REVISTA TRIMENSTRAL # 1 | Junho 2017
SUMÁRIO
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Entrevista 04 - Isabel Zuaa 18 - Djamilia Pereira de Almeida 60 - Yolanda Tati
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Fotografia Fotografias alusivas, etc.
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Arte & Cultura 12 - Moonlight 30 - Cultura Contra o Abuso Sexual 34 - Ibeyi 44 - Martin Luther King 64 - Albinismo
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Fotografia de moda, etc.
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Gastronomia Saudável na cozinha...
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Agenda Cultural Mês de Junho e Julho
Afro Savage
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Preta é nome de cor... O nome dela é
Isabél Zuaa
5 Afro Savage Breno Turnes | Isabel Zuaa .
Entrevista
Filha de mãe angolana e pai da Guiné-Bissau. Isabél Zuaa nasceu em Lisboa e lá começou a carreira de atriz e bailarina. Veio para o Brasil, integrou-se ao grupo de Gustavo Ciriaco e agora estoura no cinema como coprotagonista de Joaquim.
Breno Turnes | Isabel Zuaa como Madonna.
Se o filme de Marcelo Gomes é sobre a mudança de paradigma do futuro Tiradentes – como um soldado da Coroa portuguesa virou rebelde –, a Preta de Isabél Zuaa tem importante participação no processo. Como você chegou ao filme de Marcelo Gomes? Por meio dos produtores europeus? Na verdade, estava no Brasil já há bastante tempo. Vim como integrante de um intercâmbio cultural e acabei ficando.Soube que precisavam de uma atriz negra que falasse africano. Como falo cabo-verdiano, habilitei-me e deu certo. Sua personagem, a escrava Preta, desencadeia o processo de 6
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conscientização de Joaquim, antes de virar Tiradentes. Como se preparou para o papel? Integro um movimento chamado Mulheres Negras, que visa justamente despertar nossa autoestima. Preta evolui no quilombo. No início, é um corpo de que os homens podem dispor, mas se afirma nesse universo. Sua recusa (vejam o filme) será decisiva no amadurecimento do alferes Joaquim. Joaquim e Preta. Ela desencadeia processo de conscientização dele, antes de virar Tiradentes. O fato de dançar ajudou você na criação da personagem? Sem dúvida, porque Preta é muito física, desde o arraial até o quilombo.
Tiradentes é um personagem muito forte no imaginário dos brasileiros, mas Joaquim é desconhecido. A história de amor embutida no filme será uma surpresa para o público.
portuguesa. No imaginário delas, a coisa não funciona, embora Portugal tenha colonizado a África. Em Lisboa, havia esse mesmo estranhamento. Não acreditavam que eu fosse de lá.
Como a vê? Marcelo (Gomes, o diretor) deixou claro que o filme é a visão dele sobre a mudança de paradigma de Joaquim. Acho lindo que ele esteja resgatando a importância da cultura africana, e da mulher, no processo de libertação do Brasil. E acho linda a história de amor impossível. Me encanta que Joaquim seja tão apaixonado e Preta, tão forte.
Mas sempre existem os negros dos filmes de Pedro Costa, não? Sim, mas ele é um autor para poucos, não um diretor de filmes para massas.
Breno Turnes | Isabel Zuaa com Anderson Barreto - Black Pietá.
Já que é um tema do filme, como mulher, atriz e negra, você conheceu o preconceito? Muito, e no Brasil principalmente. As pessoas parecem ter dificuldade para aceitar a ideia de uma negra
Preta evolui no quilombo. No início, é um corpo de que os homens podem dispor, mas se afirma nesse universo.
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Fotografia
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Tumbrl Imagens | Vintage Photos.
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onda pop rock dos anos 60 marcam profundamente esta revista. Este texto apesar de ser um simulacro de algo desejado sério, não deixa de ter a sua pertinência, pois quer-se algo fresco, exorbitante, um grito que represente, através de imagens, o passado presente poético do que foi o blues e o jazz nessa época. De figurino bem apresentado, cabelo bem arranjado, os ícones da época pareciam estar sempre pomposamente arranjados para uma bela fotografia, muitíssimas delas retiradas a preto e branco.
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Fotografia
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uitos fotógrafos famosos deixaram e publicaram para além das suas conhecidas e históricas fotografias, frases e textos sobre a sua actividade e sobre aquilo que entendiam acerca do que é a fotografia e sobre o que é ver e registar o presente através das lentes. Fotos a preto e branco que retratama América nos seus doce anos de 50 a 70, com figuras célebres como Nina Simone, Aretha Franklin e seu
maneger, até Diana Ross extridente numa dança exótica. Agora cita-se um texto sobre fotografia: Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do
antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade actual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente,
porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor, mentalmente mais inteligente e fisicamente mais leve.”
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Arte & Cultura - Cinema
Moon Light “É impossível ser vulnerável”: como Moonlight reflete ser um gay negro nos EUA.
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combinação de arte e emocionalidade direta neste filme é esmagadora. Barry Jenkins escreve e dirige, tendo adaptado o jogo improduto de Tarell Alvin McCraney Em Moonlight Black Boys Look Blue. Moonlight é sobre um jovem afro-americano e sua vinda de idade, apresentado como três fases em sua vida, como os painéis de um tríptico. O filme tem poder e generosidade, dando acesso total a seus pensamentos e sentimentos que é como se você está recebendo-os entregues por via intravenosa. É o tipo de filme que deixa você se sentindo de alguma forma mentalmente mais inteligente e fisicamente mais leve. O amor, o sexo, a sobrevivência, as mães e as figuras paternas são os seus temas, o último posto em primeiro plano pela pungente ausência dos próprios pais. O Moonlight me fez lembrar de John Singleton, Terrence Malick e Charles Burnett, mas também de A Boy’s Own Story de Edmund White; A estrutura me fez pensar sobre a trilogia de Tolstoi: Infância, Infância e Juventude. Há uma série
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de seqüências de sonho visualmente arrebatadoras, surtos epifânicos, closeups alucinatórios, franjas luxuriantes de música. Jenkins não é tímido de quebrar o Laudate Dominum de Mozart sobre uma cena woozy, wordless das crianças que jogam. O protagonista passa a ser nomeado Negro: macho, ginásio-construído, com dentes de ouro; Um homem de poucas palavras. Ele saiu da prisão para iniciar uma nova vida longe de sua cidade natal em Miami, terminando em Atlanta, na Geórgia, “aprisionando” - ou seja, lidando nas esquinas. Mas Black tem um segredo: algo que ele mantém escondido de outras pessoas, e talvez mesmo ele mesmo. Ele é gay. Como ele chegou aqui? “É impossível ser vulnerável”: como Moonlight reflete ser um gay negro nos EUA. Jenkins leva-nos através das cenas de sua vida: como um miúdo ele se
O elenco de três atores diferentes é uma parte visível da herança teatral do filme: um efeito formalmente estilizado, com cada nova encarnação uma sacudida e, obviamente, diferente das mudanças incrementais, quase geológicas alcançadas no filme em tempo real Boyhood de Richard Linklater. chama Little (Alex Hibbert), sempre ficando colhido, preocupado com sua mãe viciada em drogas, Paula (Naomie Harris). Como um adolescente, ele é conhecido pelo seu nome Chiron. Agora ele é interpretado por Ashton Sanders, e ele é reconhecidamente o mesmo garoto, apenas um pouco mais velho, ligeiro, esguio, gawky, com um silêncio vigilante que é um sintoma e uma estratégia defensiva contra o bullying vicioso que ele sofre de Terrel (Patrick Decile), um cara que tem um sexto sentido malicioso para o crescente relacionamento de Chiron com o colega Kevin (interpretado por Jaden Piner quando criança e Jharrel Jerome como adolescente). Finalmente, como resultado da raiva, o ódio de si mesmo e o tempo de prisão, Chiron cresce, cresce novas camadas de músculo e se torna irreconhecível em seu último estágio evolutivo de desenvolvimento: reinventando-se como Black (Trevante Rhodes). Então ele recebe um telefonema de seu passado: Kevin (André Holland), está
agora fora da prisão, um pai ausente, trabalhando como chef. O arco narrativo é iniciado e mantido unido por uma performance maravilhosamente carismática de um ator que aparece apenas no primeiro ato: é Mahershala Ali, interpretando Juan, o barão da droga de Miami com um lado bondoso e paternal que protege Little quando vê Ele sendo perseguido por outras crianças. Juan deixa Little ficar em seu lugar ocasionalmente, olha para ele; Ele lhe dá uma aula de natação que se torna uma espécie de batismo. Juan fornece comida, conforto, apoio, mas também drogas. Ele é um cuidador muito questionável e modelo de papel, com uma relação inexpressivelmente dolorosa e irônica com Little e sua mãe, e Jenkins mostra como o próprio destino conflituoso de Black segue o exemplo estabelecido há muito tempo por Juan. O elenco de três atores diferentes é uma parte visível da herança teatral do filme: um efeito formalmente estilizado, com cada nova encarnação uma sacudida
e, obviamente, diferente das mudanças incrementais, quase geológicas alcançadas no filme em tempo real Boyhood de Richard Linklater. Mas não está lá para distanciá-lo. Curiosamente, o desempenho de Naomie Harris está espalhado pelo tempo de execução do filme e as mudanças na aparência de seu personagem são mais sutis e mais naturalistas: ela se deteriora com o uso de drogas, mas depois consegue uma espécie de estabilidade e dignidade como uma mulher mais velha. É uma ótima performance. Moonlight é movente e misterioso: uma dança à música do tempo, em sua maneira. Mas também mostra que os três estágios podem ser considerados em paralelo, bem como em seqüência: Little / Chiron / Black é um palimpsest de identidades. Moonlight é um filme sobre a masculinidade, cujas feridas e crises são as mesmas para todas as sexualidades, mas condicionada pelo clima de fundo da raça e da classe. “Eu choro tanto às vezes eu posso me transformar em gotas”, confessa Quíron a Kevin, e, como para tantos homens, crescer para ele é a busca de maneiras de cauterizar a tristeza, anestesiar com raiva. Moonlight encontra uma maneira de convertê-lo em felicidade.
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Neste mundo, que é enquadrado pela violência por vir - porque virá Juan vê um garoto magro correndo, sua mochila batendo atrás dele. Ele está sendo perseguido por um grupo de meninos, e ele patos em um prédio condenado para escapar. Juan segue, entrando através de uma janela explodida, talvez um símbolo da ruína deixada pelos tumultos. Dentro, num espaço escuro e silencioso, o garoto olha para Juan, e Juan olha para o garoto. Há um tipo de espelhamento acontecendo. Talvez Juan esteja olhando para seu passado enquanto o garoto olha para um futuro que ele não sabia que poderia ter. É uma cena desorientadora, não tanto por causa do que acontece como por causa do que não acontece. Ao longo do filme, Jenkins evita o que eu chamo de hipérbole negra - os clichês exagerados que são tão freqüentemente usados para representar a vida negra americana. Por exemplo, Juan não leva aquele garoto fugitivo debaixo de sua asa para o proxenetir e transformá-lo em um corredor de drogas; Em vez disso, ele o leva para casa para alimentá-lo, alimentá-lo. Juan vive em uma casa pequena, sem pretensões, com sua parceira de voz suave, mas confiante, Teresa (interpretada pela cantora Janelle Monáe). O casal olha como o garoto come e come; É claro, porém, que ele está com fome de mais do que comida. O rapaz nem sequer diz o seu nome, Chiron, até que Juan o cutuca: “Você não fala muito, mas você pode com certeza comer.” A repreensão afetuosa faz Chiron (Alex Hibbert, um ator pela primeira vez, T ser melhor) sentar e tomar nota; Diz-lhe que ele conta. E ele sabe que conta ainda mais quando Juan o chama pelo apelido de “Pequeno” como uma forma de reivindicá-lo.
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Que ele é capaz de arrancar esse sentimento da escuridão daquelas noites de Miami, faz dele uma figura clássica e heróica: conhece suas limitações, sabe que a vida é trágica, mas ainda está disposto a sonhar.
“Fagot” é outro nome, e é aquele que Chiron ouve freqüentemente enquanto cresce. Ele é um estranho na escola, e em casa, também. Ele vive em um prédio público com sua mãe solteira, Paula (Naomie Harris), que se dedica às drogas, menos para aliviar sua tristeza do que para expressar sua ira - contra o mundo e, especialmente, contra seu filho, que ela a mantém o mundo. Chiron vive para os momentos em que ele pode fugir das inúmeras recriminações e necessidades de sua mãe e nadar nas águas desconhecidas do amor com Juan e Teresa. Uma cena indelével mostra Juan segurando Quíron em seus braços em um oceano azul ondulante, ensinando-o a flutuar - o que é outra maneira de ensinar-lhe o deixar ir que vem com confiança, com amor. Mas, no final de cada saída, Teresa e Juan mostrar seu respeito, retornando Chiron casa. Não importa quão terrível seja Paula, ela ainda é mãe de Quíron. Este gesto é um dos muitos que Jenkins, que, como McCraney, foi criado em
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Liberty City, entende de dentro para fora. Ao crescer nesta comunidade, Juan e Paula foram ensinados a cuidar de crianças, suas próprias e de outras pessoas. (Não há personagens brancos no filme, e este é um movimento radical por parte de Jenkins.Os brancos teriam introduzido uma dinâmica diferente para “Moonlight”. A história de Jenkins é sobre uma sociedade negra auto-governada, não importa quão fraturada.) Mas Drogas fizeram uma confusão de família, ou a idéia de família, e Paula fica no rosto de Juan quando ele tenta impedi-la de usar. Ela tem um filho, claro, mas como ele pode
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falar quando ele é o único que está vendendo drogas? É um ciclo vicioso, no qual os personagens são oprimidos por tudo menos pela esperança. Ainda assim, Juan espera, mesmo que seja para Quíron. Que ele é capaz de arrancar esse sentimento da escuridão daquelas noites de Miami, faz dele uma figura clássica e heróica: conhece suas limitações, sabe que a vida é trágica, mas ainda está disposto a sonhar. Cerca de trinta minutos depois do filme, Chiron, sentado à mesa ordenada de Juan e Teresa, pergunta o que é um maricas. Na exibição que assisti, todo o público congelou, assim como os números na tela. Então Quíron pergunta se ele mesmo é um maricas. Não há música nesta cena; Ninguém chora; Juan não pega uma arma e tenta explodir o universo caluniador. Em vez disso, ele leva a palavra à parte, e não leva Chiron aparte com ele. Ele sabe que Quíron está marcado pela miséria, e como o coração de Juan o suportará, muito menos o de Quíron? “Moonlight” desfaz nossas expectativas como espectadores, e como seres humanos, também. Como vemos, outro filme joga em nossas mentes, filmagens reais de muitas formas de dano feito aos negros, o que às vezes pode levá-los a
transformar essa loucura de ódio em seu próprio tipo, passando o veneno que era a sua herança. Como Juan escude seu amigo órfão, não podemos deixar de pensar: Será que ele vai abusar dele? Isso vai acontecer agora? Jenkins mantém o medo, mas não o melodrama em seu filme. Ele constrói suas cenas lentamente, sem diálogos nem explosões. Ele respeita a nossa inteligência o suficiente para nos deixar apenas sentar e ver os rostos gloriosos de seus personagens como eles se movem através do tempo. A cena segue a cena com o tipo de propósito que você encontra nos contos de fadas, ou naqueles romances de Dickens sobre meninos feitos e desfeitos pelo destino.
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Entrevista
Djaimilia Pereira de Almeida
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda em 1982. Estudou Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa e Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. Em 2013, foi uma das vencedoras do prémio de ensaísmo serrote (Instituto Moreira Salles, Brasil). Publicou em Afrolis, Buala, Common Knowledge, Forma de Vida, Ler, Observador,
Pessoa, serrote, Words Without Borders, e XXI. Esse Cabelo (Teorema/Leya, 2015), vencedor do Prémio Novos - Literatura 2016, é o seu primeiro livro. No início de 2016, foi uma das finalistas da Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative. Escreve mensalmente na revista Pessoa sobre Interiores/Exteriores.
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Vivi o cabelo como um drama intenso que se foi tornando uma comĂŠdia.
Em Portugal parece haver um vazio em relação ao momento pós-colonial e às transformações que se seguiram. Que impressão tem da forma como a cultura portuguesa encara esta questão? A experiência do retorno não é a minha experiência. A da minha família não é a de pessoas que vieram para Portugal naquela altura por uma ponte aérea. É uma experiência de pessoas que ficaram e vieram mais tarde. O que me parece é que não existe um acompanhamento da experiência que foi vivida por aquela que foi pensada. Talvez seja lapso meu, mas acho que não há pensamento suficiente dessa questão. Existe a ficção mais ou menos nostálgica e saudosista, mas não sei se houve uma profunda reflexão sobre esse período. Vão aparecendo certos pontos luminosos, luzes pelo caminho, como o livro da Dulce Maria Cardoso [“O Retorno”]. A certa altura seria natural que pessoas com histórias de vida parecidas fizessem livros. Não tenho uma noção exaltada do papel do meu livro nesse contexto. Se este livro podia ser de outra pessoa com a mesma experiência, quais são os pontos cardeais que a orientam? Um deles é o facto de ter crescido num sítio onde não nasci. De ter do sítio onde nasci uma profunda ignorância. Não é um aspecto peculiar da minha vida, mas comum à de muitas outras. Simétrico a esse ponto está o momento em que essa falta de curiosidade e essa ignorância se transformam numa necessidade de saber mais sobre esse sítio onde nasci. Apesar de me ter começado a ressentir da ignorância que tinha a respeito de África até aí, fui percebendo, já ao escrever, que não me valeria de nada enfiar-me num avião e ir até Angola à procura fosse do que fosse. “Esse Cabelo” é um livro que tenta parodiar esta ideia de uma espécie de regresso às origens. É uma das minhas ambições: mostrar que não posso coreografar a minha autodescoberta. Faz sentido a analogia de que uma pessoa encontrar-se
seria como partir à procura da Índia e descobrir a América. Angola aparece cada vez mais em Portugal. Não é só a cultura, mas um fenómeno de uma certa colonização económica, num movimento inverso. Como tem sido acompanhar este movimento? A sensação que tive ao longo dos anos foi de que não era eu que estava a ir à montanha, mas a montanha que estava a vir ter comigo. Se por um lado, e do ponto de vista da colonização económica que referiu, me parece que tem efeitos nocivos claros e que importa ter em conta… Quer dizer, não me parece que seja negativo o facto de cada vez mais jornais portugueses estarem na mão de capital angolano, desde que possam publicar o que entenderem sobre Angola e qualquer outro tema. No momento em que isso não é assim, parece-me que se torna altamente nocivo. Quanto a esta invasão da cultura angolana e mudança generalizada de gostos e referências, parece-me que isso é salutar. O meu vizinho do lado acordarme à meia--noite com kizomba, isso dá-me gozo . Isto tem reflexo nas mentalidades, há maior abertura? Até aqui havia uma enorme quantidade de africanos residentes em Portugal e de portugueses africanos que simplesmente não se sentiam representados de maneira nenhuma nem no que liam nos jornais, nem no que viam na televisão, nem em lado nenhum. Parece-me significativo que, a certa altura, surjam pessoas com aspecto diferente a fazerem todo o tipo de coisas e a serem apreciadas por isso em larga escala. Quanto mais, melhor. Mas isso não tem de ser acompanhado pelo outro tipo de efeitos nefastos.
Se não tivesse crescido tendo no meu cabelo um inimigo, não havia livro. Acho importante falar disto porque é uma coisa sobre a qual se fala pouco. Há algumas figuras por quem tenho a maior simpatia, figuras públicas que têm trazido esse assunto para a praça pública, mas passa despercebido. Tendo o cabelo sido sempre um enorme problema, vivi-o como um drama interno intenso que se foi transformando também numa comédia, porque a certa altura o cabelo estava tão despenteado que só podia rir, mas era um sorriso no meio de lágrimas. A certa altura apercebi-me de que isto era a experiência de muitas outras pessoas. Percebi-o através da internet. Descobri um movimento de raparigas, em Portugal e fora. Descobrias primeiro nos EUA, mas cheguei a raparigas portuguesas que falam sobre o seu cabelo, sobre a experiência de recusar desfrisar o cabelo ou aproximálo dos padrões de beleza europeus, e voltar a usá-lo com o seu aspecto natural. O livro é escrito com a intenção de falar com estranhos e de fazer amigas. Há alguma violência a que estas raparigas são sujeitas devido à sua aparência?
A aparência, o livro como uma odisseia da protagonista num esforço para tentar domar o cabelo... Que papel é que o ideal normativo de beleza ocidental desempenhou no seu crescimento?
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Sim. Há, pelo menos, uma intenção premeditada de fingir que certas pessoas não existem, que certas pessoas não têm lugar e que não vendem nem compram. Pessoas com um tipo de cabelo, cor da pele, que vivem em certos sítios e partilham certas referências... Parece-me que tudo o que puder ser feito para mostrar à sociedade o erro que comete é pouco. Como encara os actuais receios da Europa em relação aos refugiados? O termo de Thatcher é “swamped”, o medo de a Inglaterra ser inundada. Refiro-me a isto no livro: o medo de um país poder ser inundado. É um medo irracional, um medo que pode ser destruído com argumentos racionais. O que se contrapõe a isso é uma mensagem de Michael Dummett que fala do dever que nos assiste, por existirmos, de prestar auxílio às pessoas que não têm como se defender. O assunto tem sido tratado com uma enorme cobardia. Fico aterrada ao perceber que os dias passam e não parece haver uma intenção de tomar medidas concretas.
Que lugar é esse que a Djaimilia ocupa no cruzamento de dois países e de dois continentes? Nunca acreditei muito que o pudesse descobrir com um livro: não acredito que possa planear a minha autodescoberta. Acabei por terminar como comecei: nasci em Angola, cresci em Portugal, onde vivi toda a vida, o que é, ao mesmo tempo, tudo o que importa, e coisa nenhuma. No texto Chegar atrasado à própria pele, publicado na revista Forma de Vida, você fala da descoberta do seu irmão branco que, aos cinco anos, teria declarado: “Tu afinal és preta e nunca me disseste”. Em seguida, abre uma reflexão sobre sua própria descoberta. Quando ocorre essa tomada de consciência? Em criança, entre outros miúdos, ninguém pensava nisso, de fato. É muito mais tarde que me aconteceu ter uma percepção aguda da minha pele, atraso que considero um luxo, ao mesmo tempo benévolo e nefasto.
de Julian Fuks, Resistência, e Julia de Carvalho Hansen, de quem sou grande admiradora. Como você avalia a presença da mulher negra no cenário literário de Portugal? Acredito que há muitas mulheres e homens negros, ainda desconhecidos, a caminho da publicação em Portugal. Alguns juntam-se em tertúlias, leituras, o que há pouco tempo não acontecia. A sua presença é ainda pouco notada, mas duvido que num futuro próximo o cenário se mantenha. A procura de uma origem não reconstitui a origem. O que conseguimos com essa procura? Julgo que o ganho de procurar é procurar, interessando pouco ou nada o que se encontra. Ainda que seja difícil contentarmo-nos com a incerteza quando procuramos saber quem somos, a resposta mais profícua, e a mais desconfortável, é chegar ao fim com uma pergunta, e outra, e outra. Entrevistador: António Pedro Santos
Os álbuns e as fotografias também são recorrentes no livro. Qual a importância desses registros para a concepção dessa narrativa? O livro tentou recorrer à estrutura de um álbum de fotografias parecido aos que temos nas nossas casas, o que se deve muito à maneira como escrevo, tentando legendar imagens que existiram ou não, e que podem ou não fazer parte do livro. Muitas vezes me parece que o que faço é legendar o que não vi, podendo isso ser o que desconheço sobre a minha vida, o meu passado.
Nunca sabemos que se vai fazer História. Estamos a viver as nossas vidas agarrados a pormenores que só por cinismo podemos dizer que são comezinhos.
“A família a quem devo este cabelo descreveu o caminho entre Portugal e Angola em navios e aviões, ao longo de quatro gerações, com um à vontade de passageiro frequente que, todavia, não sobreviveu em mim (...)”. Essas migrações dos genitores são revisitadas na tentativa de encontrar o próprio lugar no mundo.
Qual sua percepção sobre as trocas entre os países lusófonos hoje e, principalmente, o trânsito da literatura entre esses países? Você costuma ler a produção brasileira contemporânea? Leio, sim. Tento acompanhar como posso, sabendo que desconheço muita coisa. Nos últimos tempos, li o último
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O país onde 30% da população culpa a mulher pelo estupro é também o lugar em que autoridades decidiram, consensualmente, que encoxada, humilhação sofrida diariamente por milhares de brasileiras, não é crime. Este quadro decorre da reforma dos crimes contra a dignidade sexual, em vigor desde agosto de 2009, que revogou o crime de atentado violento ao pudor, que previa uma pena de dois a sete anos de prisão, e transferiu a sua redação para a do delito de estupro. Desde então, constranger uma mulher, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar qualquer outro ato libidinoso é estupro. Dois crimes viraram um só, com pena prevista é de seis a dez anos de prisão.
A coisa está “preta”!
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2011
2012
2013
90 97 94
2014
150
Número de violação por pessoa.
2015
181
94,6%
3,6%
1,8%
Fonte: www.fiquemsabendo.com.br Autor: Mónica Monteiro
sexual mediante fraude.
24 ocorrências registradas como crime de violação
12 ocorrências registradas como violação.
ofensiva ao pudor.
100%
631 ocorrências registradas como importunação
Em quatro anos , as denúnicias de asssédio dobraram.
Entre Janeiro de 2011 e Abril de 2016, a Polícia Civil regstrou 667 casos de abuso sexualnos metros de São Paulo.
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Arte & Cultura - Música
Encontrar um equilíbrio entre dois mundos Naomi e Lisa-Kaindé Díaz fazem o duo Ibeyi
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Tumbrl Imagens | Ibeyi Ibeyi Mama Says, álbum de 2015
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Antigos rituais respondem às preocupações modernas na música de Ibeyi, a dupla de Naomi e LisaKaindé Díaz, que se apresentou na noite de quarta-feira no Music Hall de Williamsburg. Eles são gêmeos nascidos na França e imersos na herança cubana de seu pai, Angá Díaz, que foi um dos principais percussionistas em Cuba. Quando as irmãs não cantavam seus próprios pensamentos sobre o amor, a família, a responsabilidade, a tenacidade e a fé, ofereciam os cânticos afro-africanos dedicados às divindades iorubás, as canções que se tornaram Santería, enquanto escravos ocidentais as preservavam no Caribe. Ibeyi significa “gêmeos” em Yoruba, e as próprias canções das irmãs freqüentemente se remontam às melodias modais e à interação de voz e percussão dos cantos iorubás. Antigas ou novas, as irmãs mantêm sua música escassa,
confiante e intimamente harmonizada. Yoruba raízes e tudo, a música de Ibeyi também é parente de trip-hop. Suas canções, escritas na maior parte por Lisa-Kaindé, furam aos tempos lentos e, frequentemente, chaves menores; Eles respondem às preocupações e tristezas com determinada esperança. Uma música, “Yanira”, chora sua irmã mais velha, que morreu em 2013; “Nós vamos nos encontrar no céu.” Outra música igualmente sombria, “River”, procura lavar os problemas em um batismo, e conclui com um canto para Oshun, uma deusa Yoruba de beleza e fertilidade. Ibeyi também cantou um remake de uma canção do rapper Jay Electronica, “Melhor em Sintonia com o Infinito”, que pondera solidão e determinação. Mesmo para um duo, Ibeyi soa deliberadamente esquelético. LisaKaindé toca teclados e canta a maioria
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dos vocais; Sua voz sustentada, direta às vezes permite-se alguns dos flutuação sensual de Billie Holiday. A maioria de seus arranjos usam apenas alguns acordes discretos, fundacionais do piano para fundar as canções no evangelho ou na alma mas deixam espaços abertos para os vocals. Naomi Díaz fornece percussão em instrumentos tradicionais - o cajón em forma de caixa, os três tambores batá usados em Santería - e em um sampler de tambor.
Para “Mama Says” - em que uma filha vê a mãe solitária sem o seu homem, mas ressente-se que sua mãe é tão dependente - Naomi construiu um ritmo de torneiras sucessivas sobre o cajón, seus joelhos e seu peito seguido de um fingersnap. Ainda assim, Ibeyi não despreza a eletrônica; Em “Oya”, eles construíram um loop de harmonias vocais para flutuar em torno deles. No palco, a presença sorridente das irmãs transformou as canções dolorosas e austera. Os arranjos de bare-bones
eram tudo o que eles precisavam;Suas harmonias vocais, acompanhadas ou quase, eram faróis de partilha e solidariedade. A música não se tratava de escassez, trabalho ou renúncia - era sobre a autosuficiência, magra e forte.
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Gastronomia
Tumbrl Imagens | Healthy Food. 40
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na cozinha...
E não somos chefs, apenas apaixonados por culinária. Na verdade, nós trabalhamos com Marketing e Branding e usamos nosso conhecimento para deixar essa revista ainda mais incrível. E claro, amamos cozinhar, comer, viajar e viver novas experiências. Por aqui cada um tem uma função: a revista cuida de toda a curadoria de conteúdo, concepção de receitas, estratégia e do food styling. A Afro Savage fica por trás da câmera, procurando sempre as melhores fotos! Além disso, cuida de todo branding da marca.
O na Minha Panela A ideia da revista de receitas surgiu quando estivémos no Porto, como uma forma de compartilhar nossas invenções na cozinha com nossos amigos. De 2010 pra cá, já de volta a Portugal, expandimos e muito o nosso público, mas sempre focados no propósito de: Fazer receitas possíveis, com ingredientes simples feitas com amor para quem não tem tanto tempo para se dedicar a cozinha!
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Tumbrl Imagens | Healthy Food.
Arroz de caril e legumes
Pão de centeio Pão feito nas padarias do Porto.
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Fazer pão é uma arte. Poucos ingredientes se transformando em uma das comidas mais amadas mundo afora. E essa receita de pão rústico integral definitivamente tem sido repetida semana após semana por aqui, de tão maravilhosa que ela é! Desde a nossa primeira viagem pra fora do país, já desenvolvemos uma nova relação com o pão. Passamos a colocar mais a mão na massa e o rafa foi se apaixonando cada vez mais por essa arte. E há alguns meses atrás descobrimos o quão maravilhoso pode ser o mundo da fermentação natural. E desde então tem rolado muito estudo e testes por aqui. Com certeza, essa é uma receita bem diferente das outras que já existem nesse blog. Esse pão é relativamente simples, mas vai te exigir bastante paciência e cuidado. Por isso, não faça na correria, curta o processo, se divirta. Existem 2 formas de se fazer esse pão (e por aqui já testamos as duas): uma delas é utilizando o fermento biológico
e a outra utilizando fermentação natural, com um fermento criado por você. A primeira opção é a menos trabalhosa e mais rápida (mas mesmo assim, bem diferente) e a segunda é a que dá mais orgulhinho, afinal saber que você criou um fermento do 0 e que dele nasceu um pão é algo encantador. O primeiro fermento que fizemos por aqui, foi baseado nesse aqui, da queridona da Ariana do A Casa Encantada e atualmente além desse ainda temos mais 2 fermentos com técnicas diferentes crescendo por aqui. Prometo que em breve vamos falar sobre eles! Mas comece com esse de garrafa, assim você já vai criando uma certa afinidade com a técnica e vou te falar, todos os pães testados com ele deram certo <3 Outra coisa, a Ari deu uma dica que seguimos por aqui: depois de “pronto”, fizemos mais 3 ciclos de alimentação antes de fazer o primeiro pão e foi perfeito!
Pratos vegetarianos Sempre feitos com legumes frescos
Tumbrl Imagens | Healthy Food.
Salada vegetariana Na nossa última viagem me deliciei com uma paella feita só com legumes e só sosseguei quando corri para a cozinha para testar! Essa receita não tem a pretensão de ser super fiel a verdadeira paella espanhola, mas pesquisei algumas técnicas até chegar nessa versão simples e deliciosa! Pra começar, nada de açafrão de verdade! Confesso que eu tô me segurando para usar pela primeira vez, principalmente por suspeitar que vai ser um caminho sem volta, rs… Por enquanto, uso o açafrão made in Brasil mesmo, ou como vejo em alguns lugares: cúrcuma. Nessa versão, escolhi só adicionar legumes e vou te contar, ficou MARAVILHOSO! Servi esse prato para 2 pessoas carnívoras que se deliciaram e ainda repetiram! Tenho tentado aguçar
a minha criatividade culinária em busca de sabores incríveis sem precisar usar a proteína animal. Nada de radicalismos, só uma nova forma de encarar a cozinha e quebrar alguns paradigmas. Na verdade, aqui em casa sempre tiramos 1 dia na semana para ser o dia “sem carne” e tem sido uma delícia! E claro, essa receita é uma base! Fique a vontade para mudar os legumes a seu gosto. Bora pra receita que é daquelas que precisam de 1 panela só. Comece refogando 1 cebola média e 3 dentes de alho em 2 colheres de sopa de azeite até a cebola ficar bem macia. Adicione então 1 xíc. de vagem macarrão, 1/4 de xíc. de pimentão vermelho, 1 xíc. de aspargo fresco (separe as pontinhas para colocaar no final) e 1 xícara de cenoura. Eu gosto de deixar esse legumes menorzinhos para eles cozinharem bem ;-) Misture bem em fogo médio para dar uma refogada! Afro Savage
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Martin Luther King As coisas mudam - até a História Afinal, o Governo americano participou no assassinato de Martin Luther King. Esse foi o veredicto de um júri de Memphis. Mas o que poderia ter sido uma pequena revolução entrou e saiu pelos ouvidos dos americanos em dois segundos. A História mudou, há uma nova verdade mas, no fim, foi como se não tivesse acontecido.
Passavam dez minutos das três da tarde quando o porta-voz do júri se levantou, disse “sim” duas vezes e mudou para sempre a história do assassinato de Martin Luther King. Mas por causa de uma combinação única de paixões e ódios, provavelmente vai ficar tudo na mesma.”Obrigado”, disse um homem sentado na assistência. Afro Savage
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Global Imagens | O Dr. Martin Luther King Jr. lidera um desfile de vários milhares de defensores dos direitos civis para o tribunal em Montgomery, Alabama, em 17 de março de 1965. King disse que a marcha é para protestar contra o tratamento policial áspera dos manifestantes de direitos eleitorais no dia anterior. Dr. King pode ser visto na primeira fila de pessoas ligando os braços juntos, sétima pessoa da esquerda.
“Obrigado, Jesus.” Ninguém bateu palmas nem ninguém se levantou. Dexter King, o filho mais novo do reverendo que deu voz aos negros americanos e recebeu o Nobel da Paz em 1964, ficou imóvel. Mais tarde, Olivia Catling, uma mulher de 75 anos que em 1968 vivia ao lado do motel onde King foi assassinado, disse que vai poder finalmente descansar. “Há 30 anos que oiço o tiro. Agora posso dormir.” Ao fim de um mês e mais de 70 testemunhas, um júri do Tribunal Cível de Memphis disse no dia 8 deste mês que Lloyd Jowers, o réu do processo, fez parte de uma conspiração para matar Martin Luther King. Em 1993, Jowers, que agora tem 73 anos e está muito doente, revelou numa entrevista à cadeia de televisão ABC que fez parte da conspiração, que pagou a um homem - não o assassino oficial - para matar King e que recebeu a arma ainda quente, a desmontou e a escondeu nas traseiras do seu restaurante, o Jim’s Grill, e que a seguir um homem chamado Raoul a veio buscar. Além de Jowers, o júri também concordou que houve “outros co-conspiradores, incluindo 46
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agências do Governo dos Estados Unidos”. Como o assassinato do Presidente John F. Kennedy, em 1963, a história oficial da morte de King nunca foi digerida. Os americanos têm uma profunda ambivalência em relação ao seu Governo - queixam-se que cobra demasiados impostos e se intromete demasiado nas suas vidas - e adoram teorias de conspiração. Mas não é preciso ser-se fanático por histórias de um Governopapão e malévolo para encontrar peças da versão oficial que não encaixam.E talvez por isso a reacção ao veredicto, no tribunal, tenha sido tão calma, quase pacífica, como se os dois “sim” do júri fossem apenas a confirmação do que os americanos sempre acreditaram ser a verdade. Afinal, nunca foi conclusivamente provado que a “arma do crime” é a arma que matou King; nunca foi esclarecida a razão da mudança, à última hora, do quarto de King no Motel Lorraine para o andar de cima com entrada pela varanda. Nunca foi explicado porque é que a polícia deu ordens para a segurança normalmente atribuída para proteger King
se afastar cinco quarteirões pouco antes do tiro; ou porque é que no dia seguinte mandou cortar os arbustos ao pé do local de onde o tiro terá sido disparado. Além disso, só há uma testemunha que viu James Earl Ray, o assassino oficial, a sair da pensão em frente ao motel, e mais tarde outra testemunha disse que o homem que falou de Ray estava totalmente bêbedo. E, por último, várias pessoas que dizem ter visto coisas diferentes da versão oficial nunca foram interrogadas pelas autoridades. Apesar das inconsistências, esta história, que deixou na América uma ferida do tamanho de um “canyon”, só tem espaço para dois grupos. Os que acreditam na versão oficial e os que não acreditam. William Pepper, o advogado da família King que conduziu o julgamento de Memphis, não compreende como é que alguém ainda aceita a história oficial. “As pessoas
ouvem isto tudo e não ligam as coisas?!”, diz o advogado com um ar incrédulo.Os que acreditam na versão oficial, por sua vez, acusam Pepper de tratar todos os que não acreditam que o Governo participou no assassinato de também fazerem parte da conspiração.Inevitavelmente, como o gelo num cocktail, também há política pura. Ninguém usa isso como argumento, mas Pepper é um admirador de Fidel Castro que fala da necessidade de revoluções (“Thomas Jefferson dizia que era necessária uma revolução de 20 em 20 anos”), e que diz que “59 bilionários controlam um terço da riqueza do mundo” com uma expressão profundamente triste. A história de Raul, o português que Pepper diz ter orquestrado parte da conspiração, é um exemplo deste labirinto. Em 1969, James Earl Ray confessou o crime mas três dias depois escreveu ao juiz a dizer que tinha sido
forçado a confessar e que fora armadilhado por um homem chamado “Raoul”. Depois de vários anos de investigação, um grupo de detectives privados pagos pela BBC britânica concluiu que “Raoul” é afinal Raul, um português que emigrou para os EUA nos anos 60 e que hoje vive na costa leste. Possivelmente, o Raul português é apenas um homem com um grande azar e vítima de uma série de infelizes coincidências, como membros da família e o advogado disseram ao PÚBLICO. Mas como nos Estados Unidos ninguém parece ter levado o julgamento de Memphis a sério, a dúvida vai provavelmente morrer com os que acreditam que descobriram um peão essencial da conspiração. O julgamento, admitiu o próprio Pepper, “serviu sobretudo para fazer um registo histórico de tudo o que se sabe”. Fechar a história de uma vez por todas. “Agora sabemos o que aconteceu”,
Global Imagens | Dois homens, um preto e um branco, juntam-se as mãos enquanto cantam durante um tributo solene ao Dr. Martin Luther King Jr. em Minneapolis, Minnesota, em 9 de abril de 1968. Entre 3.500 e 4.000 pessoas, preto e branco, Centro de Minneapolis parque para o serviço que coincidiu com o funeral em Atlanta.
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disse Dexter King no fim. “Por favor, a partir de hoje, não me façam mais perguntas como ‘Acredita que James Earl Ray matou o seu pai?’ Há anos que ouço essa pergunta. Não, não acredito, e isto é o fim da história.” Mas a história está longe de acabar. Um dos problemas é que, em muitos aspectos, o julgamento pareceu ser encenado. A defesa quase não defendeu e o juiz aceitou como provas depoimentos anónimos, relatos em segunda e terceira mão e testemunhos de pessoas que já morreram.Como foi um julgamento cível (para apurar responsabilidade e estipular uma compensação monetária às vítimas), ninguém vai para a prisão e a exigência de provas é muito menor do que num julgamento criminal. Em vez de provar a culpa “além da dúvida razoável”, a acusação só teve que provar 51 por cento. Além disso, logo no primeiro dia, Lewis Garrison, o advogado da defesa, disse que concordava com “80 por cento da acusação”. “Há anos que investigo o assassinato do Dr. King e tudo indica que houve uma conspiração”, disse Garrison ao PÚBLICO num intervalo do julgamento. “Os 20 por cento de desacordo são o facto de o meu cliente não ter feito parte da conspiração.””Mas se os dois lados apresentam os mesmos factos, o que é que se espera que o júri faça?”, disse John Campbell, um advogado do gabinete do procurador geral de Memphis que no passado investigou o assassinato. David J. Garrow, biógrafo de King, disse ao “Commercial Appeal”, o principal diário da cidade, que o julgamento “fez a justiça do Tennessee parecer uma fantochada” . O impacto do veredicto, concluiu, vai ser “nulo”. E mesmo Jack Saltman, o exprodutor da BBC que diz ter descoberto o verdadeiro “Raul” e que testemunhou pela acusação, disse, ao telefone de Londres, que esta foi “uma oportunidade perdida” e que “Pepper não conseguiu fazer com que o julgamento parecesse verdadeiro”. “Mais uma vez, não se fez justiça a James Earl Ray. É uma vitória oca.” Pepper diz que não aceita críticas de “quem não assistiu ao julgamento”, sublinha que nenhum jornal ou televisão difundiu as provas apresentadas em tribunal e que a defesa “fez tudo o que podia para impedir o julgamento”. Dá dois exemplos: as duas moções da defesa para tentar arquivar o julgamento,
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Global Imagens | O Rev. Martin Luther King Jr., à direita, acompanhado pelo Rev. Ralph D. Abernathy, centro, é reservado pela polícia da cidade Lt. DH Lackey em Montgomery, Alabama, em 23 de fevereiro de 1956. Os líderes de direitos civis foram presos por acusações Virado pelo Grande Júri em um boicote de autocarro.
uma com base na doença do réu e outra com base no facto de o prazo legal para pôr um processo ter expirado. “E o juiz recusou ambas.” Uma vez que o próprio réu admitiu ter participado na conspiração (na televisão, num depoimento sob juramento e em duas conversas com Dexter King), a defesa concentrou-se em tentar mostrar que Jowers “só estava a seguir ordens e não fazia ideia que o Dr. King ia ser assassinado”, disse o advogado de defesa.Tudo o que Lloyd Jowers fez, diz o advogado, foi “receber um pacote com dinheiro, mas isso não era uma coisa estranha porque a pessoa que lhe pediu isso já o tinha feito várias vezes no passado”.Depois do veredicto, um membro do júri disse que o assassinato foi muito complexo e que era impossível ter sido Jowers e James Earl Ray a fazerem tudo sozinhos. O caso, concluiu o júri, é “claro como cristal”. O júri só demorou uma hora para anunciar o veredicto. Depois de mais de 20 depoimentos, o ex-congressista Walter Fauntroy, presidente do Comité Especial da Câmara dos Representantes sobre o Assassinato que entre 1977 e 1978 fez uma revisão da versão oficial, testemunhou que nunca ficou satisfeito com a conclusão de que “Raoul” não existiu.A conclusão final do Congresso foi que Ray matou King, mas não sozinho. “O comité concluiu que deve ter havido uma pequena conspiração”, disse Fauntroy. “Se tivéssemos tido mais seis meses, tínhamos chegado ao fundo da questão.”O
ex-congressista disse também que a história de Ray “nunca fez muito sentido”, sobretudo por causa das falsas identidades que Ray conseguiu obter (quatro canadianos do mesmo bairro e fisicamente parecidos com ele) e das viagens que fez (Canadá, Londres e Lisboa e de novo Londres, onde foi preso). Fauntroy sublinhou que “nenhuma testemunha credível identificou Ray na cena do crime” e que três testemunhas viram o tiro vir dos arbustos e não da pensão. Algumas das pistas que não chegaram a ser exploradas pelo Congresso nos anos 70 foram agora trazidas a público em Memphis pela primeira vez.Carthel Weeden, ex-chefe da Estação de Bombeiros em frente ao Motel Lorraine, na varanda do qual King foi morto, testemunhou que no dia 4 de Abril de 1968, dia do assassinato, deu acesso ao terraço da estação a dois homens do Governo que estavam a vigiar King e a fotografar as viagens e as pessoas com quem o líder negro se encontrava. Conclusão de Pepper: “Há fotografias do assassinato enterradas há 31 anos! E tudo leva a crer que poderão incluir também o assassino.”Bobbi Baufeur, que era cozinheira no Jim’s Grill, o restaurante de Lloyd Jowers, o réu, estava a trabalhar no dia 4 e testemunhou que uma das suas funções diárias era levar o pequeno-almoço a um hóspede no segundo andar “que passava o dia na cama”. Mas nesse dia, pela primeira e única vez, Jowers disse-lhe para não o fazer. Baufeur nunca foi interrogada. A versão
oficial diz que o tiro foi disparado da casa de banho do segundo andar onde Baufeur costumava levar o pequeno-almoço e nesse dia, concluiu a acusação, Jowers queria garantir que não havia movimento. O juiz Arthur Hanes Jr., de Birmingham, Alabama, testemunhou que, como primeiro advogado de Ray, em 1968 iniciou uma investigação em Memphis numa altura em que as testemunhas estavam vivas e com a memória fresca. Uma das pessoas que interrogou foi Guy Canipe, dono da Amusement Company, na Main Street, a um quarteirão do Motel Lorraine, onde foi encontrada um pacote com bens de Ray e a arma com as suas impressões digitais.A teoria do Estado é que depois de matar King do segundo andar da pensão, Ray empacotou as suas coisas - roupa, um rádio com a chapa com o seu número da prisão, um jornal local e a arma do crime já desmontada - fechou o pacote com uma corda, desceu as escadas da pensão, atravessou a rua, deixou a caixa à porta da loja de Canipe, entrou no seu Mustang branco e fugiu. “Uma actividade incrível para quem acabou de matar King e está obviamente com pressa”, disse o juiz ao PÚBLICO.Mas não é só o pacote que é intrigante. “Quando eu entrevistei o Sr. Canipe, ele disse que o pacote foi deixado por um homem que a seguir continuou em
direcção a sul, a pé, e dez minutos antes do tiro”, testemunhou o juiz. “Nós pensámos que era uma prova formidável. Estávamos absolutamente convencidos de que íamos ganhar.” O reverendo James Orange, que em 1968 era membro do conselho executivo da Southern Christian Leardership Conference, a organização de King, e estava em Memphis a preparar a visita, testemunhou que a 4 de Abril foi fazer umas compras, num carro conduzido por Marrell McCollough, um activista negro que William Pepper acusa de ser um agente duplo a trabalhar para a polícia, e que achou “estranho” o longo caminho que McCollough fez para regressar ao motel.Quando finalmente chegaram, King acabara de ser atingido, “dois ou três segundos antes”. Orange ainda viu a perna de King a cair sobre a grade da varanda do motel e nesse momento olhou para trás e viu “fumo a sair da zona dos arbustos”. Quando foi contar à polícia, disseram-lhe para se “calar” e não se “intrometer”. “Nunca fui interrogado por nenhuma agência federal.”Jo B. Hodges, que foi polícia de Memphis durante 45 anos, testemunhou que encontrou uma marca fresca de um sapato de homem ao pé dos arbustos minutos depois do tiro.Jim Smith, polícia de Memphis entre 1964 e 1970 e que em 1968 trabalhava no departamento de Serviços
Global Imagens | Um menino joga “Dixie” em um clarinete e uma menina ao lado dele acena uma bandeira confederada como marchers conduzidos pelo Dr. Martin Luther King Jr. aproximação ao longo do ombro de U.S. 51 perto de Como, Mississippi, em 9 de junho de 1966.
Especiais, contou como, duas semanas antes do assassinato, foi enviado para afastar o tráfico à volta do Hotel Rivermont onde King estava hospedado dessa vez.. A única coisa que o comandante da polícia lhe disse foi que fosse ter com os “feds” (“federal agents”) e lhes levasse comida e bebidas. Os homens estavam numa carrinha em frente ao hotel com equipamento de rádio. “No dia seguinte soube por acaso que estava a ser feita uma operação de vigia ao Dr. King.” “Eles não eram polícias de Memphis”, disse Smith. “Sabia que o Governo ainda hoje nega ter feito escutas e vigilâncias a King?”, perguntou Pepper. “Não.”E por último, Jack Terrell, que está doente e testemunhou através de um vídeo feito em sua casa dias antes de o julgamento começar, era um antigo membro de operações secretas do Governo americano que, contratado pela CIA, fez “muito trabalho com os Contra” da Nicarágua. Terrell contou que no início dos anos 70 ficou amigo de um homem chamado J.D. Hill, membro de um grupo militar especial do Mississipi que fazia treino militar duas vezes por ano na área de Memphis.Um dia, já os dois tinham bebido um bocado, Hill contou-lhe que em 1968 recebera ordens para ir para Memphis para “matar um líder árabe”. Recebeu a localização, mapas e armas. Mas em vez das normais, entregaram-lhe uma espingarda 30.06 (como a “arma do crime”), o que Hill achou “muito esquisito”. De um momento para o outro, porém, a missão foi cancelada e Hill e os colegas regressaram ao Mississipi.Nunca ninguém lhe disse nada, mas no dia seguinte Hill leu no jornal que King tinha sido morto e percebeu qual é que a sua missão teria sido. Para complicar o mistério, Hill foi encontrado morto no alpendre da sua casa anos depois com cinco tiros no peito a formarem um círculo. A sua mulher foi investigada por um grande júri mas o caso acabou por ser arquivado. Nessa altura, Terrell fugiu do país. “Para os irritar”, disse no julgamento, “fui para a Rússia”.
Bárbara Reis, em Memphis
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sta coleção é parte de ColorCurators, uma colaboração do primeiro-deseu-tipo que caracteriza 10 das estrelas as mais quentes na beleza, na forma, e no wellness que teamed acima com fórmula X para expressar seu estilo da
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assinatura com as cores personalizadas do prego. Cada mês, um Color Curator revela três tons de edição limitada - cada um inspirado em sua própria paixão e estilo de vida - para contar uma história de poder através da cor .
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Entrevista
A Nova Lisboa Africana. Jovens, talentosa e negra Yolanda Tati
Nina Simone terá pensado nela quando, em 1969, cantou “To Be Young, Gifted and Black”. Mesmo que este ainda não seja o mundo que imaginou. Diferentes da geração dos seus pais, que na maior parte dos casos os trouxeram de África para o país, estão a mudar a paisagem lisboeta.
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Yolanda da Purificação Mambo Gaspar Tati. A síntese que ela é está logo no nome. Tati é o nome da sua família de Cabinda, Angola, onde nasceu. Purificação Gaspar poderia ser o nome de alguém nascido em Lisboa, cidade para onde se mudou com a família aos três anos. “Tinha vergonha do meu nome. É gigante e muito africano, e o facto de ser com “y”... Não gostava de dizer todo. Hoje em dia amo.
Tenho muita pena que não exista uma cadeira para dar a conhecer a cultura africana. Tal como no princípio tinha muita vergonha no cabelo.” Já não é assim. Nos últimos dois anos usou o cabelo afro, natural. Antes, rapou-o, como fizera Nina Simone. “A minha referência”, diz logo. É ela naquele quadro atrás de Yolanda. A fotografia foi tirada por Barrie Wentzell em 1969, ano em que Nina editava a canção To Be Young, Gifted and Black (“Ser jovem, talentoso e negro”, em português), que se tornaria um hino do movimento pela igualdade de direitos civis dos negros nos Estados Unidos. E ela, que dizia haver “milhões de rapazes e raparigas” assim, poderia ter cantado essa canção para Yolanda Tati. Chega a correr depois de atravessar Lisboa num final de tarde. Aos 24 anos, é engenheira petrolífera na Galp. Quando acabou o primeiro ano do mestrado, no Instituto 62
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Superior Técnico, tinha já sete propostas de petrolíferas de todo o mundo. Encontramo-nos no Tête-à-Tête, a casa de hóspedes que Yolanda imaginou e dirige desde novembro de 2015, quando regressou de um único ano de trabalho em Luanda, na francesa Total. Interrompida pelos hóspedes que vão tocando à porta, ou pela espanhola que lhe elogia a casa, conta que só nessa altura, quando voltou à Angola de que poucas recordações lhe restavam da infância, percebeu que durante toda a sua vida em Portugal fizera parte de uma “classe baixa, imigrante”. “Só tardiamente tive noção de que durante muito tempo eu fiz parte dessa classe que desconhecia, e que não tinha estratificada na minha cabeça.” Não o sabia, mesmo que fossem “de abdicação e de sacrifício” as histórias que ouvia do pai, engenheiro de Geologia e Minas, que deixou de ajudar os pais na casa comercial quando foi estudar para a Argélia, e da mãe, que deixou a escola para ajudar a criar os seus seis irmãos. Os seus pais mudaram-se para Lisboa quando eram jovens adultos. Como a maioria da sua geração, sempre com o propósito de um dia regressarem a Angola. Educaram-na, e aos três irmãos, para saberem o que era importante, explica na sua forma de falar, veloz, alegre, quase que em gorjeios. Foi assim naquele que aponta como “o acontecimento que descreve quem eu sou, aqui, hoje em dia, e que foi chave na minha vida”. “Tive o azar de ter tido uma educadora de infância que me maltratou, quando eu era muito pequena, dos três aos cinco anos. Gozava com o meu nome, dizia que eu cheirava mal, punha-me de parte, davame palmadonas. Os meus pais sempre disseram: “Tens de resolver os teus problemas no teu infantário com as tuas pessoas.” Eu lembro-me de ir a chorar para casa e de eles dizerem: “Se vieres a chorar ainda ficas de castigo.” Gozavam comigo por ser negra, gorda, por ter o nome que tinha. Sempre vivi neste registo de me superar e provar aquilo que eu encerrava em mim contra todas as expectativas.”
Jorge Amaral / Global Imagens | Yolanda Tati, engenheira petrolífera.
Naquele ano que passou em Luanda, entre 2014 e 2015, Yolanda diz ter percebido “que era muito mais portuguesa do que angolana”. Hoje, com dupla nacionalidade, conta que o seu sotaque português era malvisto no seu país de origem, e que assim que era escutado os preços no mercado inflacionavam. Percebeu que tinha criado um “ambiente um bocado fantasioso” quanto a Angola. Ainda que
em Portugal fosse “aos concertos de Aline Frazão e do Paulo Flores - que é o nosso suprassumo - ou às sessões de leitura do Ondjaki”. “Ao dar-me conta da necessidade e esforço para me adaptar, perguntei-me: Se me estou a esforçar tanto quer dizer que não sou daqui?” Se tiver de recorrer aos números, Yolanda Tati dirá que é “51% portuguesa e 49% angolana”. Por isso, afirma ter “muita pena” que em Portugal “existam tantos
africanos e não exista uma cadeira à parte onde se desse a conhecer parte da sua cultura. Tudo o que eu cheguei a saber sobre Angola foi fruto do meu esforço”. Quanto aos seus pais, depois de 20 anos como imigrantes, “depois deste sacrifício todo, de terem formado os filhos, sempre naquela ânsia de voltar e de construir a casa deles”, regressaram a Angola. Vivem em Benguela. Mariana Pereira
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ALBI NIS MO Depois de compartilhar suas fotos de Hopa, Sanele Junior Xaba, que também tem albinismo, chegou a Dingwall sobre as mídias sociais. Os dois construíram uma amizade, e quando o modelo finalmente se mudou para Joanesburgo, eles colaboraram em uma série intitulada “Albus”. “Sanele é um verdadeiro profissional que está preparado para qualquer coisa”, continuou Dingwall, citando sua abertura para trabalhar com cobras, apesar de sua profunda fobia como exemplo. “Não só a beleza exterior de Sanele reflete nas obras, mas sua força interior também é revelada.” Através de sua série, Dingwall espera dissipar os mitos negativos e tabus associados com albinismo na cultura sulafricana. Em uma escala maior, ele espera desafiar noções idealizadas de beleza e celebrar o valor da variância. “As imagens não são sobre raça ou moda, mas sobre a percepção e o que subjetivamente percebemos como belas”, disse o artista. “Eu queria criar uma série de imagens que ressoam com a humanidade e fazem as pessoas questionarem o que é bonito.”
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por Justin Dingwall
/ Agenda Cultural Queridos Leitores Afro e Savages, a partir de agora poderão encontrar neste número um mini-roteiro com sugestões da equipa Afro Savage para um ou para todos os vossos fins-de-semana. Seja aqui, seja onde for é pôr as mãos à obra e ir já! A diversão expande-se a visitas a museus, peças de teatro, festivais de música entre muitos outros. Tudo ao seu dispôr...
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Obras da Coleção de Serralves ARTES › EXPOSIÇÕES › COLETIVAS 19 mai a 6 ago/17 Terça a sexta, das 10h às 13h e das 14h às 18h | Sábado e domingo, das 14h às 18h
O Olhar do Artista: Obras da Coleção de Serralves apresenta mais de 40 obras da Coleção de Serralves numa grande variedade de suportes, incluindo pintura, escultura, desenho, instalação e vídeo. Foi concebida em colaboração com os artistas, expandindo assim o leque de perspetivas sobre a Coleção e valorizando a singularidade da visão de cada artista sobre as obras dos seus pares. Serão apresentadas obras de 20 artistas convidados, portugueses e de outras partes do mundo, acompanhados
por trabalhos de outros autores selecionados por eles e que fazem parte da Coleção de Serralves. A escolha das obras incluídas nesta exposição é, assim, baseada numa vasta variedade de afinidades – da pura admiração ao reconhecimento da importância de um determinado trabalho na história da arte contemporânea, ou uma preciosidade escondida que os artistas convidados consideram dever ser mais conhecida do público.
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Três Irmãs Teatro › Espetáculos 24 a 26 jun/17 Quarta a sexta, às 21h30 UmColetivo. Luisa Monteiro (Irina), Valério Romão (Macha) e Rui Pina Coelho (Olga), textos. Cátia Terrinca e Francisco Salgado, criação; Cátia Terrinca, interpretação. Três Irmãs é um monólogo a três tempos. Começa in media res, imediatamente a seguir a ter-se perdido o único comboio rumo a Moscovo. Aí, as Três iniciam uma viagem extática, paralela à linha de comboio: uma
Luiz Caracol Metade e Meia
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Música › Espetáculos 26 jul/17 Sexta, às 21h30
Luiz Caracol convida Aline Frazão e Biru para o concerto de apresentação do seu novo disco, Metade e Meia. O espetáculo decorre no Cinema São Jorge, dia 26 de maio. “Metade e Meia” reflete não
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jornada longa e fria corpo adentro que conduzirá a uma cidade que ninguém sabe qual nem como é. Cada uma delas é estação dessa viagem ao sonho da capital, portanto, cada uma delas, é um ato distinto: Irina – Macha – Olga. Uma Matrioska. Como se a família fosse apenas o percurso de tempo-fora, através da vida. Primeiro, a Irina diz “vamos trabalhar, vamos trabalhar”; depois, a Macha grita “precisamos viver, precisamos viver” e, no fim, Olga: “se nós soubéssemos, se nós soubéssemos…”
só esta mestiçagem de Luiz Caracol e da sua música, como toda a mistura de influências que em si se encontram. Neste segundo trabalho continuam a poder encontrar-se muitos destes elementos que o caracterizam e caracterizam a sua maneira de fazer música, em que as texturas e as sonoridades de uma Lisboa marítima, portuária e mulata se misturam com as palavras e as histórias de Luiz Caracol, assim como as de outros parceiros autorais como Zeca Baleiro, José Luís Peixoto, Fred Martins, Fernando Terra, etc.
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MADONNA. Tesouros dos Museus do Vaticano Artes › Exposições › Coletivas 19 jun a 10 set/17 Terça a domingo, das 10h às 18h Do final da Antiguidade à época moderna, a iconografia da Virgem Maria nunca deixou de inspirar artistas e serve agora, no ano em que se celebra o centenário das aparições de Fátima, de eixo temático a esta mostra, que conta com um conjunto de obras das famosas coleções dos Museus do Vaticano, nomeadamente da sua valiosa Pinacoteca. Para além de extraordinárias tapeçarias e códices iluminados do acervo da Biblioteca Apostolica
Vaticana, esta exposição apresenta também pinturas de Primitivos italianos, como Taddeo do Bartolo, Sano di Pietro e Fra Angelico, e de grandes mestres do Renascimento e do Barroco, como Rafael, Salviati, Pietro da Cortona e Barochi. Da Galleria Borghese chegam ainda pinturas de Venusti e Sassoferrato e da Galleria Corsini , obras de Gentileschi e Van Dyck. ARV
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Dança › Espetáculos 26 e 27 jun/17 Sexta e sábado, às 21h30 Após uma primeira edição dos Encontros do DeVIR, para a qual Vera Mantero criou Os Serrenhos do Caldeirão (escolhida pelo jornal brasileiro O Globo como uma das 10 melhores peças de dança apresentadas em 2014), e que refletia sobre a desertificação nesta zona montanhosa, a coreógrafa foi novamente convidada
para a terceira edição destes Encontros. Desta vez debruça-se sobre a descaracterização do litoral algarvio: “Pão Rico: Vale de Lobo e Vilamoura. Quarteira é o recheio de uma sanduíche, a sanduíche dos €10 milhões. Por aqui já aconteceu há muito a invasão da marabunta.” Vera Mantero estudou dança clássica com Anna Mascolo e integrou o Ballet Gulbenkian entre 1984 e 1989.
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Imagens | Agenda Cultural de Lisboa.
A Divina Comédia - Inferno Teatro › Espetáculos 11 juna 4 jul/17 Quarta, às 19h | quinta a sábado, às 21h | domingo, às 16h O Bando. A partir de Dante Alighieri. João Brites, encenação; na Brandão, Bruno Bernardo, Carolina Dominguez, Catarina Claro, Cirila Bossuet, Guilherme Noronha, João Grosso, João Neca, José Neves, Juliana Pinho, Lara Matos, Lúcia Maria, Manuel Coelho, Paula Mora, Raul Atalaia, Rita Brito, Sara Belo, Sara de Castro e Tomás Varela, intepretação. O Inferno está no meio de nós. Cá fora.
Cá dentro. Questionamo-nos sobre a existência e a humanidade possíveis nos dias que hoje atravessamos. Viajamos. Abrimos as portas inferiores. Alteramos escalas e níveis de percepção. Observamos de muito longe. Vemos ao microscópio. Ouvimos as vozes. Os gritos. Os risos. Experienciamos todas as distâncias. Os medos. As penitências. Procuramos a ajustada imagem da realidade.
TRAGÉDIA + TEMPO Imagens | Agenda Cultural de Lisboa.
Cinema, Literatura, Música, Teatro 9 jan a 8 jul/17 PROGRAMA : Conferências Ana Bola e Nuno Markl entrevistam Bruno Nogueira e Ricardo Araújo Pereira 9 janeiro | Segunda, 19h Jardim de Inverno |Preço: 12€
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“Florestas Submersas” by Takashi Amano, 2017 Ciência
Horário de Verão: Todos os dias: 10h-20h (última entrada 19h) Horário de Inverno: Todos os dias: 10h-19h (última entrada 18h) Mais de 10 mil peixes tropicais e 46 espécies de plantas aquáticas habitam o maior “nature
O Humor na Política data a definir Sala Luis Miguel Cintra O Humor na Religião 6 fev Segunda, 19h Jardim de Inverno O Humor na Música 14 mar Terça, 19h Jardim de Inverno
aquarium” do mundo, criado pelo aclamado aquascaper japonês Takashi Amano. A nova exposição temporária do Oceanário permite uma visita pelas florestas tropicais tendo como som de fundo uma música original de Rodrigo Leão. O músico português criou uma composição inspirada no conceito desta mostra que apresenta o maior “nature aquarium” do mundo (40 metros de comprimento e 160 mil litros de água doce) com assinatura de Takashi Amano, um fotógrafo de natureza e mestre na criação de aquários plantados. Numa fusão perfeita, a arte e a natureza envolvem os visitantes numa experiência de relaxamento, quietude e simplicidade.
O Humor na Revista à Portuguesa 2 mai Terça, 19h Jardim de Inverno Noites de Stand-up* 8 e 9 maio Segunda e terça, 19h Jardim de Inverno * a anunciar Leituras Poesia Satírica 31 março Sexta, 21h Jardim de Inverno
Textos encenados 14 e15 junho Quarta e quinta, 21h Jardim de Inverno Cinema Escolhas de Nuno Markl 1 e 2 abril sábado e domingo, horário a definir Sala Mário Viegas
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Capa da Próxima Edição
Setembro 2017, com entrevista a Luís Filipe Borges
Ficha Técnica
PROPRIETÁRIO EDITOR REVISTA # 2 | Setembro 2017
Afro Savage, Avenida da Liberdade, Palácio Real, Nº. 188, 1º.Andar , 1250-146, Lisboa DIRECTOR Mónica Monteiro PERIOCIDADE Trimestral TIRAGEM 2500 exemplares COLABORADORES Sofia Yala Agenda Cultural de Lisboa
DIRECTOR DE ARTE Mónica Monteiro
FOTÓGRAFO Imagens do tumbrl Google images DESIGNER Mónica Monteiro (monteiromonica 151 @gmail.com)
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Agradeacimentos Sofia Yala | Vannya Sanhá | Isabél Zuaa | Djamilia Pereira de Almeida | Equipa de actores do filme Monnlight | Bárbara Reis | Ibeyi | Agenda Cultural | Utilizadores do Tumbrl | Mariana Pereira | Yolanda Tati |