do sul do país é realizada pelos estudantes.2

Além disso, o grupo equatoriano de arquitetura Al Borde1 discute muito sobre essa questão, por acreditar que é necessário que o estudante tenha contato com as comunidades, com a construção na prática, com o fazer compartilhado, para que assim eles aprendam a construir para necessidades reais. Relacionado a isso, eles criaram um programa de residência, em que estudantes do mundo todo são selecionados para viver com eles durante seis meses e entender como funciona todas as áreas dos projetos, desde as decisões internas até a construção com as comunidades, para que assim, eles aprendam o que muitas vezes as universidades não ensinam. Isso não significa dizer que o conhecimento técnico não é importante, ele é, mas não é único e não é tudo. É um exemplo claro da busca por desaprender para aprender, não é deixar o conhecimento que nós tínhamos mas entender que ele não serve para todas as situações e não é uma verdade inquestionável. Existem coisas que só aprendemos fazendo, coisas que só aprendemos quando quem faz nos ensina, nos conta, nos convida a trabalhar juntos em prol de um produto que faça sentido. O conhecer acadêmico, cuja consolidação está diretamente relacionada com a consolidação da ciência, nos faz acreditar que basta aprender o que está nos livros e o que os professores falam para nos tornarmos bons profissionais. No entanto, isso faz com que esqueçamos dos saberes tradicionais, da realidade, do que realmente importa para as pessoas com as quais estamos nos relacionando através do nosso trabalho. Agindo assim, damos a entender que o conhecer acadêmico é mais legítimo que o conhecer tradicional. Afinal, a Academia está a serviço de quem? Qual seria o motivo para todo o desprezo a essas outras formas de conhecimento? 23


1. AL BORDE. Hacer Mucho Con Poco. (85 min.). son., color. Legendado. Acesso em: 7 jan. 2021. 2. LOTUFO, Tomaz Amaral. Um novo ensino para outra prática: Rural Studio e Canteiro Experimental, contribuições para o ensino de arquitetura no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em Habitat) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/D.16.2014.tde-29052014-153721. Acesso em: 26 jan. 2021.

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Você já deve ter se deparado com alguma live ou publicação que questionava como será a habitação pós pandemia. Entretanto, antes de pensar em habitação, temos que pensar em como será o ser humano pós pandemia. Ele vai continuar vivendo de forma degradante como antes? Ou vai mudar? Será que todos esses meses em que poucos passaram dentro de casa foram em vão? Nós continuaremos contribuindo para esse planeta precário? Não adianta a gente mudar a maneira como vamos construir uma casa, um restaurante, um prédio, colocando salas de higienização e uma série de tecnologias, se não mudarmos o nosso comportamento perante ao meio ambiente e à sociedade. Essa busca incessante pelo progresso nos trouxe até aqui. E para onde ela vai nos levar? Qual o futuro da nossa humanidade se continuarmos agindo assim? Ailton Krenak, em seu livro “A vida não é útil”1 coloca que nós não somos a humanidade que pensamos ser e somos sim capazes de destruir o planeta, como talvez já estejamos até fazendo. A prepotência do ser humano de achar que as suas ações não possuem consequências, que o seu desenvolvimento econômico, o famoso “crescer na vida” acima de tudo e de todos, nos trouxe até aqui, como podemos ver no trecho 26


abaixo: Durante milhares de anos, em diferentes culturas, fomos induzidos a imaginar que os humanos podiam agir impunemente sobre o planeta e fomos reduzindo esse organismo maravilhoso a uma esfera composta de elementos que constituem o que chamamos de natureza - essa abstração. Construímos justificativas para incidir sobre o mundo como se fosse uma matéria plástica: podemos fazê-lo ficar quadrado, plano, podemos esticá-lo, puxá-lo. Essa ideia também orienta a pesquisa científica, a engenharia, a arquitetura, a tecnologia. (p.100).1

Junto a isso, o Dicionário do Desenvolvimento: Guia para o conhecimento do poder3, um livro que traz uma série de desconstruções sobre palavras usadas diariamente pelo desenvolvimentismo, mais conhecido por nós como capitalismo, e que nem percebemos suas reais condições - pode nos ajudar a entender um pouquinho do porquê fazemos isso. A partir dele, podemos perceber uma série de questões colocadas no nosso dia a dia e que nem questionamos. Uma das ideias que associamos a algo extremamente positivo é a palavra sustentabilidade. A palavra, está presente cada vez mais no mundo arquitetônico e já funciona como um slogan de um mundo melhor conforme sua própria definição no dicionário: “visa equilibrar a preservação do meio ambiente e o que ele pode oferecer em consonância com a qualidade de vida da população”. Entretanto, na maioria das vezes o seu significado é desviado para orientações econômicas. Krenak também alerta sobre essa palavra através do que ele chama de mito da sustentabilidade, conforme colocado pelo autor no seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”2, essa sustentabilidade 27


tão exaltada, não existe. Foi desenvolvida pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. E você? Já parou para pensar que muitas vezes os materiais, as técnicas e a construção não são necessariamente sustentáveis para o meio ambiente e consequentemente para a sociedade? Quem essa sustentabilidade realmente sustenta? Esse progresso que nós tanto queremos, nos deixa cada vez menos cientes dos nossos atos, e na arquitetura isso não é diferente. Quem foi que disse que eu não posso ter uma pia no meio da minha sala? O que eu acho bonito? Será mesmo que sou eu que acho bonito? Quem foi que disse a forma como eu devo habitar a terra? Quem foi que disse que é preciso de dinheiro pra fazer tudo? Quem foi que disse o que eu devo fazer? E assim vai. Poderíamos ficar aqui dias questionando uma série de atos enraizados na sociedade e não questionados por nós mesmos em vista de todo esse sistema de dominação. É claro que a arquitetura não fica longe disso e cabe a nós pensar se o que estamos fazendo, construindo, reproduzindo, é o que realmente faz sentido. Ou será que é o que todo mundo faz? O que podemos adiantar é que não existe uma solução que funciona para todos lugares, vivemos em sociedades distintas, com necessidades distintas que mesmo com todo esse processo que visa a homogeneização, ainda é diferente. E agora, o que o progresso significa pra você?

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1. KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Schwarcz, 2020. 126 p. 2. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Schwarcz, 2020. 102 p. 3. SACHS, Wolfgang (ed.). Dicionário do desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vorazes, 2000. 399 p. Tradução de: Vera Lúcia M. Joscelyne, Susana de Gyalokay e Jaime A.Clasen.

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É uma pergunta difícil. Quando nos deparamos com a Arquitetura, entendemos que ela é muito mais ampla do que parece ser, porque a forma que escolhemos habitar a terra influencia diretamente nas relações expressas na sociedade em que vivemos, quais são seus modos de operar. A arquitetura influencia como construímos e enxergamos a cidade e o mundo ao nosso redor. Ela representa ao mesmo tempo conceitos intrínsecos de um único indivíduo e de uma sociedade inteira. É o modo que espelhamos o rumo que nosso planeta está tomando e é onde reafirmamos muitos estigmas presentes no contexto contemporâneo. Existem aqueles que resumem arquitetura a um único ato, o construir. Essa visão de que a única forma de um arquiteto solucionar um problema é construindo guiou a maioria dos pensamentos relacionados à Arquitetura nos últimos tempos. Ion Morató em seu texto “Não fazer nada, com urgência”3, discute essa questão através de dois exemplos, que nos mostram que a arquitetura vai além da capacidade de construir. O título do texto é inspirado na fala do Jaime Lerner, que ao assumir a prefeitura de Curitiba, descobriu uma petição para que a prefeitura não interferisse em uma região em que realizava obras, pois os moradores estavam preocupados de que 31


as máquinas acabassem soterrando um pequeno manancial. Segundo Morató, o valor e a capacidade de abstenção são imprescindíveis para a prática da arquitetura. Esse outro modo de olhar, praticamente não falado nas discussões sobre a profissão, demonstra que nem sempre precisamos construir ou “modernizar” algo, talvez o que já existe só precise ser reconhecido e valorizado e coloca a prática arquitetônica como algo que vai além da prestação de serviços. Esse olhar moderno junto com essa ideia incessante de progresso, faz com a arquitetura se constitua de construções e ações rasas que, na maioria das vezes, não significam nada para as pessoas do local e comprometem a sobrevivência do meio ambiente. É possível relacionar isso à cidade de Altamira, no Pará, local escolhido para a construção da tão sonhada, por poucos, Usina de Belo Monte. De acordo com a jornalista Eliane Brum1, para a construção da hidroelétrica, a população ribeirinha foi expulsa de suas moradias, e colocada em casas que não se dialogam com a realidade das pessoas, que estavam acostumadas a viver em contato com a natureza, junto a cultura das redes. Elas foram colocadas em casas “modernas”, pra não dizer precárias, que não dialogam em nada com a cultura dessas pessoas. Podemos nos questionar então, a real necessidade de expulsar todas essas pessoas de seus locais em prol de construir um projeto, anunciado como uma grande obra de engenharia que iria trazer o progresso para aquela região, mas como é colocado pela própria jornalista, se aproxima mais de um crime ambiental. O grupo de pesquisa MOM (Morar de outras maneiras) da UFMG através do artigo Architecture as Critical Exercise: Little Pointers Towards Alternative Practices2 define arquitetura como todo espaço transformado por trabalho humano. Essa é uma definição extremamente ampla que valoriza o processo e não o produto. Isso significa romper com a lógica atual, que é predominantemente excludente, abrindo 32


mão das ideias de autoridade e integridade do trabalho arquitetônico assim como do pressuposto de que usuários e construtores são passivos do processo, devem concordar com as ideias do arquiteto, e não possuem nada para acrescentar na prática. Resumidamente, esse conceito rompe com a ideia do “Arquiteto Deus” que considera o seu conhecimento tão excepcional que acredita que é o único capaz de fazer as atividades que faz, deixando de ouvir as pessoas que também fazem parte do processo, contribuindo para uma série de desvalorizações, seja da cultura, da técnica ou até mesmo da própria natureza. Nesse sentido, obviamente não é nada interessante para a classe considerar que todo espaço transformado por trabalho humano é arquitetura, pois teriam que abrir mão de toda essa relação vertical de poder. Você pode estar se perguntando, mas o que os arquitetos fariam então? O que sobraria para eles? A principal ação do arquiteto seria proporcionar autonomia para as pessoas envolvidas no processo. Os processos investigados pelo grupo até o momento do texto se baseavam em três etapas. Primeiro o exercício teórico e prático da crítica, seguido da mediação, se e quando ela for necessária e terceiro, a produção de interfaces ou instrumentos para que os autores sejam capazes de reconhecer suas próprias ações críticas no espaço. É uma nova forma de se pensar arquitetura, não necessariamente anula as outras, mas mostra um novo caminho com novas possibilidades. Encarar nosso ofício como um potencial formador de autonomia é essencial para tornar a relação arquiteto-cliente mais rica, menos impositiva e mais respeitosa. Quando o profissional possui a sensibilidade de enxergar diferentes realidades, auxiliando na legitimação de modos de vida ao invés de impor uma visão hegemônica de uma cultura ocidental homogeneizadora, ele possibilita a preservação da diversidade, da troca de saberes e de fortalecimento da memória de 33


um povo. A arquitetura, então, possibilita ferramentas para os indivíduos prosperarem à sua maneira e seguindo suas próprias tradições, em contraposição a uma solução fechada e definitiva. Ela permite que as próprias pessoas continuem com o processo de construção e de legitimação do seu próprio fazer. E agora, o que você acha que é arquitetura? Qual seria então o real papel da do arquiteto perante a sociedade para você?

1. CÓRTEX - Vivendo o Fim no Centro do Mundo. Um passeio com Eliane Brum em Altamira. Direção de Susana Jeha. Produção de Susana Jeha. Altamira: Estúdio Fluxo, 2019. (86 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ghIL7ExjaxQ. Acesso em: 23 jan. 2021. 2. KAPP, Silke; BALTAZAR, Ana Paula; MORADO NASCIMENTO, Denise. Architecture as critical exercise: little pointers towards alternative practices. Field: a free journal for architecture, v. 2, n. 1, pp. 7–29, 2008. Disponível em: http://www.mom. arq.ufmg.br/mom/01_biblioteca/arquivos/kapp_08_architecture_as_critical_exercise.pdf. 3. MORATÓ, Ion Cuervas-Mons. Não fazer nada, com urgência. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 02, página 42 - 43, 2011. Disponível em: https://piseagrama.org/nao-fazer-nada-com-urgencia/.

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Na sociedade atual, estamos cada vez mais vivendo na correria, não refletimos mais sobre o que estamos fazendo e como estamos fazendo. Não sabemos nem mesmo de onde vem o que comemos, quem dirá o processo das coisas que fazemos. Nós estamos preocupados com o resultado e não em como vamos fazer. Esse é, em muitas situações, o maior problema. Acabamos fazendo do jeito mais fácil, do jeito que todo mundo faz, do jeito que polui mais, que degrada mais o meio ambiente, que acaba com a cidade, com a vida. Os dois grupos de arquitetura, o Sem Muros e o Al Borde, que nos inspiraram para produzir esse material, são exemplos de uma alternativa a isso. Para eles, o fazer importa, o processo importa, o como fazer importa. Podemos nos perguntar, é possível fazer muito com pouco? É possível usar da melhor maneira os recursos que nós temos à mão? Usando o Al Borde como exemplo, escritório equatoriano que leva isso quase como um lema, podemos dizer que sim, é possível, mas não é fácil. Seus projetos são marcados pelo fazer que faz sentido, em contraposição ao fazer automatizado. No documentário “Hacer Mucho Con Poco”1, eles exploram esse fazer junto a diversos grupos de arquitetura equatorianos. As discussões vão desde a utilização dos recursos naturais e dos materiais até a trans36


missão dos saberes entre a comunidade e o arquiteto. Um dos projetos que exemplificam um pouco de tudo que eles acreditam é a Escola Nueva Esperanza5 realizada na Comunidade de Puerto Cabuyal no Equador, uma comunidade localizada na praia, em um local distante de centros urbanos, tendo a pesca e a agricultura como base para suas atividades. Antes do projeto, realizado em 2009, existiam poucas escolas na região e todas elas eram construídas como blocos retangulares de concreto, que não dialogavam em nada com a cultura e a prática realizada no local. Em contrapartida, o projeto realizado pelo Al Borde usa os mesmos materiais e padrões de construção que a comunidade já utilizava há anos. Estruturas de madeira e paredes de bambu eram vistas frequentemente. O projeto conforme colocado pelo grupo: Não se trata de ganhar dinheiro para comprar coisas, a fim de satisfazer a fome. Trata-se de entender a vida, atendendo as necessidades de alguém com os recursos que possui: a mente e o corpo. Os recursos que tivemos foram os que definiram o projeto: materiais de forma irregular. Pesca e ferramentas agrícolas. Trabalhadores fortes e capacitados, que não entendem a precisão em termos de centímetros. O apoio dos voluntários da cidade que entendem centímetros, mas não possuem experiência de trabalho. (Al Borde)2

O Sistema utilizado era baseado na autonomia e na discussão com a comunidade. Cada pessoa tinha uma tarefa preferida na construção e tornou-se involuntariamente bom no que fazia, esse conhecimento era aperfeiçoado e por fim compartilhado. Esse sistema permitiu que a comunidade 37


parasse o processo quando achasse necessário. O projeto foi realizado em uma semana, após isso, a comunidade não precisava mais dos arquitetos. Depois de um tempo, quando voltaram ao local, eles já haviam abraçado o sistema conforme colocado pelos arquitetos: “Uma nova etapa havia sido construída, espaços foram modificados com pisos de madeira e paredes de bambu. As peças de cerâmica que as pessoas encontraram na praia foram adaptadas para as paredes inclinadas. Como um museu que lembra as culturas passadas.”5. O projeto teve um efeito imediato sobre a população local, ao mesmo tempo que valorizou seus materiais e técnicas, valorizou sua história, sua cultura e a própria forma como vivem e constroem. A escola a partir de então mudou totalmente a forma de aprendizagem das crianças, já que se tornou um lugar para a educação que incentiva o aprender através do fazer conforme relato de um morador: Na nossa comunidade de pescadores, é a coisa mais bonita, ter uma escola com uma forma de barco onde todos os dias, pular nela e se preparar para navegar e descobrir novos mundos a partir de seu próprio mundo interno cheio de habilidades e potencialidades. Onde as crianças aprendem ciência e tecnologia, valorizando a vida do campo como ponto de partida, através das aulas ministradas pelo melhor professor de todos, a natureza. (El Profe)2

Além desse projeto, existem diversos outros nos site do próprio Al Borde e no do Sem Muros, que nos mostram algumas das possibilidades de se fazer essa arquitetura que se adequa à realidade das pessoas. Essa forma de fazer nos permite acreditar que existem caminhos alternativos ao que todo 38


mundo faz, e o problema como já mencionado anteriormente, não é fazer o que todo mundo faz, mas fazer sem questionar se é o que realmente se encaixa naquela realidade.

1. AL BORDE. Hacer Mucho Con Poco. (85 min.). son., color. Legendado. Acesso em: 7 jan. 2021. 2. DELAQUA, Victor. Escuela Nueva Esperanza / Al Borde. 10 Mai 2012. ArchDaily Brasil. Acessado 26 Jan 2021. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/01-47958/esperanza-dos-al-borde.

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Sabemos que tudo o que foi abordado transcende a prática, mas se existe um modelo que se opõe ao convencional e é capaz de mostrar uma alternativa para vários pontos discutidos aqui, é a permacultura. Não temos a pretensão de que todos parem de exercer a arquitetura como é hoje, mas sim elucidar modos diferentes de se construir e se viver, tornando-se até opções mais ecológicas e saudáveis para uma sociedade no todo, seja ela em termos de convivência com o ser humano ou com a natureza. Muitos dos pontos trazidos anteriormente, alertam a importância do constante questionamento das dinâmicas de poder e da própria atuação nos tempos atuais. Só assim, manteremos uma consciência crítica e cultivaremos uma relação mais saudável com nós mesmos e com quem ou o que nos cerca. A permacultura, portanto, se torna uma aliada de grande importância na construção de uma arquitetura mais solidária, respeitosa, ecológica e, principalmente, diversa. Isso porque uma das vantagens mais belas dessa prática é a autonomia proporcionada aos grupos locais, possibilitando o uso de materiais e técnicas tradicionais locais no processo. Além disso, se torna um ambiente de constante troca entre os arquitetos e os “clientes”, sem a prevalência de um conheci41


mento sobre o outro. Então, a arquitetura transcende seu conceito de planejamento técnico de uma edificação, e passa a se tornar um meio pelo qual as pessoas podem cultivar seus laços emocionais com a terra e com quem convivem e, ainda, ser uma ferramenta poderosa para preservar a memória de um povo, sendo ela sobre sua história, suas tradições ou até mesmo sua cultura. Em contraposição ao modelo vigente de se exercer a construção, em que o “como fazer” é padronizado e automático; as relações construídas entre o planejador, a mão de obra e o cliente são sempre desniveladas; e o conhecimento privilegiado é sempre o acadêmico, o ecologista Bill Mollison2 define permacultura como: [...] uma filosofia de trabalhar com, e não contra a natureza; de observação prolongada e pensativa em vez de trabalho impensado, e de olhar para plantas e animais em todas as suas funções, em vez de tratar qualquer área como um sistema único.

É uma escolha de vida onde o planejador opta por exercer a arquitetura de forma crítica, horizontal e prazerosa. Como colocado pelo grupo de arquitetura brasileiro Sem Muros, temos que enxergar as pessoas e a nossa prática como fonte de prazer e não como uma ferramenta ou meios para um fim3. Se nos prendermos a essa visão reduzida dos seres e da natureza, estamos nos condenando a viver um conceito mercantilizado de vida, em que tudo e todos só possuem um único significado e valor, o econômico. A permacultura se relaciona diretamente com o que o Sem Muros coloca como Estética da Ética4, a estética do que faz sentido, do que é descoberto a partir da autonomia fornecida aos reais usuários do produto final, baseando-se na experiência e nas necessidades reais. Ela surge como uma 42


oposição a essa estética ocidental, do que todo mundo faz, da tendência, que mesmo não se encaixando nas diversas culturas brasileiras, é extremamente admirada e incentivada pelos meios oficiais, como já mencionado anteriormente. Não podemos ignorar como a estética gera um desnível de poderes. Enquanto o grupo que a definiu é seguido e adorado, quem a segue é sempre visto e tratado em uma posição de inferioridade. Portanto, além de ser um instrumento homogeneizador, é também um mecanismo de favorecimento dos poderes vigentes. Essa dinâmica pode ser vista claramente em padrões estéticos. A cada dia que passa, existe um novo atributo que torna uma pessoa esteticamente bonita, e a cada dia que passa, mais pessoas tentam alcançar isso. É uma constante busca pela perfeição, que se torna ainda mais inatingível. Você pode estar se perguntando, a quem isso favorece? Bom, ao mercado da beleza, que lucra valores exorbitantes todo ano, com produtos, roupas, cirurgias, etc. E continuará lucrando, até que todas as pessoas do mundo, independente da cultura ou lugar de residência, fiquem cada vez mais parecidos. E aí, quando alcançarem, o padrão muda, e novas características serão consideradas belas. A arquitetura se encaixa nisso, pois quando se define uma estética própria de como executar, com quais materiais e como deve ser o resultado final, favorece-se um determinado grupo que lucrará com isso. E o mais importante, coloca em posição inferior todos os outros modos de construir. O Ekoa Park, localizado em Morretes, Paraná, exemplifica um pouco de como a permacultura pode ser aplicada na arquitetura. Dentro do parque, existe um espaço destinado a permacultura, conhecido como Tekôa1, como colocado pelo grupo de arquitetura Sem Muros:

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Tekôa é um espaço de práticas permaculturais integrativas, baseadas em dois princípios: desenvolver uma ecologia prática e experimentar soluções de baixo impacto ambiental com impacto social positivo, inventando novas formas de habitar, construir abrigo e produzir alimento. O Sem Muros acredita que para uma vida ecologicamente correta e socialmente justa, as pessoas precisam desenvolver autonomia; para isso, as técnicas utilizadas são simples, facilmente replicáveis e apropriadas ao contexto ambiental do território em que o projeto está inserido. Os projetos arquitetônicos realizados nessa região do parque, seguem esses princípios e são caracterizados pelo uso de materiais disponíveis no território, técnicas simples e construção baseada na prática colaborativa, valorizando os saberes tradicionais e equilibrando no projeto as questões ambientais, sociais e econômicas. Iniciativas como essas do Ekoa Park afirmam vários dos benefícios em se utilizar a permacultura junto a prática arquitetônica, a partir do momento que eles entendem arquitetura como algo maior que uma simples construção, eles permitem que as pessoas realmente se sintam parte daquele lugar, se identificando com as técnicas, os materiais e o processo. Para saber mais sobre a permacultura e como ela pode ser utilizada junto a arquitetura, confira o anexo deste livreto, onde realizamos um Estudo Preliminar da aplicação dessa cultura permanente na Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFMG.

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1. ARRUDA, Marcela; LOTUFO, Tomaz. Tekôa: um modo de habitar que integra práticas de permacultura, bioconstrução e produção de alimentos 03 Fev 2019. ArchDaily Brasil. Acessado 26 Jan 2021. Disponível em: https://www.archdaily.com. br/br/910648/tekoa-um-modo-de-habitar-que-integra-praticas-de-permacultura-bioconstrucao-e-producao-de-alimentos. 2. GHISLENI, Camila. O que é permacultura e como ela se aplica à arquitetura? 10 Dez 2020. ArchDaily Brasil. Acessado 26 Jan 2021. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/ br/952570/o-que-e-permacultura 3. Sem Muros Arquitetura Integrada. A erotização da prática arquitetônica. 15 Mai 2020. ArchDaily Brasil. Disponível em :https://www.archdaily.com.br/br/939541/a-erotizacao-da-pratica-arquitetonica. Acesso em: 26 Jan 2021. 4. Sem Muros Arquitetura Integrada. A erotização da prática arquitetônica. Palestra realizada por Ana Beatriz Giovani para o Centro Acadêmico de Arquitetura e Urbanismo Lina Bo Bardi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GMQqvSFUZ0U&feature=emb_err_woyt ISSN.

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