DELICADEZA
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eide Silva é uma mulher plural. Faz
tudo, agora, e ao mesmo tempo. Sempre quis aprender a bordar, mas não tinha acesso a essa técnica. Quem dominava a arte não tinha muita paciência de ensinar. Mas desistir nunca faz parte dos seus planos. Ela buscou e encontrou quem estava disposto a ensinar e, hoje, é a presidente da Associação das Bordadeiras do Recanto das Emas e ensina a quem chegar. “Quando alguém vem aprender aqui na Associação do Recanto das Emas, eu explico que esse aprendizado é uma troca. Uma sabe um ponto que a outra não sabe; e, assim, nos ajudamos, umas às outras. Sempre falo para as nossas professoras que a gente nunca sabe tudo e que estamos sempre dividindo conhecimento. Assim estamos sempre multiplicando, trabalhando juntas.”
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O bordado é um resgate da delicadeza e o reconhecimento desse trabalho de mulheres, em Brasília, que bordam suas histórias, tributos e os simbolos que as identificam 1
Neide é a filha mais velha de seis irmãos. Fez um curso de gestão de moda no IESB e tomou gosto. Só não foi além porque, com o fruto do seu trabalho, formou duas irmãs e ainda faltam mais três. Diz que quando todos estiverem formados, pretende cursar Serviço Social para poder ajudar na inserção de mulheres, como ela, no mercado. “Se Deus quiser”, afirma. Ela começou a trabalhar com bordados na Apoena, uma marca brasiliense especializada em trabalhos manuais no Distrito Federal, fundada em 2006, e sempre quis aprender de tudo, finalizava a produção das mais experientes, costurava, fazia limpeza, tudo para estar presente nos processos criativos.
por MÕNICA SIQUEIRA
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multiplicadores, como a Família Dumont. Elas aprenderam, entre outras coisas, logística, consumo e negociações na produção artesanal, vendas virtuais e a fazer parcerias para participação em feiras.
Tramas do bem Nos bairros do entorno de Brasília, surgiram várias associações de bordados que funcionam como a estrutura orgânica das “colmeias” - que se organizam em colônias, com hierarquias bem definidas e distribuição de papeis. Essa atividade típica de mulheres donas de casa nos séculos passados, hoje é fonte de renda de muitas que tentaram sua inserção no mercado de trabalho, com pouco recurso e instrução. Esse é um exemplo onde a solidariedade recria modelos comunitários, através da oralidade, ferramenta fundamental nessa produção artesanal. Aprender umas com as outras torna essa transmissão de conhecimento uma ressignificação à tradição artesanal e à composição desses núcleos de trabalho. O crescimento e reconhecimento dessa arte em Brasília trouxe, de muitos lugares, histórias de vida, identidade, feminilidade, possibilidades de empreendedorismo, além de promover mudanças no papel social desses grupos. A arte milenar vinda para o Brasil com os imigrantes alemães é transmitida, principalmente, de mãe para filha, mas saiu do campo da “moça prendada”, para formação de pequenas empreendedoras.
Inicialmente, os trabalhos eram realizados nas casas dessas mulheres. Antonieta buscou ajuda em várias empresas públicas, privadas e embaixadas; conseguiu, assim, que as associações tivessem recursos para a locação de salas e que pudessem receber as primeiras máquinas e materiais doados para as produções. A formação dessas associações deu voz a essas mulheres como agentes políticos, promovendo visibilidade para conseguirem apoio de empresas públicas e privadas.
Bordado Familia Dumont
O inicio Há cerca de 15 anos, o Sebrae DF iniciou um projeto intitulado “Via Design” para o fomento e capacitação de artesãs com ou sem habilidades no artesanato. A chefe de Gestão do Artesanato da Secretaria de Turismo, Antonieta Contini, ex-gerente de desenvolvimento do SEBRAE, foi a responsável pela criação e implantação desse projeto. Antonieta conta que esse trabalho pioneiro em Brasília teve reverberação em muitos lugares e visibilidade além do Brasil. Foram mais de 10 mil mulheres atendidas pelo projeto. Depois, ela foi
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convidada pela Organização Internacional do Trabalho a vários países da África: Guiné Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique para implantar esse projeto. O objetivo era fortalecer a autoestima de mulheres de baixa ou nenhuma renda, e prepará-las para inserção no mercado de trabalho através do associativismo e estímulo ao empreendedorismo. A proposta consistia em identificar potencialidades individuais dentro das atividades que essas mulheres já exerciam ou que se identificavam e poderiam realizar; e, capacitá-las para gestão empresarial dessa habilidade. O projeto promoveu a identidade artística com a ajuda do designer Renato Ambroisi e agentes
Existe uma maior produtividade no desempenho de trabalhos realizados em grupo, facilitando na qualificação de mão de obra e uso das ferramentas de produção auxiliares, como as máquinas de costuras. Mas, principalmente, as associações permitem diminuir os custos nos mecanismos de vendas, como a participação em feiras e exposições, na compra de linhas e tecidos por preços melhores, aumentando a oferta e visibilidade. Do projeto Via Design nasceu o modelo de gestão de associações de bordadeiras, como a Flor de Ipê, a Associação do Recanto das Emas, a Associação das Três Baianinhas e a Brincando com Linhas, entre outras. Antonieta diz que Brasília não tinha nenhuma tradição nos bordados. “A população vem de várias regiões, então fizemos uma pesquisa junto com a UNB e começamos a usar o cerrado como referência para as produções: a fauna, as flores, e até a arquitetura de Brasília, que é maravilhosa. Foi preciso encontrar a identidade de cada grupo.” 4
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Arte, cultura e negócio Essa pesquisa rendeu um catálogo de mais de 1000 flores do cerrado que foi iniciado pelo designer Renato Imbroisi que defende que os bordados possuem diferentes significados que irão variar de acordo com os sujeitos e os contextos sociais.
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na relação direta entre o designer e a artesã ocorre a transformação das ‘coisas da vovó’, os saberes e fazeres tradicionais, em algo novo.
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Ele foi um ator indispensável na mediação entre as artesãs e as instituições formais que apoiaram o desenvolvimento desse projeto. Principalmente pela característica informal do trabalho. Renato participou durante muito tempo das atividades dos grupos para entender suas potencialidades e, a partir disso, propor um treinamento. Ele diz que “na relação direta entre o designer e a artesã ocorre a transformação das ‘coisas da vovó’, os saberes e fazeres tradicionais, em algo novo. Devido a insuficiência de registros e literatura sobre os bordados, a história oral possibilita conhecer questões sobre o aprendizado, as técnicas/pontos, tipologias, materiais utilizados na criação, transmissão e recepção da prática.” A doutora em Antropologia Aline Canani, em pesquisa sobre artesanato, concluiu que a atividade, além de transformar a vida das artesãs, é um fator de orgulho para a comunidade. Ela conta o caso de Dinalva Leal que, ao aderir ao projeto, teve resistência dentro da própria família que cobrava um emprego de doméstica, pela possibilidade de ser mais estável. Mas depois que seu trabalho foi mostrado no programa da apresentadora Ana Maria Braga, na Rede Globo, ela ganhou respeito e reconhecimento dentro de casa e na vizinhança. O que era considerado um passatempo, ganhou importância. 5
Neide Silva- Associação do Recanto das Emas
Além disso, algumas regionais são vistas como cidades com auto índice de violência e a imagem de uma produção local reconhecida é um reforço positivo e dá sustentação a essas associações. Ela diz que ter seus trabalhos reconhecidos, retratados nos jornais e na televisão, muda a percepção dos que estão próximos.
Aline Canani afirma que a sociedade tem a cultura de eleger a mulher como alguém com predisposição maior aos trabalhos manuais, mas isso faz parte do mito feminino presente desde as primeiras comunidades.
Historias de vida Zenaide Soares dedicou-se a um projeto do Instituto Proenza, que presta assistência à comunidade da Ceilândia, no entorno de Brasília. Um deles, o Projeto Mulheres e Crianças na Escola, teve em 6
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2012 o apoio do Criança Esperança, da Unesco e da Caixa Econômica Federal com o intuito de formar grupos de mulheres empreendedoras e seus filhos de 06 a 14 anos que vivem em situação de vulnerabilidade.
Zenaide ensinou mulheres da Casa Abrigo, centro que recebe mulheres e filhos menores em situação de violência extrema e sob grave risco de vida. Ela se emociona ao contar que, quando as vítimas de violência chegam ao local, elas “estão muito destruídas” e o trabalho de reinserção inclui a reelaboração da autoimagem. Bordar seu autorretrato é o início desse progresso. “É muito lindo e triste ao mesmo tempo, mas isso é o início para elas já começarem a se recuperar. Para conviver com elas é preciso passar muito bom astral. Enquanto eu estive lá, ensinei 62 mulheres e elas conseguiram. Porque ninguém faz ideia do que é uma mulher passar pelo que elas passam, mas muitas desistem.” As artesãs afirmam que, no bordado, é possível ter contato com o passado, presente e futuro de muitas delas fazendo com que as lembranças subjetivas criem novos significados e possibilidades. Elas começam a se ver de outra forma e produzem um sentimento de valorização, pertencimento e empoderamento. “Algumas clientes chegam para gente e dizem que o tal bordado é caro. Mas sabemos que esse é o preço, é que muita gente ainda acha que esse trabalho não tem valor. Mas nós sabemos que tem e vamos em frente”, diz Fatima Lima, da Bordando com linhas. Ela bordou inclusive um livro de pano com a historia de sua vida, que é motivo de muito orgulho.
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O cadastramento do artesão
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Agendamento de demonstração de técnica
O artesão/trabalhador manual deverá telefonar, enviar e-mail ou comparecer à SUAPAT da SETUR-DF para agendar dia e hora da demonstração do fazer artezanal, munido da documentação exigida e matéria-prima para demonstração de todas as técnicas que deverão constar em sua Carteira de Artesão
Avaliação do produto artesanal/ trabalho manual durante a demonstração técnica A avaliação é realizada por uma equipe técnica que analisa e claassifica o produto do artesão/trabalhador manual de acordo com a técnica utilizada, matéria-prima e qualidade de acabamento, de acordo com as diretrizes do PAB
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Aprovação de inlcusão em banco de dados nacional Se aprovado, o cadastro do artesão/ trabalhador manual será inserido no banco de dados do SICAB
Emissão de Carteira
A Carteira do Artesão/ Trabalhador Manual será emitida e entregue ao interessado
Recadastramento
A Carteira Nacional do Artesão e a Carteira Nacional do Trabalhador Manual terão validade de quatro anos e o seu usos será obrigatório em todos os eventos de divulgação, promoção e comercialização do PAB. A sua renovação será submetida aos mesmos requisitos previstos para o cadastramento
Legislação A carreira de artesão finalmente está reconhecida no Brasil. A Lei nº 13.180, sancionada em outubro de 2015, promoveu a criação de políticas públicas e programas de desenvolvimento econômico e social para suporte ao artesão.Além disso, a criação de uma carteira nacional que autoriza a abertura de uma escola técnica para cursos na área. A subsecretária de Artesanato e Produção Associada ao Turismo do Distrito Federal, Antonieta Contini, avalia que “desde os primórdios, os artesãos estão esperando por essa valorização. Eles levarão a profissão mais a sério e verão a atividade como um negócio”. Esses projetos sociais precisam de ações para sua continuidade e para o seu desenvolvimento sustentável, segundo a subsecretária.
Casa Abrigo , autorretrato Marlene Dias
Instituto Proeza
Kátia Ferreira, assistente social, virou estilista. A partir da experiência com os grupos de bordadeiras e costureiras, criou a marca Apoena em 2001 e a ONG Instituto Proeza. Ela conseguiu criar uma identidade que a distingue no mercado de moda local. Retirou bordadeiras de feiras e as colocou em projeção no cenário de moda nacional e internacional. A lojista declara que tudo que é vendido na sua loja está ajudando alguém. As peças são produzidas por mulheres que passam por necessidade e, com a ajuda do projeto, aprendem a bordar e costurar. A venda das roupas também financia projetos de educação. Em 2016, por exemplo, 19 alunos de escolas públicas que participaram do cursinho formado com a renda da loja passaram na UnB. 8