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Catalogação na fonte: Renata Santana CRB 15/689 - PB
P745 Poesia: uma lente para ver o mundo [recurso eletrônico] / Katarine Araújo (org.) – Recife - PE: [s.n.], 2022. Dados eletrônicos (1 arquivo : 2,67 MB) Livro eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web: encr.pw/rkq1M ISBN e-book: 978-65-00-43255-8 1. Literatura Brasileira. 2. Poesia. 3. Edital Aldir Blanc. I. Título.
CDD 869 CDU 82-1
ORGANIZAÇÃO Katarine Araújo
PRODUÇÃO EXECUTIVA Mollusca Produções
POETAS Amanda Amorim Isadora Luisa Tavares Jaileila de Araújo Menezes Jess Delabari Keila Sírio Campaneli Lauren Elisa Flores Leonardo Delgado Leticia Cardoso Moreira Lorena Nery Borges Luana Antero Maria Eduarda Omena Mariana Cambirimba Mayara Pérola Maciel dos Santos Simoni Giehl Tais Milena Tatiana Barreto William Johnson
ASSESSORIA DE IMPRENSA Passa Palavra Comunicação REVISÃO Passa Palavra Comunicação PROJETO GRÁFICO & DIAGRAMAÇÃO Ana Elisa Lins ILUSTRAÇÃO Tatiana Barreto
Sumário 04
Apresentação
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Prefácio
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Amanda Amorim
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Isadora Luisa Tavares
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Jaileila de Araújo Menezes
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Jess Delabari
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Keila Sírio Campaneli
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Lauren Elisa Flores
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Leonardo Delgado
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Leticia Cardoso Moreira
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Lorena Nery Borges
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Luana Antero
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Maria Eduarda Omena
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Mariana Cambirimba
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Mayara Pérola Maciel dos Santos
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Simoni Giehl
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Tais Milena
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Tatiana Barreto
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William Johnson
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Apresentação Este e-book é resultado da primeira edição da oficina “Poesia: uma lente para ver o mundo”, que teve como objetivo facilitar o acesso à subjetividade poética dos participantes, provocando o olhar para o cotidiano e revelando a poesia escondida como um tesouro por entre as brechas dos dias. O verdadeiro produto final desta experiência não pode ser tocado, mas continua e continuará reverberando por muito tempo entre todos e todas que participaram dos encontros, onde cada um é fagulha do verso a iluminar muitos outros por aí. De todo modo, o leitor e a leitora que se puserem diante deste livro poderão experimentar um pouco da grandeza dos que se propõem a repensar o mundo.
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Prefácio Como em uma ciranda, conectados por cabos invisíveis, escritoras e escritores de mais de 12 cidades do país se encontram no mesmo ponto de partida: o mapa da jornada poética. Poesia se faz ao caminhar e o caminho se descobre descobrindo. Qual a razão de ser da poesia? Qual a função da arte? Como imaginar a vida sem ela? Pensar, ler, reler, escrever, ouvir e lapidar (ou não) a própria criação. Pensar o poema como encontro, estabelecer as trocas necessárias para firmar sua própria voz. Colocar a lente da sutil sabedoria poética para ler o jornal do dia e daí extrair a poesia, ainda que a notícia seja amarga como a guerra. A grandeza de testemunhar 17 autoras e autores em diferentes processos e momentos, vivendo uma pandemia no Brasil de 2022, conversando e produzindo poesia durante quatro semanas. O presente livro é a primeira experiência de publicação da maioria dos que o compõem, já para outros, é mais um capítulo importante de suas trajetórias literárias. Mas para todos, certamente, é o souvenir de dias preenchidos de esperança no futuro e nas mudanças que desejamos para nós e para o mundo, através da atenção plena ao que nos faz humanos: a arte. Na presente obra há o convite para colocar a lente de ver poesia no mundo e há também 17 portas para visitar 17 mundos inteiros e, em cada um deles, passear os dedos em suas curvas e prateleiras cheias de sensibilidade, crítica e alegria. A poesia é um convite para resistir à dureza imposta pelo mundo do presente momento, e essa resistência certamente se faz de luta e de beleza desenhada em palavras.
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Você fez questão de dobrar o mapa de modo que nossas cidades distantes uma da outra exatos 1720 km fizessem subitamente fronteira Ana Martins Marques
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O QUE É, O QUE É? Amanda Amorim
É verbo Objeto Alguém Ninguém Quem? É interrogação e resposta Dependendo de quem vê É a dualidade existente Tão pouco importa a idade A poesia permeia todas as fases.
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PARTICULAR CASA SAGRADA Amanda Amorim
Encontro em mim Uma casa sacra Composta por choros e risos Preces Vivo neste universo terreno Mas caminho Para alcançar o reino celestial Essa morada sagrada Sabe de meus medos e segredos Confidenciados em meu interior.
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POESIA DE HOSPITAL Isadora Luisa Tavares
Um dia eu respirei [a] Ar Ah! Alguém chama a enfermeira! Alguém chama a enfermeira. Alguém chama a enfermeira? Não é preciso Mais Já me sinto vivo Mas Vocês... Agora eu vejo porque morrer negar-me-ia Ah, respira! A poesia.
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SALGADO Isadora Luisa Tavares
Uma lágrima escorreu Pesada Pingando Fez uma poça Lembrei do curumim brincando Alegre A cantar Acalanto Na mão pesa um diploma Sofrido Seco Igual sertão Espere seu moço O que “tá” acontecendo? Alguém pisou n’aquela água E me espirrou ardendo Nem tudo na vida é sofrido Mas quanto vale a sucessão? Minha marca ficou no tempo Sem marco para a ação Ainda canto assossego Ainda luto agora E a felicidade que outrora Se fez morada lá fora Ainda vive aqui dentro
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PEQUENAS URGÊNCIAS Jaileila de Araújo Menezes
Ei, menina! Você - que já carrega outra no colo por que fica aí a olhar o tempo? Não vê que o dia corre a pia vaza a comida esfria... Ei, menina! Cadê a roupa que deveria estar limpa e bem aprumada no corpo da tua cria? Ei, menina! Te segura na urgência do tempo! Tu não escutas o latejar dos dias? Ei, menina! Ficas aí com cara de boba vendo nuvens passar.... pareces até perdida entre o céu “pr’além” do mar.... Ei, menina! Por que de vez em quando tu desliza um lábio no outro em cumplicidade com a brisa? Conta pra mim: o que te toca sorrateiramente a pele, fazendo cada pelo ascender? O que te torna nascente em meio a tanta aridez? Ei, menina! Conta pra mim: que brecha é essa da vida que tu cria entre os instantes de agora? Ei, menina! Me leva contigo!
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DORES DE GUERRA Jaileila de Araújo Menezes
“Não é que não nos importemos com a guerra na Ucrânia. Nos dói muito” Muito nos dói também a guerra de cá do mundo onde a batalha é sempre sangrenta A incansável guerra daqui toca forte em pretos corpos Nos morros ou no asfalto Aqui muitas mãos vivem ao alto Esticadas noite e dia clamam pelo tilintar de pobres moedas suplicam para a fome cessar Mas não há trégua O oco da falta chora como uma cuíca em lamento E lá de dentro o vácuo se expande Lá onde o papelão vira casa O mundo dá os ombros, sem dar os ouvidos Aqui o samba está triste O mestre-sala não alcança um digno abre-alas E já faz tempo que nossa porta-bandeira rodopia sem maestria Porque aqui, desse lado de cá do mundo, a guerra nunca deu passagem para nossa soberania.
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POESIA GARRAFAL Jess Delabari
respiro arrebatado costura visceral mergulho derramado pausa espantosa fluxo de fogo fôlego de água paixão de carne travessia de salvação dor lúdica troca perturbada escuridão reflexiva luz desatada corte transformativo no interior da percepção em letra miúda
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CARNEVAL, SIR? Jess Delabari - o que é? - a crítica da crítica - o quê? - da crítica! na passarela do samba passa boi passa boiada passa emenda projeto lei e a guerra aqui contra os povos indígenas ela é legal na passarela do samba passa trator passa máquina passa fogo, sangue, luto e o solo daqui palco de guerra ele tá pronto pra plantar a soja que alimenta a boiada exportada pra inglaterra na passarela do samba enquanto nosso povo lamenta pelos pés solitários - brazilian carnival versão only rich pela carne transatlântica - brazilian steak é caro, bem pela guerra na ucrânia passa de tudo menos a minha raiva 15
ONDE FICA A TORNEIRA DO CÉU Keila Sírio Campaneli Começa antes de tudo a rever e ver a vida mudando
Ela pegou um pouco do vento pelo olhar
Sentiu o som novamente
Na mente de quem anda transbordando de imensidão
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Não sabia fazer quase nada e o nada que sabia era o tudo que tinha
Apenas e não mais que sons
Composições se é que poderia assim ser chamados
Escutava o mar que corria no seu peito
Despontava como quem busca romper
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as pontas
Reconhecia nos dedos traços familiares
Percebendo o tamanho de seu coração
Um dia uma noite fosse necessário retornar
Para assim ir mais além
A duplicidade de quem estava sendo e de onde vinha explanava alguns paradoxos
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Pegou seu guarda-chuva com a desculpa de que precisava pensar Realmente notava a necessidade não do pensamento mas do banho de chuva
Lembrava via beleza sem tamanho no cair das águas Completamente molhada perguntava onde ficava a torneira do céu
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O ESTAR VIVO Keila Sírio Campaneli Estava sentada sobre a rede sentia o vento no descompasso do corpo transparente seria demais acreditar que o universo conspirava a favor? Talvez sim! talvez fosse coisa da cabeça de uma vida mecânica que já não percebia que há algo maior regendo tudo em todos Como aquele dia no parque tocava um som vindo dos instrumentos
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Que história é essa que a arte não é necessária? Explica, se explique como é que pode o ser humano, então, ficar perplexo diante de tudo que lhe atravessa?
Os artistas, aqueles de alma carregam em si a poesia do cotidiano a beleza da árvores a potência dos enlouquecidos E você me pergunta: A troco de quê? A troco da vida! Instante de ruptura do não-comum 21
Do encontro trocado suscitado na memória, resgate da lembrança Corre Vai mesmo ao seu profundo É disso que a arte se abastece Seu posto de gasolina é sua nudez quanto maior e natural mais ampla Me diz então: que história é essa, de viver por viver? não dá! Não há tempo pro comum A 22
vida como uma bela poesia precisa ser contada amiúde com delicadeza de borboletas afago de quem está completamente apaixonado
Coma deguste O banquete está des(montado) Como uma arma de interrupção Eu ainda continuo vendo imagens Sobre voltas e voltas Ritornelos Vire e mexe faz valer o estar vivo.
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GOTEIRA Lauren Elisa Flores
O ar entrando e saindo o calor do toque entre peles um jeito de dizer eu te amo ao mesmo tempo não te quero construir uma rima bonita e destruí-la logo em seguida como a tempestade quebrando telhas incomodando todo mundo
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MEMÓRIAS Lauren Elisa Flores
A minha digital ameaçando mesclar com a sua duas coisas só e depois apenas uma o que permanece em mim é aquilo que falta o seu desaparecimento perturba hoje sei que durmo mal
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MÁ-FÉ
A poesia achei no que via
Leonardo Delgado
(não havia)
Também no que inventei
Me nomeando poeta, em vão crime Me defini como “quem faz o que não se define” Que faço eu então aqui? Me desfaço e refaço Múltiplo, em pedaços Esculpo De mim ou do mundo? Que exagero... Me culpo Por não saber o que escolhi Sem escolha, pois já nasci com esses olhos míopes que me fazem curioso (que me colocam o distante como borrão e assim me dão o desejo de ver de perto) A remissão virá Quando puderem esquecer de quem escreveu estes versos E aí os puderem achar (já desconexos, mas ainda carregando o barco velho, as cordas que de mim toraram)
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REFLUXO Leonardo Delgado
Remexo e repito, aflito A palavra amarga, ácida Que me queima a boca, lava Na ponta da língua, afronta Quer avançar, violentamente Forço então a fechar os dentes Arrrr... Xssss… Reteso: estirado ou contraído (a vil vontade me define?) Queria minha boca lavar Da ponte, acima, apontar Crasso, tosco cuspe, à frente e Finalmente me livrar desse ciclo (publicar o texto, queimar as chances, deflagrar e fugir, e não mais voltar a isso)
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ATRAVESSO Leticia Cardoso Moreira
Atravesso o frenesi Na ponta da língua Mergulho no batuque Vibrando no teu sentir Expandindo esse encontro Da ponta dos dedos Aos cabelos esvoaçantes Festejando como quem celebra O verbo em seu estado cru De urgência E nas ondulações de tuas marés Existo sem pontos sem vírgulas Existo inteira Em carne, águas Suor e gozo Existo no ritmo hesitante Do teu olhar, desvelado Calcificada em poesia De carne, sangue, movente Existindo no aqui, nas fronteiras Movediças do teu errante pulsar
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A GUERRA É AQUI Leticia Cardoso Moreira Exigem que a gente lamente sua dor Mas não só lamente, pare. Congele o Movimento, transforme o descanso Em pranto e eterno lamento Sem folga pro riso Sem pausa pra folia Que ousadia!! País de terceiro mundo brincar?! Onde toda hora morre um preto favelado Sem direito pra errar e qualquer olhar É margem pros caras fardados “mal interpretar” E ainda assim quando esse povo arruma um jeito, um pretexto pra extravasar... Ah, não! Eles têm que lamentar!! Ei. Mas pera lá, só aquilo que a mídia Escolhe televisionar Europeus, mísseis, conflitos Arma nuclear. “Uma guerra em 2022?” Mermão, onde é que tu tá?? Se aqui na quebrada a bala nunca deixou de rolar É que cês querem selecionar Aquilo que merece prender o público No sofá a chorar... E o povo com o pouco foliar Que ainda sobra, não pode nem comemorar Menos ainda descansar Tem que encher os olhos de lágrima Enquanto lá fora a polícia mata mais um menó alvejado de bala 29
A ONDA POÉTICA Lorena Nery Borges
O peito sem rima rema a maré dentro de mim. Albergue para os problemas do mundo Sustento para o caos do lado de dentro. Tem saída? O vento bagunça a certeza dos cabelos, dos passos da vida!
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RÉGUA Lorena Nery Borges
“Ser brasileiro é não ter um dia de paz” Dito comum em dias atuais. O que muda no mundo quando a dor do lado de cá tem cor? Quando o corpo é feminino? Quando a alma é lameada ou Encharcada de sangue? Tiro, tiro Bomba, bomba Maria perdeu mais um filho. “Era só mais um Silva que a estrela não brilha” Quando é tempo de sorrir? Todo dia uma guerra diferente vai se fazendo Interna E exter-na-mente A tristeza que consome um, Não toca o outro, Ou o inverso acontece A birra de um só mata tantos outros De onde vem a dor, importa? E o tempo de sorrir, chegará? Para quem? Ser brasileiro é ter um dia de paz, e já diz a canção: “sem voz, é medo!” 31
ESPELHO ABISSAL Luana Antero
provocação de encontros de vulnerabilidades que na expressão ligeira do profundo como gatilho disparado remexe tudo o que é visceral
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MUNDO Luana Antero
girando em torno do meu umbigo
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SEGUNDOS Maria Eduarda Omena
O momento latente entre o adormecer e o sono.
O instante iminente entre o sonho e o despertar.
O entusiasmo existente entre a boca e a fala.
Poesia: aquele segundo entre o imaginado e o compreendido.
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MALEGRÍA
Acabou!
Maria Eduarda Omena
é que o mundo
Cancelem o carnaval, está para acabar! Acabou! Nessa alegria proibida a troça deverá ser interrompida, pois o mundo está para acabar. Ora, e que mundo, eu te pergunto? O lá de cima, distante o bastante e branco-europeu, primeiro-mundista? E o nosso mundo, aqui embaixo, infinitas vezes não se acabou? Quantas vezes nos refizemos, quantas lutas ainda teremos e batalhas diárias a enfrentar. Não! Não acabou-se o mundo, Nem há de se acabar resiste, e a nossa vida persiste! Já dizia a poeta: a alegria é revolucionária. E eu te digo: nossa alegria é vital. Não, não acabou-se o mundo Não hoje, nem amanhã. E não há de se acabar o carnaval Nem fora, nem dentro de mim.
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522 ANOS DESSA BOBAGEM Mariana Cambirimba sobrevivo. corro veloz sobre o meu peito. sou ar, mas não respiro. escuto os gritos mudos dos livros, nas estantes empoeiradas das nossas histórias. não seremos capturados. a poesia não será capturada. assim como não foram aprisionados os espíritos afogados de Itaparica. 522 anos dessa bobagem de “tem que servir para alguma coisa”.
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oras! é justamente para isso. para não esquecer. para sobreviver. para sobreviver ao que nos foi invadido. só é possível, ser.
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É SÓ MAIS UM HOMEM QUE FAZ GUERRA Mariana Cambirimba Vladimir Putin é só mais um homem como muitos homens que fazem guerras.
homens que choram lágrimas brancas, nas poças azuis que afogam crianças – Potyguara, Kariú, Karatiú e outras tantas que o mundo não quer saber os nomes.
Vladimir Putin é só mais um homem que luta uma guerra que também é étnica. porque a raça, foram eles quem inventaram.
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em um país com tantas raízes indígenas, ninguém quer escutar que muitos desses corpos pelo chão são dos mais de mil povos que já viviam aqui. hoje, mergulham no silêncio.
de marchinhas e sambas enredo, que eles acham que nos celebram para o jovem e o velho sudestino beber seu whisky Johnnie Walker, enquanto dizem que já não fazem mais índios como antes: esses têm Iphone e caminhonete.
é por isso que Vladimir Putin, é só mais um homem, em meio a tantos homens, que fazem guerras.
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ESCREVER É UM PARTO, PARTIR DE MIM Mayara Pérola Maciel dos Santos
Como partir de mim, se a escrita me convoca a me encontrar? É um retorno que às vezes não quero, mas necessito. É parir as palavras, na turbulência e estranheza de si, É o abraço no desampar(ar), ar que respiro com dificuldade. Escre(ver), mas ver o quê? Se quando escrevo sempre há pontos cegos. Não é possível partir de si. Mas é possível encontrar uma forma de não partir-se, Se partir, ao meio? Não sei responder, é preciso? Nascedouro de fragilidades e saltos no vazio, essa é a vida. Nos significantes eu me esforço, para deslizar os desencontros Que nunca quis ter, mas precisei Para entender que partir de mim, não é solução, Mas desespero por não querer me encontrar.
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CORPO-DOÍDO-EU Mayara Pérola Maciel dos Santos Devolvo à boca o gosto do sangue daquilo que carrego em mim, no meu corpo preto, nos meus traços. Eu sinto à flor da pele, A guerra tem cor, dor, corporeidade. Quero fazer revolução, Mas em dor me abstenho Quando lembro que lutei em mim várias batalhas doídas. Me olham como uma ameaça corpórea, Quando não, me bordejam, tracejam e me medem, Quando meu corpo virou festa para vocês?
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PRESENÇA Simoni Giehl
Doravante em olhar entorpecido, guardada a transfiguração do óbvio, no caminho do meio, a essência atravessada pela efervescência do encontro que, pingo a pingo, gota a gota, revelam a voz que sufoca. Ante a grandeza da expressão, o vazio se faz necessário. Desnudo por fim, na entrega do papel em branco que é a vida, o escolher das palavras, sem exageros, mas com esmero e carinho, o olhar que contempla, veste a alma, diante do véu que despenca, a epifania acontece.
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NA BUSCA IMPRECISA, A VIDA Simoni Giehl
Sentir? Seria este o sinônimo de existir? Tempo fragmentou o que tinha como respostas. Nova busca! Dobro a aposta! É preciso viver na intenção da busca. Busca esta tão incerta! Fiz então, do meu questionar, Poesia. As rimas, deixei perdidas no espaço. Já os sons, emolduram traços gravando memória adentro o todo que me atravessa. E a pressa? Desapressei, no passo que não dei, quebrando o relógio do acaso. Pouco caso? Jamais! Na clareira que brota do encanto transmuto frações de instantes, em eterna equação de agoras.
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POEMA PARA ANDAR EM PAR COM CRIATURAS UIVANTES Tais Milena Poesia, Lugar para existir, Para ser um recanto, Um avesso, Uma memória, uma voz. Poesia para ser como o vento, como a chuva. E assim trovejar, anunciar. Poesia para brincar com o tempo e o vazio. Ser de verdade. Ser leveza. Ser desassossego. Escolher ser uma dor pulsante, Uma mulher que menstrua Que aflora, E escorre. Ser olho d’água escarlate, Andar em par com criaturas uivantes, E seu esperar sonante. Poesia para ser o que antecede, O riso, A dor, O silêncio. Estar de acordo com as coisas, Completo em sua conhecida incompletude. Ter afinidade com o formato da nudez, Selvagem como toda ela e todo desejo. Sendo poesia, Atravessar o que nos morre todo dia, Guardando-a com os olhos de dentro, Com olhos côncavos Olhos de enxergar Poesia. 44
LIDE COM A GUERRA Tais Milena Lide! Lide com a guerra! Mas qual guerra? A que está por fora? Ou a que está por dentro? A guerra entulhada nos porões dos navios? A guerra que perpetra à força os úteros vazios? A primeira guerra? A segunda guerra? A guerra civil! Guerra civil? Onde? No Brasil! Todo dia, todo dia há guerra aqui! Uma guerra que tem corpo, Uma guerra que tem cor, Uma guerra que tem sexo, Uma guerra que tem chão. Tem aqui na esquina de casa! Tá na memória dos rostos infantis, Que enfeitam as cruzes no São Roque. Tem o cheiro do gozo do tio no lençol da menina, Tem o roxo no rosto da mãe que chora contida. Lide com guerra! Mas qual guerra? Estou aturdida Há um carnaval privado aqui Na esquina.
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CABIMENTO Tatiana Barreto
Um cadáver perfumado Bem cuidado Ainda amado É como eu te vejo, poesia, nesse dia pobre de rimas
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RECEITA PARA FAZER POESIA Tatiana Barreto
Quando escrevi tempo Querendo dizer tempero Descobri o que faltava Para azeitar a poesia Vou de pimenta a mascavo De poeta-desagravo Entre faca e limão-cravo A uma doce ruptura de mim Minha letra não tem regra Faço dela o que quiser Sirvo as horas de bandeja Digo tudo o que disser
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SERVENTIA DA POESIA William Johnson
Na farmácia sempre muitos idosos Bengalas, reclamações dos netos, cabelos brancos E cheiros de vó Pra o estômago? omeprazol, moça Pra os ossos qualquer cálcio serve Pra pagar? no dinheiro mesmo Pra o coração? NÃO Carece não, minha filha Quem resolve isso é minha neta Lorena Quando chega em casa de tardezinha Com os cabelos cheirando à rua Os pés sujos de barro Contando bonito e mansinhozinho O porquê de ser tão bom Ouvir os passarinhos do pé de pitanga cantando
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BOLO DE NOIVA William Johnson Minha mãe coava café com mão de moça Pra lembrar meu pai dos antigos carnavais Quando todos os blocos conheciam o amor dos dois Na cozinha, o fogão, a mesa colocada O bolo de noiva que ela fez na quarta-feira Esperavam pelo momento dos dois Como todo rio espera Que duas gaivotas passem por sobre ele Eu contava tudo isso para meu sobrinho Porque ele me perguntava o que era poesia Terminando de falar; aprendi Mas meu sobrinho continua perguntando
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