“As pessoas precisam saber que são importantes e que arquitetos e planejadores têm em mente o seu bem-estar” HALL, Edward T. (2005)
Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Engenharia Departamento de Arquitetura e Urbanismo
Monique de Castro Cabral
A ARQUITETURA QUE NÃO VEMOS As relações psicológicas e sensoriais inerentes ao espaço arquitetônico
Monografia apresentada ao curso de Arquitetura e Urbanismo, da Faculdade de Engenharia, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para conclusão da disciplina Trabalho Final de Graduação I. Orientador: Prof. MSc. Carina Folena Cardoso
Juiz de Fora Março / 2016
de Castro Cabral, Monique. A arquitetura que não vemos : As relações psicológicas e sensoriais inerentes ao espaço arquitetônico / Monique de Castro Cabral. -- 2016. 94 p. Orientadora: Carina Folena Cardoso Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2016. 1. Arquitetura e urbanismo. 2. pscicologia da arquitetura. 3. relações sensoriais na arquitetura. I. Folena Cardoso, Carina, orient. II. Título.
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Dedico esse trabalho à todos os arquitetos e urbanistas que trabalham arduamente na criação de atmosferas e melhora da qualidade de vida das pessoas mundo afora.
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Agradecimentos
Existem pessoas que simplesmente aparecem na sua vida para melhorá-la, e graças a Deus, tenho muitas delas em minha. Agradeço pela ajuda de todas essas pessoas, não só por essa monografia, mas principalmente ao longo de todo o curso, pois não teria conseguido chegar nem perto daqui se não fossem elas. Meu agradecimento especial vai para os meus pais, meus irmãos e minha família em geral. Agradeço à minha professora orientadora Carina Folena por ter sido de grande valia para meu trabalho. Também agradeço aos meus bons amigos por todo o apoio, consolo e felicidade que me deram (e dão!). Agradeço aos amigos que fiz durante meu intercâmbio na Inglaterra, que foram minha família e são uma inspiração pra mim. Agradeço à Aline Fernandes, Bruna Pontes, Juliana Alencar e Lucas Lacerda em especial, por além de serem grandes pessoas na minha vida ainda terem me ajudado na revisão deste texto e/ou com depoimentos para este trabalho. A todos que não mencionei aqui, mas que foram importantes de alguma forma em meu desenvolvimento acadêmico, agradeço de coração.
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“A função atemporal da arquitetura é criar metáforas existenciais para o corpo e para a vida que concretizem e estruturem nossa existência no mundo. [...] As edificações e cidades nos permitem estruturar, entender e lembrar o fluxo amorfo da realidade e, em última análise, lembrar quem somos.” PALLASMA. 5
Resumo
Este trabalho teve como objetivo enfatizar, através do estudo das relações psicológicas e sensoriais que permeiam o espaço construído pelo homem, como essas podem ser posteriormente aplicadas na prática arquitetônica, buscando o aprimoramento do projetar para pessoas e a multiplicidade de experiências nas cidades. O enfoque teórico se deu com base principalmente nos trabalhos de Allain de Botton em “The architecture of happiness”; Juani Pallasma em “Os olhos da pele”; Peter Zumthor em “Atmosferas”; e Edward T. Hall em “A dimensão oculta”. Foram estudados desde o entendimento popular com relação à arquitetura, o sentido da beleza, as questões perceptivas, a evolução e fisiologia humana, as diferenças culturais, e a relação dos sentidos e da psicologia com a arquitetura, e fez-se uma evolução teórica até chegar à prática arquitetônica em si. Desta maneira, criou-se um embasamento consistente para guiar a realização de trabalhos arquitetônicos que representem um sentido verdadeiro para as pessoas, construindo-se locais que contenham aura e os quais sejam geradores de felicidade. Dois estudos de caso foram realizados no intuito de ilustrar a criação de lugares, sendo eles o Museu Kolumba projetado por Peter Zumthor e o Museu Judaico em Berlim de Daniel Libeskind. O trabalho termina concluindo que é preciso entender as relações diretas e indiretas que os edifícios apresentam às pessoas e que o saber lidar com essas relações traz um novo conceito aos espaços produzidos pelo homem, atrelando identidade e vida aos locais e fazendo com que a arquitetura se torne um marco do bem estar social.
Palavras-chave Percepção, espaço, sentidos, psicologia, arquitetura, lugar, beleza
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Sumário
Introdução ........................................................................................................................07 1. A arquitetura que fala .................................................................................................10 1.1. A arquitetura que se almeja .......................................................................................10 1.2. A mensagem que se passa .......................................................................................14 1.3. A beleza nua e crua ...................................................................................................17 2. A experiência humana na arquitetura ......................................................................21 2.1. As relações perceptivas, a cultura e a evolução humana ........................................22 2.1.1 A relações perceptivas .............................................................................................22 2.1.2 A cultura ...................................................................................................................23 2.1.3 A evolução Humana ................................................................................................25 2.2. A arquitetura que me toca: relações sensoriais ........................................................27 2.2.1 Os receptores remotos: Visão, audição e olfato .....................................................29 2.2.2 Receptores imediatos: Tato e músculos .................................................................38 2.3. A arquitetura que eu toco: relações psicológicas .....................................................46 2.4. Tempo, memória e relações associativas .............................................................. ..55 3. Concepção e prática arquitônica ..............................................................................60 3.1. A era da interatividade .............................................................................................. 61 3.2. O que é e como se dá o projetar atmosferas ............................................................64
4. Estudos de caso: as boas práticas ..........................................................................72 4.1. Museu Kolumba – Peter Zumthor .............................................................................72 4.2. Museu Judaico em Berlim – Daniel Libeskind ..........................................................79
Conclusão ........................................................................................................................89 Bibliografia .......................................................................................................................93
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Introdução
A arquitetura, mais do que promover abrigo a intempéries e a perigos externos ou ser facilitadora de algum tipo de atividade, é um espaço no qual o lado psicológico se manifesta de maneira intensa, sendo que, muitas vezes, esta psicologia inerente é deixada de lado pelos arquitetos na hora de se pensar a materialidade de um edifício. O conjunto arquitetônico é portador de grande significação, seja ele em qualquer escala. Em seu livro “The architecture of happiness”, Alain de Botton (2006), descreve a residência como um santuário físico e psicológico que guarda identidade: ao longo dos anos, seus donos retornaram de longos períodos ausentes e, ao olhar em volta, lembraram-se de quem são. Para entender o porquê das pessoas preferirem algum ambiente ao outro ou o porquê de nos sentirmos de certa maneira em algum local é preciso entender não somente como cada indivíduo funciona em si, em termos sensoriais e psicológicos, como também como a sociedade, cultura e como padrões e modos de vida influenciam nas escolhas de cada um, principalmente quando se trata diretamente de arquitetura, e analisar como ela interage com essa percepção. A observação da falta de sensibilidade com relação ao usuário apresentada por grande parte das arquiteturas produzidas nos dias de hoje e a grande primazia pela imagem pura e simplesmente foi a grande motivação para a produção deste trabalho, que almeja o entendimento da esfera arquitetônica como um todo, além do que se vê. A negligência com relação ao corpo e aos sentidos seguido do grande desequilíbrio nas questões sensoriais são para Pallasma (2012) os elementos que causam a falta de humanidade na arquitetura das cidades contemporâneas. A primazia da visão e a consequente supressão dos outros sentidos são, segundo o autor, algo que nos leva a um tipo de isolamento, nos forçando à alienação. Os edifícios que estão sendo criados na contemporaneidade com base nessa doutrina do olhar nos oferecem arquiteturas imponentes e instigantes, mas que não representam conexão humana com o mundo. O objetivo geral deste trabalho é analisar as relações explicitas e ocultas existentes entre o usuário e o ambiente construído, e analisar maneiras com que arquitetos e urbanistas podem, e devem, se utilizar dessas relações para produzir uma arquitetura que ressalte as relações sensoriais e psicológicas, com o intuito de se construir 8
arquiteturas de qualidade que proporcionem experiências únicas e construtivas ao usuário, fazendo-o gostar e zelar pelo local, melhorando assim a qualidade de vida e sensação de bem-estar das pessoas geradas pela arquitetura e a cidade em geral. A arquitetura, assim como as cidades, é construída por e para pessoas, portanto deve sempre levar em conta todas essas relações existentes entre o espaço e o ser humano a fim de que se tornem mais saudáveis e agradáveis. A metodologia utilizada nesse trabalho é baseada em leituras de bibliografia específica, com base, sobretudo, em quatro autores principais, sendo eles: Allain de Botton “The architecture of happiness”; Juani Pallasma “Os olhos da pele”; Peter Zumthor “Atmosferas”; e Edward T. Hall “A dimensão oculta”. Essa bibliografia principal foi escolhida por sua adequação ao tema e outros autores e bibliografias foram utilizados como apoio e complementação ao trabalho. O desenvolvimento do trabalho segue uma linha que se inicia no campo teórico para gradualmente chegar à questão prática da discussão sobre as relações psicológicas e sensoriais inerentes à arquitetura. No primeiro capítulo iniciarei dando base à discussão, apresentando as primeiras discussões com relação ao tema. Seguirei para o segundo capítulo com um aprofundamento mais direto nos temas psicologia e sentidos na arquitetura. O terceiro capítulo apresenta uma abordagem mais prática, utilizandose, sobretudo, das ideias de Peter Zumthor e as questões da criação de atmosferas como base. O quarto capítulo segue com os estudos de caso, onde serão analisadas duas edificações que se utilizam das questões aqui estudadas, sendo elas o Museu Kolumba, de Peter Zumthor e o Museu Judaico em Berlim, de Daniel Libeskind. Concluirei estes estudos fazendo um rápido resumo sobre os pontos chave aqui abordados e expressando minha opinião, baseada nos autores contemplados, sobre como podemos projetar para que o espaço arquitetônico seja cada vez mais envolvente e representante de significados, proporcionando experiências novas e marcantes para os usuários. O objeto arquitetônico escolhido para ser produzido após esta pesquisa é um centro cultural público, o qual foi escolhido pela sua amplitude de possibilidades, além do retorno que trará à cidade de Juiz de Fora através do suprimento da carência de espaços para atividades que enriqueçam o tempo livre das pessoas que a cidade apresenta. O uso do centro cultural como temática se dá pela interação que ele pode proporcionar entre as pessoas e o edifício, além de ser um local de convívio entre 9
pessoas e trocas de experiências, podendo se tornar um espaço no qual os usuários se identifiquem e criem vínculos afetivos que com outros usos seria mais difícil de proporcionar. O caráter público da edificação também abre suas portas à apropriação do espaço por meio de toda a comunidade, sem exceções, o que ajuda na manutenção do espaço através da identificação do usuário com ele e o estímulo de atividades para diferentes faixas etárias ajudarão também na criação de memória com o local. A intenção é integrar no espaço arquitetônico as questões psicológicas e sensoriais estudadas neste trabalho, instigando a experimentação das coisas do espaço através dos sentidos, principalmente relações com o tato, para que novas experiências sejam proporcionadas aos usuários e estimulem-nos a se voltar um pouco mais para as questões sensoriais negligenciadas e despertar sensações antes não conhecidas ou ignoradas.
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1. A arquitetura que fala
É quase uma unanimidade entre os teóricos estudados o fato de a arquitetura “falar” ao seu usuário e observador. Há sempre uma mensagem atrelada ao edifício, sendo ela de gentileza e acolhimento, ou de desprezo e opressão, entre outras. Não há como dissociar o objeto arquitetônico das impressões que o mesmo causa, e elas se apresentam de maneira instantânea ou com o tempo, podendo ser direta e demonstrada em seu exterior ou interior ou um conjunto dos dois. Segundo Botton (2006) o Movimento Moderno, assim como todos os seus predecessores, queriam que suas casas falassem. Eles queriam que suas casas falassem do futuro, com a promessa de velocidade e tecnologia, democracia e ciência. Na verdade, o que trabalhos de design e arquitetura nos falam é o tipo de vida que deve mais aproximadamente se manifestar nele e em volta dele. Eles nos falam de certo humor que eles procuram encorajar e sustentar em seus habitantes. Ao mesmo tempo em que nos mantem aquecidos e nos ajudam de maneira mecânica, eles simultaneamente seguram convites para nós sermos tipos específicos de pessoa naquele ambiente, nos comportar de certa maneira específica. Hall (2005) diz que é preciso ter em mente que a linguagem dos espaços de diferentes localidades é algo tão diferente entre elas quanto a linguagem falada. A cultura é um agente que muda nossa perspectiva com relação à arquitetura de modo muito marcante. Apesar do expressivo potencial de objetos e edifícios, discussões sobre o que eles falam continuam raras. Neste capítulo serão estudadas as mensagem passadas pelos espaços arquitetônico, o que se almeja com isso e o que a arquitetura de fato representa na vida das pessoas, analisando também as noções de beleza e toda a representatividade que a arquitetura pode ter em uma sociedade.
1.1.
A arquitetura que se almeja
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O que se procura em uma arquitetura? O que as pessoas querem de fato que a arquitetura seja? A arquitetura apresenta significado? Se sim, qual é esse significado? Qual o verdadeiro impacto da arquitetura em nossas vidas? Estes questionamentos representam o início e a base deste trabalho, pois é preciso entender o que se espera da arquitetura e qual o entendimento pré-existente das pessoas com relação a ela para que as outras questões possam ser levantadas posteriormente. Botton (2006) relata que a noção de edifícios que falam nos ajuda a posicionar no centro de nossos enigmas arquitetônicos a questão dos valores que queremos viver sobre – ao contrário de apenas como nós queremos que as coisas aparentem. A arquitetura é algo que não pode ser desvinculado do significado oculto que carrega. Para Botton (2006) a crença no significado da arquitetura é premissa na noção de que somos, pra melhor ou pior, diferentes pessoas em diferentes lugares, e na convicção de que é dever da arquitetura fazer vivo o que nós queremos ser idealmente. O autor nos fala que somos capazes, por exemplo, de perceber numa sala de estar em uma casa na República Checa a influência do entorno, e somos capazes de celebrar isso, assim como percebemos a composição do ambiente e conseguimos aceitar com gratidão o poder que um único cômodo nos oferece. Mas sensitivamente a arquitetura também apresenta um aspecto problemático: se um ambiente arquitetônico, sua cor ou suas características podem afetar como nos sentimos, então, o que acontece conosco em locais que somos obrigados a olhar ou vivenciar? Para o autor, o que nos previne de uma angústia contínua é a nossa capacidade de fecharmos os olhos para o que está a nosso redor. Em uma sugestão mais abrangente, Botton (2006, apud RUSKIN, s/ ano) propôs que nós procuramos duas coisas dos edifícios: nós queremos que eles nos protejam; e nós queremos que eles falem conosco. Falem conosco sobre qualquer coisa que acharmos importante e que precisam ser lembradas. A imagem da edificação é totalmente relacionada com aquilo que se quer dela, com o impacto que se deseja causar a partir dela, da imagem de seriedade, extroversão, compaixão, domínio, entre outras que desejamos que ela transmita. “[...] A tarefa da arte e da arquitetura, em geral, é reconstruir a experiência de um mundo interior indiferenciado, no qual não somos meros espectadores, mas ao qual pertencemos de modo indissolúvel” (PALLASMA, 2012, p.23). O que queremos da arquitetura afinal, é que façamos parte dela e que ela faça parte de nós. De acordo com Botton (2006) o que nós buscamos em um trabalho
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de arquitetura não é afinal tão distante do que nós buscamos em um amigo. Os objetos que descrevemos como bonitos são versões das pessoas que amamos. Os edifícios sempre devem exercer alguma função para nós. Botton (2006) afirma que embora nós possamos, à primeira vista, associar a palavra “função” com a eficiência de provisões para um santuário físico, nós provavelmente não vamos respeitar uma estrutura que não faz mais do que nos manter secos e aquecidos. O autor relata que, de quase todo edifício, nós queremos que não só cumpra certa função, mas que também tenha certa estética, que é constituída por motivo específico: de religiosidade ou escolaridade, rusticidade ou modernidade, comércio ou doméstico. Nós podemos esperar que a obra vá nos conectar ao passado ou se manter como um símbolo de futuro, e nós podemos reclamar, não menos que iriamos sobre um banheiro com mal funcionamento, se a estética e seu expressivo nível de função fosse deixada de lado. Pallasma (2012) sugere em sua obra que uma arquitetura de excelência é aquela que apresenta funções e alusões opostas e contraditórias, formando impulsos inconscientes que trazem o emocional à tona e que encontre, nas palavras de Pallasma (2012, apud AALTO, 1978, p.26): “uma solução simultânea de opostos”. Falando sobre o significado da arquitetura Pallasma (2012, p.59) afirma que “uma edificação não é um fim por si só; ela emoldura, articula, estrutura, dá importância, relaciona, separa e une, facilita e proíbe”, e ainda completa dizendo que a experiência de arquitetura deve ser formada pelo confronto de seu usuário com a edificação, e não uma apropriação de fachada. “O espaço arquitetônico é um espaço vivenciado, e não um mero espaço físico, e espaços vivenciados sempre transcendem a geometria e mensurabilidade” (PALLASMA, 2012, p. 59). Botton (2006) ao descrever uma casa de forma figurativa afirma que a felicidade presente em seus cômodos apresenta uma distinta contribuição por parte da arquitetura. A felicidade é em seu livro o elemento que ele tenta, de certa forma, encontrar a relação com a arquitetura. Ele faz descrições de uma casa como sendo um organismo vivo que presenciou os acontecimentos e sentiu “na pele” as atividades que ali ocorriam. E ele fala que apesar de a casa não apresentar todas as soluções necessárias para as problemáticas da vida de seus moradores, seus cômodos representam uma felicidade na qual a arquitetura teve grande contribuição.
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A importância da arquitetura é algo que representa muita controvérsia no mundo desde muito tempo, segundo Botton (2006). Algumas pessoas veem conscientemente a arquitetura como algo sem importância, questões estéticas pura e simplesmente, mas como veremos através deste trabalho, a arquitetura não é só mera estética. E afinal, o que a estética significa em nossas vidas? Segundo o dicionário Michaelins (2009) estética é o “estudo que determina o caráter do belo nas produções naturais e artísticas”. Algumas pessoas podem dizer que estética é algo totalmente fútil, que é perda de tempo e que tem relação apenas com vaidade e egos. Mas ao longo de toda a pesquisa deste trabalho é possível perceber que as relações que permeiam a beleza e o que ela provoca no ser humano são algo implícito, que a maioria das pessoas talvez não consiga notar de imediato, mas que possui uma representatividade enorme na vida das pessoas e que atua de forma ativa nos sentimentos e estado de espírito dos envolvidos. Segundo Pallasma (2012) a teoria e crítica da arquitetura moderna apresenta o espaço arquitetônico como algo imaterial constituído de superfícies materiais, e não como um local de interação do corpo e da mente. E esta foi sua grande falha. A arquitetura não pode ser desprendida das relações com o corpo. Nós interagimos na arquitetura através do corpo e nossa mente também se envolve com o lugar. Botton (2006) nos fala que a arquitetura é intrigante pela sua capacidade inconsistente de gerar felicidade na qual sua tentativa de chamar nossa atenção é fundada. Enquanto um edifício atraente pode ocasionalmente favorecer uma elevação no humor, vai haver vezes em que o local mais apropriado não será capaz de acabar com nossa tristeza ou misantropia. A arquitetura mais nobre pode muitas vezes fazer menos por nós do que um cochilo ou uma aspirina. Para o autor, casas bonitas podem não somente ser falhas como garantidoras de felicidade, elas podem também ser acusadas de falhar como melhoradoras das características daqueles que a habitam. O que ele quer dizer com isso é que a beleza em si na arquitetura de nada vale, é preciso um algo a mais que passe a sensação de pertencimento aos que se utilizam do espaço. A arquitetura pode ser cheia de significados e estes podem ser facilmente encontrados em arquiteturas religiosas, mas Botton (2006) nos fala que, sem honrar a nenhum Deus, uma peça de arquitetura doméstica, não menos que uma capela ou um mosteiro, pode nos assistir na comemoração de nosso verdadeiro eu. Assim como um cômodo inteiro, uma única foto pode nos auxiliar em recuperar a perda de algo significante parte de nós. 14
Botton (2006) explica que o motivo para nós valorizarmos certos edifícios está em sua habilidade de balancear nossa natureza sem forma e encorajar emoções que nossos compromissos
predominantes
nos
forçam
a
sacrificar.
Sentimentos
como
competitividade, inveja e agressividade dificilmente precisam de elaboração, mas sentimentos de humildade em meio a um universo sublime e imenso, de um desejo de calma no começo da noite ou de uma aspiração por gravidade e bondade – estes formam parte não tão confiável de nosso interior, um vazio triste que pode explicar nosso desejo de vincular esse tipo de emoções na fabricação de lares. O autor acredita que a arquitetura pode prender inclinações transitórias e tímidas, amplificando e solidificando-as, e assim garantindo-nos acesso permanente a uma diversidade de texturas emocionais que nós podemos por outro lado ter experimentado somente acidentalmente ou ocasionalmente. Para Botton (2006) o impulso arquitetônico parece conectado a uma necessidade de comunicação e comemoração, uma necessidade de nos declarar ao mundo através de um registro além das palavras, através da linguagem de objetos, cores e pedras: uma ambição de deixar os outros saberem quem nós somos, e nesse processo, nos lembrar também. Os elementos emocionais ligados à arquitetura têm muito de nós atrelado. Por meio da arquitetura queremos lembrar e queremos que as pessoas lembrem-se de coisas que são importantes para nós, e dentro deste conceito aparece a questão dos edifícios que falam. Os edifícios “falantes” querem sempre dizer algo, e seus elementos são conformados para que possa dizê-lo, e essas mensagens passada serão o foco do próximo tópico.
1.2.
A mensagem que se passa
Levando em consideração que a arquitetura, assim como a arte, é um elemento que dialoga, que fala sobre algo, então certamente há alguma mensagem passada. As mensagens passadas pela arquitetura podem representar uma infinidade de objetivos diferentes, sendo eles nem sempre tão facilmente observados ou feitos de maneira bem óbvia, mas importante é saber que sempre há uma mensagem passada por entre as estruturas de um edifício, e este será o tema principal de estudo deste tópico.
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Botton (2006, apud STOKER) apresenta duas ideias de como nós interpretamos imagens passadas por objetos, nos levando a duas diferentes ideias: primeiro, que não é difícil para nós interpretarmos um objeto como uma figura humana ou animal; segundo, nossas razões para gostarmos de esculturas abstratas, e por extensão mesas e colunas, não são afinal tão diferentes das nossas razões para honrar cenas representacionais. Nós chamamos os trabalhos em ambos gêneros bonitos quando eles sucedem em evocar o que nos parece mais atraente, atributos significantes de seres humanos ou animais. À exemplo de como a arquitetura nos passa mensagens e de como essas podem ser usadas em prol de uma imagem desejada, Botton (2006) relata uma questão bem visível relacionada ao governo da Alemanha e seu comportamento durante e após a Segunda Guerra Mundial nos pavilhões nacionais das exposições mundiais nos dois períodos. Durante o estado fascista, o pavilhão projetado por Speers para a feira de Paris de 1937, fez uso de metáforas visuais de poder: altura, massa e sombra. Vinte e dois anos e uma grande guerra depois, em seu pavilhão germânico para a exposição mundial de Bruxelas de 1958, Egon Eiermann recorreria a um trio de metáforas muito diferentes: horizontalidade para sugerir calma, iluminação para explicitar gentileza e transparência para evocar democracia. Para Botton (2006) tão eloquentes são materiais e cores que uma fachada pode ser feita com o intuito de falar sobre como um país deve ser governado e quais princípios devem governar sua política externa. O autor afirma que ideais políticos e éticos podem ser escritos em molduras de janelas e puxadores de portas. Pallasma (2012) afirma que em situações onde há a busca pelo estado de controlar os seus cidadãos, por exemplo, a tendência é de se promover menor interação e diminuir os sentidos de individualidade e intimidade, tentando-se alcançar maior isolamento físico e público. Para atingir esses objetivos, os governos controladores buscam o “olhar voyuer e sádico”, que é fixo direto e rígido, tentando impedir estados emocionais muito intensos em que os sentidos mais primitivos se tornam mais exacerbados. Uma forma eficiente de tortura, segundo Pallasma (2012) é a implantação de uma luz forte e constante, que não abre espaço para a mente vagar. Botton (2006) afirma que a arquitetura pode também conter mensagens morais, mas não têm poder de reforça-las. Ela oferece sugestões ao invés de criar leis. Ela nos
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convida, ao invés de nos ordenar, a emular seu espírito e não pode prevenir seu próprio abuso. Outro exemplo de arquitetura que é fortemente ligada à mensagem que passa de maneira geral pode-se citar a arquitetura religiosa. A arquitetura religiosa é conhecida pelo poder que apresenta de induzir comportamentos em seus salões, feitos com uma ideologia forte e marcada. É uma arquitetura pensada para impressionar, para fazer a pessoa refletir e conseguir sentir a presença de algo maior que ela no ambiente. Botton (2006) relata que os antigos teólogos especularam que deve ser mais fácil se tornar servo fiel de Deus através do olhar do que da leitura. O maior princípio da arquitetura religiosa tem suas origens na noção de que onde estamos determina criticamente o que nós somos capazes de acreditar. Botton (2006) utiliza-se do exemplo das catedrais para mostrar como a arquitetura pode ter grande poder sobre nós: fazendo turismo em catedrais hoje em dia, com câmeras e guias em nossas mãos, nós podemos experimentar algo estranho a nosso secularismo prático: um peculiar e embaraçoso desejo de cair de joelhos e adorar algo tão poderoso e sublime quanto nós somos pequenos e inadequados. O autor afirma que esse tipo de reação, no entanto, não surpreenderia os construtores das catedrais, pois foi precisamente através de tal rendição de nossa autossuficiência que seus esforços foram direcionados, o propósito de suas paredes etéreas e tetos em forma de laços sendo para fazer agitações metafísicas não só plausíveis, mas irresistíveis até para os corações mais soberbos. Mas apesar de ser mais prática em termos gerais do que a arquitetura religiosa, Botton (2006) afirma que a arquitetura secular pode não ter uma ideologia clara a defender, não ter texto sagrado para citar e não ter um Deus para adorar, mas, assim como seu homólogo religioso, possui o poder de moldar aqueles que vêm dentro de sua órbita. Segundo o autor, os defensores da busca da beleza arquitetural, sendo secular ou religiosa, em última análise justificam suas ambições através de um apelo ao mesmo fenômeno: a inabilidade dos homens de florescer em medida igual não importando qual local ele é posto dentro. A imagem de edifícios ou até de cidades inteiras também podem ser criadas com o intuito de se promover um novo tipo de pensamento, ou mudar a ideia de certa localidade. Botton (2006) cita o exemplo da criação de Brasília, que foi concebida não para simbolizar uma realidade nacional existente, mas para trazer uma nova realidade à tona. Seus criadores acreditavam que suas largas avenidas e seu concreto ondulado e edifícios de aço poderiam apagar o legado colonial brasileiro, assim como o caos e a 17
pobreza de suas cidades da costa. Brasília deveria trazer para o país a ideia de modernidade que simbolizava. Acreditavam que a cidade iria criar um país à sua imagem. O fato de terem surgido favelas ao seu redor e de sua grama ter ficado descuidada e de terem aparecido rachaduras em sua catedral não dissuadiu os formuladores da arquitetura idealizada. Para eles, esses lapsos meramente sublinham a necessidade de idealizações para nos defender contra tudo que continua corrupto e inimaginável entre nós. Para Botton (2006) é importante salientar que quando um edifício fala, nunca é com apenas uma voz. Edifícios são coros e não solistas; eles possuem múltiplas naturezas das quais surgem oportunidades para as belas harmonias assim como discórdia e desacordo. Enquanto certos edifícios parecem concordar com sua missão estética, persuadindo seus elementos díspares para conformar uma contribuição lógica ao todo, outros parecem conflituosos com relação a suas intenções. O fato que mais importa para nós arquitetos com relação à imagem dos edifícios é que devemos saber entender as mensagens que eles passam, no intuito de podermos fazer edifícios e cidades cuja identidade seja bem aproveitada, e que sua imagem seja feita de forma a se encaixar com a utilização feita do edifício, auxiliando assim na apropriação do espaço e no respeito que as pessoas apresentaram pelo mesmo. Uma arquitetura que não fale para as pessoas o que elas querem ouvir será uma arquitetura malsucedida no local, faltando as características que a tornem um local com uso bem estabelecido e respeitado. Além disso, o saber sobre as mensagens passadas pela arquitetura também podem nos proporcionar o poder de conseguir criar sensações espaciais diferenciadas para as pessoas, promovendo assim uma nova gama de experiências para as pessoas nas cidades, estimulando a vida e a diversificação de seus mundos. No próximo tópico serão iniciadas as discussões com relação às noções de beleza existentes, continuando assim o estudo sobre a imagem da arquitetura e sua influência em nossas vidas.
1.3.
A beleza nua e crua
A discussão sobre a beleza que será fomentada nesse tópico utilizará principalmente pontos levantados por Botton (2006) em sua obra “The architecture of happiness”. O autor salienta que os questionamentos de beleza são impossíveis de se elucidar assim 18
como vergonhosos e não democráticos de mencionar. Porém, existe uma dinâmica que permeia as questões da beleza e arquitetura que podem sim ser estudadas, e este é o objetivo deste tópico. Para Botton (2006) a beleza não é um conceito com o qual já nascemos, nós podemos aprender a defender ou atacar um conceito de beleza da mesma forma que podemos defender ou atacar uma posição legal ou uma estância ética. Nós podemos entender, e explicar publicamente porque nós acreditamos que um edifício é desejável ou ofensivo baseado no que ele nos fala. Ao contrário da crença Romântica de que cada um de nós encontra naturalmente sua ideia de beleza, parece que nossas faculdades visuais e emocionais de fato precisam constantemente de guias externos para ajudarmos a decidir o que devemos tomar nota e apreciar. “Cultura” é a palavra que devemos direcionar a força que nos assiste em identificar qual de nossas inúmeras sensações nós devemos focar e dar valor (BOTTON, 2006). Botton (2006) afirma que a criação da beleza, já vista como a tarefa principal do arquiteto, evaporou-se, discretamente, do debate profissional e retirou-se para um imperativo privado confuso. Aqueles que fizeram da beleza arquitetônica pura e simplesmente seu trabalho de vida sabem muito bem o quão fútil seus esforços podem ser. Isso quer dizer que, na arquitetura, a beleza sem fundamento não apresenta significado aos usuários. Nos tempos contemporâneos em que a arquitetura apresenta milhares de possibilidades de criação, a construção da beleza pode ser um grande desafio, mas Botton (2006) afirma que nem sempre foi tão difícil saber como se construí-la. De acordo com o autor, por muitos anos, a beleza era criada seguindo padrões muito bem estruturados, com regras impostas e elementos bem definidos que conformavam um edifício. Com o fim das regras e limitações do que era entendido como belo nos edifícios, Botton (2006) nos diz que foi criado um clima onde nenhum estilo pode ser imune à crítica. As omissões feitas por arquitetos com relação às regras arquitetônicas existentes os bateu de forma arrebatadora. Com a frustração, eles se viraram contra a ideia das leis arquitetônicas, declarando-as ingênuas e absurdas, sintomas de utopias e mentes rígidas. Para Botton (2006) mesmo que não saibamos a soma do que se contribui para a beleza de um edifício, nós devemos achar possível nos aventurar em teorias e assuntos na esperança de provocar outros a contribuir posteriormente e complementarmente com ideias para um corpo de conhecimento envolvente. 19
Entrando em um lado um pouco mais subjetivo da beleza, Botton (2006) afirma que não existe necessariamente conexão entre o sentido de lar e de beleza; o que nós chamamos de lar é meramente um local que é bem-sucedido em fazer disponível mais conscientemente para nós as verdades importantes para nós que o grande mundo ignora, ou que nossos distraídos e hesitantes interiores tem dificuldade de segurar. Achar algo bonito naturalmente nos convida a imaginar que nós vamos permanecer leais aos nossos sentimentos, mas a história do design e arquitetura oferece pouca reafirmação da fidelidade de nosso gosto, salienta Botton (2006). A ideia de que o que nós amamos agora pode no futuro, por razões além de nosso entendimento, aparentar ser absurda é tão difícil de suportar no contexto de uma peça de mobília em uma loja quanto no contexto de uma perspectiva esposa no altar. O autor diz que não se admira, neste contexto, que arquitetos de maneira tão assídua tentam distinguir seu trabalho de mera moda, e que eles tentem colocar tanta reserva (em vão, é claro) em criar trabalhos que as décadas não irão transformar em ridículo. Segundo Botton (2006) Enquanto as sociedades possuírem uma história, que é um compilado de mudanças e ambições, a arte também terá uma, na qual sempre haverá casualidades na forma de mal amados sofás, casas e monumentos. Como o modo em que somos desequilibrados se altera, nossa atenção vai continuar a ser desenhada como novas partes de um espectro de gostos e novos estilos que nós vamos declarar belos baseado na sua corporificação de uma forma concentrada do que agora se mantém oculto em nós. O motivo pelo qual nós mudamos de ideia com relação ao que achamos bonito, e a explicação para a arquitetura com relação à mudança de preferencias de uma sociedade de um estilo para o outro se apoia nos valores que a sociedade em questão estava em falta na época, por isso amava na arte qualquer coisa que não possuísse em quantidade suficiente em si mesmo (BOTTON, 2006, apud WORRINGER s/ ano). Podemos concluir a partir disto que nós somos condicionados a achar algo bonito sempre que detectamos que contém uma forma concentrada das qualidades em que nós pessoalmente, ou em nossa sociedade de modo mais geral, somos deficientes. Botton (2006) ressalta que nós respeitamos um estilo que pode nos mover para longe do que tememos e em direção ao que almejamos: um estilo que carregue uma dosagem correta de nossas virtudes perdidas. Nossa necessidade com relação à arte é em si um sinal de que nós estamos em constante perigo de desequilíbrio, de falhar em regular nossos extremos, de perder o controle sobre o meio termo entre as oportunidades da vida: tédio e excitação, razão e imaginação, simplicidade e 20
complexidade, segurança e perigo, austeridade e luxo. Precisamos da arte para nos regular internamente. É importante ressaltar, segundo Botton (2006), que o conhecimento do mecanismo psicológico por detrás do gosto pode não mudar o nosso senso de beleza, mas pode nos prevenir de reagir contra o que não acreditamos com simples descaso. Ao invés disso, devemos nos perguntar o que deve faltar na vida de uma pessoa para que consiga ver aquele objeto como belo e podemos entender o teor de suas privações mesmo que não expressemos entusiasmo sobre suas escolhas. Essa delicadeza em se compreender e saber respeitar o gosto de uma determinada pessoa através do que lhe falta interiormente é algo que os arquitetos devem saber trabalhar no intuito de criar edifícios, pois sempre temos que ter em mente que o projetar, a maioria das vezes, pode até ser feito por você, mas vai se direcionar a outra pessoa, e pode ser que aquele indivíduo tenha uma noção totalmente diferente da sua com relação à beleza. Para Botton (2006) é possível afirmar que nada na arquitetura é simplesmente feio, é tudo parte de uma mera questão de lugar errado ou tamanho errado, uma vez que a beleza é a filha da relação coerente entre as partes. Incoerência arquitetônica não é limitada ao design de edifícios individualmente. Também pode residir na relação entre edifícios e seus contextos, geograficamente ou cronologicamente. O autor afirma que um edifício adequado contextualmente deve ser definido como um que corporifica algumas das maiores ambições de sua era e local – um edifício que funciona como um repositório de um ideal trabalhável. Fazer uma analogia entre arquitetura e ética nos ajuda a discernir que não existe uma única fonte de beleza em uma obra, assim como nenhuma qualidade pode sustentar excelência em uma pessoa.
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2. A experiência humana na arquitetura
O ônibus finalmente para em seu destino final. Foram sete longas horas dentro de um ônibus frio e fechado até chegar aqui. Desço e de imediato sinto um calor inundar meu corpo de ar condicionado, seguido pelo gosto de maresia e umidade que respiro: estou chegando. Alguns metros andando e me deparo com um familiar portãozinho vermelhotijolo no qual eu puxo o trinco e ouço o rangido de suas dobradiças ao abrir. Mais uns passos e me confronto com a porta amarela de entrada da minha casa da infância, já um pouco comida por cupins. Seguro em sua maçaneta fria e já escuto passos eufóricos de chinelo do outro lado e, antes que eu consiga abri-la, me deparo com uma figura materna me abraçando aos dizeres de bem-vinda. Adentro a fresca sala de estar com seus móveis combinados e o cheiro de umidade misturado com um pouco de mofo ao fundo se intensificam. Meu quarto ainda está lá, com os objetos e decorações acumulados e modificados ao longo de todos os anos que morei ali. Tudo isso junto e agrupado são as condições que tornam este local o meu lar, e todas as memórias evocadas por cada um desses detalhes e muitos outros são o que me fazem voltar pra lá, não se pode separar nem dimensionar a importância de cada elemento só: é o conjunto de sensações que me identificam. Esta descrição de uma cena pessoal de minha vida evidencia um pouco do que será abordado neste capítulo: os fatores psicológicos e perceptivos ligados à memória e identidade de um local. Com esta passagem é possível perceber que é um conjunto de fatores que ligam de fato todas estas questões, e não apenas o lado meramente visual que tanto é valorizado em nossa era. A possibilidade de ação é o que diferencia a arquitetura dos outros tipos de arte, afirma Pallasma (2012), e isso faz com que o corpo seja algo indissociável da arquitetura. “Os ‘elementos’ da arquitetura não são unidades visuais ou gestalt; eles são encontros, confrontos que interagem com a memória” (PALLASMA, 2012, p.58) Em seu livro, Hall (2005) passa aos arquitetos que a experiência espacial de um indivíduo não permeia apenas o campo da visão, mas é multissensorial. O autor completa observando que edifícios e cidades não possuem o poder de reparar injustiças sociais, e que existem muito mais ações a serem tomadas nas cidades do 22
que apenas um planejamento urbano para que democracia seja de fato aplicada, mas existe um vínculo muito forte entre o homem e suas extensões. Tudo o que acontece no mundo real tem um espaço onde ocorre, e esses cenários influem nas pessoas ali presentes, portanto, há essa influência que deve ser levada em consideração sempre pelos planejadores dos espaços. O que falta em nossas moradias de hoje são as transações potenciais entre corpo, imaginação e ambiente. Pelo menos até certo ponto, qualquer lugar pode ser lembrado, em parte por ser único, mas também por ter afetado nossos corpos e produzido associações suficientes para que fosse impresso em nossos mundos pessoais (PALLASMA 2012, apud BLOOMER &MOORE, p. 36)
Neste capítulo serão estudadas estas relações do ser humano com o espaço, abordando a percepção, os sentidos, a psicologia e a memória envolvidas com a arquitetura. “Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio da minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade e a cidade mora em mim” (PALLASMA, 2012, p.36)
2.1. As relações perceptivas, a cultura e a evolução humana 2.1.1. As relações Perceptivas Segundo definições do dicionário Michaelins (2009), percepção é o “ato, efeito ou faculdade de perceber; recepção, pelos centros nervosos, de impressões colhidas pelos sentidos”, logo a percepção do espaço é o conjunto das impressões formuladas através dos sentidos, e este conjunto não pode ser negligenciado na hora de se projetar os espaços que serão percebidos. Todo espaço é percebido de alguma maneira, e a atenção ao modo com que esta percepção ocorre é algo de grande importância para a arquitetura. Hall (2005) afirma que o projetar para pessoas se tornou o último item da lista da maioria dos projetos atuais. “As pessoas precisam saber que são importantes e que arquitetos e planejadores têm em mente o seu bem-estar” (HALL, 2005, p.XII) e segundo o autor, é difícil encontrar arquiteturas que passem esta mensagem. De acordo com Pallasma (2012), a arquitetura e a arte reforçam a sensação de identidade pessoal, o que nos envolve de tal maneira que permeia nossos sonhos, imaginação e desejos. Para o autor, as cidades e edificações são elementos que nos atrelam à 23
realidade da situação humana ultrapassando a pura sedução visual e se tornando mediadoras e projetadoras de significados importantes. A missão de toda arte significativa é de nos fazer sentir como seres corpóreos e espiritualizados, e nesse contexto o sentido das edificações ultrapassa a mera arquitetura, direcionando nossa consciência para o mundo e nos proporcionando a sensação de se ter uma identidade e de estar vivo. A relação do corpo com o mundo é o que realmente nos situa na existência. Não há como dissociar as experiências corporais do que o mundo representa para cada indivíduo, e essa experiência de mundo é dada através da percepção: “A percepção do corpo e a imagem do mundo se tornam uma experiência existencial contínua; não há corpo separado de seu domicílio no espaço, não há espaço desvinculado da imagem inconsciente de nossa identidade pessoal perceptiva” (PALLASMA, 2012, p.36). Segundo Pallasma (2012, apud MERLEAU-PONTY) o corpo e o mundo formam uma interação que é natural à vida, formando um sistema no qual a relação dos sentidos é “instável e alheia a percepção natural” e nossa experimentação do mundo se dá com o corpo todo de uma vez só e com os sentidos inter-relacionados. Isso evidencia que não percebemos as coisas com um sentido isolado, mas com uma interação contínua entre eles, fato que pode ser apresentado de maneira direta ou subjetiva sem nosso conhecimento de fato.
2.1.2. A cultura Existem diversos fatores que podem ser associados à percepção, sendo a cultura um ponto muito forte que constrói percepções diferentes do mundo. Os sentidos e as relações psicológicas entre as pessoas e o meio se manifestam de modos diferentes de acordo com a cultura, que é responsável por produzir padrões perceptuais distintos: A percepção espacial não é uma questão apenas do que pode ser percebido, mas do que pode ser excluído. Indivíduos criados em culturas diferentes aprendem desde a infância – sem jamais se dar conta que esse aprendizado aconteceu – a descartar um tipo de informação enquanto prestam muita atenção a outros tipos (HALL, 2005, p.55).
De acordo com Hall (2005), esses padrões culturais de percepção perduram pela vida toda de um indivíduo após serem estabelecidos. As necessidades de pessoas de culturas distintas tornam-se algo totalmente não relacionado, como o exemplo que o 24
autor cita entre japoneses e ocidentais: japoneses se sentem perfeitamente protegidos por paredes feitas de papel, enquanto os ocidentais necessitam de paredes mais grossas e sólidas para tal função. Todos os organismos existentes habitam mundos perceptivos, e para cada um deles, essa percepção se dá de maneira diferente (HALL, 2005). Há grande distinção entre organismos que habitam locais diferentes com pressões ambientais diferentes. Segundo Hall (2005) só se pode entender o ser humano se primeiramente se compreender sua natureza e de seus receptores, e como toda a informação recebida por eles é modificada pela cultura. Hall (2005) afirma que pessoas pertencentes a culturas diferentes, além de falarem línguas diferentes, também habitam mundos sensoriais diferentes. Por meio disto, as experiências percebidas entre pessoas de culturas distintas atuam de maneira muito desassociada entre si. Segundo o autor, as arquiteturas e cidades produzidas no âmbito dessas diferenças são expressão disso. No âmbito das diferenças culturais, a linguagem é um fator também importante que acentua essas diferenças. Segundo Hall (2005, apud. WHORF, 1956) a linguagem influencia o pensamento, pois é a partir dela que conseguimos formular de maneira clara as ideias. A percepção do ser humano com relação ao mundo é formulada e programada pela linguagem, da mesma forma em que um computado trabalha. Essa problemática, diz o autor, é algo que acerta em cheio a teoria do livre arbítrio, pois, segundo ele, a língua falada é um elemento que cria barreiras de certa forma. A experiência, para Hall (2005), é o que todo ser humano possui em comum, e este seria o elemento capaz de contornar a linguagem oral e a cultura para, assim, poder se alcançar outro ser humano, mas levando em conta que pessoas de culturas diferentes percebem o mundo de maneira distinta. Pessoas de uma certa cultura, quando convivem durante muito tempo em outra podem pegar alguns traços dela, mas Hall (2005) afirma que ao voltarem para sua cultura original, de alguma forma o comportamento da pessoa se readéqua a daquela cultura “em todos os sentidos da expressão, eles se transformas em pessoas totalmente diferentes”(HALL, 2005, p. 4). Os sistemas culturais, para Hall (2005) afetam de maneira crucial o comportamento das pessoas, e está profundamente enraizado na fisiologia e biologia. Ele afirma que essa dimensão cultural é criada pelo homem e que a proxêmica é apenas uma parte. Hall (2005) afirma que a relação do homem com o espaço mudou de maneira tão radical que agora ele é o criador do seu mundo, e essa 25
criação é referida pelos etólogos como biótopo. Com a criação de seu próprio mundo, o ser humano está se modificando junto e determinando como seu organismo será daqui pra frente. “Também significa que, num sentido muito profundo, nossas cidades estão gerando diferentes tipos de pessoas em seus cortiços, hospitais psiquiátricos, presídios e bairros afastados de classe média alta” (HALL, 2005, p. 5) esse tipo de situação criadora de diferentes mundos em uma cidade, dificulta ainda mais a integração das minorias e a falta de compreensão com relação aos diferentes povos coloca empecilhos no desenvolvimento de nações subdesenvolvidas.
2.1.3. A evolução humana Para Hall (2005), além das questões culturais, é preciso entender também as complexidades evolutivas dos sistemas receptores, pois existe uma relação direta sobre sua evolução e a capacidade de informações que consegue compilar. A reação a estímulos é parte integrante e importante da vida. No ser humano, a visão, apesar de ter sido o último dos sentidos a se desenvolver, se tornou o mais especializado e mais complexo dos sentidos. Para Hall (2005) há teorias de que através de competições intraespecíficas e interespecíficas, a evolução do homem conduziu um caminho que o levou a mudar de hábitos e passou de um animal habitante do solo para um animal habitante prioritariamente de árvores. Essa adaptação à vida arborícola mudou as prioridades dos sentidos, conferindo à visão e à audição uma importância maior do que a do olfato, pois do alto das árvores, a visão torna-se mais relevante e o permite planejar melhor os passos para a sobrevivência. Essa alteração da diminuição da importância do olfato mudou as relações humanas, e isso permite ao ser humano suportar melhor aglomerações do que animais mais olfativos, pois animais olfativos estão sujeitos a mudanças comportamentais a partir da química gerada pelo estado emocional de outros animais próximos, como por exemplo, um animal nervoso pode contaminar a todos em sua volta através de seu cheiro: “Os psicóticos começariam a deixar loucos a todos nós, e os ansiosos nos tornariam ainda mais ansiosos. No mínimo, a vida teria muito mais envolvimento e dramaticidade” (Hall, 2005, p.49). Segundo o autor, a vida seria menos sujeita a controle consciente, pois o olfato é comandado de maneira mais primitiva pelo cérebro do que a visão.
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Hall (2005) afirma que as secreções externas de um organismo atuam como unificadores de atividades entre a população de uma espécie, pois são ligadas à química do corpo dos organismos. Este fator ajuda a explicar a natureza da auto regulação das espécies ligadas ao fator de superpopulação, gerando uma síndrome que liga o corpo ao estresse. Resumindo os estudos analisados e citados por Hall (2005) o que ocorre quando a agressividade de um grupo aumenta é o aumento também da necessidade de espaço, e quando não há espaço disponível, como no caso das superpopulações, ocorre uma reação em cadeia. É liberada uma explosão de estresse com subsequente aumento de agressividade e atividade sexual que sobrecarregam as glândulas, e isso gera uma crise populacional acarretada por diminuição da fertilidade e enfraquecimento do sistema imunológico causando maior suscetibilidade a doenças. O índice de mortalidade também é aumentado por conta de um choque hipoglicêmico causado por estresse demasiado no corpo. Nesse processo todo, os animais dominantes são privilegiados por serem menos suscetíveis e mais resistentes ao estresse. Através de outros pesquisadores, Hall (2005) concluiu que se fosse fornecido o ambiente adequado para certas situações extremas, os efeitos da superpopulação poderiam ser bastante minimizados ou até mesmo neutralizados. O domínio de territórios separados para famílias e a separação dos animais nas estações de reprodução e momentos críticos ajudam a balancear também os efeitos da superpopulação. Daí percebe-se a importância dos ambientes adequados em meio aos animais. Hall (2005) afirma que a passagem do apego ao olfato para à visão por motivos de pressão ambiental fez com que o homem redefinisse totalmente a sua situação. Sua capacidade de planejamento foi aumentada devido à capacidade da visão de abrangem maior área e de aceitar dados mais complexos, estimulando o pensamento abstrato. O olfato atua mais no âmbito emocional e é mais gratificante em termos de sensualidade, o que faz com que ele leve o ser humano a uma direção oposta da visão. A partir de todos esses estudos, para Hall (2005) percebe-se que o homem evoluiu melhor seus “receptores remotos”, que são a audição e a visão, e consequentemente desenvolveu melhor as artes que se relacionam com esses dois sentidos, como a música, a pintura, a escultura, a poesia, entre outros, que não dependem de maneira exclusiva desses dois sentidos, mas que os estimulam de maneira mais significativa. Da 27
mesma forma, os sistemas comunicativos do homem seguiram esse curso. Nos tópicos a seguir, serão estudados mais afundo os aspectos perceptivos que se deram a partir dessa modificação nos sentidos prioritários, para que possamos entender melhor como funcionam as relações do ser humano com seus semelhantes e com o ambiente. A evolução humana foi extremamente acelerada pelo uso das extensões, como diz Hall (2005, apud LA BARRE, 1954). De acordo com o autor, essas extensões são o que diferem o ser humano dos outros organismos existentes, e a arquitetura é uma delas.
2.2. A arquitetura que eu toco: relações sensoriais “A experiência da arquitetura traz o mundo para um contato extremamente íntimo com o corpo” (PALLASMA, 2012, p.55) “A arquitetura é a arte de nos reconciliar com o mundo, e esta mediação se dá por meios dos sentidos” (PALLASMA, 2012, p.67)
Essas duas citações de Pallasma (2012) evidenciam a profunda relação da arquitetura com as questões inerentes ao corpo humano. Não há como dissociar um do outro: é um sistema integrado e complexo que age como mediadores do mundo, criando as atmosferas dos lugares através dessa interação e toda relação do mundo com o corpo é dada através da percepção feita pelos sentidos. Hall (2005) usa o termo proxêmica para definir as teorias e observações com relação ao uso que o ser humano faz do espaço. É importante salientar que essas relações proxêmicas devem ser analisadas conforme os sistemas comportamentais que cada cultura se baseia, pois elas representam diferenças substanciais. É notório que há grande primazia pelo sentido da visão em nossa sociedade ocidental, principalmente quando se trata da arquitetura. Neste contexto, os demais sentidos envolventes são deixados de lado por arquitetos e urbanistas na hora de pensar e produzir arquiteturas e cidades, o que causa consequências devastadoras para a condição humana nestes locais. Este tópico tratará das relações sensoriais com a percepção envolvendo o objeto arquitetônico e o usuário, tendo o objetivo de entender quais são essas relações, como atuam, e qual o peso que elas exercem no contexto da atmosfera gerada por uma edificação, a fim de que se possa explorar melhor esses elementos e trazer de volta para a arquitetura o toque de experiência humana perdida.
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Hall (2005) afirma que todas as informações processadas por nosso corpo são percebidas através dos sentidos. O conhecimento dos sentidos e da maneira com que são entendidos pelo cérebro são peças fundamentais para se compreender o impacto que o ambiente exerce sobre as pessoas. Em seu livro, Pallasma (2012) discute sobre o papel dos sentidos na percepção humana, e muito mais do que apenas a visão ele discorre sobre todos os sentidos que, segundo ele, são todos na verdade extensões do tato, que seria o grande formador dos sentidos, os quais são na verdade especializações diferentes do tecido cutâneo. Pallasma (2012) cita a teoria de Bachelard sobre a “polifonia dos sentidos”, que se baseia na colaboração dos sentidos entre si. Segundo o autor, um passeio na floresta por exemplo, é algo revigorante por estimular todos os sentidos, e a arquitetura se apresenta como uma extensão da natureza em meio construído pelo homem, a qual é a base de nossas experiências no mundo antropogênico. “Ela não é um artefato isolado e independente; ela direciona nossa atenção e experiência existencial para horizontes mais amplos” (PALLASMA, 2012, p.37). Para Pallasma (2012) toda experiência referente à arquitetura que se torna algo comovente são multissensoriais. Os elementos arquitetônicos são medidos por todos os nossos sentidos e nosso corpo: nossa noção de escala, a materialidade do espaço, e todas as outras relações. A arquitetura é o elemento que reforça nosso senso de existência e nossa relação de pertencimento no mundo, o que torna a arquitetura um elemento reforçador de identidade pessoal. “Em vez da mera visão ou dos cinco sentidos clássicos, a arquitetura envolve diversas esferas que interagem e fundem entre si” (PALLASMA, 2015, p. 38). O autor cita Gibson afirmando que os sentidos são, na verdade mecanismos de busca e não meros receptores passivos, e separa-os na verdade em cinco sistemas sensoriais, ao invés de apenas sentidos, que são: sistema visual, auditivo, palato-olfativo, sistema de orientação e sistema tátil. Pallasma (2005 apud STAINER) presume que existam não somente cinco, mas doze sentidos no total. A autenticidade da arquitetura se fundamenta na linguagem tectônica de se edificar e na abrangência do ato de construir para os sentidos. Contemplamos, tocamos, ouvimos e medimos o mundo com toda nossa existência corporal, e o mundo que experimentamos se torna organizado e articulado em torno do centro de nosso corpo. Nosso domicílio é o refúgio de nosso corpo, nossa memória e identidade (PALLASMA, 2012, p.59)
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Segundo Pallasma (2012) a arquitetura pode ser dividida de acordo com o sentido que melhor trabalha, podendo ela prevalecer o olho, como a maioria tende a fazer; as relações táteis e musculares; como também pode ser mais voltada para a audição, o olfato e o paladar. O autor dá como exemplo as arquiteturas de Le Corbusier e Richard Meyer como sendo primordialmente arquiteturas da visão e a arquitetura de Erich Mendelshohn e Hans Scharoun como sendo arquiteturas mais táteis. A arquitetura produzida por Frank Lloyd Wright e Alvar Aalto são para o autor arquiteturas que compilam o corpo humano em sua totalidade, apresentando estímulos a uma multiplicidade de experiências e reações inconscientes no usuário. Na arquitetura atual, o autor cita Glenn Murcutt, Steven Holl e Peter Zumthor como arquitetos que presam pela diversidade sensorial e de experiências em suas obras. Uma maneira diferente de se entender como a percepção ocorre é analisando-se a arte produzida por pintores e escritores, que apresenta conteúdo rico para o estudo da percepção humana, segundo Hall (2005), cujo potencial para tal não foi ainda muito explorado. Nos tópicos a seguir, serão estudados os sistemas sensoriais de maneira mais detalhada. A divisão dos tópicos se deu a partir da sugestão de Hall (2005) em separar os receptores em remotos (olhos, ouvidos e nariz) que apresentam a capacidade de perceber a uma distância maior; e imediatos (pele e músculos) que necessitam de maior proximidade para a percepção.
2.2.1 Os receptores remotos: Visão, audição e olfato Decidi iniciar os estudos dos sentidos a partir da visão, este que é sentido mais privilegiado de nosso tempo. Este sentido foi o último a se desenvolver no ser humano e se tornou o mais complexo deles, de acordo com Hall (2005). Ao ar livre, o autor afirma que um cego consegue perceber o espaço a um alcance de aproximadamente seis a trinta metros, enquanto com a visão ele perceberia as estrelas. Com a visão, é preciso estar voando mais rápido que o som para que uma pessoa necessite de algum outro recurso para evitar colisões com objetos, já os cegos estão limitados a uma velocidade de três a cinco quilômetros por hora em local conhecido para alcançar tal feito. Esses são apenas alguns exemplos para demostrar a grande capacidade que nossa visão desenvolveu. 30
Para Hall (2005), existem diversas funções que o olho humano desempenha, e entre elas estão: identificar pessoas conhecidas, alimentos e objetos a certa distância, assim como o estado físico de materiais; conseguir se orientar mesmo que em condições de terrenos irregulares, evitando obstáculos e elementos perigosos; criar suas extensões do corpo (ferramentas), tomar conta de outros e de si próprio, reconhecer estados emocionais de outros e avaliar aparências. Hall (2005) afirma que a visão é considerada o maior meio de se colher informações que o ser humano possui, mas que é preciso sempre lembrar que os olhos também apresentam a capacidade de transmitir informações, como raiva, zelo, alegria, assim como pode ser um olhar de punição ou de domínio, entre outros. Segundo Pallasma (2012, apud LEVIN, 1963) existem dois tipos de visão, sendo o primeiro o olhar assertivo e o segundo o olhar alético. Os dois são opostos. O olhar assertivo de maneira mais rígida e direta, apresentando-se intolerante, imóvel e inflexível, enquanto o olhar alético é um tipo de olhar que se associa com os pontos de vista e a perspectiva, se apresentando de forma mais pluralista e democrática e de maneira mais inclusiva, contextual e zelosa. O ser humano possui a capacidade enorme de aprender o que vê, “[...] ele aprende o que vê, e o que ele aprende influencia o que vê”, nas palavras de Hall (2005, p.80). Esta dinâmica de aprendizado resulta na grandiosa capacidade de adaptação presente no ser humano. Segundo o autor, esse aprendizado ligado à visão é o que permite que identifiquemos camuflagens, por exemplo. Para Hall (2005) é importante salientar que existe uma diferença entre o que se vê e o que se percebe. O mundo que se vê é denominado por Hall (2005, apud. CRONELL) de “campo visual”, enquanto o que é percebido de “mundo visual”. O primeiro consiste em padrões de luz capitados pela retina, que é utilizado pelo ser humano para se produzir seu mundo visual. O fato de que existe esta diferença inconsciente entre a visão e a percepção do que se vê evidencia que o sistema visual recebe informações de outros sentidos, de modo que eles corrigem de certa forma o campo visual. Hall (2005) relata que o ser humano recebe informações do seu corpo enquanto se movimenta e que isto estabelece uma comunicação com a visão e a estabilização do campo visual. A falta da comunicação corporal causa a perda do sentido da realidade para a pessoa, causando alucinações, segundo o autor.
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A comunicação entre os sentidos promove o verdadeiro entendimento do mundo para as pessoas, por exemplo, a distância é analisada pelo homem através da combinação dos sentidos e de memórias corporais, como diz Hall (2005). “Percebemos imediatamente através da visão nada além de luz, cores e figuras; ou através da audição, nada além de sons” sintetiza Hall (2005, apud BERKELEY, 1922 , p. 81), e continua dizendo que não ouvimos o “som de uma carruagem”, por exemplo, o que ouvimos
é
apenas
um
som,
que
em
nossa
cabeça
se
une
ao nosso entendimento já estabelecido das coisas e nós conseguimos entender como sendo o som produzido por uma carruagem. Esse processo mencionado é utilizado pelos sonoplastas em teatros e filmes para criar os efeitos sonoros, pois sabendo da capacidade humana de assimilar o mundo visual e auditivo em conjunto eles conseguem utilizar um de modo a preencher as falhas do outro. Hall (2005, apud BERKELEY, 1922) ainda afirma que neste contexto as definições de palavras como “alto”, “baixo”, “esquerda” e “direita” são na verdade uma questão de aplicação dos conhecimentos táteis e sinestésicos adquiridos previamente, e com isso, não se vê a distância instantaneamente. ... Suponhamos que eu perceba com a visão a ideia vaga e obscura de algo que não posso afirmar que seja um homem, uma árvore ou uma torre, mas que calculo estar à distância de cerca de um quilômetro e meio. Está claro que não posso querer dizer que o que vejo está a um quilômetro e meio de distância, ou que se trata de uma imagem ou aparência de algo que está a um quilômetro e meio de distância, já que, a cada passo que dou na sua direção, a aparência se altera; e, de pequeno, obscuro e indefinido, ele passa a ser grande, nítido e vigoroso. E, quando chego ao final do percurso, aquilo que vi de início está totalmente perdido; nem chego a encontrar nada que lhe seja semelhante. (HALL, 2005, apud BERKELEY, 1922, p.82)
Existem outros fatores analisados por Hall (2005) que se associam com a noção da interação dos outros sentidos com a visão, como os conceitos espaciais que para ele são ligados às ações internalizadas no ser humano (HALL, 2005, apud PIAGET, 1956), e ainda, citando Gibson, afirma que existe o fator que relaciona a visão e sua abrangência, importantes nesse quesito, que consiste no fato do campo visual aumentar conforme a proximidade de um objeto e diminuir conforme seu afastamento. Outro fato interessante sobre a percepção visual que foi descoberto por estudos científicos explicitados por Hall (2005), se relaciona com nossa capacidade de relacionar objetos como possuidores de uma forma padrão mesmo com grandes mudanças de ângulos, como por exemplo, sempre se vê uma porta como tendo a 32
mesma forma, não importando o ângulo no qual a mesma está sendo vista. Como o olho humano está em constante movimentação, a imagem das coisas nunca é a mesma, e é essencial entender como se dá o processo de se ver de maneira estática o que está sendo registrado sob constante movimentação. Podemos tirar a conclusão a partir daí que a visão, assim como a língua, é algo sintético, no sentido que nós aprendemos a ver: quando estamos em um país em que a língua é diferente da falada por nós em nossa terra natal e que não a aprendemos previamente, o que ouvimos quando a pessoa fala é apenas um conjunto de sons estranhos, mas assim que passamos tempo suficiente convivendo com essa língua os sons começam a fazer sentido aos poucos e as palavras começam a ser aprendidas. Apesar de ser mais difícil de notar e aceitar, o mesmo acontece com a visão, nós aprendemos a ver. A dificuldade em se enxergar isso, segundo Hall (2005) advém da ideia de que a fala é vista como uma atividade e a visão não, mas se isso fosse dado como verdade, as pessoas do mundo inteiro veriam as coisas do mesmo modo, o que de fato não ocorre. Em seu trabalho, Hall (2005) nos fala que não existem dois seres humanos na face da terra que vejam exatamente as mesmas coisas ao olhar ativamente para algo, as pessoas não se relacionam com o mundo da mesma forma. A transposição dos mundos perceptivos não é possível se não se aceitar esse fato. Obviamente, se analisadas duas pessoas de uma mesma cultura as distâncias perceptivas serão menores do que duas de culturas diferentes, mas ambas as situações podem levar a problemas da mesma maneira. Outra diferença que foi percebida por Hall (2005) em seu texto se dá entre homens e mulheres que, segundo ele, habitam mundos visuais diferentes, não por possuírem alguma diferença em sua visão de forma física, mas por terem aprendido a olhar as coisas de modo diferente. Analisando a visão de forma anatômica, Hall (2005) informa haver três áreas distintas do olho que são responsáveis por tipos de visão diferentes, mas que funcionam de maneira simultânea. São elas: fórea, mácula, e a região da visão periférica. A primeira, fórea, é a responsável pela visão focada que permite atividades como colocar linha em uma agulha. A ciência e a tecnologia não seriam possíveis sem ela. A segunda, a mácula, é uma visão clara, mas não tanto quanto a da fóvea; ela é responsável pela leitura. A visão periférica amplia a capitação de movimentos, sem, no entanto, produzir detalhes. Com maior precisão, o homem praticamente só consegue enxergar em um ângulo de aproximadamente um grau, mas a rapidez do movimento ocular faz com que consigamos analisar o mundo a nosso redor a medida que se movimentam, e isso faz 33
com que tenhamos a impressão de que a área de abrangência de nossa visão é muito maior, e o fato de, na maior parte do tempo, nosso foco se concentrar nas visões foreal e maculal, aumenta essa impressão. Existem muitas formas em que a estrutura do olho afeta os projetos arquitetônicos, mas que ainda não foram transformadas em princípios, segundo Hall (2005), mas o autor afirma que algumas conclusões já podem ser tiradas disso a partir de algumas observações: o movimento do olho é mais exagerado em suas periferias, com isso, listras preto e brancas e bordas retas se tornam mais perceptíveis, neste entendimento o autor fala que com relação a paredes de túneis ou corredores, quanto mais próximas forem, maior a sensação de movimento proporcionada, e isto também vale para outros elementos como uma fileira de árvores ou moirões a distâncias regulares em uma estrada, que por sua vez produz o mesmo efeito. “Essa característica do olho faz com que motoristas em países como a França desacelerem o veículo quando saem de uma rodovia de horizontes abertos e entram numa estrada com a orla arborizada” (HALL, 2005, p88). Para o autor, em locais como bibliotecas, restaurantes e espaços públicos, a eliminação da impressão de movimento formulado no campo da visão periférica faz diminuir a sensação de superlotação, e o aumento dos estímulos visuais periféricos produz o efeito oposto. Em seus estudos, Hall (2005) relata que há uma crença na relação direta que a visão estereoscópica do ser humano tem com sua capacidade de enxergar em profundidade, e que esse fato é ao mesmo tempo real e não. Segundo ele, existe sim essa relação, mas ela não pode ser considerada a única responsável pela percepção de profundidade, pois existem diversos outros meios pelos quais o ser humano se utiliza nesse intuito. Segundo Hall (2005) o psicólogo Gibson encontrou em seus estudos treze sistemas responsáveis pela visão em profundidade do ser humano. A partir dos estudos de Gibson, o autor diz que a noção da perspectiva linear do Renascimento é muito limitada. Os pintores ao longo do último século vêm tentando explicitar as muitas formas de perspectiva existentes. Artistas orientais, por exemplo, representam a perspectiva de forma bastante peculiar, em que se muda o ponto de vista, mas a cena continua constante, enquanto a maior parte da arte ocidental trabalha com o contrário. “No Ocidente, o ser humano percebe os objetos, mas não os espaços entre eles. No Japão, os espaços são percebidos, denominados e reverenciados, como o ma, ou espaço intermediário” (HALL, 2005, p.90)
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Pallasma (2012, p.42) compara o sistema visual ao tátil e afirma que “o olho é o órgão da distância e da separação, enquanto o tato é o sentido da proximidade, intimidade e afeição”. Em situações extremas da vida, as pessoas tendem a fechar os olhos e barrar esse sentido distanciador para sentir com mais profundidade. Para Pallasma (2012) as sombras e os contrastes de áreas mais escuras são essenciais, pois elas reduzem a capacidade da visão e aumentam a interação da visão periférica e da imaginação tátil. Nas ruas de cidades mais antigas, há um contraste apresentado por ruas mais abertas e mais fechadas que proporcionam experiências mais completas por apresentarem níveis de luz e escuridão diferentes. As luzes homogêneas das cidades de nossa era privam os cidadãos de uma interação sensorial mais intensa. Pallasma (2012, p. 42) afirma que “para que possamos pensar com clareza, a precisão da visão tem de ser reprimida, pois as ideias viajam longe quando nosso olhar fica distraído e não focado”. O autor completa dizendo que a luz homogênea atrapalha a imaginação, da mesma forma que o espaço homogêneo atrapalha a experiência de vida e destrói o senso de lugar, e ainda afirma que o olho humano é mais adaptado a enxergar a uma luz de crepúsculo do que à luz forte. As imagens incertas e ambíguas despertam a imaginação. O olhar desfocado devaneia pelo ambiente e estimula os sentidos. Pallasma (2012) analisa a arquitetura de espetáculo nesse sentido e afirma que há presença de luzes e sombras profundas constantemente, como se respirasse inspirando luz e aspirando sombras. Observe [...] o uso das enormes janelas com caixilhos fixos [...] elas privam nossas edificações da intimidade, do efeito da sombra e da atmosfera. Os arquitetos do mundo todo têm se enganado nas proporções que têm usado nas grandes janelas com caixilhos fixos ou nas aberturas externas [...] Perdemos nosso senso de vida íntima e nos tornamos forçados a vidas públicas, essencialmente afastados de nossas casas (PALLASMA, 2012, apud BARRAGAN, 1976, p.44)
Ainda no âmbito dos receptores remotos, segue-se a audição. Segundo Hall (2005) esse é o sentido que mais se especializou no ser humano depois da visão, e mesmo assim, a quantidade de informações que a audição consegue codificar para o cérebro é consideravelmente menor do que comprado a visão. Esse fator pode ser ligado à quantidade de neurônios responsáveis pela codificação das mensagens de cada sentido, sendo a quantidade de neurônios especializados pela visão aproximadamente dezoito vezes maior do que os responsáveis pela audição. A velocidade e alcance desses dois sentidos também apresenta uma grande disparidade, com a audição alcançando aproximadamente seis metros de distância e a velocidade das ondas percorrendo, na condição de 0° de temperatura a nível do mar, aproximadamente 330m 35
por segundo. Analisando-se a visão nas mesmas condições ela consegue um alcance de cem metros e atinge a velocidade da luz. Ao se tratar da qualidade das informações transmitidas por equipamentos para os dois sistemas auditivo e visual, percebe-se o grau de complexidade comparada dos dois: é possível transmitir som sem que o ouvido perceba distorções, mas o mesmo não se pode dizer da visão, cuja imagem é transmitida por um sistema móvel que precisa ser traduzido para depois ser interpretado pelo cérebro. Para Hall (2005), a natureza desses dois sistemas é muito diferente tanto quando se analisa volume ou complexidade das informações processadas. A visão é mais focada e seletiva, enquanto a audição tende a ser mais ambígua e menos focalizada, salvando se o caso de pessoas cegas, que adaptam a audição a ser mais especializada, e conseguem focar em ondas sonoras selecionadas. Entrando mais a fundo nos méritos da audição em si, Hall (2005) afirma que existem diversas condições auditivas que podem nos afetar de maneira inconsciente, como por exemplo, o tamanho de um local e seu relativo tempo de reverberação pode afetar a velocidade de leitura de um indivíduo: as pessoas tendem a ler mais devagar em salas maiores onde o tempo de reverberação é maior, comparando a salas menores, onde a reverberação é mais rápida. Muitas situações onde é requerida comunicação auditiva podem ser facilitadas através da melhora da reverberação do som no local, Hall (2005) cita o exemplo de um arquiteto inglês que através da melhora da comunicação em uma sala de reuniões por consequência do ajuste da acústica da mesma, conseguiu impedir que um presidente de comitê fosse substituído, pois descobriu que as insatisfações com relação ao presidente eram na verdade um problema com a falta de compreensão do que se era falado nas reuniões. Este fato demonstra o quanto as questões sensoriais afetam nossa compreensão das coisas também de maneira subjetiva, não apenas diretamente. A reverberação do som é algo que interage de forma ativa com a edificação: “As edificações não reagem ao nosso olhar, mas efetivamente retornam os sons de volta aos nossos ouvidos” diz Pallasma (2012, p. 45). Para o autor, nós muitas vezes não estamos cientes da experiência sonora presente no espaço, mas o som afeta muitas vezes a nossa percepção do espaço visual por nos situar no espaço tempo inserido. O autor apresenta o exemplo de um filme, que ao se retirar a trilha sonora de fundo suas
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cenas perdem a intensidade, e é possível perceber este fato ao analisar o cinema mudo, que exagerava em suas expressões para compensar a falta do som. O som tem poderes que muitas vezes nós não levamos em consideração: o som pode acalmar, pode desesperar, pode fazer adormecer, pode relaxar, assustar, encantar entre inúmeras outras sensações. O som e a acústica afetam tudo a nosso redor. Pallasma (2012) nos lembra da dureza de uma casa desocupada e sem mobiliário comparado à afabilidade de uma habitada e mobiliada. Cada espaço arquitetônico reflete o som de maneira singular, representando monumentalidade ou intimidade, um convite ou rejeição. O autor relata que o espaço é compreendido por meio de seus ecos e também por sua forma visual, que são produtos da percepção mental inconsciente do meio. Segundo ele, a audição é um sentido de conjunto, que conecta as pessoas, enquanto a visão é individual e solitária. Assim como cada objeto arquitetônico possui um som característico, também as cidades produzem seus próprios ecos, segundo Pallasma (2012). Para ele, os padrões, as escalas, assim como a materialidade presente nas ruas conformam a acústica da cidade. O autor afirma ainda que espaços muito abertos e amplos como os que estão sendo feitos na contemporaneidade não produzem acústicas muito diversificadas e nos edifícios os ecos vem cada vez mais sendo barrados e absorvidos, assim como as músicas de fundo de diversos locais nos impedem de sentir a acústica dos mesmos. A soma desses elementos e sua consequente falta de experiências auditivas estão pouco a pouco “cegando” nossos ouvidos. A importância da arquitetura como promovedora de espaços auditivos é enorme. “A experiência auditiva mais fundamental criada pela arquitetura é a tranquilidade. A arquitetura nos apresenta o drama da construção silenciado na matéria, no espaço e na luz. Enfim, a arquitetura é a arte do silêncio petrificado” diz Pallasma (2012, p.47). O autor afirma que o silêncio que a arquitetura promove é algo amável e memorável, que é uma experiência na qual nos foca na nossa existência, e nos conecta com nossa solidão original, assim como fazem outras formas de arte. Daí a importância dos corretos tratamentos acústicos em edifícios, elemento este que é cada vez mais negligenciado no meio urbano. Saindo do campo da audição e partindo para as relações olfativas no ser humano, é possível perceber que o olfato funciona de maneira muito minimizada, pelo pouco uso que se faz dele e de suas relações em nossa sociedade. O olfato é um dos sistemas 37
mais primitivos do homem e, ao mesmo tempo, um dos mais negligenciados, no qual há uma tentativa deliberada de ser deixado de lado a todo tempo na maioria das sociedades ocidentais, fato que promove uma perda significativa nas experiências humanas em meio às cidades. Hall (2005) afirma que o uso exagerado de desodorantes e o mascaramento de odores naturais de locais públicos estão deixando o mundo com um cheiro quase que uniforme, diminuindo assim as experiências olfativas, o que acarreta na falta de capacidade de diferenciação de locais através de seu cheiro particular, nos privando de variedade e diminuindo a memória dos locais pelo fato de o olfato ter um poder de recordação muito mais poderoso do que a visão ou audição. Os cheiros das cidades são muito importantes. Para Pallasma (2012) um ponto muito prazeroso de se viajar é descobrir os sabores e odores de cada cidade nova, que segundo ele, é algo diferente em cada uma delas. Ele afirma que as imagens criadas pelos olhos perdem força quando comparadas ao poder que o olfato tem de instigar o imaginário e as emoções. Existe uma base química ligada ao olfato. Hall (2005) analisa esta química e afirma que os cheiros são um meio de comunicação antigo e básico entre os animais, sendo usado para diferenciar indivíduos e identificar seu estado emocional, assim como ele também ajuda na procura por alimentos e em manter um grupo unido, auxiliando animais desgarrados a se juntarem novamente, além de auxiliar também na demarcação de território. Segundo Hall (2005), o olfato (exocrinologia) também apresenta funções ligadas à regulação química do corpo (endocrinologia), ligação esta que só foi descoberta recentemente. A ligação endocrinológica faz com que os estados de espírito dos animais possam ser passados para outros através de seus cheiros, formando assim completos canais de informação entre eles, de acordo com algumas pesquisas. O autor ainda diz que as mensagens químicas que os organismos conseguem passar uns para os outros funcionam de maneira tão eficiente e complexa que o homem ainda não foi capaz de criar nenhuma extensão de seu corpo para comunicação que fosse capaz de se comparar a essa dinâmica olfativa. Apesar de o ser humano já não apresentar uma capacidade olfativa de comunicação tão eficiente quanto de outros animais, algumas pessoas mais treinadas a analisar cheiros de outras ainda conseguem distinguir sentimentos através dos cheiros que exalam, afirma Hall (2005). O autor conta sobre um psicanalista que afirma conseguir 38
distinguir o cheiro da raiva nas pessoas a uma distância média de um metro e oitenta. Pessoas que trabalham com esquizofrênicos afirmam também que eles apresentam um cheiro característico notável. Existe a possibilidade de os sentimentos de uma pessoa esquizofrênica serem passados para as pessoas ao redor, afetando-as diretamente através do olfato. É sabido que diferentes culturas afetam diferentemente a percepção de mundo das pessoas, e com relação ao olfato isto não é diferente. Hall (2005) alega que os árabes são capazes de reconhecer a relação entre o estado de espírito da pessoa e seu cheiro, e ainda que eles se cheiram antes de casar para certificar se a moça pretendente é de seu agrado ou não, tendo em vista que a escolha geralmente é do homem. O autor afirma que na cultura árabe é comum inspirar em direção às pessoas, o que é muito diferente do mundo criado pelos norte-americanos, onde entrar na faixa olfativa de outra pessoa que não seja parte de seu ciclo íntimo é considerado rude em desagradável, fato que se agrava quando ocorrido em espaços públicos. O que acontece é o fato de os norte-americanos não saberem lidar com a sensualidade implícita no cheiro das outras pessoas e não conseguirem se concentrar em outra coisa mais com o cheiro invadindo seu mundo sensorial, colocando-o assim em um dilema no qual ele não sabe lidar. Os norte-americanos, assim como ocorreu no norte europeu, se afastaram de seus canais olfativos o que trouxe consequências para suas vidas, de acordo com Hall (2005). A carência olfativa em suas cidades é notória, assim como a visual. Dados olfativos como o cheiro de pão nas ruas francesas fornecem a sensação de se estar vivo para a pessoa que o sente, os cheiros das cidades possuem também o poder de ajudar as pessoas a se localizarem no espaço através de mudanças e transições, mas o mais importante é que eles ajudam a dar um toque a mais no dia a dia que estimula a vida dos cidadão e aumenta as experiências de mundo.
2.2.4 Receptores imediatos: Tato e músculos “A imagem do corpo... é profundamente afetada pelas experiências do tato e da orientação do início de nossas vidas. Nossas imagens visuais se desenvolvem posteriormente e, para que tenham significado, dependem de nossas experiências originais adquiridas tatilmente” (PALLAMA, 2012, apud KENT. C, 1977, p.36)
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Como já foi dito anteriormente, Pallasma (2005) pressupõe que todos os sentidos sejam na verdade extensões do tato, e nessa linha de pensamento, ele afirma que até mesmo a visão pode tocar: o olhar fixo pode representar um toque subjetivo, uma identificação do corpo, ou mimese. Há uma relação intrínseca dos sentidos Pallasma (2012, apud. BERKELEY, s/ ano) faz uma conexão direta entre o tato e a visão, afirmando que a relação de materialidade, distância e profundidade espacial são na verdade nossa memória tátil percebida pela visão. “[...] a visão necessita da ajuda do tato, que fornece sensação de ‘solidez, resistência e protuberância’; a visão desvinculada do tato não poderia
‘ter
qualquer
ideia
de
distância,
exterioridade
e
profundidade,
e
consequentemente, nem de espaço ou corpo’” (PALLASMA, 2012, apud BERKELEY, s/ ano p. 38). Para o autor, o tato é um tipo de sentido que trabalha de maneira inconsciente com a visão, promovendo uma relação em que a visão expõe o que o tato previamente sabia. Podemos acariciar com os olhos, já sabendo inconscientemente se a sensação será prazerosa ou não. O que ocorre quando vivenciamos verdadeiramente uma obra de arte, segundo o autor, é nossa participação ativa nela, e através de sensações já conhecidas, nós nos experimentamos na obra que passa a ter um valor físico real, as quais o autor denomina “valores táteis”. Para Pallasma (2012), da mesma forma que ocorre com obras de arte, a arquitetura se apresenta como um elemento subordinado a impressões, que é experimentado no todo corporificado e com aura, não como uma compilação de imagens. Pallasma (2012, p.40) diz que “Uma obra de arquitetura incorpora e infunde estruturas tanto físicas quanto mentais” o desenho chapado na folha se torna algo totalmente diferente de um encontro real com a obra. O autor ainda completa dizendo que “a boa arquitetura oferece formas e superfícies moldadas para o toque prazeroso dos olhos”. Percebe-se aqui a interação dos olhos com o tato, e a questão da memória tátil que fornece os dados para a compreensão da visão. “As experiências visuais e táteis do espaço estão tão entrelaçadas que não podem ser separadas”, afirma Hall (2005, p.74). O autor exemplifica sua fala citando as crianças pequenas, que são instigadas a tocar em tudo e a levar objetos à boca a fim de descobrir o mundo ao seu redor, e afirma ainda que se levam anos para que a criança seja habituada ao mundo da visão. Para Hall (2005, apud BRAQUE, s/ ano , p.74) “o espaço ‘tátil’ separa o observador dos objetos, e o espaço ‘visual’ separa os objetos uns dos outros” e ainda completa dizendo que a perspectiva dita científica é algo ilusório que atrapalha o artista a expressar seu verdadeiro entendimento espacial. Hall (2005, 40
apud BALINT, 1945) fala sobre dois mundos perceptivos diferentes, o do tato e o da visão, afirmando que o universo do tato é mais imediato e mais amistoso se comparado ao da visão no qual o ambiente também é amistoso, mas nele se encontram os objetos perigosos, que são as pessoas. Hall (2005, apud GIBSON, 1950) também relata que os sentidos da visão e do tato, se analisados como meios de informação pelo qual o observador explora ativamente o meio utilizando os dois sentidos em conjunto, reforçam o fluxo de impressões sensoriais. Ele também separa o tato em dois casos, o tato ativo (apalpar) e o passivo (ser tocado), e que o primeiro é muito mais eficiente em reconhecer objetos do que o segundo. A partir do tato somos capazes de perceber muitos elementos no mundo, sem nem ao menos nos darmos conta. Através dele, descobrimos o peso, as texturas e a densidade dos objetos ou seres, segundo Pallasma (2012). O autor afirma que a sola do pé consegue perceber e é ele que mede a gravidade, e com eles nós sentimos a textura do chão. A textura, de acordo com Hall (2005), é um elemento que é analisado quase que unicamente pelo tato, mesmo quando percebida pelo olho. Salvas algumas exceções, o que apreciamos com o olhar são as lembranças táteis. A importância da textura vem sendo negligenciada pela maioria dos projetistas, e ainda assim seu emprego é bastante aleatório e informal: “em outras palavras, é raro que as texturas no exterior e no interior de prédios sejam usadas de modo racional e com conscientização social ou psicológica” (HALL, 2005, p76) Para Hall (2005) a atenção que os sentidos da visão, audição e olfato recebem é tão significativa na vida das pessoas que muitas vezes elas até esquecem que o tato também é um sentido, e muito importante. As qualidades da percepção e comunicação dadas pela pele são tão sutis que as pessoas não se dão conta de sua importância, mas sem ela, nossa capacidade de sentir calor e frio não existiriam, e não conseguiríamos resistir às consequências provocadas por exposição a temperaturas extremas. É o tato também que nos proporciona a noção de espaço. “nervos chamado proprioceptores mantêm o ser humano informado do que está acontecendo enquanto ele aciona seus músculos” (HALL, 2005, p.68). Por permitir a capacidade de se movimentar sem esbarrar nas coisas a todo instante, esse grupo de nervos apresenta grande importância na cinestesia humana. Em sintonia com eles, o autor fala de outro conjunto de nervos chamado de exteroceptores que se localizam na pele e são responsáveis por comunicar ao cérebro as sensações de calor, frio, tato e dor. Por apresentar dois sistemas de nervos diferentes empregados, o sistema sinestésico 41
representa qualidades diferentes do espaço térmico, apesar de os dois sistemas trabalharem em colaboração a maior parte do tempo. Pallasma (2012) nos fala da capacidade que a pele possui de identificar a temperatura do ambiente de maneira incrivelmente eficaz, o simples caminhar para uma área sombreada por uma árvore nos instiga uma sensação muito diferente de estar exposto a pleno sol. Sobre a relação do corpo com a temperatura ambiente, Pallasma (2012, apud BACHELARD, 1969, p.53) faz a seguinte consideração: “em nossos lares temos esconderijos e cantinhos nos quais gostamos de nos aconchegar com conforto. Aconchegar-se pertence à fenomenologia do verbo habitar, e somente aqueles que aprendem a fazê-lo conseguem habitar com intensidade”. O autor diz existir uma ligação entre a pele e a sensação de lar, e que o calor está ligado à intimidade. O espaço ao redor de uma lareira representa um espaço de intimidade com conforto ao máximo, “lar e prazer da pele se transformam em uma sensação indissociável” (PALLASMA, 2012, p. 54) Hall (2005) afirma que recentemente algumas capacidades térmicas da pele foram descobertas, e que entre elas está a capacidade de emitir e detectar calor radiante (radiação infravermelha) que se apresenta de forma muito forte, e por seu elevado nível evolutivo, acredita-se que essa capacidade tenha sido bastante importante para a sobrevivência humana no passado, apresentando alguma função ainda nos dias de hoje. As mudanças na temperatura da pele em várias regiões do corpo humano são comunicadoras do estado emocional. O rubor nas bochechas quando se está envergonhado é um exemplo disso, pois é causado por aumento do fluxo sanguíneo na região, elevando a temperatura e consequentemente deixando a aparência mais avermelhada na área. Segundo Hall (2005) existem três formas pelas quais detectamos mudanças na temperatura corporal de outra pessoa: se houver proximidade suficiente, a primeira forma é dada através dos detectores térmicos da pele; a segunda forma é através do olfato, pela intensificação de perfumes e loções ocasionadas pelo aumento da temperatura; e a terceira forma se baseia em exame visual. Nas palavras de Hall (2005, p. 71) o calor corporal também apresenta algumas implicações: “a temperatura está muito relacionada ao modo pelo qual a falta de espaço é vivenciada pela pessoa. Uma espécie de reação em cadeia é
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acionada quando não há espaço suficiente para dissipar o calor de uma aglomeração de pessoas, fazendo com que o calor comece a se acumular”.
A falta de espaço é muito mais percebida quando o calor está presente, fato que se torna ainda mais exacerbado quando se envolve a percepção olfativa ativada por ele, e o envolvimento de odores pode causar mudanças no humor das pessoas se a química presente no olfato também exercer de fato algum tipo de envolvimento entre os seres humanos, assim como produz nos animais, de acordo com o Hall (2005). Outra questão existente entre as pessoas e o calor corporal emitido aparece relacionada às questões do contato humano. Algumas pessoas entrevistadas por Hall (2005) apresentaram comportamentos de povos avessos ao contato (aqueles que não são favoráveis ao toque de desconhecidos) ao relatarem que não se sentem confortáveis ao sentar em locais ainda quentes no qual uma outra pessoa antes estava sentada. Ainda não foi descoberto o motivo do porquê de fato as pessoas não se incomodarem com o próprio calor e se sentirem desconfortáveis com o calor alheio, mas para Hall (2005) esse fato tem relação com a grande sensibilidade humana para mudanças de temperatura mesmo que pequenas, fazendo-as reagir negativamente ao calor vindo de fonte não familiar. Hall (2005) afirma que a parte do cérebro responsável pela regulagem do calor é o hipotálamo, que se encontra em suas profundezas, mas o fato é que a cultura também é um fator que influi nas atitudes das pessoas, sendo que pessoas de culturas diferentes também reagem ao calor corporal de outros indivíduos também de maneira distinta. Pouca pesquisa foi realizada no campo relacionado à percepção de calor dos seres humanos, e segundo o autor isso se deve pelo fato de ser uma capacidade do corpo na qual exercemos pouco ou nenhum controle sobre, e psicólogos afirmam que culturalmente somos voltados a dar ênfase naquilo que podemos controlar e negar o que não podemos. Hall (2005) fala do calor corporal como sendo algo que apresenta um aspecto muito pessoal e que em nossas cabeças está ligado à intimidade e lembranças da infância. Hall (2005) nos fala sobre a ligação das metáforas da língua com os aspectos sensoriais da vida, falando, sobretudo, das expressões relacionadas ao calor corporal como “recepção calorosa” e “um olhar gélido”, afirmando que esse tipo de expressão é mais do que meras figuras de linguagem. A capacidade do homem de reconhecer
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mudanças na temperatura tanto no próprio corpo como nos alheios é tão comum que foi levada para a língua. A grande capacidade de identificação de temperaturas que o corpo humano possui também é um fator que ajuda na localização. Testes realizados com pessoas cegas mostram resultados interessantes sobre a utilização da capacidade do corpo para detectar temperaturas como forma de localização, de acordo com Hall (2005). Esses testes relatam que janelas são bastante importantes para localização não visual dessas pessoas, e ainda que o calor radiante de objetos, além de serem simplesmente detectados, também ajuda na localização dessas pessoas em determinado local, demonstrando assim que a capacidade do corpo de sentir as diferentes temperaturas ao seu redor é de grande valia em diferentes pontos da vida. Com relação à tatealidade presente na arquitetura, Pallasma (2012) afirma que a arquitetura feita por culturas mais tradicionais apresenta maior conhecimento tátil do corpo ao contrário de ser primordialmente ditada pela visão e conceituação. Pallasma compara esse tipo de construção tradicional ao modo que um pássaro constrói seu ninho moldando-o através dos movimentos de seu corpo. Também obras autóctones, construídas com o uso de argila ou barro, surgem através de sentidos musculares e táteis. A transição da esfera autóctone de tátil para visual pode ser considerada uma perda de plasticidade, intimidade e sensação de união dos contextos de culturas locais. Segundo Pallasma (2012), nos primórdios o homem utilizava seu corpo como ferramenta de medida para proporcionar as edificações que levantava. Para as culturas tradicionais, é essencial a utilização da sabedoria corporal presente na memória tátil ao se construir. “O corpo sabe e lembra. O significado da arquitetura deriva das respostas arcaicas e reações lembradas pelo corpo e pelos sentidos” (PALLASMA, 2012, p.56). O autor afirma que a arquitetura precisa atender não somente as necessidades sociais e funcionais que são conscientes nos usuários, como também as relações inconscientes com nosso corpo e nossa memória tátil. O que é importante notar é que a visão pode ser (e é) uma incorporadora e reforçadora de outros sentidos. Existe tateabilidade na visão, que é encontrada, sobretudo, na arquitetura histórica e que se perdeu em termos nos tempos contemporâneos. (Pallasma, 2012)
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Para Hall (2005), o grande sucesso do arquiteto norte americano Frank Lloyd Wright está ligado a seu entendimento do modo com que as pessoas vivenciam o espaço. O autor cita o exemplo do projeto do antigo Hotel Imperial de Tóquio projetado pelo arquiteto, cuja materialidade é feita de tal forma que quase impulsiona o hóspede a querer tocar os sulcos dos tijolos grosseiros de seus corredores, ao mesmo tempo que o fato de o material ser tão grosseiro impede o hóspede de seguir esse impulso e acabar por se machucar. Essa dinâmica estimulada por Wright alimenta a experiência do espaço, tornando-o mais envolvente e de maneira mais pessoal. Segundo Hall (2005) os projetistas dos famosos jardins japoneses apresentavam conhecimento das questões que relacionam a cinestesia do espaço com a experiência visual. Isso pode ser atribuído ao fato de os japoneses não possuírem muitos espaços amplamente abertos e conviverem mais de perto uns com os outros, aumentando assim sua capacidade de lidar com espaços pequenos, o que fez com que se tornassem especialistas em criar mundos sinestésicos exacerbados dentro de seu campo visual. O envolvimento dos jardins japoneses é maior do que apenas visual, ele interage com o corpo, fazendo o usuário prestar mais atenção e se envolver mais com o espaço através da criação de intervalos irregulares em seu piso, por exemplo, que o faz trabalhar seus músculos e seus pontos de vista que devem ficar mudando de direção a todo o momento para prestar atenção no caminho e na paisagem encantadora. Um problema com relação à espacialidade de escritórios e locais de trabalho que ocorre nos Estados Unidos, assim como me atrevo a dizer que também é realidade no Brasil, é o fato de se considerar que tudo o que é colocado em um ambiente de trabalho que esteja fora do extremamente necessário ser considerado como mera mordomia, de acordo com Hall (2005). Os requisitos que são formados por questões subjetivas relacionadas a sentimentos geralmente são considerados algo vindo de uma fonte não confiável de dados: “pode-se medir com fita métrica se um homem consegue ou não alcançar alguma coisa, mas é preciso aplicar um conjunto totalmente diferente de padrões para avaliar a legitimidade da sensação de um indivíduo de dispor de pouco espaço” (HALL, 2005, p.65). Através de alguns testes feitos em escritórios norte-americanos, Hall (2005) pôde chegar a algumas conclusões sobre o espaço de trabalho, e a noção de espaço que as pessoas têm do local apresenta relação direta com o espaço que elas possuem para movimentar-se livremente, considerando apertadas áreas em que esbarram em coisas 45
ao movimentar-se. Mesmo levando em conta diferenças sociais e culturais, alguns elementos da cinestesia podem ser considerados genéricos entre os seres humanos, como o fato de o que se pode fazer em um local determinar como aquele espaço será vivenciado. Um cômodo que pode ser cruzado em poucos passos oferece uma experiência completamente diferente de um em que se leva muitos passos para ser atravessado, e isso também ocorre com relação à altura do teto (se posso tocá-lo ou não). Com relação ao ar livre, o espaço vivenciado se relaciona com a capacidade de se poder caminhar através dele ou não, de acordo com Hall (2005). O espaço sinestésico das edificações projetadas por arquitetos é um fator demasiado importante nas palavras de Hall (2005). O autor afirma que ao comparar dois quartos de tamanho idêntico os norte-americanos vão dizer maior o que permite mais variedade de movimentos em sua área. Os espaços devem ser repensados para permitir melhor aproveitamento sem tirar a liberdade de movimentação das pessoas e evitar que fiquem colidindo umas com as outras ou com a mobília do local. Segundo Hall (2005), as catástrofes normais do dia a dia, como superlotação do metrô, elevadores e hospitais, fazem com que a necessidade de se evitar contato entre as pessoas seja de extrema importância, em alguns casos podendo criar incidentes em que a aglomeração causou insanidade ou até morte dos indivíduos envolvidos. Os seres vivos se movimentam e necessitam de espaço de área mais ou menos fixa para tal, e o zero absoluto corresponde à situação de aglomeração tão extrema que o movimento já não é mais possível. Em condições normais da vida em que há espaço para movimentar-se, os encontrões que ocorrem entre os seres humanos agem de forma diferente nas pessoas dependendo do quão esta pessoa é ou não tolerante ao toque de desconhecidos. Através de suas experiências de vida, Hall (2005) observou que os japoneses e os árabes são povos muito mais tolerantes a aglomerações em locais públicos do que os norte-americanos e os europeus do norte. Ao mesmo tempo, japoneses e árabes apresentam maior cuidado com o espaço em que vivem do que americanos, sendo os japoneses muito dedicados aos cuidados com a organização do lar de maneira a estimular sua percepção sensorial. Toda a relação que o ser humano possui com o ambiente é feita a partir de sistema sensorial e como este está condicionado a agir em determinadas situações, diz Hall (2005). Nos tempos atuais, a vida que levamos e nossa imagem pessoal são formadas 46
por partes fragmentadas de respostas sensoriais em um ambiente que foi totalmente criado. Falando sobre as cidades Norte-americanas, Hall (2005) ínsita que elas não apresentam variedade visual que crie uma atmosfera de experiências espaciais através da cinestesia. “A impressão é que muitas pessoas são carentes e até mesmo deficientes em termos sinestésicos” (HALL, 2005, p. 77). O uso do automóvel é um fator que contribui no processo de alienação do corpo com o ambiente, passando a impressão de que o automóvel está em constante guerra com as cidades e seus cidadãos. A capacidade do tato de reconhecimento de calor e textura, além de informar o indivíduo sobre mudanças emocionais no próximo, também são capacidades que lhes proporcionam informações de cunho muito pessoal através do ambiente, e o uso exacerbado do automóvel está privando as pessoas deste contato com o ambiente nas cidades. Com relação às capacidades orais do ser humano, Pallasma (2012) afirma que os elementos arquitetônicos podem evocar e estimular sensações orais. Existe uma ligação entre o tato e o paladar que age de maneira suave. O autor afirma que também há essa conexão entre o tato e a visão, e que cores e detalhes podem estimular a oralidade. A cavidade oral é por onde nossa experiência de mundo começa e ela é o local onde o espaço arquitetônico tem seu início de maneira arcaica. Nas palavras de Pallasma (2012, p.55): “os materiais sensuais e tão bem trabalhados pela arquitetura de Carlo Scapa, assim como as cores sensuais das casas de Louis Barragan, frequentemente evocam experiências orais”.
2.3. A arquitetura que me toca: relações psicológicas Eu sou meu corpo [...] eu sou o espaço, sou onde estou (PALLASMA, 2012, apud MARCEL, s/ ano, p. 60) A paisagem se pensa em mim, e eu sou sua consciência (PALLASMA, 2012, apud CÉZANNE, s/ ano, p.60)
Todas as informações passadas por uma edificação ou cidade a uma pessoa são percebidas e processadas através dos sentidos para o cérebro. Após essas informações serem processadas, existe outro fator muito importante que atua sobre a pessoa: o fator psicológico. O lado psicológico do ser humano apresenta inúmeras variáveis, sendo ele influenciado pelas condições sociais de vida da pessoa, as relações culturais, a circunstância em que a pessoa se encontra no momento de 47
contato, entre outras. Algumas destas condições psicológicas podem ser previstas e outras não, dependendo do local de instalação da edificação, seu uso (por exemplo, em hospitais as pessoas normalmente já se encontram em estado psicológico fragilizado), e outros mais. Neste tópico, serão estudadas estas relações psicológicas que permeiam a atmosfera gerada por um objeto arquitetônico e todos os elementos envolvendo esta dinâmica. Botton (2006) afirma que até rabiscos crus em um pedaço de papel podem falar com precisão e fluentemente de nosso estado psicológico, e quando edifícios estão em jogo, o potencial expressivo é exponencialmente maior. Segundo Pallasma (2012), quando se experimenta algum tipo de arte ocorre ali uma troca entre as emoções pessoais e associações da pessoa com a aura da obra, as quais incitam os pensamentos e percepções. A arquitetura é experimentada segundo essa interação, e mais do que superfícies feitas para o toque dos sentidos, oferece a incorporação das esferas física e mental, o que representa significado e coerência a nossa experiência existencial. Para Pallasma (2012), existe uma interação entre o espectador e a obra de arte quando confrontados, onde os sentimentos e emoções são projetados, e ocorre uma interação entre os dois na qual o espectador se coloca na obra e esta projeta sua aura a ele, e no meio disso, nos encontramos na obra de arte. Em toda interação do ser humano há uma projeção de seu ego à outra pessoa. Para Botton (2006), os trabalhos de arte nos tocam por serem diferentes de nós, e ao mesmo tempo pela maneira como queríamos que nós fossemos. Botton (2006) faz alguns apontamentos em sua obra sobre a maneira com que certas informações passadas por edifícios e seus elementos são entendidas em nosso psicológico. Ele afirma que nós costumamos associar edifícios e móveis a criaturas vivas e esta tradição pode ser traçada desde o autor romano Vitruvius, que comparava cada um das três principais ordens clássicas com um arquétipo humano ou divindade da mitologia grega. Segundo ele, se começarmos a observar, não encontraremos escassez de sugestões de formas vivas nos móveis e casas ao nosso redor. O ser humano apresenta a capacidade, de acordo com Botton (2006), de encontrar tipos de personalidade em objetos e essas personalidades são, na verdade, associações dos objetos a características humanas. O autor afirma que se nós podemos julgar a personalidade de objetos através de características aparentemente minúsculas (uma mudança de poucos graus no ângulo do aro de uma taça de vinho a transforma de modesta para arrogante), é porque nós primeiro adquirimos esta 48
habilidade em relação aos humanos, cujas características nós podemos atribuir a partir de aspectos microscópicos do tecido cutâneo e muscular. Mesmo quando objetos não se parecem nada com pessoas, nós podemos facilmente imaginar quais os tipos de características humanas eles devem ter. Segundo Botton (2006), esta facilidade de podermos conectar o mundo psicológico com o mundo exterior, visual e sensorial semeia nossa linguagem com metáforas (como visto anteriormente na abordagem de Hall sobre as metáforas relacionadas à temperatura da pele): nós podemos falar de uma pessoa sendo torta ou obscura, suave ou dura; nós podemos desenvolver um coração de pedra ou estar com um humor azul; nós podemos comparar uma pessoa a um material como o concreto ou uma cor como bordô e ter certeza assim de relacionar algo de sua personalidade. Qualquer objeto de design oferece uma impressão da psicologia e atitude moral que suporta. Segundo Botton (2006) existe uma ligação entre a beleza e a felicidade. Um sentimento de beleza é um sinal que nós chegamos a uma articulação material da nossa ideia de uma vida boa. Os edifícios que admiramos são em última análise aqueles que, em uma variedade de maneiras, exaltam valores que nós achamos que valem a pena – que se referem, seja por meio de seus materiais, formas ou cores, a qualidades positivas como afabilidade, bondade, sutileza, força e inteligência. Nosso senso de beleza e nosso entendimento da natureza de uma vida boa estão interconectados. Botton (2006, apud. STENDHAL, s/ ANO) oferece uma visão cristalina da ligação entre gosto visual e valores, afirmando que beleza é a promessa de felicidade, e completa dizendo que existem tantos estilos de beleza quanto há visões de felicidade. Chamar um trabalho de arquitetura ou design de belo é reconhecê-lo como uma capitulação de valores críticos à nossa prosperidade, uma transubstanciação de nossas ideias individuais em um suporte material, e essa equação moral entre beleza e bondade empresta a toda arquitetura uma nova séria importância (BOTTON, 2006). Para Pallasma (2012), assim como os poetas conseguem transportar as pessoas para seu imaginário através das palavras, também a arquitetura possui um grande poder de permitir que as pessoas projetem imagens completas de uma vida, e um grande arquiteto consegue liberar no usuário a imagem de vida ideal por meio do espaço e da forma. Já foi dito aqui que a arquitetura tem o poder de se comunicar conosco através de seus elementos, mas afinal, por que nós necessitamos que a arquitetura e nossos objetos 49
nos falem algo? Nas palavras de Botton (2006), nós precisamos que estes elementos falem para nos lembrar do nosso eu ideal, de coisas que precisamos na vida, mas que correm o risco a todo o momento de serem esquecidas. Dependemos de nosso entorno para corporificar os humores e ideias que respeitamos e nos lembrar delas. Olhamos para os edifícios e esperamos que ele nos assegure, como uma espécie de molde psicológico, uma versão prestativa de nós mesmos. É tudo como se fosse um jogo em que nos espelhamos nas coisas que criamos e as coisas que criamos se espelham em nós. O nosso psicológico apresenta uma enorme capacidade de nos colocar nas coisas que estão presentes na nossa vida, e perceber isso é um passo muito grande para se entender a dinâmica do ser humano para com a arquitetura. O sentido que o homem tem do espaço apresenta uma relação muito próxima com seu sentido do eu, que está em íntima interação com o ambiente. Pode-se considerar que o ser humano possui aspectos visuais, sinestésicos, táteis e térmicos de seu eu cujo desenvolvimento pode ser inibido ou estimulado pelo ambiente (HALL, 2005, p.77).
Botton (2006) fala que os locais nos quais conseguimos perceber a legitimidade de nós mesmos, tendemos a chamar honrosamente de “lar”. Falar de lar com relação a edifícios é simplesmente reconhecer sua harmonia com nossa música interna. Existe uma relação muito importante entre as pessoas e seu lar analisada por Botton (2006): nós precisamos de um lar no sentido psicológico tanto quanto precisamos de um no físico: para compensar por uma vulnerabilidade. Falar de lar em relação a um edifício é simplesmente reconhecer sua harmonia com nossa própria música interna apreciada. Nós precisamos que nossos cômodos nos alinhem a versões desejadas de nós mesmos e para manter vivo o importante, infinitesimal lado de nós. Segundo Pallasma (2012), as imagens fornecidas através da visão que contém caráter sensorial com elementos estimulantes favorecem o aumento do imaginário dos demais sentidos. Elas interagem com a imaginação e o mundo dos sonhos. “[o] principal benefício de uma casa [é que] ela abriga nossos devaneios, a casa protege o sonhador, a casa permite que ele sonhe em paz” segundo Pallasma (2012, apud BACHELARD, 1969, p.40). Pallasma (2012) completa afirmando que a arquitetura exerce a função de deter, reforçar e focar nosso pensamento de maneira a evitar seu esquecimento. Um cômodo nos ajuda a pensar com clareza, mesmo quando o pensamento está fora dele. Para Pallasma (2012) as sensações relacionadas com o conforto de um lar estão presentes no nosso inconsciente primitivo e nos acompanham desde os primórdios da
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humanidade. Pallasma (2012, apud. BACHELARD, 1969, p.56) fala sobre “imagens que trazem a tona o primitivo que está em nós” as “imagens primitivas”. [A] casa na qual nascemos guardou dentro de nós a hierarquia das várias funções de habitar. Somos o diagrama dessas funções de habitar aquela casa particular, e todas as outras casas são apenas variantes desse tema fundamental. A palavra hábito está desgastada demais para expressar essa relação passional de nosso corpo, que não esquecem, com uma casa inesquecível (PALLASMA, 2012, apud BACHELARD, 1969, p.56)
Apesar de toda a relação que a arquitetura apresente em nós, essas relações são muito implícitas, sendo que nem sempre as pessoas a percebem. Botton (2006) nos fala que é preciso ter tido uma grande marca em nossas vidas, ter casado com a pessoa errada, trabalhar em uma carreira insatisfatória na meia idade ou ter perdido algum ente querido antes da arquitetura começar a ter um impacto perceptível em nós. Quando nós falamos que fomos tocados por uma obra, nós aludimos a um contraste bom e ruim entre as qualidades nobres escritas na estrutura e uma tristeza da realidade na qual ela existe. Um nó na garganta surge na vista do belo, vinda de um conhecimento implícito que a felicidade que ele contém é a exceção. Para Botton (2006) provavelmente é nos períodos mais problemáticos de nossas vidas que nós somos mais aptos a ser receptivos a coisas bonitas. O autor afirma que é no diálogo com a dor que muitas coisas bonitas conseguem seu significado. Conhecimento com a dor acaba sendo um dos pré-requisitos mais incomuns da apreciação arquitetônica. Nós precisamos, fora todos os outros requisitos, estar um pouco tristes antes de edifícios propriamente nos tocarem. Levar a arquitetura a sério faz uma demanda única e extenuante sobre nós, requerendo que nos abramos à ideia de que nós somos afetados por nosso entorno. Nós dependemos de nosso entorno de soslaio para incorporar os humores e ideias que respeitamos e para nos lembrar deles. Significa reconhecer que nós somos inconvenientemente vulneráveis à cor do papel de parede e que nosso senso de propósito pode ser descarrilhado por uma colcha infortuna. Ao mesmo tempo, significa saber que edifícios são capazes de resolver não mais que uma fração de nossas insatisfações ou prevenir o mal de desabrochar em meio a sua vigia. Arquitetura, mesmo a mais bem sucedida, pode apenas constituir um pequeno e imperfeito protesto contra o estado das coisas. Mais estranho ainda, a arquitetura nos pede para imaginar que a felicidade pode muitas vezes não ser ostentadora ou ter um caráter heroico, mas pode ser encontrada em coisas simples, em
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não dramáticas e frágeis cenas belas que nos comovem por sabermos do pano de fundo mais sombrio em que estão apoiados. Enquanto uma reação comum à vista de algo bonito é querer compra-lo, nosso real desejo não é o de ter o que achamos bonito, mas de reivindicar permanentemente as qualidades internas que corporifica. O que procuramos, em um nível mais profundo, é assemelhar internamente, ao invés de possuir fisicamente, os objetos e lugares que nos tocam através de sua beleza (BOTTON, 2006). O ambiente apresenta grande potencial na determinação de identidade, e isso pode ser percebido através da observação da arquitetura religiosa, diz Botton (2006). O princípio da arquitetura religiosa tem suas origens na noção de que onde nós estamos pode fortemente determinar o que somos capazes de acreditar. O perigo de sermos corrompido por nossas paixões e desviado pelo comércio e murmúrios de nossas sociedades, nos faz requerer lugares onde os valores externos a nós encorajem e reforcem nossas aspirações. A ordem e a simetria são elementos que também estão ligados a nosso lado psicológico. Botton (2006) diz que a ordem contribui ao apelo de quase todo trabalho substancial de arquitetura. Nas palavras de Le Corbusier, falando sobre elementos simétricos: estas coisas são bonitas porque no meio da aparente incoerência da natureza ou das cidades dos homens, eles são locais de geometria, um reino onde a prática matemática reina... e a geometria não é pura satisfação? A satisfação dada pela geometria está no fato de ela representar a vitória sobre a natureza, apesar do que uma leitura sentimental pode sugerir, a natureza é na verdade oposta à ordem que dependemos para sobreviver, de acordo com Botton (2006). A ordem arquitetônica nos atrai também como uma defesa contra sentimentos de complicação demais. Nós damos boas vindas a ambientes feitos pelo homem que nos garantem uma impressão de regularidade e imprevisibilidade, nos quais nós podemos descansar nossas cabeças. Nós não gostamos, a final de contas, de surpresas perpétuas (BOTTON, 2006). Mas nosso amor pela ordem não é sem limites. Botton (2006) cita o exemplo de um prédio de escritórios cujas janelas são todas idênticas, com molduras idênticas, em que todos os andares se assemelham uns aos outros, em que não se faz distinção óbvia entre esquerda e direita ou frente e trás e não existe nenhum pequeno elemento que 52
quebre a harmonia de seu grid principal. O autor afirma que, ao invés de incitar nossa admiração com a evidência de sua natureza ordenada, uma caixa como esta provoca sentimentos de cansaço ou irritação. Em sua presença, nós somos condicionados a esquecer do esforço que deve ter sido requerido pela busca de se colocar ordem no caos – e ao invés de aplaudir o edifício pela sua regularidade, nós o condenamos por seu tédio. Enquanto nós apreciamos a ordem, é quando percebemos que vem acompanhada de complexidade, quando nós sentimos que uma variedade de elementos foram trazidos à ordem – que portas, janelas e outros detalhes foram costurados em um esquema que acaba sendo regular e intrincado (BOTTON 2006). Botton (2006) sugere que a maneira mais óbvia de se criar complexidade em uma fachada é através da variação de portas e janelas. Mas um efeito complexo prazeroso também pode ser obtido através do uso de pedras, granito, cobre patinado, madeira e concreto - materiais de aparência mais rústica, nos quais algo orgânico e destemido parece emergir. Nas palavras de Botton (2006), a beleza é quase que um resultado provável quando a ordem é imposta a materiais tão vitais: quando o espírito é alinhado com a lógica. Como Botton (2006, apud NOVALIS, S/ ANO) advertiu: em um trabalho artístico, caos deve emergir através do véu da ordem. A animadora tensão entre caos e beleza pode ser conquistada não somente através de materiais mas também através de contornos e terrenos. Assim como não podemos apreciar a sensação de segurança sem uma impressão no fundo de perigo, também é apenas em edifícios que flertam com a confusão que podemos apreender a escala de nosso débito com nossa capacidade de ordem. Para explicar o apelo do balanço entre elementos contrastantes em edifícios, na concepção de Botton (2006), parece natural mover a discussão para além da arquitetura, por não ser somente uma beleza visual que delineia esses trabalhos balanceados, mas também, e talvez até principalmente, a evidencia que eles emitem de possuir uma distinta natureza humana de bondade ou maturidade.de acordo com o autor, segue-se que o balanço que nós aprovamos na arquitetura, e que nós colocamos o nome de “belo”, alude ao estado que, em um nível psicológico, nós podemos descrever como saúde mental ou felicidade. Assim como nos edifícios, nós também temos opostos que podem ser mais ou menos assegurados de maneira manipulável. Nós também podemos descender ao extremo – de caos ou rigidez, decadência ou austeridade – mesmo quando nós instintivamente reconhecemos que nosso bem estar depende na habilidade de ser capaz de tanto acomodar quanto cancelar nossas 53
polaridades. Para Botton (2006), se certo edifício balanceado nos toca, é porque ele se manifesta como exemplar da maneira como nós devemos decidir entre os aspectos conflitantes de nosso caráter, e como nós também podemos aspirar a fazer algo bonito de apostos problemáticos. Nós nos sentimos movidos por edifícios como catedrais, arranha-céus e túneis por compensarem por nossas inadequações, nossa inabilidade de cruzar uma montanha ou carregar cabos entre cidades, salienta Botton (2006). Segue-se que essa impressão de beleza que nós associamos a trabalhos arquitetônicos pode ser proporcionalmente relacionada à intensidade das forças ás quais a arquitetura se opõe. Há beleza naquilo que é mais forte que nós. Apesar de nós tendermos a acreditar, na arquitetura assim como na literatura, que um trabalho
importante
deve
ser
complicado,
muitos
edifícios
atraentes
são
surpreendentemente simples, e até mesmo repetitivos em seu design, reflete Botton (2006). Nos deleitamos na complexidade que é genialmente feita para parecer simples. Nós chamamos um trabalho arquitetônico de elegante quando não apenas parece simples: nós devemos sentir que a simplicidade que ele mostra foi duramente conseguida, que ele segue pela resolução de uma técnica demandada ou predicamento natural. Para Botton (2006), se nós definirmos elegância como decorrente em parte do triunfo contra um dado desafio arquitetônico – suportar um teto ou segurar o vidro no lugar – então à nossa lista de desafios devemos adicionar o mais abstrato da negligência. Nós apreciamos edifícios que parecem desdenhar do peso do descuido e da indiferença. As leis arquitetônicas para os edifícios desapareceram em muitas cidades, e os edifícios modestos e ordenados junto com elas, e que podem nos traçar de volta a um dogma perverso que sobrepõe a profissão arquitetônica no período Romântico: a crença na conexão necessária entre arquitetura, grandiosidade e originalidade, expõe Botton (2006). Mas um arquiteto intencionando ser diferente pode acabar provando-se tão problemático quanto um piloto ou médico imaginativo demais. Não importa o quanto a imaginação seja importante em alguns campos, restrições e aderência a procedimentos emergem como as mais significativa virtudes entre grandes outras. Nós raramente queremos ser surpreendidos por novidades enquanto dobramos as curvas de uma rua. Nós requeremos consistência em nossos edifícios, por nós sermos frequentemente fechados a desorientações e frenesi. Os arquitetos que mais nos beneficiam devem ser 54
aqueles que são generosos o suficiente para deixar de lado seu intuito de se tornar gênios para se devotarem a fazerem caixas graciosas, mas não originais. Arquitetura deve ter a confiança e bondade de ser um pouco chata (BOTTON, 2006). Na visão de Botton (2006), de vez em quando nós somos movidos a adicionar guirlandas, gárgulas, estrelas ou coroas em nossos edifícios sem nenhuma razão prática. No melhor desse florescimento nós podemos ler sinais de bondade em um registro material, uma forma congelada de benevolência. Nós vemos neles uma evidencia daqueles lados da natureza humana que nos permite prosperar ao invés de simplesmente sobreviver. O autor afirma que esses toques elegantes nos lembram que nós não somos exclusivamente pragmáticos ou sensíveis: nós somos criaturas que, sem possibilidade de lucro ou poder, ocasionalmente esculpem frades em pedras e molda anjos em paredes. Na intenção de não simular tais detalhes, nós precisamos de uma cultura confiante o suficiente sobre seu pragmatismo e agressividade pois isso pode também reconhecer as demandas contrárias de vulnerabilidade e toque – uma cultura que é suficientemente não ameaçada por fraquezas e decadência como para permitir visíveis celebrações de ternura. Má arquitetura é a final, na concepção de Botton (2006), tanto uma falha psicológica quanto de design. É um exemplo expresso através de materiais da mesma tendência que nos leva a casar com a pessoa errada, escolher empregos inapropriados e agendar férias mal sucedidas: a tendência de não entendermos quem nós somos e o que vai nos satisfazer. Os lugares que chamamos de belos são, por contraste, o trabalho daqueles raros arquitetos com a humildade de interrogar a si mesmos adequadamente sobre o seus desejos e a com a tenacidade de traduzir suas apreensões fugazes de contentamento em planos lógicos – uma combinação que permite a eles criar ambientes que satisfazem necessidades que não sabíamos conscientemente que tínhamos. De acordo com Botton (2006), se edifícios podem representar um repositório de nossos ideais, é porque eles se põem à prova de todas as infelicidades que corroem vidas comuns. Um grande trabalho de arquitetura vai nos falar de um grau de serenidade, força, equilíbrio e graça, nas quais nós, ambos como criadores e espectadores, não podemos fazer jus – e isso vai por esta mesma razão iludir e nos comover. A arquitetura estimula nosso respeito à medida que ela nos supera. Edifícios vão nos bater como ofensivos não porque eles violam uma preferencia visual privada e misteriosa, mas 55
porque eles conflitam com nosso entendimento de um senso de existência direito. Para Botton (2006) a amplitude das escolhas nos deixa livres para determinar qual trabalho de arquitetura é mais ou menos respostas adequadas à nossas necessidades psicológicas genuínas. Vendo através deste ponto de vista, uma dada escolha de estilo vai nos falar tanto sobre o que seus defensores faltam quanto sobre o que gostam. Sobre idealizações, Botton (2006) afirma que uma arquitetura produzida sob a influência de uma teoria idealizada de arte pode ser descrita como uma forma de propaganda. Esta palavra é alarmante, por nós sermos inclinados a acreditar que grandes artes devem ser livres de ideologias e admiradas somente por elas mesmas. Um trabalho de arte se torna uma propaganda sempre que o uso de seus recursos é feito para nos direcionar a algo, enquanto tenta enriquecer nossa sensibilidade e nossa prontidão de responder em favor de qualquer finalidade ou ideia. Não há nada errado com a ideia de que a arte pode direcionar nossas ações, desde que essas direções apontem para a direção correta. Uma grande consequência de se fixar em um ideal é que ele pode nos entristecer. Quanto mais bonito algo é, maior o risco de nos sentirmos tristes. Nós somos lembrados do modo como queríamos que as coisas fossem, e como incompletas nossas vidas continuam. Ambições idealizadas se tornam especialmente evidentes quando uma construção de grande perfil cívico está em jogo. Sobre a idealização da arte, Botton (2006, apud SCHILLER, S/ ANO) propôs que a perfeição encontrada em artes idealizadas pode ser fonte de inspiração, na qual nós podemos ser capazes de olhar quando perdemos confiança em nós mesmos e onde, em contato unicamente com nossas deficiências, uma instância melancólica e autodestrutiva se pronuncia. Para Botton (2006, apud SCHILLER ANO), ao contrário de nos confrontar evocando nossos momentos obscuros, trabalhos artísticos devem se assegurar, como uma manifestação absoluta de potencial; eles precisam funcionar como uma escolta descendo do mundo das ideias. Na concepção de Botton (2006) nós premiamos trabalhos de arte precisamente na medida em que eles deixam evidentes ideias escondidas e fielmente se harmonizam aos fatos de nossa condição humana. Nós honramos esses trabalhos por revelar quem nós somos, ao invés de quem nós queríamos ser.
2.4. Tempo, memória e relações associativas 56
Esse tópico visa estudar a relação humana com o tempo, um elemento que também faz parte do nosso universo físico e psicológico. Vivemos em determinado tempo e vivenciamos o mundo através do tempo, por isso não há como dissociar as questões perceptivas deste elemento. O tempo deixa marcas no nosso psicológico, eventos ocorridos no passado podem ser a chave para muitas de nossas questões perceptivas por nós expressarmos reações às nossas memórias, e são essas relações que serão discutidas a seguir. Botton (2006) acredita que nós construímos com o mesmo intuito de que escrevemos: para manter um registro do que importa para nós. O autor fala que o medo de esquecer qualquer coisa preciosa pode engatilhar em nós o desejo de construir uma estrutura, como um peso de papel para segurar nossas memórias. O desejo de lembrar une as razões de se construir para vivos e para mortos. Assim como construímos tumbas, marcas e mausoléus para a memória de entes queridos perdidos, também construímos e decoramos edifícios para nos ajudar a lembrar partes importantes mas fugitivas de nó mesmos. A arquitetura, assim como todas as artes, é algo que se relaciona com a natureza humana no espaço e também no tempo, expressando e relacionando um pouco da condição humana por todo o mundo, segundo Pallasma (2012). O autor afirma que a arquitetura é algo que interage profundamente com as questões da individualidade e do mundo, interioridade e exterioridade, tempo e duração, vida e morte. “As práticas estéticas e culturais são peculiarmente suscetíveis às experiências mutáveis de espaço e tempo, precisamente porque se envolvem com a construção de representações espaciais e artefatos oriundos do fluxo da experiência humana” (PALLASMA, 2012 apud HARVEY, 1992, p.14). Pallasma (2012) completa afirmando que a arquitetura é a principal ferramenta que nos relaciona com o tempo e com o espaço, e ela é o que dá a dimensão humana para estas questões: “ela domestica o espaço ilimitado e o tempo infinito, tornando-o tolerável, habitável e compreensível para a humanidade.” (PALLASMA, 2012, p.14). Esta interdependência entre espaço e tempo é para Pallasma (2012, p.14) a “dialética do espaço externo e interno, do físico e do espiritual, do material e do mental, das prioridades inconscientes e conscientes em termos de sentidos e de suas funções e interações relativas que tem um papel essencial na natureza das artes e da arquitetura”.
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Para Botton (2006) nós parecemos incapazes de olhar para um edifício ou móvel sem liga-los à circunstância histórica e pessoal de nosso olhar; como resultado, estilos arquitetônicos e decorativos se tornam, para nós, souvenires emocionais do momento e configurações em que nós passamos por eles. Segundo o autor, tão atentos são nossos olhos e cérebros que o menor dos detalhes pode liberar memórias. Essas memórias nos fornecem uma capacidade associativa enorme mesmo que inconsciente, e, de acordo com Botton (2006) é a partir de nossos poderes associativos que arquitetos podem se utilizar de referências em suas obras: arquitetos podem ondular seus arcos e janelas e se sentirem confiantes de que serão entendidos como referencias ao Islam; eles podem alinhar seus corredores com placas de madeira não pintadas e confiantemente aludir ao rústico e ao despretensioso; podem instalar grossos trilhos brancos em volta de varandas e saber que suas vilas à beira mar vão falar de transatlânticos e vida náutica. Botton (2006) afirma que um aspecto mais perturbador das associações se apoia em sua natureza arbitrária, no modo que elas podem nos guiar a passar um veredito sobre objetos ou edifícios por razões não conectadas a suas virtudes ou vícios especificamente arquiteturais. Nós podemos fazer julgamentos baseados no que eles representam ao invés do que eles são. Nós podemos definir genuinamente bonitos objetos como aqueles dotados de suficiente ativos inatos para suportar nossas projeções negativas ou positivas. Eles corporificam boas qualidades ao invés de apenas nos lembrar delas, assim como podem sobreviver a suas origens temporais ou geográficas e comunicar suas intenções muito tempo após sua audiência original desaparecer, e também podem afirmar seus atributos sobre e acima do fluxo e refluxo de nossa injustamente generosa ou condenadora sociedade (BOTTON, 2006). De acordo com Pallasma (2012), o mundo dos olhos está tornando o tempo presente cada vez mais tido como infinito, como se fosse a única dimensão existente e importante, consequência da velocidade e simultaneidade proporcionados pela tecnologia e mentalidade dos tempos de hoje. Em seu livro, Pallasma (2012) sugere que os objetos arquitetônicos construídos em nossa época tecnológica não apresentam a noção do tempo, sempre almejando uma perfeição atemporal, o que o autor associa ao temor da morte que o desgaste e a idade representam. Esse enfraquento da noção do tempo nas obras, para o autor, ocasionam consequências mentais para os usuários, pois “nada dá ao homem mais satisfação do que a participação em processos que ultrapassem o período de uma vida individual” (PALLASMA, 2012, apud BOOTH, S/ 58
ANO, p.30), o que retira do homem o pertencimento no tempo. O autor afirma que a arquitetura deve fazer domesticar o espaço infinito para nos permitir habitá-lo, mas, além disso, o tempo deve ser também domesticado, para nos sentirmos habitando dentro de um período de tempo, pois nós existimos não só no espaço, como também no tempo. Para Pallasma (2012) o nosso corpo se apresenta como uma entidade física, mas também como uma trama relacionada de memória e sonhos, todos eles ativados pela memória corporal já citada anteriormente. A capacidade de memória seria algo totalmente improvável se não existisse relação com a memória corporal (PALLASMA, 2012, apud CASEY ,2000). “O mundo é refletido no corpo e o corpo é projetado no mundo. Lembramo-nos por meio de nosso corpo, bem como de nosso sistema nervoso e cérebro” (PALLASMA, 2012, p. 41). Pallasma (2012) afirma que por meio da arquitetura nos situamos no presente e no tempo. Ela nos ajuda a perceber o fluxo da continuidade das coisas, representando conjuntamente com as cidades a história, como se fossem museus, ajudando a entendermos a vida além de nosso tempo individual, nos conectando com o passado e nos projetando no presente. O tempo na arquitetura é algo relativo em que nos melhores exemplares parece não surtir efeitos devastadores: ele permanece imóvel, segundo as palavras de Pallasma (2012). Para ele, o tempo e o espaço são coisas que permanecem ligadas onde se juntam à matéria para formar experiências únicas dando a sensação de existência. O autor afirma que as grandes construções da modernidade conseguiram manter em seu caráter aquele sentimento exalado de sua utopia otimista e esperançosa, e passam essa mensagem até os dias de hoje. Ele diz que os projetos artísticos são elementos que tentam um ideal inatingível, no qual a beleza chega perto de tocar o eterno por um instante. Nas palavras de Pallasma (2012), a memória mais forte de um local, na maior parte das vezes, é o seu cheiro. E cada residência apresenta seu próprio odor. Um cheiro familiar consegue nos transportar para locais da memória que já haviam sido esquecidos pelos olhos, nos trazendo inspirações ligadas aos sonhos “a memória e a imaginação permanecem associadas” (PALLASMA, 2012, apud BACHELARD, 1969, p.49). Existe uma correlação entre as ações e a memória que vai além do que é consciente nas pessoas: “Em tal memória, o passado é corporificado nas ações. Em vez de ser contida separadamente em algum lugar da mente ou do cérebro, ela é um ingrediente 59
ativo dos próprios movimentos corporais que completam determinada ação” (PALLASMA, 2012, apud CASEY, 2000, p.58). Pallasma (2012) afirma que o ser humano possui a capacidade de se lembrar e de imaginar locais de maneira natural. Segundo ele, há uma ligação constante entre nossa percepção, memória e imaginação, fazendo com que o tempo presente se una a uma mistura desses elementos. A mente transforma as cidades que já visitamos e todas as nossas lembranças em uma grande cidade mental de recordações. Sem nossa capacidade de memória a literatura e o cinema perderiam o seu poder, por se utilizarem disso no intuito de nos tocar de alguma forma. Acredito que é possível dizer que até mesmo os livros de literatura envolvente, que nos fazem entrar na trama e nos sentir parte dela, se manifestam em nosso corpo por nossa memória sensorial. Se não tivéssemos essa memória de como os elementos agem em nossa percepção, a literatura seria algo distante e difícil de se envolver. Atrevo-me a afirmar que é esse o elemento que a arte da literatura tem de especial, uma transposição de mundo através de descrições que afeta de maneira muito profunda, até mesmo mais profunda do que filme ou outros roteiros mostrados de forma mais sólida e direta através do uso de imagens. Há diferentes formas de se recordar uma cidade, podendo esta ser uma imagem visual fomentada na mente ou um conjunto de recordações vivas, fruto de uma interação mais significativa, diz Pallasma (2012). “a memória resgata a cidade prazerosa com todos os seus sons e cheiros e variações de luz e sombra. [...] A medida real das qualidades de uma cidade é se conseguimos nos imaginar nos apaixonando por alguém nessa cidade” (PALLASMA, 2012, p.64)
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3. Concepção e prática arquitetônica
Segundo Pallasma (2012), assim como nas artes em geral, a arquitetura é um elemento que não pode ser concebido sem ser pensado como uma projeção do corpo e sem levar em conta os seus movimentos no ambiente. Ela envolve também questões relativas à condição humana, e deve ser pensada com clareza, utilizando-se dos elementos arquitetônicos de modo a envolver o corpo através dos sentidos, criando emoções. O ponto crucial da arquitetura, para Pallasma (2012, apud MERLEAUPONTY, 1964), é “tornar visível como o mundo nos toca”. Pallasma (2012, apud GRAY, S/ ANO) fala da predileção dos arquitetos modernistas pelo espaço externo, deixando de lado o interior do edifício, evidenciando assim sua predileção à visão. No entanto, para o autor, a arquitetura não pode apenas se concentrar em um funcionalismo ou no conforto do corpo e dos sentidos e não perder ao mesmo tempo sua função existencial. Os objetos arquitetônicos devem conter um segredo com relação a suas funções racionais, agregando mistérios que provoquem nossa imaginação e emoções. Para Pallasma (2012) quando um arquiteto projeta, ele se torna parte da paisagem e dos elementos funcionais daquele objeto durante o processo criativo. De forma inconsciente ele sente a escala, o movimento e equilíbrio da edificação por todo seu corpo. A interação da obra com o usuário é refletida no projetista, tornando a arquitetura um meio de comunicação entre o corpo do arquiteto e com o do usuário, podendo essa interação ocorrer até séculos após a edificação ser concebida. Pallasma (2012) afirma que a escala na arquitetura é o entendimento da obra por meio da medição através do corpo do espectador de maneira inconsciente. O autor diz que existe prazer em encontrar sua própria ressonância em um espaço, e que quando uma estrutura é experimentada por nós isso faz com que nosso corpo se molde a ela de certa maneira, ele tenta imitar suas configurações através de nossos tecidos corporais. A gravidade é outro elemento que torna a arquitetura possível e as duas interagem de tal forma que a arquitetura nos ajuda a ficar cientes da existência da gravidade e de sua
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ação sobre as coisas, relata Pallasma (2012). O autor fala da capacidade da arquitetura de nos possibilitar a experimentação da verticalidade do mundo, nos fazendo perceber a profundidade terrestre ao mesmo tempo em que nos faz imaginar e querer a sensação de voar. Neste capítulo serão discutidas as relações mais práticas com relação à criação do lugar. Veremos como se dão os processos de concepção e construção em nossa era digitalizada e será feito um estudo baseado na obra de Peter Zumthor “Atmosferas” que visa demonstrar como a produção arquitetônica pode passar do nível de construção de uma mera edificação sem sentido para a construção de sensações e de vida, a construção de um lugar.
3.1. A era da interatividade Nos tempos de hoje, o computador se tornou a grande ferramenta de diversas áreas do cotidiano, e a arquitetura é definitivamente uma delas. Ele é tido como uma revolução e um facilitador do trabalho do arquiteto, e é o recurso majoritário utilizado por estes profissionais. Contudo, essa visão do computador tido como grande revolucionário da arquitetura é algo criticado pelos estudiosos da atmosfera arquitetônica, e essa será a problemática abordada por este tópico. Pallasma (2012) se mostra contrário à supremacia do computador, afirmando que a criação de imagens através da tela é algo que ajuda a diminuir nossa capacidade de imaginação multissensorial, simultânea e sincrônica, uma vez que se torna um processo de criação passivo e exclusivo da visão. O projetar através de uso do computador é algo que cria certa uma distância entre o criador e a criação, enquanto outros métodos como o desenho à mão e a elaboração de maquetes físicas proporcionam contato tátil com o objeto ou espaço. “Na nossa imaginação, o projeto está simultaneamente em nossas mãos e dentro da nossa cabeça, e a imagem física projetada e criada é modelada por nossos corpos. Estamos ao mesmo tempo dentro e fora do objeto. O trabalho criativo exige uma identificação corporal e mental, empatia e compaixão” (PALLASMA, 2012, p.10). É preciso atentar-se ao uso deliberado das tecnologias para que a arquitetura não se torne algo distante da consciência humana. Mas o uso de tecnologias não deve, no entanto, ser visto como inimigo da arquitetura, pelo contrário, seu uso realmente pode 62
facilitar (e muito) o trabalho do arquiteto, desde que seja controlado e não se torne o único meio de se fazer arquitetura. É preciso tornar o computador e as tecnologias aliados da boa arquitetura. Além de bloquear a imaginação do arquiteto, a cultura tecnológica vem também acentuando a separação dos sentidos e a primazia da visão. Segundo Pallasma (2012), a visão e a audição são dadas como os sentidos principais na sociedade dos tempos de hoje, e enquanto isso, os outros sentidos são deixados de lado e são vistos como resquícios de tempos primitivos, sendo normalmente reprimidos pelos códigos sociais. As únicas exceções encontradas por Pallasma (2012) de sensações socialmente mais aceitas que integram os outros sentidos em nosso mundo primordialmente visual são o prazer estimulado por cheiros de comidas e flores e a resposta tátil a temperaturas. Pallasma (2012) afirma que a tecnologia é algo que reforça a primazia pela visão no mundo contemporâneo, pois ela aumenta e facilita a produção e difusão de imagens “O evento fundamental da era moderna é a conquista do mundo como fotografia” (PALLASMA, 2012, apud HEIDEGGER ANO, p.18). Dentro de toda essa lógica tecnológica, o único sentido com resposta suficientemente rápida com capacidade para acompanhar esse processo é a visão (PALLASMA, 2012). O resultado de toda essa dinâmica da sociedade contemporânea é o uso da imagem como mercadoria. O mundo inteiro se vê reduzido a milhares de imagens vistas por uma tela, e percebe-se muito disso não somente na arquitetura, mas em toda a vida das pessoas. Um show não é mais apreciado ao vivo, pois as pessoas o querem gravar com seus celulares e acabam assistindo-o através dele; uma viagem não é mais aproveitada pelo prazer de se viajar, mas pela quantidade de imagens que serão geradas para serem difundidas pelas redes sociais; Tudo isso são consequências da supremacia da visão. Percebe-se que aos poucos a maioria dos sentidos vem sendo corrompidos pela visão com o uso de tecnologias: O prato do chef tem que ser apresentável aos olhos (mais importante do que o próprio sabor); a música tem que ser cantada por alguém aprazível à visão e fazer vídeos que sejam chamativos aos olhos. Tudo acaba por se tornar um subproduto da visão, pois é ela que será difundida pela tecnologia, é ela que todos os outros que não estão ali presentes poderão apreciar, e é a partir dela que as pessoas conseguem vender o seu modo de vida para tentar se tornar socialmente aceitas:
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Uma avalanche de imagens de diferentes espaços que chega quase simultaneamente, sobrepondo os espaços do mundo em uma série de imagens na tela de um televisor... A imagem dos lugares e espaços se torna tão suscetível a produção e ao uso efêmero quanto qualquer outra [mercadoria] (PALLASMA, 2012, apud HARVEY, 1992, p.19)
Segundo Pallasma (2012) ocorre uma destruição nas últimas décadas da realidade construída e herdada, o que resulta em uma forte crise de representação, e pode-se também perceber um tipo de histeria misturada com pânico na representação artística de nosso tempo. A imagem entra nesse meio como uma propaganda para a arquitetura de nossos tempos. Pallasma (2012) afirma que a arquitetura e arte dos últimos 30 anos têm se utilizado muito disto, criando objetos que compõe imagens surpreendentes e memoráveis que possuem a capacidade de seduzir instantaneamente. Segundo Pallasma (2012) essa psicologia da propaganda torna os “produtos arquitetônicos” visuais e ausentes de uma essência existencial e sinceridade. Há “a perda da temporalidade e o desejo de um impacto instantâneo” (PALLASMA, 2012, apud HARVEY , 1992, p. 27) Outro ponto importante que permeia a dinâmica da sociedade atual baseada na imagem é a imagem produzida por fotografia. Pallasma (2012) discorre sobre isso em seu texto afirmando que ocorre uma perda de plasticidade da arquitetura por ser vista de forma bidimensional, faltando certa experimentação do mundo e nos tornando expectadores e não participantes. Sobre o papel da imagem fotográfica Pallasma (2012, apud SONTAG , S/ ANO, p.28) observa o surgimento de uma “mentalidade que observa o mundo como um conjunto de possíveis fotografias” e afirma que nessa relação do olhar fotográfico nosso mundo se torna aquilo que a fotografia apresenta, surtindo efeito em nossa sensibilidade ética, o que faz do mundo e da realidade algo aparentemente mais disponível do que realmente é. Para Pallasma (2012), a consequência da primazia da visão, exacerbada pelo uso de tecnologias e pela necessidade de respostas sempre muito rápidas, é a perda da plasticidade nos edifícios, que passam a ser privados de tatilidade com escala e detalhes distantes da anatomia humana, se tornando demasiado planas e agressivas, sem materialidade e fora do real. Apesar de a tecnologia ser grande reforçadora da primazia da visão Pallasma (2012) afirma que ela também pode ser usada para ajudar a reforçar os outros sentidos 64
Com o telefone, o rádio, a televisão e os vários tipos de fitas de áudio, a tecnologia eletrônica nos trouxe para a era da ‘oralidade secundária’. Essa nova oralidade tem similitudes impressionas com a antiga oralidade, devido à sua mística participativa, sua promoção senso comunitário, sua concentração no momento presente... (PALLASMA, 2012, apud ONG ANO, p. 34)
Mesmo com tudo o que já foi falado nos parágrafos anteriores Pallasma (2012, apud MONTAGU ANO) afirma que a população do mundo ocidental está começando a tentar retornar aos sentidos oprimidos, e que isto representa, de maneira tardia, um ressurgimento contra a repressão com relação à experiência sensorial que o uso da tecnologia trouxe. Segundo Pallasma (2012), esse pensamento tem sido abordado por vários arquitetos no mundo inteiro, com tentativas de trazer de volta a sensualidade para a arquitetura por meio da sensibilidade com relação à materialidade e tatilidade dos edifícios, assim como do uso de textura e peso, densidade do espaço e da luz materializada. No tópico que segue, serão estudadas as formas com que podemos trabalhar em prol de criar maior diversidade de experiências no espaço arquitetônico.
3.2. O que é e como se dá o projetar atmosferas De acordo com Pallasma (2012), no âmbito do trabalho criativo, o criador como um todo se torna terreno da obra: sua constituição tanto corpórea quanto mental. Segundo o autor (apud WITTGENSTEIN, S/ ANO, p.9) “Trabalhar com filosofia assim como com arquitetura, de diversas maneiras realmente é trabalhar principalmente em si próprio. Em sua própria interpretação. Em como você vê as coisas...”. Em seu livro “Atmosferas”, Peter Zumthor (2006) discute o que seria para ele a verdadeira qualidade arquitetônica, chegando à conclusão de que esta ocorre quando a arquitetura te toca de alguma forma, e não por ser publicada em revistas ou ficar na história. A arquitetura é local de interação do ser humano com o ambiente criado por ele para satisfazer suas necessidades e nos fazer sentir completos de certa forma, portanto o que realmente importa neste contexto é se a arquitetura está cumprindo essa função, nos fazendo sentir em casa e desfrutando de sensações únicas no espaço, não apenas sendo uma boa imagem vazia. O grande desafio disso tudo é entender o que é esse algo que te toca, e mais ainda, saber trabalhar isto de maneira proposital a fim de que se torne um objeto arquitetônico que proporcione experiências únicas e marcantes na vida das pessoas. Essa questão é levantada por Zumthor (2006): “como posso projetar 65
coisa assim, que tem uma presença tão bela e natural que me toca sempre de novo.” Segundo o autor a denominação para este fenômeno é atmosfera. Ele usa o exemplo da primeira impressão, que quando vemos uma pessoa pela primeira vez não podemos nos deixar levar por ela, devemos dar uma chance para a pessoa mostrar sua essência. E o mesmo ocorre com a arquitetura. Segundo Zumthor (2006) “A atmosfera comunica com a nossa percepção emocional, isto é, a percepção que funciona de forma instintiva e que o ser humano possui para sobreviver”. Isto é, todos nós possuímos certa intuição com relação às coisas, que na verdade nada mais do que um instinto natural. É o que nos faz sentir vontade de fugir ou ficar. Diferentemente disto existe também o tipo de pensamento racional, o pensamento calculista e pensado de forma consciente. Esses dois
tipos
de
pensamento
são
importantes
para
a
análise
arquitetônica,
complementando a primeira impressão com aquela que é formulada com o tempo e que é pensada de maneira mais racionalizada. Agora, o que é que me tocou? Tudo. Tudo, as coisas, as pessoas, o ar, ruídos, sons, cores, presenças materiais, texturas e também formas. Formas que consigo compreender. Formas que posso tentar ler. Formas que acho belas. E o que é que me tocou para além disso? A minha disposição, os meus pensamentos, a minha expectativa, na altura em que ali estive sentado. E vem-me à cabeça esta famosa frase inglesa que remete a Platão: ‘Beauty is in the eye of the beholder.’ Isto é: tudo existe apenas dentro de mim. (ZUMTHOR, 2006, p. 17)
Esse trecho do livro de Peter Zumthor refere-se a uma descrição que ele faz de um momento seu vivido em uma praça. A forma com que o autor fala da sua experiência nos diz muito sobre a interação existente entre o ser humano e o objeto arquitetônico: vai muito além do que apenas esses dois elementos visuais e palpáveis. Na verdade, tudo influencia o que seu sentimento em um dado momento. Tudo, a atmosfera completa do lugar. E o estado de espírito do usuário também é algo que influencia de forma direta. Por exemplo, se fizer uma viagem para um local que sempre quis ir, com expectativa alta, e durante a viagem tudo ocorre “ás mil maravilhas”, seu espírito ao chegar naquele local vai favorecer o momento. Você estará empolgado e isso pode enaltecer o encontro. Assim como a expectativa pode ser algo que te frustre, se a atmosfera do ambiente não te impactar por dentro como imaginou que o faria. De maneira similar, se tudo “der errado” durante a viagem, o momento tão esperado pode ser ofuscado pelo cansaço mental e isso contribui para que sua impressão sobre o lugar não seja das melhores, pois sua aura interna estará bloqueada de alguma maneira. Ou pelo contrário, como desviou o foco do objetivo, este pode ser tão 66
impactante e mexer de forma profunda, de modo que os desafios enfrentados para alcançá-lo sejam compensados e a alegria seja duplicada. Por isso é importante que não nos apeguemos somente às primeiras impressões. Como tudo interfere no nosso julgamento com relação à arquitetura, é importante que a experimentemos de forma verdadeira a fim de sabermos julgar sua essência real. Cada vez que formos a um edifício teremos uma experiência diferente da última, pois o contexto também será diferente, apesar do objeto em si continuar sendo o mesmo. Um local pode ganhar significado de maneira imprevisível ou inesperada para alguém, basta um acontecimento marcante ou uma memória boa ser ativada por aquele contexto. Esta memória não precisa ser de um acontecimento naquele local específico, o lugar pode nos ativar lembranças de outros ambientes ou situações através de sua atmosfera. Certamente que estes elementos são difíceis de manipular, uma vez que são muito abstratos para se materializar em um edifício palpável de maneira proposital, mas ter uma ideia de como estes elementos funcionam, nos ajudam a avaliar e a ter certa delicadeza ao tratar da arquitetura, retirando o nosso foco do meramente visual e comercial e nos aproximando de uma natureza mais humana e atrativa subjetivamente. O uso segue nessa problemática como um fator importante que contém elementos subjetivos que podem ser previstos e manipulados a fim de proporcionar um ambiente condizente com o estado de espírito do usuário, como por exemplo, em um ambiente hospitalar em que as pessoas já chegam fragilizadas de certa forma, a ambientação deve ser produzida a fim de proporcionar mais calma à pessoa. “Existe um efeito recíproco entre as pessoas e as coisas.” (ZUMTHOR, 2006, p. 17) A grande problemática do criar atmosferas é saber até que ponto isto pode ser manipulado, até onde vai o poder do arquiteto em cria-las, e como proceder para atingir esse objetivo. Zumthor (2006) acredita que o arquiteto tem sim o poder de manipular atmosferas, pois existem “coisas boas e menos boas”. Para ele, o criar uma atmosfera é uma ato que beira o artesanal, o qual apresa o uso de ferramentas, instrumentos, procedimentos e interesses. Zumthor (2006) apresenta nove pontos principais que ele considera importantes ao tentar se criar uma atmosfera, sendo eles: o corpo da arquitetura, a consonância dos materiais, o som do espaço, a temperatura do espaço, as coisas que me rodeiam, entre a serenidade e a sedução, a tensão entre exterior e interior, degraus da intimidade e por último a luz sobre as coisas. 67
Sobre estes apontamentos, Zumthor (2006, p.21) afirma que “são muito sensíveis, individuais, provavelmente são mesmo sensibilidades, sensibilidades pessoais que me levam a fazer as coisas desta forma”, ou seja, ele diz que são pensamentos, elementos pessoais que o sensibilizam e isso conforma esses elementos como importantes para ele ao conceber um projeto. A verdade é que o projetar é algo extremamente pessoal, e existem diversas formas de se pensar uma arquitetura de qualidade que contenha uma aura, o importante é que se pense de maneira sensível, que se deixe guiar pelos sentimentos e sensações sensoriais para que fluam de forma a se tornar algo natural. O primeiro dos tópicos de Zumthor (2006) tem como tema “corpo da arquitetura” e condiz ao físico da arquitetura, sua presença material com seus objetos contidos. Para o autor, o principal segredo da arquitetura é capacidade de juntar as coisas do mundo a fim de se criar um espaço. Ele faz uma analogia entre a arquitetura e o corpo humano, os quais possuem elementos visíveis e escondidos. Ele vê a arquitetura como um invólucro, tal qual uma membrana, e a considera como um corpo em sua essência, na ideia geral de um corpo, mas um corpo real que toca e pode ser tocar. O segundo elemento do pensamento de Zumthor (2006) para se criar uma atmosfera é a “Consonância dos materiais”. São colocados primeiramente no âmbito da imaginação para depois serem realizados de maneira real e concreta. E todas as coisas reagem umas com as outras. Os materiais são um conjunto que conformam uma composição, e as possibilidades são infinitas. Em cada situação, em cada composição, em cada local, o material reagirá de maneira diferente, e isso o dá infinitas possibilidades. Para Zumthor (2006), o trabalho do arquiteto é algo que se torna mais misterioso com o passar do tempo, a partir de suas infinitas possibilidades. Segundo ele, existe uma relação entre os materiais e sua distância, que é dependente do material em si e do seu peso. A união dos materiais é algo de grande importância para a criação da atmosfera da obra, segundo o autor. O próximo ponto de Zumthor (2006) se chama “o som do espaço”. Ele afirma que cada ambiente atua como um grande instrumento, colecionando, ampliando e refletindo os sons, e isso apresenta relação com a forma do espaço, seus materiais e à maneira com que eles estão fixados. O som do espaço é um elemento bastante significativo e que a maioria das pessoas não presta atenção. O autor relata que os edifícios soam sempre, algumas vezes sem emoção, mas soam! Segundo ele, só realmente prestamos atenção nos sons dos ambientes quando entramos em um edifício sem ressonância, e 68
o autor afirma que é bonito se construir um edifício a partir do silêncio, imaginar o edifício fazendo-o calmo, o que pode ser bem difícil de alcançar no mundo barulhento de hoje em dia. Neste contexto torna-se bastante laborioso tornar o ambiente calmo e imaginar o espaço a partir do silêncio e como este soará com suas proporções, materiais e os seus elementos. Como soa realmente o edifício quando o percorremos? E quando falamos uns com os outros, como deve soar? E quando ao domingo à tarde converso com três bons amigos no salão? E quando leio? [...] Há edifícios que têm um som maravilhoso e que me dizem: estou em boas mãos, não estou sozinho. (ZUMTHOR, 2006, p.33)
O quarto ponto levantado por Zumthor (2006) com relação à construção de atmosferas refere-se “a temperatura do espaço”. A seu ver, todo edifício apresenta certa temperatura. Cada material retira uma quantidade de nosso calor corporal, sendo que para cada material essa quantidade varia para mais ou para menos, como, por exemplo, é sabido que o aço é mais frio do que a madeira. De acordo com o autor é preciso saber temperar o local. É preciso encontrar o ambiente correto, tanto no sentido literal como no figurativo, pois além de física, essa sensação de temperatura também é psicológica. “O que vejo, o que sinto o que toco... mesmo com os pés.” (Zumthor, 2006, p35) Em quinto lugar, Zumthor (2006) analisa “as coisas que me rodeiam”. O autor relata que a cada vez que adentra em um local não conhecido de alguém fica impressionado. Há certa expressividade no novo. Impressionado com as coisas dessa pessoa, que formam o seu espaço de trabalho ou habitação. Há um pouco destas pessoas em tudo o que acumulam em seus espaços pessoais, e pode-se ver estas pessoas em suas coisas. E não se pode esquecer que as coisas também conformam o espaço. Para Zumthor (2006), a ideia da eminente adição de objetos que não são concebidos pelos arquitetos nos edifícios é algo que configura um futuro à edificação que é desenvolvido em sua presença. E são essas coisas e esse desenvolvimento futuro que ajuda a trazer sensação de lar. O sexto ponto de Zumthor (2006) é denominado por ele “entre a serenidade e a sedução” que condiz à nossa movimentação dentro da arquitetura, pois esta é sem dúvidas uma arte de espacialidade e também temporal. Vivencia-se a arquitetura em determinado tempo e espaço. Zumthor (2006) faz uma analogia entre a arquitetura e a música, a música ocorre através do tempo, leva-se minutos para se ouvir a música e o mesmo ocorre com o objeto arquitetônico, pois se leva tempo para percorrê-lo, e 69
Zumthor (2006) afirma que é este movimentar-se na arquitetura que gera as problemáticas com que gosta de trabalhar. O arquiteto pode desejar que o usuário vagueie livre, ou em certos casos, como o de o corredor de um hospital, a função é conduzir. A sedução é algo importante neste momento. Zumthor (2006) afirma que existe um pouco de encenação neste contexto. Deve-se ter cuidado com o deambular para que não se crie um labirinto, a não ser que esta seja a intenção. “Conduzir. Seduzir. Largar, dar liberdade. Para certo tipo de utilização é melhor e faz mais sentido criar calma, serenidade, um lugar onde não terão de correr e procurar a porta. Onde nada nos prende e podemos simplesmente existir.” (ZUMTHOR, 2006, p.45) É importante ressaltar que toda essa relação deve fazer sentido com a utilização do edifício, tudo deve ser entrelaçado para que se pareça natural. O próximo ponto de Zumthor (2006) é “A tensão entre exterior e interior”. “estar dentro e estar fora”. A arquitetura trabalha com o jogo do indivíduo e a multidão, do privado e do público. E existem vários elementos entre interior e exterior que devem ser tratados com sensibilidade, como as passagens, as soleiras, passagens escondidas, entre outros. A fachada de um edifício nos fala muitas coisas: pode nos dizer o é e o que quer, pode nos dizer o que dono quer falar, mas a fachada também esconde. Ela escode o que há por detrais, ela diz que há algo dentro que não te diz respeito. Zumthor (2006) afirma que gosta de imaginar situações acontecendo nos edifícios: o que é que o usuário quer ver nesse edifício quando o adentra? O que se quer revelar? Qual referência se pretende levar ao usuário? O edifício sempre se comunica com a rua na qual está inserido, seja de forma imponente, seja de forma simpática, seja da maneira que for: os edifícios sempre têm algo a dizer. O oitavo ponto de Peter Zumthor (2006) se apoia nos “degraus da intimidade”, que é uma questão de proximidade e distância. Falando-se em um sentido corporal de escala e dimensão, são vários os aspectos que se relacionam com as pessoas, como o tamanho a dimensão e a escala do objeto arquitetônico. Podem ser obras muito maiores que a pessoa ou nem tanto. Podem ser elementos isolados como portas e maçanetas, como Zumthor (2006, p.53) descreve: “Conhece aquela porta alta, estreita, onde toda a gente fica bem ao passar? Conhecem essa porta mais larga, sem interesse, deselegante? Conhecem os portais grandes e intimidadores, onde só quem os abre fica bem e orgulhoso? Ou seja, o tamanho, a massa e o peso das coisas.”
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Zumthor (2006) afirma que, em suas obras, é sempre um desejo seu que o interior seja algo diferente do exterior, que carregue um tipo de massa escondida que não é mostrada, e não seja simplesmente repartições construídas em planta. É interessante notar que toda essa questão de tamanho e peso faz bastante diferença no discurso passado pelos edifícios, como analisa Zumthor (2006): obras maiores que a escala humana tendem a intimidar, como acontece com edifícios estatais, bancos e afins. Mas não se pode levar discursos desse tipo como regra, pois em certos casos as grandes dimensões podem enaltecer. Pode-se sim utilizar escalas como produzidoras de sensações e pode-se surpreender com o que se diz, não se deve julgar pelo previamente conhecido. Uma das estratégias utilizadas por Zumthor (2006) para projetar é pensar no objeto arquitetônico através da pessoa, o projetar para ele ou para alguém, e é importante ter em mente a diferença do projetar para um indivíduo ou um indivíduo inserido um grupo. O último ponto de Zumthor (2006) se baseia na “luz sobre as coisas”. Este é um ponto abordado por diversos autores e estudiosos das “atmosferas”, o que é bastante compreensível, dado que o que vemos são na verdade a reflexões da luz nos objetos. Cada tipo e quantidade de luz podem criar ambientes totalmente diversificados, mesmo que em um mesmo espaço. É preciso entender a luz e saber manipulá-la, como diz Zumthor (2006), de que forma ela está presente no ambiente, qual a relação de sombras, como se ressalta profundidade e como as superfícies se apresentam foscas ou brilhantes. A ideia da luz é algo que acompanha a obra desde a concepção. Para o autor, é como se o objeto arquitetônico fosse iniciado como uma massa de luz e de sombra, no qual vai se adicionando a luz e deixando-a se infiltrar. Os materiais também devem ser selecionados observando-se, de maneira proposital, os tipos de interação que estes sofrem com as luzes, levando sempre em consideração o modo como a refletem. Além dos nove pontos discutidos, Peter Zumthor (2006) se estende discutindo mais dois que ele chama de transcendências, que na verdade são complementações aos nove anteriores. Ele começa com uma discussão da arquitetura como sendo um espaço envolvente, que relaciona o edifício como sendo membro do espaço envolvente ou, nas palavras de Zumthor (2006, apud HANDKE ANO) “o redor físico”. É o espaço que faz parte da vida de uma pessoa, envolvedor da vivência e produzidor de memória. “Amo a arquitetura, amo os espaços envolventes construídos e acho que amo quando as 71
pessoas os amam também. Devo admitir que me daria muito prazer conseguir criar coisas que os outros amem” (ZUMTHOR, 2006 p.67). A segunda transcendência de Zumthor (2006) é a harmonia, que ele explica como sendo uma sensação. Segundo o arquiteto, a forma deve ser consequência da utilização, o que ele considera um grande elogio quando em suas obras isso se torna legível. Arquitetura é uma arte para ser utilizada, e para ele, essa é a grande beleza disso tudo. O autor continua, afirmando que o ponto de encontro dessa dinâmica é o que é belo, essa harmonização que forma o todo: lugar, utilização e forma. Zumthor (2006) completa ainda, afirmando que não trabalha com a forma, e sim com elementos outros que ocasionam nela, como os sons, materiais, a construção, entre outros. Ele trabalha unindo todos os elementos que compõe uma arquitetura com a localização e sua utilização. Os instrumentos utilizados para chegar aos resultados são muito voltados para o desenho e para a maquete, pois esses são instrumentos que permitem o envolvimento do todo, e o envolvimento deste todo é a chave para se projetar atmosferas. Para concluir o trabalho de Zumthor (2006), o arquiteto afirma que seu último objetivo é a beleza, a forma bonita, que é algo que ele tenta encontrar através de inspirações de coisas que o tocam.
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4. Estudos de caso: as boas práticas
Este capítulo é dedicado ao estudo de obras referenciais no trabalho da criação de atmosferas na arquitetura, e apesenta o intuito de exemplificar como é possível se trabalhar com a criação consciente de objetos arquitetônicos que representem significados reais a seus usuários e observadores, a fim de que se torne mais palpável e visível. Foram escolhidos dois trabalhos em especial para esta finalidade: o museu Kolumba, de Peter Zumthor, e o Museu Judaico em Berlim, de Daniel Libeskind. As duas obras foram escolhidas pelo grande sucesso de seus criadores em conceber a atmosfera do local e por terem temas ligados ao trabalho que será fomentado por mim no decorrer do Trabalho de Conclusão de Curso II. A obra de Zumthor foi escolhida por se apresentar de maneira integrante com a história do local e por ser um museu com exposição diferenciada onde obras antigas se misturam à arte contemporânea. Além disso, o museu apresenta grande cuidado com sua materialidade e escala, proporcionando uma gama de experiências inovadoras ao usuário. Já a obra de Libeskind foi escolhida por sua capacidade de tocar as pessoas de uma forma diferente, uma forma mais profunda e reflexiva, e também por aflorar sentimentos de uma forma forte e perceptível e de maneira inteligente e contextual, tendo em vista todo o simbolismo que a obra representa e toda história envolvida. Serão analisados aqui muito mais do que termos técnicos que fazem com que as obras sejam icônicas, mas principalmente é uma tentativa de se estudar, juntamente com esses termos, a atmosfera da obra, o que faz a obra ser especial sob a perspectiva da percepção do espaço e como ela consegue impactar nas pessoas, tentando se analisar os meios pelos quais os arquitetos se utilizaram para chegar a seus objetivos.
4.1. Museu Kolumba – Peter Zumthor O Museu Kolumba é situado na Alemanha, na cidade de Cologne, que foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Ele abriga o acervo de arte da Arquidiocese 73
Católica Romana, cuja arte existe por mais de mil anos (DELAQUA, 2012). O museu é projeto de Peter Zumthor, arquiteto cuja filosofia e ideias foram estudadas neste trabalho e que é bastante significativo na criação das atmosferas da arquitetura que produz. O projeto surge das ruínas de uma antiga igreja do gótico tardio e tenta respeitar a história local e preservar sua essência “Eles (a Arquidiocese) acreditam nos valores próprios da arte, sua capacidade de nos fazer pensar e sentir, seus valores espirituais. Este projeto surge de dentro para fora e a partir do local” (DELAQUA, 2012, apud ZUMTHOR). O tijolo cinza foi o material escolhido por Zumthor para unir os fragmentos remanescentes no local, e eles se misturam às ruínas. Em meios a estes fragmentos estão pedaços remanescentes da antiga igreja, que são compostos por pedras dos períodos romano e medieval, e ainda a capela projetada pelo alemão Gottfried Böhm intitulada “Madonna of the Ruins” de 1950.
Imagem 1 - Capela Madonna of the Ruin. Fonte: Jose Fernando Vazquez. Disponível em: http://www.archdaily.com.br/br/01-58125/museu-kolumba-peter-zumthor/58125_58159. Acesso em: 09/02/2016
De acordo com Delaqua (2012), o museu é constituído por 16 câmaras de exposição e possui um pátio ajardinado em seu centro, que se apresenta como um local tranquilo e isolado com o intuito de ser uma área para reflexão.
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Os materiais foram escolhidos com meticulosidade pelo arquiteto, sendo que eles desempenham um papel muito importante na edificação. Zumthor estudou os materiais durante um longo período, e esta é uma característica conhecida do arquiteto: a de levar bastante tempo para pensar o projeto com muito cuidado, segundo Delaqua (2012). Os tijolos escolhidos para a edificação foram feitos exclusivamente para o projeto de Zumthor, e foram desenvolvidos artesanalmente pelo dinamarquês Petersen Tegl, utilizando uma técnica de inflamação em carvão que confere ao material uma tonalidade idealmente acolhedora (DELAQUA, 2012).
Imagem 2 – Mistura entre tijolos e ruínas e a composição tijolo-lacuna. Fote: Jose Fernando Vazquez. Disponível
em:
http://www.archdaily.com.br/br/01-58125/museu-kolumba-peter-zumthor/58125_58129
Acesso em:09/02/2016
Os tijolos não foram assentados de maneira uniforme por toda a edificação, há algumas faixas em que uma espécie de composição foi criada alternando-se de forma quase que aleatória entre espaços preenchidos e espaços com lacunas, como se alguns dos tijolos tivesse sido removidos de algumas partes. Nas imagens 02, 03 e 04 é possível perceber como estas lacunas trabalham para a estética do edifício na parte exterior e o efeito de luz que elas provocam no interior a partir da entrada de luz natural por entre as lacunas dos tijolos. Na imagem 03 também é possível perceber o jogo de sombras que o arquiteto se utilizou no intuito de dar mais dramaticidade ao local. Como foi citado anteriormente, a composição dos materiais é um elemento muito marcante na arquitetura do local.
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Imagem 3 – Luz natural através dos tijolos e a passarela sobre o sítio arqueológico. Fonte: Jose Fernando Vazquez
Disponível
em:
http://www.archdaily.com.br/br/01-58125/museu-kolumba-peter-
zumthor/1281116982-18-custom. Acesso em: 09/02/2016
Imagem 4 - A luz através do concreto. Disponível em: http://www.arcspace.com/features/atelier-peterzumthor/kolumba-museum/ Acesso em: 23/02/2016
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Na visão de Hybel (2013), o edifício não revela muito em seu exterior. Salvando-se uma série de lacunas em faixa que perfuram a fachada da metade para baixo e algumas janelas largas e quadradas, o edifício se assemelha a uma caixa fechada revestida por tijolos cinza-claro bem alinhados (imagem 02). Mas, ao entrar no foyer do museu em direção ao átrio principal do andar de baixo, tudo começa a se encaixar. As paredes são cegas com apenas algumas perfurações nas linhas superiores, permitindo a entrada de uma luz filtrada no salão de pé-direito dublo (Imagens 03 e 04). Um caminho em ziguezague guia os espectadores através de uma escavação arqueológica entre colunas de concreto que se fixam ao teto. Enquanto se está em meio ao salão com diversas camadas de história expostas, protegido pelas paredes externas que de maneira gentil envolvem tudo junto, existe uma serena calmaria e uma estranha atemporalidade. De acordo com a descrição de Hybel (2013), seguindo o caminho ele o guiará a um átrio sem teto onde a escultura de Richard Serra “Die Verschwundenen und Gerettete” (o afogado e o salvo) se situa, posicionado em cima de uma cripta que contém os restos mortais encontrados durante a escavação. É um final apropriado para a narrativa do espaço e seu passado, quase como um ponto final.
Imagem 5 – Átrio. Fonte: Jose Fernando Vazquez. Disponível em: http://www.archdaily.com.br/br/0158125/museu-kolumba-peter-zumthor/58125_58145. Acesso em: 09/02/2016
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De volta ao foyer, uma escadaria estreita nos leva para o piso superior na exibição de arte, onde a coleção da Arquidiocese é mostrada. Aqui, as salas de exibição são suaves na cor e escala com paredes de concreto branco e pisos polidos. A única abrupção é apresentada na forma das janelas largas que emolduram vistas selecionadas da cidade (HYBEL, 2013).
Imagem 6 – Área de exposição do museu. Disponível em: http://www.archdaily.com.br/br/0158125/museu-kolumba-peter-zumthor/1281117076-47-custom Acesso em: 09/02/2016 Imagem 7 – Área de exposição do museu. Disponível em: http://www.archdaily.com.br/br/0158125/museu-kolumba-peter-zumthor/1281117061-41-custom Acesso em: 09/02/2016
Neste ponto se torna bastante claro que Kolumba não é um museu qualquer, nas palavras de Hybel (2013). Ícones e estátuas religiosas se encontram lado a lado com instalações de arte moderna, e como se isso não fosse confuso o bastante, o visitante é deixado completamente sob sua própria guia, pois não há nenhum texto de acompanhamento presente. Os curadores do museu conseguiram delinear linhas temáticas através da exibição, e através disso, oferecem novas perspectivas no modo que estamos acostumados a apreciar arte, desafiando nosso muitas vezes reduzido escopo de referencias. Hybel (2013) afirma que Zumthor, um assumido opositor ao chamado efeito Bilbao (a noção de que um museu deve ser instrumento de marketing para a cidade ou para o arquiteto, ou os dois) escolheu trabalhar neste projeto por sua aparente recusa a aderir às tendências dos museu de hoje em dia. Como ele disse na abertura do museu: “[Aqui] você sente que o projeto começou de dentro, através da arte e do lugar”. E certamente assim foi. Sente-se o desejo dividido entre o cliente e o arquiteto de criar algo único,
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algo mais que o museu em si. Um lugar que fala a todos os sentidos. Um lugar tão evocativo quanto estimulante fisicamente e mentalmente. Para demostrar com outras palavras o que o museu representa, segue um escrito da bienal de Veneza de 2002 traduzido por mim que descreve de maneira quase poética as características do museu: Embora nossas vidas ocorram em todo lugar, nós nos lembramos de alguns deles em particular. Um desses lugares é “Kolumba” no centro de Cologne. Um jardim secreto, ruínas de pedra, um sítio arqueológico denso único: as ruínas da igreja gótica no centro da reconstruída Cologne é o mais impressionante símbolo da quase completa destruição da cidade durante a Segunda Guerra Mundial. “Kolumba” foi feita para ser um lugar de reflexão. O projeto é o novo edifício para o museu da Diocese de Cologne, que foi estabelecido em 1853 e apresenta uma extraordinária coleção abrangendo desde o antigo Cristianismo até a arte contemporânea. Um museu como um jardim continuamente trazendo alguns trabalhos selecionados a florescer. O eixo condutor da coleção é a busca por ordem global, medida, proporção e beleza que conecta todo trabalho criativo. Esta busca é o material precioso para um laboratório de estética que estuda as conexões antropológicas presentes além de mera cronologia. Kolumba permite aos visitantes se emergirem na presença de suas memórias e oferece a eles experiências próprias em seu caminho. Como um “museu vivo” Kolumba questiona sobre a liberdade do individual em uma troca entre história e os tempos presentes, na intercessão da crença e sabedoria, e defende valores existenciais com desafios através da arte. O novo edifício desenhado por Peter Zumthor transfere a soma dos fragmentos existentes para um edifício completo. Ao adotar as plantas originais e construir nas ruinas, o novo edifício se torna parte do continuum arquitetônico. O bloco cinza claro do grande edifício se une ao calcário, basalto e blocos das ruínas. O novo edifício se desenvolve perfeitamente dos destroços enquanto o respeita em cada detalhe. Em termos de planejamento urbano, ele restaura o núcleo perdido de uma das partes mais bonitas do antigo centro de Cologne. Dentro do edifício um pátio tranquilo toma o lugar de um cemitério medieval perdido. O maior salão do edifício engloba a estrutura de dois mil anos da cidade como uma paisagem de memória sem censura. Suas “parede-filtro” criam membranas permeáveis a luz e arque contém nelas a capela funcionalmente independente. A capela é removida do paisagem urbana em constante mudança e recebe uma localização final, na qual vai ser garantida uma dignidade continuamente existente. Localizado acima – carregado por finas colunas, que gentilmente furam a 79
escavação arqueológica como agulhas – está o andar das exibições. Sua estrutura espacial foi similarmente desenvolvida através da planta baixa idiossincrática. Ela conecta perfeitamente à parte norte do edifício, que – como um edifício completamente novo – irá abrigar futuras salas de exibição e a tesouraria assim como escadarias, foyer, a entrada do museu e as áreas subterrâneas de estocagem. As dezesseis salas de exibição possuem as mais variáveis qualidades que conta a entrada de luz do dia, tamanho, proporção e caminhos. O que eles todos têm em comum é a materialidade reduzida dos blocos, argamassa, gesso e mosaico em frente, o qual se assemelha a um trabalho de arte. Kolumba será um museu de sobras que evoluirão no curso do dia e das estações. Algumas janelas do tamanho de paredes permitirão a luz do dia penetrar de todas as direções. As molduras de metal decoram o revestimento de blocos como broches e segmentam a fachada monumental. Através de respeito à sua localização e de seriedade com seu conteúdo, Kolumba emana serenidade e um convite à alegria. Tradução da descrição do projeto no Catalogo da Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, 2002. Fonte:< http://www.kolumba.de/?language=eng&cat_select=1&category=14&artikle=61> Acesso: 27/02/2016.
4.2. Museu Judaico em Berlim – Daniel Libeskind Segundo Kroll (2010) o Museu Judaico original foi construído em 1933, mas ele não permaneceu aberto por muito tempo, pois foi fechado durante o período Nazista em 1938. Infelizmente, o museu permaneceu fechado até 1975 quando um grupo cultural judeu votou em prol de reabrirem o museu com a intenção de trazer a presença judia de volta à Berlim. Apenas em 2001 quando a adição de Libeskind ao Museu Judaico finalmente foi aberta ao público que o museu finalmente estabeleceu a presença judia incorporada culturalmente e socialmente em Berlim. De acordo com o Studio Libeskind (sem ano) o projeto do Museu Judaico em Berlim de Daniel Libeskind data de 1999 e foi aberto ao público em 2001, exibindo a história social, política e cultural dos judeus na Alemanha a partir do século IV até o presente, explicitando, apresentando e integrando, pela primeira vez na Alemanha do pós-guerra, as repercussões do Holocausto. O
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edifício se situa próximo ao terreno do edifício do original Prussian Court of Justice que foi terminado em 1735 e que agora é usado como entrada para o novo edifício.
Imagem 8 - Vista de cima do Museu Judaico em Berlim. Foto por: Guenter Shneider. Disponível em: http://libeskind.com/work/jewish-museum-berlin/ Acesso em: 11/02/2016
De acordo com o Studio Libeskind (s/ data) o projeto de Daniel Libeskind, que foi criado antes da queda do muro de Berlim, foi baseado em três pontos: é impossível compreender a história de Berlim sem compreender a enorme contribuição feita pelos cidadãos Judeus; o significado do Holocausto deve ser integrado à consciência e memória da cidade de Berlim; e, finalmente, para o futuro, a cidade de Berlim e o país da Alemanha precisam entender o apagamento da vida judaica de sua história. O visitante adentra o Barroco Kollegienhaus e depois descende por escadas pelo dramático vazio da entrada, até o subsolo. O edifício antigo é amarrado ao novo pelo subsolo, mas preservando a autonomia contraditória de ambas antiga e nova estruturas na superfície. A descida leva a três rotas axiais no subsolo, cada uma na qual conta uma história diferente. A primeira leva a um beco sem saída – a torre do Holocausto. A segunda leva para fora do edifício, até os jardins do exílio e imigração, lembrando de todos aqueles que foram forçados a deixar Berlim. O terceiro e maior rota traça um caminho que leva à escada da continuidade, que vai para cima, nos espaços de exibição do museu, enfatizando a continuação da história (STUDIO LIBESKIND, s/ data).
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Um vazio corta através do plano em ziguezague do edifício novo e cria um espaço que incorpora a ausência. É uma linha reta cuja impenetrabilidade se torna o foco central no qual as exibições são organizadas. No intuito de se mover de um lado para o outro do museu, os visitantes devem cruzar uma das sessenta pontes que se abrem para esse caminho. Kroll (2010) afirma que a extensão ao Museu Judaico foi, para Libeskind, muito mais do que apenas uma competição; foi sobre estabelecer e assegurar uma identidade em Berlim, que foi perdida durante a 2° Guerra. Conceitualmente, o arquiteto queria expressar o sentimento de ausência, vazio e invisibilidade – expressões do desaparecimento da cultura judia. Ele usou a arquitetura como meio de narrativa e emoção promovendo aos visitantes uma experiência dos efeitos do holocausto em ambas a cultura judia e a cidade de Berlim. O projeto começou a tomar forma a partir de uma estrela de Davi, símbolo judaico, que foi esticada pelo terreno e seu contexto. A forma foi estabelecida pelo processo de conectar linhas entre a localização de eventos históricos que produziram estrutura ao edifício resultando em uma extrusão literal das linhas em ziguezague da forma do edifício, segundo Kroll (2010). Este estudo de caso não foi escolhido pelos seus termos técnicos, o intuito não é apresentar como ele funciona em termos espaciais pura e simplesmente, mas sim analisar o que essa organização e como o pensamento de Libeskind levaram à construção de um local que consegue evocar sentimentos e sensações por meio do uso de luz, sombra, materialidade, escala, peso, sons e muitos outros elementos. Essa evocação de sentimentos que são passados aos usuários ocorre de maneira diferente para cada indivíduo em si, portanto, ao invés de tentar analisá-lo utilizando a minha perspectiva com relação ao edifício apenas, decidi pedir ajuda a três amigos que visitaram o local recentemente para ilustrar melhor os sentimentos que esse museu evoca. Pedi para que relatassem sua experiência pessoal no museu, contando um pouco sobre suas sensações, seu estado de espírito, e o que o museu evocou neles durante sua permanência, em suma, como era estar lá e qual era a atmosfera do lugar. Ao final também pedi para cederem uma imagem tirada por eles que representasse sua experiência em sua visão. O resultado foram os seguintes relatos: - Eu fui acompanhada de mais três amigas ao museu, e nós já sabíamos que era um museu mais pesado por causa dessa coisa toda do memorial. Nós entramos e o local 82
apresentava um clima extremamente fechado e fazia frio, não sei se de fato estava frio lá dentro mesmo, mas como era tudo muito escuro e muito seco isso dava uma sensação de frio. Eles tentam nos passar uma sensação de analogia mesmo ao que os judeus sentiram, o que eles sofriam, fazer a gente sentir acho que menos de um quarto, obviamente, da angústia que eles sentiam, então tinham partes do museu que eram todas fechadas, só com umas aberturas bem pequeninas nas paredes, uns buracos redondos, e uma luz lá no final do túnel, como se eles estivessem dentro daquelas espécies de caldeirões, e na mesma hora nós conseguíamos remeter a isso. Os barulhos que ficavam no ar, não me lembro exatamente se havia som ambiente, mas me lembro muito bem que de todos os compartimentos do museu nós conseguíamos escutar os sons produzido pelas pessoas do compartimento onde haviam metais no piso que faziam muito barulho quando as pessoas passavam por cima dele, e nós conseguíamos ouvir esse barulho por quase todo o museu, e isso era pesado, pois esse barulho do metal nos remetia às correntes que aprisionavam os judeus. Para mim a parte mais pesada do museu era essa sala, tanto que uma das meninas, que era mais sensível, não conseguiu entrar nela. Conseguíamos escutar desde muito longe da sala os barulhos produzidos nela, e quanto mais próximos chegávamos, mais alto o som ficava, pois era muita gente andando e muitos metais. Esses metais tinham as formas de rostos tristes que ficávamos andando em cima, e era como se a gente estivesse pisando em cima destes rostos, e isso era horrível! Todo o museu era feito para você se sentir mal, pra você tentar lembrar um pouco e sentir coisas ruins para lembrar. E havia labirintos e coisas assim também que faziam nos perder e angustiar. Lembro-me que no final havia uma sala onde havia uma árvore com dizeres perguntando o que você quer para os próximos anos, o que você mudaria no mundo, ou algo do tipo e lá havia uns papéis em forma de coração e maçã para você escrever e pendurar na árvore, e essa ultima sala era mais feliz e dava um espírito mais de esperança e paz mundial e coisas do tipo, e foi legal porque no final passava essa mensagem mais positiva e ficamos um pouco mais leves para sair de lá. (Relato falado de Bruna França de Pontes para este trabalho. Pontes visitou o museu em Março do ano de 2015).
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Imagem 9 - Maçã de papel pendurada na árvore do Museu. Fonte: Bruna França de Pontes (2015)
- Visitei o Museu Judaico em um dia frio e chuvoso na companhia do meu pai. A primeira impressão que tive do edifício em sua parte externa era de contraste com o entorno, mas logo que entrei percebi que em seu pátio externo havia integração com uma pré-existência, fato que desconhecia e apareceu como uma surpresa agradável no projeto. O museu conta com partes interativas em seu acervo, onde o usuário pode interagir e aprender de diversas formas com o que é exposto, o que achei um ponto muito positivo, considerando que o museu é visitado por turistas de todo o mundo, dos mais variados campos e níveis de formação, além das diferenças de idade. Além disso, a impressão que eu tinha era de que o acervo seria algo muito voltado aos fatos relacionados à 2ª guerra mundial, o holocausto sofrido pelos judeus, quando na verdade o museu se trata da história judaica de muitos séculos, tocando em alguns momentos os fatos da 2ª guerra. Adentrando o museu era nítida a intenção do arquiteto de trabalhar algo lúdico com materiais, feixes de luz em janelas estreitas, quinas e cantos agudos e estruturas
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sinuosas. O acervo me interessava, mas as escolhas do arquiteto me prenderam a atenção quase por completo. Em minha experiência pessoal, houve três pontos muito marcantes na visita ao Museu Judaico. O primeiro foi o jardim do exílio, que é uma área externa do museu onde o visitante caminha em um nível claramente mais profundo que o nível da rua em meio a monólitos de concreto com uma singela vegetação nos topos. Dadas às condições climáticas daquele dia, foi uma experiência onde pude ter sensações que iam além do fator puramente visual: o contexto do jardim, sua materialidade pesada, o frio e a garoa. Até mesmo a porta que me separava da parte interna do museu era pesada, em metal, e eu pude sentir o que isso representava para o caráter arquitetônico daquele espaço. O segundo ponto marcante da minha visita foi o corredor de circulação vertical, que além de ser um extenso corredor com longa continuidade visual exibe de maneira expoente e única suas peças estruturais e aberturas. Vigas se cruzam por toda a extensão do corredor, formando angulações diagonais que não se casam com as paredes paralelas que o fecham. A luz entra por uma faixa de janela que rasga toda uma parede em linha horizontal, criando uma experiência muito interessante no jogo de luz e sombras nas paredes e vigas. O terceiro e mais marcante ponto da minha visita foi a torre do holocausto. A torre é um dos espaços mais expressivos do museu e é muito bem explorado arquitetonicamente. O espaço da torre é estreito, porém muito alto, com paredes em concreto e uma iluminação natural de baixa intensidade, feita por pequenas aberturas. Era claramente um ambiente que retratava a opressão sofrida pelos judeus no período do holocausto, mesmo que isso não estivesse escrito em nenhum lugar dentro do ambiente. Não havia nada escrito, à proposito. Sem textos, sem fotografias. As únicas coisas que existiam dentro daquele ambiente eram espessas peças de ferro cortadas de maneira aparentemente rudimentar e sem a intenção de uniformidade, formando desenhos que faziam alusão a rostos. Havia centenas, talvez milhares dessas peças espalhadas pelo chão, e na medida em que as pessoas andavam sobre as mesmas, o choque entre elas emitia um som consideravelmente alto e incômodo, que reverberava pelas paredes de concreto, de modo que com o tempo aquele barulho se tornasse ensurdecedor. Acredito que a experiência e a interpretação desse ambiente seja algo muito pessoal e peculiar, mas meu entendimento sobre a torre do holocausto é que ela retratava os milhares de judeus mortos durante aquele período e que aos olhos do opressor eram 85
figuras genéricas, sem rosto, sem passado, sem família, como representavam as peças de ferro. Com a intervenção sonora emitida pelas peças eu percebi uma espécie de despertar de algo que era aparentemente inanimado, sem vida, até o ponto que aquilo se torna forte suficiente para incomodar, representando talvez uma reação ou força de resistência por parte dos judeus. Talvez uma interpretação um pouco fora do comum ou da realidade, mas foi o que senti como experiência pessoal. (Relato escrito por Lucas Araújo Lacerda estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Goiás, sobre sua experiência na visita ao museu em Abril de 2015 para este trabalho)
Imagem 10 - Sala dos rostos. Fonte: Lucas Araújo Lacerda (2015) Imagem 11 - Circulação vertical do Museu. Fonte: Lucas Araújo Lacerda (2015)
- Quando eu fui lá eu lembro que no começo, que é uma parte mais expositiva, eu particularmente não me interessei tanto. Museus muito expositivos não me despertam tanto interesse. Eu vi algumas coisas mais chamativas, mas nada que me prendeu muito. Lembro que depois desta parte, logo no começo, havia um salão com uma porta enorme e muito pesada de aço pra entrar, e quando você entra o espaço é muito pequeno, triangular e muito alto, e lá no alto há um tipo de abertura com um feixe de luz bem pouca entrando no ambiente. Quando se adentra o espaço ele já te traz uma 86
sensação estranha, pois é um espaço fechado com ângulos muito agudos (as quinas da sala são conformadas em ângulos agudos) que dão essa sensação um pouco estranha, e com uma luz lá no fim do túnel, literalmente, só que pra cima. Eu lembro que o que mais me angustiava na sala era (ficamos bastante tempo nela sentindo o espaço) que cada pessoa que entrava pela porta pesada a fazia bater com muita força e isso produzia um barulho alto. A sensação era um pouco angustiante por estar naquele espaço que dá certa agonia pelo conjunto dos ângulos mais o pé direito muito alto com uma luzinha no final e porta batendo a cada cinco minutos. Isso me marcou muito. Esse ambiente me marcou muito. Nos outros espaços começou a parte mais sensorial do museu que eu me interessei mais, pois eu aprecio museus que são mais sensoriais, mais didáticos. Eu me lembro de uma parte que ficava na área de fora do museu onde havia vários blocos grandes de concreto bem altos que conformavam uma coisa meio labiríntica. Como nós fomos no começo do inverno do hemisfério norte, as árvores já estavam um pouco secas e o céu um pouco cinzento, e por isso, apesar de a instalação ficar ao ar livre, estava tudo cinza, o que deu uma sensação estranha, pois você caminhava pelos caminhos e era tudo quase que igual. Nesse lugar tive a sensação de estar em um espaço sombrio. Apesar de ser ao ar livre e não ser fechado como o primeiro espaço que descrevi, era um pouco sombrio por causa da ambientação dele, com blocos muito altos de concreto que davam a sensação de você ser muito pequeno, somado a esse ar labiríntico e ao ambiente, pois a natureza acabou dando uma ajuda na sensação dessa parte pelo dia estar muito cinzento. O último lugar que me marcou muito foi aquele espaço com uns elementos que parecem vários rostos de ferro no chão, que você anda por cima. Aquela parte é muito estranha porque você pisa em cima daqueles elementos, e apesar de ser abstrato, parece que tem alguma coisa ali, que você está pisando em algo que não devia estar, e na verdade eu subi até ali, mas eu não consegui ficar andando em cima deles: eu pisei um pouco e já sai. A sensação foi muito estranha. Confesso que achei muito legal o jogo de luz presente naquele espaço, que eu não sei explicar direito, mas eu gostei. Não me trouxe nenhuma sensação em especial, mas eu lembro que o jogo de luz das paredes e das aberturas existentes me marcou bastante. Acredito que esses três espaços foram os que mais me marcaram lá no museu e que me trouxeram sensações deste modo. 87
(Relato falado de Juliana Fernandes Alencar para este trabalho em 2016. Alencar visitou o museu em Setembro do ano de 2014).
Imagem 12 a "luz no fim do túnel". Fonte: Juliana Alencar (2014).
Á partir desses relatos é possível perceber o jogo arquitetônico feito pelo arquiteto para conseguir passar a mensagem desejada. Todos os elementos trabalham em conjunto o tempo todo para formar a atmosfera do lugar, e o estado de espírito das pessoas que entram lá é algo que conta muito para isso, uma vez que elas já estão condicionadas a pensar desta maneira. Os fatores sensoriais ligados à visão, audição e tato são explorados em especial a fim de formar a atmosfera desejada, e também a questão do senso de direção das pessoas é trabalhada nesse intuito. A pessoa sente o peso da 88
porta, escuta o barulho ao longe se aproximando e tornando-se ensurdecedor em certo ponto, percebe a pouca luz do lugar, vê a luz no fim do túnel, sente-se claustrofóbica nos espaços, perde-se em seu labirinto... São muitos os elementos utilizados para compor a cena mental dos judeus no holocausto. Aqui são exploradas ambas as esferas sensorial e psicológica assim como a simbólica, uma integrada à outra, e na verdade a percepção e a psicologia fazem sempre parte uma da outra, não há como separar, e na verdade os pontos chave deste projeto são mostrar de maneira mais óbvia que exagerada que o normal o poder que a arquitetura possui de mexer com as pessoas, e mostra também como o uso consciente e estudado dos recursos arquitetônicos pode e deve ser usado a favor dos criadores. A verdade é que toda a arquitetura tem o mesmo poder que esse edifício de Libeskind apresenta, mas de maneira mais implícita e menos perceptível, mas tão significante quanto.
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Conclusão
Através do estudo realizado na presente monografia, algumas conclusões acerca das relações ocultas entre o espaço e ser humano puderam ser realizadas. Primeiramente foi importante salientar que nenhum edifício é divisível das impressões que causa, e através disso, todo espaço arquitetônico tem o poder de passar mensagens do que quer que seja a seus observadores e usuários, podendo ser trabalhadas em prol de algum objetivo de maneira consciente pelos projetistas. Além disso, as imagens passadas às pessoas por meio dos edifícios são criadas a partir da perspectiva de seu uso e do impacto que se deseja causar a partir dele, devendo sempre ter em mente que para se obter sucesso com a edificação, a época e a cultura do povo do local onde essa está situada devem ser considerados atentamente. O contexto do local de implantação de uma edificação não pode ser negligenciado. Foi possível perceber por meio deste estudo que a arquitetura ocorre não somente no espaço, mas também no tempo, e isto nos ajuda a observar relações em vários âmbitos. Primeiramente, o tempo trabalha na arquitetura formulando diferentes visões de beleza de acordo com sua evolução e com as necessidades de cada geração, que são distintas umas das outras. Em segundo lugar, o tempo proporciona uma relação direta da arquitetura com a memória pessoal. É preciso estimular e preservar a memória que os espaços criam em nós. Os sentimentos que um dado local nos despertou em determinada época estão em constante eminencia de serem evocados novamente pelos sentidos, podendo se dar através da visão, audição ou de modo ainda mais arrebatador pelo olfato. A arquitetura também é vivenciada no tempo a partir da perspectiva do presente, pois se leva tempo para se percorrer e explorar uma obra arquitetônica. Edifícios são construídos em determinado tempo, mas eles são marcas da época em que foram construídos que perduram pela posterioridade, e é importante que saibamos lidar com o tempo nas edificações, uma vez que a arquitetura está sendo cada vez mais formulada como um espaço atemporal, trazendo a séria consequência da perda da noção da passagem do tempo por parte das pessoas. Desta maneira pude concluir que é preciso saber aceitar e conviver com as memórias criadas pelos lugares.
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Outro ponto estudado foi o modo pelo qual o homem percebe o mundo hoje em dia como parte de um processo que foi mudando conforme sua evolução. Mas esta evolução não ocorreu de forma totalmente uniforme para todos os povos do mundo, o que acarretou nas diferenças entre as culturas existentes, cuja percepção de mundo se dá de maneira distinta entre si pelas diferentes relações que apresentam para com o ambiente, obtidas através de seus sentidos. As pressões ambientais de diferentes localidades e os diferentes conceitos com relação ao modo de vida e seu ideal fizeram com que as culturas não apenas diferenciassem crenças e coisas mais relativizadas como esta, mas também formaram diferenças fisiológicas entre seus cidadãos que são extremamente significativas em termos de percepção. Este fato, muitas vezes não percebido ou negligenciado por arquitetos e urbanistas é de extrema importância, principalmente no mundo globalizado e interconectado que habitamos, pois a forma com que percebemos o mundo é a chave não só para explicar gostos estéticos, mas para a verdadeira apreciação da obra como um todo, uma vez que as pessoas não se apropriam daquilo que não as representa, e se não há apropriação, há descaso e descuido com relação à obra. Através do estudo da presente monografa pode-se concluir que o principal objetivo da arquitetura, além de promover abrigo e facilitar tarefas, é o de criar mundos nos quais as pessoas possam realmente vivenciar com seu corpo e mente, através do tempo de forma viva e com respeito mútuo. Podemos perceber que isto só ocorre quando a arquitetura abre espaço às necessidades físicas e psicológicas de seus usuários, tornando-se um local onde experiências sensoriais são criadas e onde a vida apresenta sentido verdadeiro. A grande primazia pela visão em nossos tempos é um conceito que deve ser imediatamente revisto em nossa sociedade, não só no âmbito da arquitetura como em toda vida das pessoas. A vivência dos espaços e das cidades como um todo está se perdendo na mesmice. A importância de se criar mundos multissensoriais é enorme, pois são essas relações perceptivas que estimulam a vida e ajudam a criar emoção nas pessoas, criando diversidade no mundo e assim estimulando interações e dando um sentido mais profundo ao senso de existência e pertencimento das pessoas com relação aos espaços arquitetônicos. Uma arquitetura que não represente sentido a seus observadores e usuários será apenas um mero objeto que apresenta certa função menos fundamental e que consequentemente não será respeitada e não cumprirá sua verdadeira função de tornar a vida das pessoas mais significante, tendo em vista que a 91
arquitetura conforma o ambiente que o ser humano ocupa em nossos tempos e é através deste ambiente criado que nos desenvolveremos e que guiará nossa evolução daqui pra frente. Nós criamos espaços arquitetônicos que irão criar o nosso futuro posteriormente. Saber como os sentidos funcionam e como se desenvolve a percepção humana através deles é crucial na criação de boa arquitetura. Como os elementos arquitetônicos são totalmente subordinados a impressões que são avaliadas a partir dos sentidos fica clara sua importância. Não se deve ignorar o poder de comoção que o trabalhar com os sentidos pode trazer. Também as relações que o ser humano possui com o espaço que foram construídas ao longo de milhares de anos e que se desenvolveram a partir de instintos naturais de sobrevivência é de suma importância para o entendimento e o trabalho com as reações que o ser humano pode ter em determinadas situações. A conclusão que se obteve sobre a psicologia refletida nos espaços arquitetônicos é a de que ela é fortemente ligada às percepções sensoriais, e sua base se atrelada à noção de que nós necessitamos de coisas ao nosso redor que nos remetam a valores que consideramos importantes e que nos faltam de certa forma, com o intuito de serem reforçados e lembrados por nós. Edifícios nos quais sentimos pertencentes são na verdade um conjunto de elementos que para nós representam felicidade, sendo que existem inúmeras visões de felicidade, assim como também existem inúmeras noções de beleza. Buscamos na arquitetura um significado de vida, queremos que ela represente mensagens de felicidade e da vida boa que queremos atingir. Os meios pelos quais os projetos são realizados tiveram um grande avanço ao longo das últimas décadas, e a relação crescente do projetar com o computador vem tirando aos poucos o toque humano com relação aos projetos de arquitetura e urbanismo. Os profissionais da área precisam dosar sua relação com os meios de representação existentes para que eles não sejam usados contra, mas sim a favor de um projetar cada vez mais humano e pessoal, onde o ser humano coloca sua alma no lugar, e não um trabalho puramente mecânico e visual. Unir as ferramentas virtuais ao uso das mãos para se conceber arquitetura é extremamente fundamental. Precisamos colocar nossas mãos em nossas obras, precisamos senti-las com todos os nossos sentidos e músculos. É preciso se colocar na arquitetura em prol de humaniza-la. Desta forma os trabalhos manuais como a maquete e os desenhos feitos à mão são instrumentos
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valiosíssimos para os profissionais da arquitetura, mesmo em tempos tão computadorizados como os nosso. É muito importante ressaltar também que o modo como enxergamos a edificação no momento de sua concepção é algo que pode representar o seu caráter futuro. Imaginar um objeto arquitetônico a partir de sua forma e aparência externa pura e simplesmente é um grande erro que os profissionais podem cometer. Não se pode desvincular o interior do exterior. Pensar no planejamento do lugar requer que todas as suas partes sejam estruturadas em conjunto, em uníssono. É possível se concluir por meio deste trabalho que a prática arquitetônica deve sempre ser pautada no conjunto de seus elementos, associando todas as questões de sua materialidade, escala e plasticidade com o intuito de se criar espaços completos que falem ao interlocutor o que ele precisa ouvir no espaço específico criado. Através dos estudos de caso apresentados neste trabalho é possível perceber o quanto eficaz uma arquitetura pensada com cuidado e delicadeza pode ser, apresentando traços marcantes na vida das pessoas e o quanto isso consegue envolver o usuário de forma real com a obra. A citação de Pallasma (2012, p66) a seguir, resume a função da arquitetura de maneira brilhante: A função atemporal da arquitetura é cria metáforas existenciais para a vida que concretizem e estruturem nossa existência no mundo. A arquitetura reflete, materializa e torna eternas as ideias e imagens da vida ideal. As edificações e cidades nos permitem estruturar, entender e lembrar o fluxo amorfo da realidade e, em última análise, reconhecer e nos lembrar quem somos. A arquitetura permite-nos perceber e entender a dialética da permanência e da mudança, nos inserir no mundo e nos colocar no continuum da cultura e do tempo.
Para fechar, deixo aqui uma frase escrita por Pallasma (2012, p.67) direcionada aos profissionais da área de arquitetura como um lembrete de que estamos em constante relação com o nosso ambiente criado, e que esta relação trabalha de forma mútua e indissociável conosco: “Defenda a integridade de sua edificação como você defende a integridade não apenas na vida daqueles que a fizeram, mas, em termos sociais, pois uma relação recíproca é inevitável”.
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Bibliografia
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