BAKHTIN OUTROS CONCEITOS-CHAVE
BAKHTIN
OUTROS CONCEITOS-CHAVE
BETH BRAIT (organizadora)
Copyright 2006 Beth Brait Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.) Capa Gustavo S. Vilas Boas Diagramação Antonio Kehl Revisão Alicia Klein Heloísa Beraldo Ruy Azevedo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Brait, Beth Bakhtin : outros conceitos-chave/ Beth Brait, (org.). – São Paulo : Contexto, 2006. Bibliografia. ISBN 85-7244-332-0 1. Análise do discurso 2. Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch, 18951975 - Crítica e interpretação 3. Ciências humanas - Pesquisa 4. Lingüística I. Brait, Beth. 06-2599
CDD-001.3072 Índice para catálogo sistemático: 1. Ciências humanas : Pesquisa 001.3072
E DITORA C ONTEXTO Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Acopiara, 199 – Alto da Lapa 05083-110 – São Paulo – SP PABX : (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br www.editoracontexto.com.br 2006
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Sumário Introdução .............................................................................................. 7 Beth Brait Análise e teoria do discurso .................................................................... 9 Beth Brait Bakhtin, Foucault, Pêcheux .................................................................. 33 Maria do Rosário Gregolin Carnavalização ...................................................................................... 53 Norma Discini Cronotopo e exotopia ........................................................................... 95 Marilia Amorim Diálogo ............................................................................................... 115 Renata Coelho Marchezan Esfera e campo ................................................................................... 133 Sheila V. de Camargo Grillo
Interdiscursividade e intertextualidade ............................................... 161 José Luiz Fiorin Poesia .................................................................................................. 195 Cristovão Tezza Psicologia ............................................................................................ 219 Yves Clot Realismo grotesco ............................................................................... 243 Eduardo Peñuela Cañizal A organizadora ................................................................................... 259 Os autores .......................................................................................... 261
Introdução Beth Brait
Este volume dá continuidade a Bakhtin: conceitos-chave (Contexto, 2005). Também aqui, o conjunto do pensamento bakhtiniano é surpreendido em momentos de real produtividade para a compreensão da linguagem e para o desenvolvimento de seu estudo. Assim, mais alguns dos conceitoschave, que continuam produzindo conhecimento nos estudos lingüísticos e literários e nas Ciências Humanas de maneira geral, estão recuperados e reconhecidos em textos/discursos verbais, visuais e verbo-visuais. Um primeiro ensaio, “Análise e teoria do discurso”, procura dar conta de um posicionamento contemporâneo diante de textos e de discursos que, por diferentes caminhos, assumem aspectos teóricos e metodológicos advindos do pensamento bakhtiniano. A demonstração dessa forma de encarar a linguagem e desenvolver pesquisas em torno dela realiza-se no conjunto dos demais textos que compõem este livro. Três deles – “Bakhtin, Foucault, Pêcheux”, “Psicologia” e “Esfera e campo” – discutem perspectivas e conceitos que, oriundos do Círculo, dialogam de maneira mais ou menos polêmica com importantes tendências filosóficas e/ou teórico-analíticas da atualidade. Essas articulações de diferentes horizontes teóricos revelam proximidades e distanciamentos
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outros conceitos-chave
efetivamente produzidos e constatados nas pesquisas atuais desenvolvidas pelas Ciências Humanas. Seguindo a tendência que caracterizou o primeiro volume de Bakhtin: conceitos-chave, os demais textos – “Carnavalização”; “Cronotopo e exotopia”; “Diálogo”; “Interdiscursividade e intertextualidade”; “Poesia” e “Realismo grotesco” – situam os conceitos em sua origem e/ou dispersão na obra de Bakhtin e do Círculo e realizam leituras de textos e discursos estimulados por eles. Este volume segue os propósitos do anterior: situar pontos fundamentais da teoria bakhtiniana, recuperados por pesquisadores envolvidos com as particularidades do pensamento bakhtiniano e de sua produtividade na construção do conhecimento e, assim, possibilitar aos leitores, quer iniciados ou não, a abertura de mais uma porta para a leitura dos textos-fonte.
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Análise e teoria do discurso Beth Brait A memória é uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em função do presente. (Mario Vargas Llosa)
Ninguém, em sã consciência, poderia dizer que Bakhtin tenha proposto formalmente uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido em que usamos a expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discurso Francesa. Entretanto, também não se pode negar que o pensamento bakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuições para os estudos da linguagem, observada tanto em suas manifestações artísticas como na diversidade de sua riqueza cotidiana. Por essa razão, mesmo consciente de que Bakhtin, Voloshinov, Medvedev e outros participantes do que atualmente se denomina Círculo de Bakhtin jamais tenham postulado um conjunto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como perspectiva teórico-analítica fechada, esse ensaio arrisca-se a sustentar que o conjunto das obras do Círculo motivou o nascimento de uma análise/teoria
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dialógica do discurso, perspectiva cujas influências e conseqüências são visíveis nos estudos lingüísticos e literários e, também, nas Ciências Humanas de maneira geral. Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria dialógica do discurso, uma vez que esse fechamento significaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é possível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel relação existente entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. Mais ainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados. Iniciar a apresentação da análise/teoria dialógica do discurso dessa maneira significa, de imediato, conceber estudos da linguagem como formulações em que o conhecimento é concebido, produzido e recebido em contextos históricos e culturais específicos e, ao mesmo tempo, reconhecer que essas atividades intelectuais e/ou acadêmicas são atravessadas por idiossincrasias institucionais e, necessariamente, por uma ética que tem na linguagem, e em suas implicações nas atividades humanas, seu objetivo primeiro. Para perseguir essa hipótese (ou tese), que só pode ser recuperada no conjunto das obras do Círculo, este ensaio escolhe, como ponto de partida, a concepção de Metalingüística, conforme sugerida por Bakhtin na obra Problemas da poética de Dostoiévski, e à qual Paulo Bezerra, tradutor e estudioso de Bakhtin, se refere da seguinte maneira: [...] no livro sobre Dostoiévski, a Metalingüística já se esboça como método de análise do discurso e hipótese de uma futura síntese da filologia com a filosofia, que Bakhtin imaginava como uma disciplina humana nova e específica capaz de reunir em contigüidade a Lingüística, a Filosofia, a Antropologia e a Teoria da Literatura.1
No início do capítulo “O discurso em Dostoiévski”, encontra-se o primeiro momento em que uma “análise/teoria dialógica do discurso” é proposta. Bakhtin afirma: 10
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Intitulamos este capítulo “O discurso em Dostoiévski” porque temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da Lingüística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela Lingüística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo as nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na Metalingüística, subentendendo-a como um estudo – ainda não-constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da Lingüística. As pesquisas metalingüísticas, evidentemente, não podem ignorar a Lingüística e devem aplicar os seus resultados. A Lingüística e a Metalingüística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre elas são violados com muita freqüência.2
Já nessa primeira referência a uma nova disciplina, intitulada Metalingüística e considerada necessária a um estudo do discurso que ultrapassasse os resultados atingidos pela Lingüística, uma coisa deve ser observada: a metodologia proposta para o estudo do objeto, considerado complexo e de muitas faces, embora se ofereça como uma ótica diferenciada, não exclui a Lingüística. Ao contrário: recomenda aplicar os seus resultados. O leitor que costuma usar Bakhtin como um petardo para aniquilar a Lingüística, especialmente a estruturalista de lastro saussureano, pára nesse ponto do texto e pensa que talvez tenha pulado alguma coisa. Volta, vê que é isso que está escrito num texto assinado Bakhtin ele mesmo. Como entender esse raciocínio, ou seja, o não dispensar a Lingüística, se o pensamento bakhtiniano incide sobre o discurso, a linguagem em uso, e não sobre a língua? Na verdade, essa afirmação tem importância e conseqüências fundamentais para a análise/teoria dialógica do discurso que está sendo gestada, como se verá mais adiante. Dando continuidade à idéia, à possibilidade e à necessidade de uma Metalingüística, Bakhtin, nesse capítulo, vai refinando a definição do objeto e as formas de concebê-lo e abordá-lo. Assim, na definição seguinte, o 11
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termo discurso, apresentado como o objeto complexo, pertencente simultaneamente à Lingüística e à nova disciplina proposta, é substituído por relações dialógicas:“As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da Metalingüística”. As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da Metalingüística.”3 Agora o leitor fica mais contente e até esquece o susto da afirmação anterior. Com essa nova definição, Bakhtin reveste o objeto a ser estudado pela Metalingüística com uma dimensão extralingüística, afirmando literalmente: “[...] As relações dialógicas são extralingüísticas”. Afinal, perguntase o leitor, trata-se de considerar a materialidade lingüística, aquilo que pode ser considerado interno, como está explicitado anteriormente, ou se trata de tomar como objeto a exterioridade, o extralingüístico? Antes mesmo que se possa respirar, a resposta aparece no texto de Bakhtin: Assim, as relações dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a Lingüística estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser estudadas pela Metalingüística, que ultrapassa os limites da Lingüística e possui objeto autônomo e metas próprias.4
Mesmo que não se recupere integralmente essa primeira e básica semente de uma análise/teoria dialógica do discurso (e que o leitor poderá fazê-lo dedicando-se à leitura integral de Problemas da poética de Dostoiévski), é possível distinguir aí um traço que caracterizará todo o pensamento do Círculo e sua forma de conceber a linguagem e de enfrentar a complexidade do discurso. Esse traço fundante diz respeito ao fato de que a abordagem do discurso 12
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não pode se dar somente a partir de um ponto de vista interno ou, ao contrário, de uma perspectiva exclusivamente externa. Excluir um dos pólos é destruir o ponto de vista dialógico, proposto e explicitado pela teoria e pela análise, e dado como constitutivo da linguagem. É a bivocalidade de “dialógico”, situado no objeto e na maneira de enfrentá-lo, que caracteriza a novidade da Metalingüística e de suas conseqüências para os estudos da linguagem. A idéia de uma Metalingüística que tem nas relações dialógicas o seu objeto é várias vezes recolocada nesse capítulo, confirmando, de diferentes maneiras, a especificidade da abordagem bakhtiniana do discurso, ou seja, sua proposta de encontrar caminhos teóricos, metodológicos e analíticos para desvendar a articulação constitutiva do que há de interno/externo na linguagem: As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. [...] As relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relações lógicas e concreto-semânticas, mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria. Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa.5
O enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto, as particularidades discursivas que apontam para contextos mais amplos, para um extralingüístico aí incluído. O trabalho metodológico, analítico e interpretativo com textos/discursos se dá – como se pode observar nessa proposta de criação de uma nova disciplina, ou conjunto de disciplinas –, herdando da Lingüística a possibilidade de esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar micro e macroorganizações sintáticas, reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise dessa “materialidade lingüística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos 13
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e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente de esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos. Não há categorias a priori, aplicáveis de forma mecânica a textos e discursos, com a finalidade de compreender formas de produção de sentido num dado discurso, numa dada obra, num dado texto. A prova disto está justamente em Problemas da poética de Dostoiéviski. O capítulo utilizado neste ensaio a fim de discutir um primeiro momento da proposta de uma Metalingüística, aqui interpretada como teoria/ análise dialógica do discurso, faz parte das estratégias utilizadas por Bakhtin para, a partir da minuciosa leitura e análise do conjunto da obra de Dostoiévski, configurar o gênero polifônico, apresentar o conceito de polifonia. E não o contrário. Não se tem um conceito de polifonia e depois se constata sua presença numa obra ou num conjunto de obras. Nesse sentido, é possível compreender as objeções que alguns estudiosos do pensamento bakhtiniano fazem do uso indiscriminado do conceito de polifonia, como se fosse um conceito abstrato, criado para ser aplicado a qualquer discurso, e não uma marca de identidade do discurso de Dostoiévski, reconhecida a partir da análise bakhtiniana. Esse é o caso, por exemplo, de Cristovão Tezza que, num texto recente, afirma de maneira certeira: O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) criou uma das categorias mais atraentes da Teoria Literária das últimas décadas do século 20: polifonia. Tomando a palavra de empréstimo da arte musical, isto é, o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas independentes mas harmonicamente relacionadas, Bakhtin emprega-a no seu livro sobre Dostoiévski, publicado pela primeira vez em 1929, para definir especificamente tanto a obra de Dostoiévski quanto o que ele chama de “um novo gênero romanesco”, o “romance polifônico”. Essa expressão teve uma carreira tão errática quanto a do próprio Bakhtin. [...] Transformada em moda, a polifonia bakhtiniana perde o seu sentido de origem e se torna exatamente aquilo que negava: uma instância narrativa estrutural da Literatura ou da Lingüística, con-
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fundindo-se, muitas vezes, com simples intertextualidade; tornada um conceito reiterável, passa a ser um modelo a se aplicar em qualquer narrativa com dois ou três pontos de vista gramaticais distintos. Mas a complexidade do conceito para aqueles que se debruçavam com mais cuidado sobre ele não era mesmo fácil de resolver. [...] Para colocar de novo a bola ao chão, digamos desse modo, é preciso voltar ao próprio Bakhtin, agora com a visão do conjunto de sua obra (incluindo os manuscritos filosóficos da década de 1920), e retomar seus pressupostos. A primeira tarefa será tentar recolocar nos trilhos originais a polifonia bakhtiniana.6
Dando continuidade à idéia de que o pensamento bakhtiniano produziu uma teoria/análise dialógica do discurso, é possível situar a questão de uma outra maneira, lançando um olhar sobre o fato de que grande parte das leituras e das releituras iniciadas no final da década de 1970 e intensificadas a partir dos anos 1990, tem como um de seus mais significativos produtos a existência de novos “Círculos”, mais ou menos bakhtinianos. O ponto de articulação entre eles parece ser justamente a tentativa de enfrentamento dialógico da linguagem, da teoria e análise do discurso, a partir do conjunto do pensamento bakhtiniano ou mesmo da seleção de alguns de seus pontos específicos. As diferentes formas de conceber “enfrentamento dialógico da linguagem” constituem, por sua vez, movimentos teóricos e metodológicos que se desenvolvem em diferentes direções. Uma dessas direções pode ser caracterizada pelos trabalhos de intérpretes cujo objetivo central é o aprofundamento da compreensão das propostas do primeiro Círculo bakhtiniano e de suas conseqüências radicais para os estudos da linguagem, quer na perspectiva das teorias lingüísticas, quer das teorias literárias ou de seu alcance dentro das demais Ciências Humanas. O que diferencia esse Círculo contemporâneo, radicalmente bakhtiniano, dos demais, é o empenho em ressaltar a origem filosófica, ética e estética que constitui a gênese do pensamento bakhtiniano como um todo. Os trabalhos desses pesquisadores, nacionais e estrangeiros, resultam em leituras e interpretações que situam as categorias, os conceitos e as noções advindas do pensamento bakhtiniano dentro do contexto epistemológico e cultural que os originou. Isso ajuda a diferenciar a perspectiva bakhtiniana de outras importantes teorias sobre a linguagem e, especialmente, estabelecer fronteiras bem
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nítidas entre designações idênticas para conceitos completamente diferentes, quando não contraditórios. Esse é o caso de polifonia, como aponta Cristóvão Tezza, mas poderia ser também o de carnavalização e de gêneros.7 Como avaliar, por outro lado, o diversificado conjunto de trabalhos que, mesmo parecendo distanciar-se das origens, contribui para o reconhecimento do constitutivo papel da linguagem nas atividades humanas e, portanto, nas diferentes ciências que têm o sujeito e sua alteridade como objeto de estudos? Na tentativa de ao menos enfrentar essas questões, é necessário situar os anos 1970, no que diz respeito aos estudos da linguagem. Eram tempos de transição e afirmação, especialmente em relação a novos caminhos teóricos, considerando-se as construções, as polêmicas e as heranças positivas e negativas produzidas pelo Estruturalismo e pelo Formalismo. Como não é objetivo deste ensaio fazer história, a referência a dois artistas da palavra que situaram criticamente os estudos lingüísticos pode servir de metonímia para a compreensão daquele momento. Trata-se de do peruano Mario Vargas Llosa e do brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Em 1987, Vargas Llosa lançou um romance intitulado El falador, lançado no Brasil no ano seguinte pela Francisco Alves, com o título O falador. Nessa obra, o narrador principal evoca recordações de um companheiro de sua juventude passada em Lima, apelidado Mascarita, fascinado por uma pequena cultura primitiva denominada machiguengas. Paralelamente, um anônimo contador ambulante de histórias, justamente o “falador” que dá título à obra, uma espécie de testemunha da memória coletiva dos índios machiguengas da Amazônia peruana, conta a própria existência, a história e os mitos de seu povo. No quarto capítulo dessa obra, há uma curiosa discussão sobre o Instituto Lingüístico de Verão, uma famosa e real instituição, que durou quatro décadas e que, segundo o narrador, foi objeto de virulentas controvérsias nesses quarenta anos em que existiu no Peru. O que interessa, aqui, é ver como a imagem da Lingüística e dos lingüistas aparece em alguns trechos da obra, fortemente ligada ao Instituto de Verão e a seu papel junto a diferentes comunidades. Os trechos escolhidos, um tanto longos é verdade, dão a dimensão dessa imagem da Lingüística naquele momento e do discurso politizado que o produz. 16
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Em que consiste a missão do Instituto? Segundo seus inimigos, é um braço do imperialismo norte-americano que, sob o pretexto da pesquisa científica, realiza trabalhos de inteligência e uma ação de penetração cultural neocolonialista entre os indígenas amazônicos. Essas acusações procedem, sobretudo, da esquerda. Mas também são seus adversários alguns setores da Igreja Católica – principalmente os missionários da selva –, que o acusam de ser nada mais que uma falange de evangelizadores protestantes disfarçados de lingüistas. Entre os antropólogos, há quem lhe reprove o fato de perverter as culturas aborígenes, tratar de ocidentalizá-las e incorporá-las a uma economia de mercado. Alguns conservadores criticavam a presença do Instituto no Peru alegando razões nacionalistas e hispânicas.8
Segundo o mesmo narrador, havia também os defensores, que o faziam com argumentos pragmáticos, afirmando: A ação dos lingüistas – estudar as línguas e os dialetos da Amazônia, estabelecer vocabulários e gramáticas das diferentes tribos – servia ao país e, além disso, pelo menos em teoria, estava controlada pelo Ministério da Educação, que devia aprovar seus projetos e recebia cópias de todo material recolhido pelo Instituto.9
Nessa mesma obra, um pouco mais adiante e a respeito do mesmo instituto, o narrador refere-se a um jovem casal de lingüistas, os Schneil: Tinham recebido o diploma, assim como os demais lingüistas, na Universidade de Oklahoma, mas eram, acima de tudo, como seus colegas, seres animados por um projeto espiritual: a difusão da Bíblia. [...] A intenção que os induzia a estudar as culturas primitivas era religiosa: traduzir a Bíblia para aquelas línguas a fim de que esses povos pudessem ouvir a palavra de Deus nos compassos e inflexões de sua própria música. Esse foi o desígnio que levou o Doutor Peter Towsend – um interessante personagem, mistura de missionário, amigo do Presidente Mexicano Lázaro Cárdenas e autor de um livro sobre ele – a fundar o Instituto, e o incentivo que move ainda os lingüistas a realizarem o paciente trabalho que realizam.10
E ainda, a palavra feroz de Mascarita, sempre tão ponderado, dirigindose ao personagem narrador, contra os lingüistas: 17
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– Eles são os piores de todos, esses seus apostólicos lingüistas. Eles se incrustam nas tribos para destruí-las de dentro, igualzinho que os bichos de pé. Em seus espíritos, em suas crenças, em seu subconsciente, nas raízes de seu modo de ser. Os outros tiram deles o espaço vital e os exploram ou empurram para o interior. No pior dos casos, eles os matam fisicamente. Esses seus lingüistas são mais refinados, querem matá-los de outro modo. Traduzindo a Bíblia para o machiguenga: o que é que você acha [...].11
E, para finalizar, um outro trecho em que se lê: Os lingüistas eram alguma coisa muito diferente. Tinham, atrás de si, um poder econômico e uma engrenagem eficientíssima, que lhes permitia talvez implantar seu progresso, sua religião, sua cultura. Aprender as línguas aborígenes, ora que logro! Para quê? Para fazer dos índios amazônicos bons ocidentais, bons homens modernos, bons capitalistas, bons cristãos reformados? Nem mesmo isso. Só para apagar do mapa das culturas, seus deuses, suas instituições e adulterar-lhes até seus sonhos. Como tinham feito com os peles-vermelhas e os outros, lá no país deles. Isso é o que eu queria para nossos compatriotas da selva? Que se convertessem no que eram, agora, os aborígenes da América do Norte?12
Se essa perspectiva insere uma certa Lingüística dos anos 1940, 50 e 60 numa dimensão política e crítica, o fato de a obra ser dos anos 1980 sugere que a circulação de uma consciência a respeito dos estudos lingüísticos e de seus efeitos acontecia, por assim dizer, para um público não especializado. Essa perspectiva crítica, com a qual todos os lingüistas “politicamente corretos” concordam hoje, diz respeito unicamente às atividades do famoso Instituto de Verão. Entretanto, é também dessa mesma época um poema intitulado “Exorcismo”, em que Carlos Drummond de Andrade constrói uma imagem dos estudos da linguagem que, tanto quanto os trechos de O falador, revela uma percepção pouco simpática da Lingüística e, mais especificamente, da parafernália terminológica, do jargão propagado pelos textos teóricos e conhecidos por público externo à academia.
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EXORCISMO Das relações entre topos e macrotopos Do elemento suprassegmental, Libera nos, Domine. Da semia Do sema, do semema, do semantema, Do lexema, Do classema, do mema, do sentema, Libera nos, Domine. Da estruturação semêmica, Do idioleto e da pancronia científica, Da realibilidade dos testes psicolingüísticos, Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais, Libera nos, Domine. Do vocóide, Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal, Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico, Libera nos, Domine. Da leitura sintagmática, Da leitura paradigmática do enunciado Da linguagem fática, Da fatividade e da não-fatividade na oração principal, Libera nos, Domine. Da organização categorial da língua, Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos, Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua, Libera nos, Domine. Do programa epistemológico da obra, Do corte epistemológico e do corte dialógico, Do substrato acústico do culminador, Dos sistemas genitivamente afins, Libera nos, Domine.
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Da camada imagética Do estado heterotópico Do glide vocálico Libera nos, Domine. Da lingüística frástica e transfrástica, Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual Da clitização pronomial obrigatória Da glossemática, Libera nos, Domine. Da estrutura exossemântica da linguagem musical Da totalidade sincrética do emissor, Da lingüística gerativo-transformacional Do movimento transformacionalista, Libera nos, Domine. Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser De Zolkiewsky, Jakobson, Barthes, Derrida, Todorov De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva Libera nos, Domine.13 Carlos Drummond de Andrade
O que há de comum entre essas duas posturas diante da Lingüística e do fazer dos lingüistas, cobrindo uma grande faixa desse fazer no século XX? Há uma percepção nada lisonjeira da Lingüística, dos lingüistas e mesmo do aparato teórico utilizado. Essas críticas, situadas no passado, são localizadas e parecem distantes do momento atual em que os estudos da linguagem reencontraram o sujeito, suas relações com a história, a partir da observação da linguagem em uso, de maneira a redefinir paradigmas e repensar o papel do pesquisador. Como afirma François Dosse: O reprimido do estruturalismo, o sujeito, teve um regresso tanto mais ruidoso visto que se acreditou poder passar sem ele durante uma vintena de anos. Apanhado numa tensão constante entre divinização e dissolução, o sujeito experimentou não poucas dificuldades para reintegrar-se no campo do pensamento, dada a complexidade que lhe é própria, dividido entre a autonomia do poder
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e as redes de dependência que o condicionam. Diante da falsa alternativa, por largo tempo apresentada como inelutável, entre o sujeito onipotente e a morte do sujeito, toda uma corrente da reflexão contemporânea se desenvolveu em torno do paradigma da dialógica, do agir comunicacional, e pode representar um caminho real de emancipação social, bem como um paradigma fecundo no domínio das ciências sociais.14
Dentre as grandes tendências que possibilitam “o regresso do sujeito” estão, sem dúvida, a Análise do Discurso Francesa e o pensamento bakhtiniano, o qual chega ao Brasil, e ao resto do Ocidente, aos poucos e não como um bloco coeso. Postular a existência de uma teoria/análise do discurso exige, por assim dizer, uma reconstituição do percurso desse pensamento e dos aspectos que vão sendo iluminados e tidos como nucleares, segundo a maneira como vai se instalando. Olhar esse percurso é também entrar em contato com as conseqüências que vai provocando em termos dos estudos da linguagem, em termos dos estudos da enunciação, em termos de estudos do discurso que, centralizados na Lingüística e também na Teoria Literária, alçam vôo e ganham espaço nas diferentes Ciências Humanas e Sociais. Embora Bakhtin e seu Círculo tenham produzido seus trabalhos sobre a linguagem desde a segunda década do século XX, os lingüistas entraram em contato com esse pensamento no final da década de 1970, por meio de Marxismo e filosofia da linguagem. A versão brasileira, como as demais, tem um subtítulo bastante significativo: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Esse subtítulo indicia a linguagem e seu estudo de uma forma ampla que, sem excluir a Lingüística ou Teoria Literária, antecipa a importância da linguagem na perspectiva das Ciências Humanas. Um outro aspecto que chama a atenção nas versões da obra para o Ocidente é que as diferentes versões trazem assinatura de Valentin Voloshinov – M. Bakhtin (Voloshinov)15 –, indicando ao menos uma duplicidade de autoria. A questão da autoria é importante para se pensar não apenas as origens desse pensamento, o círculo de intelectuais que lhe dá origem, as possíveis causas das diferentes assinaturas, mas também os elementos que, estando sob diferentes assinaturas, contribuem para a construção de uma teoria/análise do discurso. Esses aspectos devem ser considerados a fim de que sejam enten21
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didas não apenas as razões da multiplicidade de assinaturas, mas especialmente a dimensão assumida pela autoria num pensamento em que o outro é condição sine qua non para a existência do “eu”. Exatamente o que desta primeira obra conhecida pelos lingüistas marcou uma nova postura diante da linguagem? O que interferiu na forma de enfrentar a linguagem e constituir diferentemente os estudos lingüísticos e também, de certa maneira, os estudos literários? O aspecto nuclear dessa obra, que atingiu os lingüistas de imediato, foi precisamente a forma de conceber a linguagem e seus estudos. Naquele momento, final da década de 1970, havia claramente duas opções: de um lado, a vertente estruturalista, voltada para as questões do sistema, que muito ensinou a todos e à qual se deve o aprofundamento dos diferentes níveis da análise lingüística, caso da fonética, da fonologia, da sintaxe, e que na Teoria Literária poderia ser traduzida, grosso modo, pelo formalismo e seus estudos estruturais da narrativa e da poesia, por exemplo. De outro lado, uma poética sociológica, uma vertente múltipla, voltada, por assim dizer, para os estudos do “conteúdo”. O aparecimento de Marxismo e filosofia da linguagem se dá como uma espécie de “terceira margem dos estudos da linguagem”. Tanto as duas grandes correntes do pensamento lingüístico, o estruturalismo e a estilística clássica, são colocadas na berlinda, mais diretamente no capítulo intitulado “Duas orientações do pensamento filosófico lingüístico”, como um avanço na direção dos estudos enunciativos e discursivos é colocado em andamento, a partir de discussões instaladas pelos capítulos mais lidos da obra: “Língua fala e enunciação”, “Interação verbal” e “O ‘discurso de outrem’”. A percepção da linguagem e da possibilidade de estudá-la levando-se em conta a historicidade, os sujeitos, o social, sem dúvida, provocaram profundas mudanças, que podem ser simbolizadas na idéia de signo ideológico. Nenhuma ideologia pode aparecer fora dos signos, e nenhum signo está despido de ideologia, como a obra vai mostrando ao longo de seus capítulos. Partindo da tradição dos estudos da linguagem, sem apagar os ganhos trazidos pelos estudos saussureanos e pelos estudos estilísticos, o pensamento bakhtiniano presente nessa obra ofereceu a ocasião de um salto qualitativo no sentido de observar a linguagem não apenas no que ela tem de sistemático, abstrato, invariável, ou, por outro lado, no que de fato tem de individual e absolutamente variável e criativo, mas de observá-la em uso, 22
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na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer o ser humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserção na história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens. Evidentemente que as demais partes da obra, de excepcional importância para a concepção histórica e social da linguagem, só foram retomadas mais tarde, como é o caso, por exemplo, de “Tema e significação na língua” – sem a qual não se pode entender o conceito de gênero discursivo (noção que aparecerá como tal na obra Estética da criação verbal, datada de 1979) – ou “Teoria da Enunciação e problemas sintáticos” e “Discurso indireto, direto e suas variantes”, capítulos fundamentais para uma compreensão aprofundada das formas e graus de assimilação e circulação do “discurso de outrem”, ou seja, da constituição dos sentidos, da possibilidade do que chamamos de interdiscurso, de alteridade constitutiva.16 Além disso, é preciso lembrar que a compreensão e mobilização do pensamento bakhtiniano implica, necessariamente, como acontece nas Ciências Humanas em geral, o conhecimento dos interlocutores com quem esse pensamento dialoga.17 No caso de Marxismo e filosofia da linguagem, por exemplo, há muitos interlocutores. Assim sendo, não apenas uma leitura cuidadosa do capítulo “Duas orientações do pensamento filosófico lingüístico” leva à compreensão de que ele não está destruindo Saussure e sua obra, ou a estilística como vertente do conhecimento, mas aponta para uma leitura mais cuidadosa do próprio Saussure e do que ele representou no século XX . Não fosse ele o criador da Lingüística, o pensamento bakhtiniano não necessitaria colocá-lo como interlocutor polêmico. Para o pensamento bakhtiniano, o outro nunca é abstrato. A partir dos aspectos destacados em Marxismo e filosofia da linguagem, portanto, também aí, mesmo considerando a assinatura Voloshinov, há importantes contribuições para uma teoria/análise dialógica do discurso, harmonizadas com a proposta de uma Metalingüística. As relações dialógicas são trabalhadas na perspectiva de uma teoria da enunciação em que as questões do sentido, de sua construção e de seus efeitos são apresentadas por meio da discussão dos conceitos de tema e de significação e, também, das formas de presença do outro na linguagem e no fio do discurso. O acesso a Problemas da poética de Dostoiévski, cuja primeira tradução para o português data de 1981, parecendo, pelo título, estar mais voltada aos estudos 23
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literários que aos estudos lingüísticos, teve, por isso mesmo, mais influência nos estudos da literatura, escapando, até bem pouco tempo, à atenção dos lingüistas. Entretanto, é por intermédio dela que se pode reconhecer um procedimento analítico essencial para uma teoria/análise dialógica do discurso: chegar a uma categoria, a um conceito, a uma noção, a partir da análise de um corpus discursivo, dos sujeitos e das relações que ele instaura. Para definir o gênero polifônico do romance, e situar sua inovação e seu alcance, Bakhtin analisa, como se observou, a obra toda de Dostoiévski. Ele não tinha um conceito ad hoc de polifonia para testar nos escritos de Dostoiévski. É a partir dos textos de Dostoiévski que o conceito é formulado, constituído. Portanto, essa é sem dúvida uma das características de uma teoria/ análise dialógica do discurso: não aplicar conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discursos revelem sua forma de produzir sentido, a partir de ponto de vista dialógico, num embate. E que Marilia Amorim define da seguinte maneira: [...] A produção de conhecimento e o texto em que se dá esse conhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discursos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito analisado e conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai emergir. Assumir esse caráter conflitual e problemático das Ciências Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto do discurso do outro quanto de seu próprio discurso. E é portanto trabalhando a opacidade dos discursos e dos textos, que a pesquisa contemporânea pode fazer da diversidade um elemento constituinte do pensamento e não um aspecto secundário.18
Somente essas duas obras já seriam suficientes para extrair dos aspectos nucleares do pensamento bakhtiniano uma teoria/análise dialógica do discurso, gesto que, ao enfrentar a linguagem, se reveste necessariamente da ética proposta pelo Círculo e da possibilidade e necessidade de lidar com vários campos do conhecimento a partir do reconhecimento do papel fundamental da linguagem na constituição dos sujeitos históricos. Entretanto, seguindo essa espécie de percurso que tem a ver com a forma como o pensamento bakhtiniano foi se instalando nos estudos da linguagem, interferindo na concepção de pesquisa e de conhecimento de práticas sociais, culturais e históricas, outros dois trabalhos, assinados por 24
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Bakhtin, devem ser mencionados: A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média, que aparece em 1965 e tem sua primeira tradução para o português em 1987, e Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, datada de 1975 e traduzida para o português em 1988. Como Problemas da poética de Dostoiévski, eles parecem, pelo título, interessar apenas aos literatos e, por essa razão, durante algum tempo, foram lidos somente por estudiosos da linguagem literária. O que contêm essas duas obras para interessar outras áreas do conhecimento que não a teoria da literatura? Que noções fundamentais trazem que se articulam ao restante do pensamento bakhtiniano, impedindo os interessados na teoria/análise dialógica do discurso de ignorá-las? Em A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média, com o propósito de estudar esse autor e mostrar aspectos ainda não desvendados de sua obra, Bakhtin faz um estudo original sobre o riso, sobre a cultura popular, sobre o Carnaval, fenômenos que, pela tradição e pelas particularidades, propiciam uma visão inusitada, criativa e irreverente do mundo. O vocabulário da praça pública, as formas e imagens da festa popular, a imagem grotesca do corpo, as imagens de um autor e a realidade de seu tempo são alguns dos aspectos cujo estudo aprofundado resultou em conceitos que, mais tarde, foram mobilizados pela Lingüística, pela literatura, pela antropologia ou por outras Ciências Humanas. Mais uma vez, um conceito fundante do pensamento bakhtiniano é construído a partir da leitura do conjunto da obra de um autor, apontando para a análise das especificidades de um discurso e para a maneira como ele indicia o contexto extralingüístico que o constitui. Sem dúvida, aí estão praticados alguns princípios observados teórica e praticamente em Problemas da poética de Dostoiévski e que, na observação da obra de Rabelais, resultam no conceito de carnavalização, tão importante quanto o conceito de polifonia. É verdade que o destino de carnavalização é muito parecido com o de polifonia... Em Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, aparecem algumas noções que especialmente os lingüistas utilizam com muita produtividade. Esse é o caso de plurilingüismo, palavra autoritária e palavra interiormente persuasiva, por exemplo, dimensões que, a fim de serem trabalhadas na literatura, foram, primeiramente, apontadas como características da 25
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linguagem em uso, inspirando muitos estudos e possibilitando leituras não preconceituosas em relação às diferentes formas que a língua e a linguagem assumem, necessariamente, do ponto de vista histórico, social, cultural. Durante muito tempo, e até hoje, muitas pessoas perguntam por que ler e discutir Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, se a praia dos lingüistas é a análise do discurso? Em primeiro lugar, porque as manifestações artísticas da linguagem não estão excluídas de uma teoria/ análise dialógica do discurso, uma vez que as artes constituem discursos poderosos sobre a vida, sobre os seres humanos. Deve-se ler tal obra especialmente porque a teoria do romance no pensamento bakhtiniano ocupa um espaço fundamental para se entender a linguagem em sua multiplicidade, em sua variação, no dialogismo que a constitui e no entrecruzar de discursos magistralmente representados nos romances, na prosa de ficção. Se os estudiosos da literatura tiveram acesso a algumas obras antes dos lingüistas, assim como os lingüistas tiveram acesso a Marxismo e filosofia da linguagem antes dos estudiosos da literatura, sabe-se hoje que essa separação não pode ser levada em conta na medida em que o pensamento bakhtiniano, para falar da linguagem em uso e avançar em sua concepção social e histórica de linguagem, não descarta qualquer tipo de discurso. Quando, em 1979, aparece a obra Estética da criação verbal – reunião de um conjunto de escritos de diferentes épocas, de 1919 a 1974, e a que o autor na verdade não deu acabamento final –, de fato, a idéia de um pensamento bakhtiniano se concretizou, assim como o de uma teoria/análise dialógica do discurso. Os conceitos de enunciado, comunicação verbal, gêneros discursivos, formas e concepções de destinatário, esferas da atividade humana, texto e, ainda, observações sobre a epistemologia das Ciências Humanas dão continuidade e dialogam com conceitos iniciados em obras anteriores, em momentos anteriores, preenchendo aparentes lacunas. O texto “O autor e o herói”, que pelo título novamente poderia parecer voltado apenas a uma área do conhecimento, demonstra uma forte vocação para discutir, em profundidade, a questão da relação eu/outro, tanto na vida como na arte, aí incluída a pesquisa, especialmente nas Ciências Humanas. A citação de um pequeno trecho ajuda a compreender essa afirmação, esse aspecto nuclear do papel do pensamento bakhtiniano para a pesquisa em Ciências Humanas, transformando o objeto da pesquisa em sujeito: 26
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Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento.19
Sem dúvida, essas poucas referências dão a indicação do alcance dos escritos contidos nessa obra e da forma como ela atuou e continua atuando sobre os estudos da linguagem. Indicados esses títulos e um certo caminho percorrido para a instalação do pensamento bakhtiniano, e que sem dúvida podem ser reconhecidos na produtividade representada pelos trabalhos de pesquisadores e grupos de pesquisadores, ainda se deve destacar mais alguns estudos que, assinados por componentes do Círculo, também representam aspectos nucleares do pensamento bakhtiniano e da teoria/análise dialógica do discurso. Discurso na vida e discurso na arte, escrito em 1926 e assinado Voloshinov, é um deles.20 Nesse texto de poucas páginas estão contidas algumas das idéias nucleares do pensamento bakhtiniano, como é o caso de interação. Tal conceito é retomado em Marxismo e filosofia da linguagem, quando o texto apresenta uma série de noções sem as quais seria impossível compreender a amplitude e o alcance de interação. É o caso de conceitos como enunciação ou enunciado concreto, comunicação, incluindo a comunicação estética, verbal e extraverbal se pressupondo, e as noções de situação e contexto como elementos diferenciados. Também aí aparecem os conceitos de entoação e avaliação, como marcas da participação ativa dos interlocutores no evento social representado pelo discurso. Todos esses aspectos vão surgindo a partir de um exemplo que resulta numa idéia muito repetida por nós, ainda que não tenhamos lido diretamente este texto: “O ‘eu’ pode realizar-se verbalmente apenas sobre a base do ‘nós’.” Essas indicações parecem suficientes para o reconhecimento de que numa teoria/análise dialógica do discurso os conceitos enunciados acima são imprescindíveis. Um último texto, que na verdade é certamente um dos primeiros senão o primeiro a ser escrito por Bakhtin, publicado na Rússia em 1986, que confirma a gênese de uma teoria/análise dialógica do discurso. Trata-se de Por uma filosofia do ato,21 certamente o texto mais difícil do conjunto, não 27
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apenas por não ter sido finalizado pelo autor, mas justamente por trazer as bases filosóficas do pensamento bakhtiniano. Lá estão as noções de evento, de ato, de acontecimento, aspectos que sem dúvida podem ser reconhecidos pelos que leram as obras posteriores e que, talvez por isso, podem compreender de onde partem as idéias, qual é o núcleo gerador do conjunto que identificamos como “pensamento bakhtiniano”. Com esse texto, a idéia já enunciada de uma concepção de estudos da linguagem como lugar de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável e, ainda, de uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos, necessariamente apoiada nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados, fica confirmada. Como diz Augusto Ponzio, num ensaio intitulado “Para uma filosofia da ação responsável”: Bakhtin insiste sobretudo no compromisso inevitável com o outro – com um “outro concreto”, e não com um outro eu abstrato, concebido teoricamente como consciência gnoseológica abstrata – que o ser responsavelmente partícipe comporta na unicidade do próprio lugar no mundo.22
Para finalizar, estão enunciadas algumas características dessa teoria/análise dialógica – e que aparecem evidenciadas neste volume – em cada um dos textos que, para situar um conceito-chave, mobiliza o pensamento bakhtiniano, e alguns de seus interlocutores, no que ele tem de original: fazer da análise um processo de diálogo entre sujeitos, no sentido forte assumido pelo termo. (I) Há conceitos próximos, mas não necessariamente intercambiáveis, caso de alteridade, dialogismo, polifonia, que constituem, como heterogeneidade, interdiscursividade e intertextualidade, dimensões da noção de “outro” e de sua importância na reflexão sobre linguagem. Nem sempre esses conceitos se fundamentam nos mesmos princípios, ganhando especificidades em diferentes teóricos ou tendências de análise. O conceito de heterogeneidade, cunhado por Jacqueline Authier-Revuz, assim como o de intertextualidade, estabelecido por Kristeva, têm fortes raízes no pensamento bakhtiniano, ainda que ambas tenham recorrido a outros arredores teóricos e deslocado os conceitos para o centro de suas preocupações específicas. De qualquer forma, seja qual for o rumo assumido, a questão da alteridade constitutiva
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ganhará um espaço fundamental nos estudos da linguagem, interferindo na noção de sujeito, de autoria, de texto (verbal e não verbal), de discurso, interlocutor e especialmente de vozes discursivas. (II) Há formas e graus de representação da dimensão dialógica da linguagem, trabalhadas especialmente a partir das obras Filosofia do ato (1919), Marxismo e filosofia da linguagem, Problemas da poética de Dostoiévski, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, que ajudam a entender o conceito de dialogismo como constitutivo de qualquer discurso, mas que pode ser dimensionado diferentemente em textos e discursos específicos. Essas diferenças produzem diferentes efeitos de sentido, indiciando o projeto de fala aí implicado. Assim sendo, os trabalhos sobre argumentação, persuasão, por exemplo, têm se valido na última década da teoria bakhtiniana e dos elementos que ela oferece em termos de perspectiva enunciativa, explicitação e posicionamento das vozes discursivas. (III) Há um dimensionamento essencial da interação, ligada à enunciação, às formas de produção e circulação dos textos e discursos. Em Discurso na arte e discurso na vida (1926), texto que objetiva “tentar alcançar um entendimento do enunciado poético, como uma forma desta comunicação estética especial, verbalmente implementada”,23 chama a atenção a maneira como o conceito de interação, considerado processo verbal e processo social, começa a ganhar singularidade na reflexão bakhtiniana. Mais tarde, ele se revela um esteio da concepção de linguagem do Círculo.
As contribuições bakhtinianas para uma teoria/análise dialógica do discurso, sem configurar uma proposta fechada e linearmente organizada, constituem de fato um corpo de conceitos, noções e categorias que especificam a postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesquisador. A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram e se interdefinem, e do compromisso ético do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, é um sujeito histórico.
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Paulo Bezerra, “Prefácio à segunda edição brasileira”, em Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiéviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. X. Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiéviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 181. Idem, p. 182. Idem, p. 183. Idem, p. 184. Cristovão Tezza, “A polifonia como categoria ética”, em Cult Especial Biografia, São Paulo, n. 4, pp. 24-26. A respeito de carnavalização e gêneros, consultar: o texto “Carnavalização”, de Norma Discini, (nesta obra); Irene Machado, “Gêneros discursivos”, em B. Brait (org.), Bakhtin: conceitoschave, São Paulo, Contexto, 2005, pp. 151-66; B. Brait e R. Rojo, Gêneros: artimanhas do texto e do discurso, São Paulo, Pueri Domus/Escolas Associadas, 2002. Mario Vargas Llosa, O falador, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p.65. Idem. Idem, p. 78. Idem, p. 86. Idem, p. 87. Jornal do Brasil, 12/4/1975. François Dosse, História do estruturalismo: o canto do cisne de 1967 aos nossos dias, trad. Álvaro Cabral, São Paulo/Campinas, Editora Ensaio/Editora da Unicamp, 1994, p. 493. A edição espanhola, traduzida por Tatiana Bubnova e datada de 1992, traz unicamente a assinatura de Valentin Nikólaievich Voloshinov. A respeito de interdiscurso, ver nesta obra o texto “Interdiscursividade e intertextualidade”, de José Luiz Fiorin. Para uma melhor compreensão desse aspecto, ver: Carlos Alberto Faraco, Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin, Curitiba, Criar, 2003. Marilia Amorim, “A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica”, em M. T. Freitas et al., Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin, São Paulo, Cortez, 2003, p. 12. M. Bakhtin, Estética da comunicação verbal, trad. Paulo Bezerra, 4. ed., São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 45. “La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia una poética sociológica, por Valentin Voloshinov (M. M. Bajtin)”. In: Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia Del acto ético. De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997. Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia del acto ético: De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997. Augusto Ponzio, “Para una filosofía de la acción responsable”, em Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia del acto ético – De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997, p. 236. Discurso na arte e discurso na vida.
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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Bakhtin, Foucault, Pêcheux Maria do Rosário Gregolin
A história de uma ciência é um conjunto indefinidamente móvel de escansões, defasagens, coincidências, que se estabelecem e se desfazem. (Michel Foucault, As palavras e as coisas)
ENTORNOS DA HISTÓRIA Escansões, defasagens, coincidências: tais são, segundo Foucault, os entornos da história agindo sobre o desenvolvimento das teorias. Apanhar alguns dos fios que entrelaçam esses entornos, iniciar uma discussão sobre nossas “heranças e filiações” no campo da análise do discurso (AD) praticada atualmente no Brasil são os objetivos deste artigo. Por meio de uma revisitação a alguns momentos da constituição dessa disciplina, centrada particularmente nas propostas de Pêcheux, Bakhtin e Foucault, procuro caminhar em direção à história da construção conceitual que interliga o discurso, o sujeito e a sociedade. Esse movimento é motivado pela tentativa de rebater algumas idéias muito freqüentes hoje em dia, como, por exemplo, as que
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outros conceitos-chave
afirmam que: a) tudo é AD e b) a AD carece de identidade teórica. Na base dessas afirmações está a não consideração dos lugares ocupados por certos autores e suas formulações, das diferenças teóricas e metodológicas e, conseqüentemente, da existência de diferentes projetos no interior de um grande campo do saber, hoje denominado “AD”. Ao mesmo tempo, ao pensar sobre “nossas heranças e filiações”, abre-se a possibilidade de discutir a circulação de certos slogans como “a AD pecheutiana só trabalha com o ideológico” ou “Foucault nada tem a ver com discurso”; ou, ainda, a redução de um pensador como Bakhtin a um punhado de conceitos como “gênero”, “dialogismo”, etc., desligados do contexto histórico e político em que foram produzidos. Enfim, na base de minha argumentação está a interrogação: como enumerar esses nomes de autores sem transformá-los em fetiches teóricos? Ou, em outras palavras: como fugir do apagamento da dimensão histórica da AD e enxergar a contribuição de cada um deles num certo momento da construção de um grande projeto teórico que atravessou o século XX e se estende até os nossos dias? Tenho, portanto, o objetivo de iniciar uma discussão necessária, atualmente, para o campo da AD no Brasil, atravessado pelo apagamento da singularidade das posições, posicionando-me contra a homogeneização que, nas palavras de Courtine1 “amalgama, neutraliza e torna indistinguível sob uma etiqueta consensual posições teóricas contraditórias”. Mais do que nunca, é necessário resgatar as fundações teóricas dos projetos desses diferentes autores, as exigências teóricas dos seus textos fundadores para, a partir desse movimento, problematizar a própria noção de “herança”, isto é, lançar aos analistas de discurso o desafio de nos perguntarmos: “como esses autores foram e estão sendo lidos, interpretados e postos em funcionamento em trabalhos atuais no Brasil?”
LUGARES DE AUTORIA Proponho enxergar lugares de autoria na história dos desenvolvimentos da a partir dos diálogos teóricos que Pêcheux trava com os pensamentos de Bakhtin e Foucault. Desse ponto de vista, ao pensar as propostas desses auto-
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res no interior do projeto teórico pecheutiano, é possível visualizar diferentes momentos da história epistemológica da AD. Assim, esses três Michéis (com suas singularidades) tomam seu sentido no interior do projeto de constituição – desde o final dos anos 1960, na França – de uma análise do discurso que adotou, num primeiro momento, o discurso político como objeto privilegiado. Essa tentativa – totalmente identificada com o marxismo e a psicanálise – fez da Lingüística uma referência metodológica essencial. Portanto, os diálogos entre Pêcheux, Foucault e Bakhtin envolveram diferentes respostas à articulação entre teorias lingüísticas, teorias do sujeito e teorias da história e da sociedade. Observando os distanciamentos e as aproximações entre essas diferentes formulações, perceberemos que o solo epistemológico da AD foi fertilizado pela interpretação que cada um desses autores fez daquilo que Pêcheux chamou de “tríplice aliança”, em torno de Saussure, Marx e Freud. A ênfase, as aproximações e os distanciamentos em relação a essa tríade determinaram a arquitetura das propostas. Do mesmo modo, é preciso considerar que, enquanto Pêcheux e Foucault viveram intensamente as lutas políticas da França entre 1960-1980, Bakhtin produziu sua obra teórica em outro tempo e espaço, e, por isso, ele participa da AD como um “outro”, uma leitura, uma interpretação. Nesse sentido, a leitura que Pêcheux faz de Bakhtin é determinada por várias distâncias: participando da “primeira recepção” de Bakhtin na França, no final dos anos 1960,2 como todos os que o leram naquele momento, Pêcheux tinha uma vaga referência sobre aquele teórico russo de quem se traduzia Marxismo e filosofia da linguagem e Problemas da poética de Dostoiévski, obras escritas na União Soviética do final dos anos 1920.3 Como sabemos, a obra de Bakhtin é muito ampla e diversificada e ainda hoje não totalmente conhecida. Nas décadas de 1960-1970, momento da primeira recepção de Bakhtin na Europa, as obras traduzidas incidem sobre problemas da literatura, razão pela qual ele será uma referência fundamental para os estudiosos de Teoria Literária. Segundo Brait,4 Marxismo e filosofia da linguagem, obra de grande interesse para os estudos lingüísticos, datada de 1929 e traduzida no final da década de 1960, na verdade terá realmente repercussão na década de 1980, quando aparece como uma forma de incorporar aos estudos lingüísticos uma concepção de linguagem diferente da Lingüística pós-saussureana, na medida em que incluía a história e o sujeito. Assim, 35
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Bakhtin, nesse primeiro momento de sua leitura no Ocidente, teve um impacto muito mais forte sobre os estudos literários do que sobre os estudos lingüísticos. Hoje, livros de Bakhtin como Problemas da poética de Dostoiévski e A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, mesmo tendo a literatura como objeto principal, é tomado por lingüistas como fonte para a reflexão sobre gênero, polifonia, cronotopo, carnavalização, formas de incorporação do outro à linguagem, definição do “outro” bakhtiniano, vozes, etc. Essas distâncias temporais e espaciais explicam, em certa medida, as recusas expressas por Pêcheux em relação a Bakhtin. Da mesma forma, as transformações teóricas e políticas ocorridas entre os anos 1960-1980 encurtarão essas distâncias e levarão o projeto pecheutiano a incorporar propostas bakhtinianas. Essa incorporação virá através dos trabalhos de J. Authier-Revuz e trará para a AD a idéia de heterogeneidade, indicando uma via para a análise das relações entre o fio do discurso (intradiscurso) e o interdiscurso, na análise das não-coincidências do dizer.5 O projeto pecheutiano de AD se delineia inicialmente em uma época de recusas. Fortemente assentada nas teses althusserianas, entre 1969 e 1975, a obra de Pêcheux estabelece um diálogo conflituoso com Foucault e Bakhtin. A partir de 1976, deslocando-se de posições dogmáticas (tanto políticas quanto teóricas), Pêcheux faz a crítica das propostas da “primeira época”, remodela o edifício teórico e se aproxima desses autores, incorporando contribuições que abrem diversas perspectivas para a análise de discursos. Assim, o que Pêcheux chamou de “três épocas da AD”6 revela os embates, as reconstruções, as retificações operadas na constituição do campo teórico em torno da articulação entre a língua, o sujeito e a sociedade. No decorrer das três épocas, essa articulação será construída a partir das reflexões de Althusser às quais Pêcheux acrescenta aportes de Foucault e de Bakhtin. Um percurso feito de lutas, combates, escansões. Afinal, nada é mais estranho ao pensamento desses autores do que a idéia de um desenvolvimento contínuo, teleológico do saber científico, que atingiria sua plenitude num certo momento. Ao contrário, esse diálogo do pensamento de Pêcheux com os outros Michéis se dá sob a forma da descontinuidade, do emaranhado de descontinuidades que afasta qualquer possibilidade tanto da linearidade quanto da idéia de um projeto unificador do saber. 36
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GRANDES RECUSAS: DIVERGÊNCIAS ENTRE PÊCHEUX E BAKHTIN No interior do grupo de Michel Pêcheux, as discussões sobre as propostas de Bakhtin ocorreram em meados dos anos 1970, e ele foi visto, pela maioria dos integrantes, como um pensador que trazia grande contribuição aos estudos de análise do discurso na medida em que a sua translingüística recuperava a dimensão histórica, social e cultural da linguagem. Michel Pêcheux, no entanto, não concorda com Bakhtin em dois pontos cruciais: a) a crítica bakhtiniana ao “objetivismo abstrato” de Saussure e b) a inserção bakhtiniana em concepções “marxistas” que, para Pêcheux, pertencem ao “sociologismo” e ao “humanismo teórico”. Por isso, diante daquilo que era até então conhecido das propostas de Bakhtin, as discordâncias principais de Pêcheux envolvem seus diferentes posicionamentos em face da teoria lingüística e de uma teoria do social e da história.7
DUAS LEITURAS DE SAUSSURE Tanto Pêcheux quanto Bakhtin retornam a Saussure a fim de discutirem o objeto da Lingüística estrutural (a langue, como sistema abstrato, formal) e proporem um novo objeto – o discurso. Mas esse retorno se dá de maneira diferente nos dois autores, o que provoca a discordância de Pêcheux com a leitura de Bakhtin. Novamente, são duas leituras que se dão em momentos históricos diferentes e por isso produzem diferentes efeitos de sentido. Em toda a obra de Pêcheux, a reflexão sobre a relação entre a Lingüística fundada por Saussure e a teoria do discurso é essencial. Para ele, Saussure mostrou a complexidade da língua, entendendo-a, ao mesmo tempo, como instituição social e como sistema de signos. Pêcheux8 e Gadet procuram evidenciar que a Lingüística pós-saussureana obscureceu a idéia do “valor” e centralizou-se na separação radical entre língua e fala e que isso a) levou a Lingüística a abandonar o estudo da Semântica e b) abriu a porta para o formalismo e o subjetivismo (já que a parole é pensada como individual e, por isso, o objeto da Lingüística deve ser a langue, pensada como sistema 37
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outros conceitos-chave
abstrato e coletivo). Essa leitura, segundo Pêcheux, deixou na sombra a grande inovação de Saussure, a descoberta do real da língua – o fato de que o equívoco é um fato estrutural9 e, por isso, contém a possibilidade da metáfora, dos deslizamentos, dos jogos de palavras (o jogo nas regras e o jogo com as regras). Visto dessa maneira, o sistema contém a regulação e a criatividade e torna possível, simultaneamente, a “felicidade da simetria e o drama da abertura de cada palavra”.10 Esse fato incontornável faz com que a fronteira que separa o lingüístico e o discursivo seja constantemente recolocada em causa em toda prática discursiva, pois as “sistematicidades” não existem sob a forma de um bloco homogêneo de regras organizadas à maneira de uma máquina lógica. Acatando a idéia de que nas propostas saussureanas apresenta-se essa complexidade do objeto “língua” – e que, portanto, não há um corte entre a langue e o discurso –, Pêcheux não concorda com as críticas formuladas por Bakhtin/Voloshinov ao “objetivismo abstrato” de Saussure. Esse é o primeiro ponto de sua recusa às teses bakhtinianas: ele entende que há um erro de avaliação em Marxismo e filosofia da linguagem11 e coloca-se do lado dos trabalhos do Círculo Lingüístico de Moscou (principalmente de Jakobson) e dos formalistas. Evidentemente, não podemos nos esquecer de que, diferentemente de Bakhtin – que tomou contato com as idéias do Curso de Lingüística Geral logo após sua publicação, no início dos anos 1920, e se opõe à leitura que os “formalistas” fazem de Saussure12 –, Pêcheux, nos anos 1970, faz uma leitura de Saussure já fundamentada nos trabalhos de Godel13 sobre as fontes manuscritas do Curso de Lingüística Geral e de Starobinsky14 sobre os estudos saussureanos dos anagramas. Assim, antes de atribuir a “leitura correta de Saussure” a Pêcheux ou a Bakhtin, é mais prudente que perguntemos: não estarão eles falando de dois diferentes “Saussures”? Com base na tese de que houve uma leitura equivocada de Saussure, Pêcheux afirma que Bakhtin “tende a anular a dimensão própria da língua: opondo ao ‘sistema abstrato de formas lingüísticas’ o ‘fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação e dos enunciadores’; ele conduz à fusão da Lingüística em uma vasta semiologia”.15 Pêcheux entende que Saussure deve ser considerado como o inaugurador da ciência da linguagem e, por isso, em torno de suas propostas devem continuar a serem gestadas as grandes questões da análise do discurso: a possibilidade de pen38
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sar os jogos da/na língua (a “felicidade da simetria/o drama da abertura”), a produção da singularidade do sujeito na língua, assim como a articulação entre a língua, a ideologia e o inconsciente.
DUAS LEITURAS MARXISTAS O segundo pólo de críticas de Pêcheux em relação a Bakhtin diz respeito às suas diferentes maneiras de pensar a articulação entre o discurso, o sujeito e o social a partir do marxismo. A posição fortemente althusseriana dos trabalhos de Pêcheux – de 1969 a 1975 – leva-o a recusar o que chama de “sociologismo” de Bakhtin, entendido como o “anúncio de uma sociolingüística materialista apoiada numa psicologia social herdada de Plekhanov”,16 que encontra suas garantias numa psico-sociologia da comunicação verbal. Segundo Pêcheux, na base das propostas bakhtinianas está a ideologia da Vida, o humanismo teórico,17 que entendem a produção do discurso como fruto da cisão indivíduo/sociedade e o inscrevem na esfera das relações interindividuais.18 Assim, o segundo ponto teórico fundamental, em torno do qual se assentam as críticas de Pêcheux a Bakhtin, é o modelo bakhtiniano da interindividualidade, que se fundamenta na idéia de interação sociocomunicativa. Para Pêcheux, a produção do sentido não pode ser pensada na esfera das relações interindividuais; do mesmo modo, ela não pode ser tomada em relações sociais pensadas como interação entre grupos humanos. Essa recusa a Bakhtin expressa uma crise no interior da “análise do discurso francesa”, uma divisão entre aqueles que Pêcheux classifica como lingüistas marxistas e aqueles rotulados como os sociologistas. Há, nessa divisão, uma luta teórica determinada pelas diferentes posições dos intelectuais franceses, nos anos 1970, no interior do Partido Comunista Francês. Aliando-se à vertente dos lingüistas marxistas, Pêcheux critica os “sociologistas” que desenvolvem uma “sociolingüística materialista” centrada nas idéias de interação e dialogismo – o grande alvo de sua crítica são as posições expressas, por exemplo, por Marcellesi e Gardin.19 Para Pêcheux, essa sociolingüística é “um lugar de recobrimento da política pela psicologia”, em que se desdobram sem perceber as “evidências” do sujeito individual e coletivo, da comunicação intersubjetiva.20 Marxista 39
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filiado às teses althusserianas, Pêcheux não poderia concordar com as teses de Bakhtin que articulam o signo ideológico, ao mesmo tempo, como arena das lutas sociais e expressão íntima e pessoal de indivíduos interlocutores. Essa discussão sobre as divisões entre as interpretações marxistas entremeava-se com a política, e os althusserianos travavam, naquele momento de crise do marxismo, uma batalha teórico-política contra o que denominavam de “reformismo”.21 Inserido nessa verdadeira guerra – que determinava aos grupos de intelectuais daquele momento que se perguntassem: “o que é ser marxista em Lingüística?” – Pêcheux propõe que, a partir do materialismo histórico, é preciso “mudar de terreno” a fim de lutar contra o empirismo (desembaraçar-se da problemática subjetivista centrada no indivíduo) e contra o formalismo (não entender a língua como uma máquina lógica e sem exterior – uma “língua de marcianos”). Isso implicava a introdução de novos objetos tomados em relação ao “novo terreno teórico”. As divergências fundamentais do grupo pecheutiano no que diz respeito a Bakhtin era, certamente, essa relação com o marxismo, já que, apesar de não concordarem com a leitura que ele faz de Sausurre, tanto para Pêcheux quanto para Bakhtin, duas idéias fundamentais assentam seus projetos de análise do discurso: a) a língua é um sistema e, portanto, tem uma organização que já prevê a possibilidade dos deslizamentos; b) a língua é uma instituição social. Esse caráter sistêmico e social da linguagem é a base a partir da qual será pensada a heterogeneidade dos processos discursivos. A língua é entendida como condição de possibilidade do discurso e a questão a ser respondida é: se a língua é o lugar material onde se realizam os efeitos de sentido, de que é feita sua materialidade? Nos últimos textos de Pêcheux, desde 1980, a problemática do “real da língua” aliada ao problema do “real da história” será uma interrogação constante. E o grupo pecheutiano encontrará nas formulações bakhtinianas respostas para entenderem essa materialidade discursiva na análise da “heterogeneidade enunciativa”.
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PÊCHEUX, FOUCAULT: VOZES ENTREMEADAS Para o desenvolvimento da obra de Pêcheux, Foucault foi sempre um adversário estimulante. Desde as primeiras formulações da AD pecheutiana encontram-se idéias derivadas da arqueologia do saber foucaultiana como o conceito central de formação discursiva. Foucault desenvolve essa noção como um dispositivo metodológico para a análise arqueológica dos discursos, daí a sua definição: No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva [...].22
Ao deslocar esse conceito para sua proposta de análise do discurso, Pêcheux dá a ela uma interpretação que fortalece os aspectos lingüísticos e a insere dentro das proposições althusserianas sobre o “primado da luta de classes”. O desenvolvimento desse conceito nuclear da AD mostra os conflitos e as recusas de Pêcheux em relação a Foucault, na sua reticência em atribuir-lhe a autoria e o empréstimo.23 Novamente, as críticas em relação a Foucault ligam-se à teoria lingüística e à interpretação das teses marxistas. Com relação à teoria lingüística, Pêcheux é categórico em afirmar que Foucault promove a elisão da língua e, portanto, nem coloca em causa se há alguma leitura saussureana sustentando o projeto foucaultiano de análise do discurso. Se essa não é a preocupação central de Foucault – a ponto de ele ter estabelecido como “sua” tríplice aliança os nomes de Nietzsche, Freud, Marx –, o conceito de “enunciado”, fartamente discutido em A arqueologia do saber, não deixa dúvidas de que ele está muito próximo da Semiologia, principalmente a barthesiana. Foucault define enunciado em relação à língua, entendendo-a como um sistema de possibilidades de construções enunciativas. No entanto, para a análise arqueológica não interessa esse campo de virtualidades das formas lingüísticas. Partindo da idéia de que “não basta qualquer realização material de elementos lingüísticos, ou qualquer emergência de signos no tempo e no espaço, para que um enunciado apareça e passe a existir”,24 Foucault mostra que o que torna uma frase, 41
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uma proposição, um ato de fala em um enunciado é justamente a função enunciativa: o fato de ele ser produzido por um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado. Toda a discussão sobre o conceito de enunciado é feita, em A arqueologia do saber, a fim de precisar que o objeto da descrição arqueológica não é “o enunciado atômico – com seu efeito de sentido, sua origem, seus limites e sua individualidade”, mas “o campo de exercício da função enunciativa e as condições segundo as quais ela faz aparecerem unidades diversas (que podem ser, mas não necessariamente, de ordem gramatical ou lógica)”.25 O exercício da função enunciativa, suas condições, suas regras de controle, o campo em que ela se realiza estão no centro das reflexões de Foucault, na medida em que entre o enunciado e o que ele enuncia não há apenas relação gramatical, lógica ou semântica; há uma relação que envolve os sujeitos, que passa pela História, que envolve a própria materialidade do enunciado. É dessa perspectiva que ele pode afirmar: [...] gostaria de mostrar que os “discursos”, tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e a língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. Essas regras definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um vocabulário, mas o regime dos objetos. “As palavras e as coisas” é o título – sério – de um problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os discursos como signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse
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mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever.26
Quanto à relação com o marxismo, a partir do desenvolvimento da genealogia do poder,27 as divergências tornam-se acirradas, pois Foucault discorda fundamentalmente das teses centrais de Althusser: os aparelhos ideológicos, a centralidade do poder de Estado, a interpelação ideológica, o assujeitamento, a luta de classes, etc. Nesse sentido, conforme Pêcheux – devido às transformações políticas posteriores a 1978 –, se afasta das posições althusserianas dogmáticas, seus pensamentos se aproximam.28 A teoria foucaultiana da microfísica do poder e das resistências vem de encontro às teses althusserianas, motivo pelo qual ele é acusado pelo grupo pecheutiano de praticar um “marxismo paralelo”.29 Foucault afirma que o poder não é unitário e global, mas se constitui de formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. Entendendo o poder como uma prática social constituída historicamente, as análises da genealogia do poder foucaultiana realizaram um importante deslocamento em relação à idéia dos “aparelhos ideológicos de Estado”, pois propõem que não há uma relação direta entre poder e Estado (considerado como um aparelho central e exclusivo de poder), mas que ele se manifesta em uma articulação de poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de ação (“instituição”). Os micropoderes são formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articulados de maneiras variadas e que são indispensáveis à sua sustentação e atuação eficaz. Foucault situa sua análise no nível em que o poder intervém materialmente e atinge os indivíduos – na concretude de seus corpos – e penetra no seu cotidiano. Analisando os poderes moleculares que se relacionam com determinados saberes – sobre o criminoso, a sexualidade, a doença, a loucura, etc. –, sua análise concebe o poder não como uma dominação global e centralizada que se pluraliza, difunde e repercute homogeneamente nos diversos setores da vida social, mas como tendo uma existência própria e formas específicas. Essa concepção coloca, para os althusserianos, dois grandes problemas, fundamentalmente políticos e teóricos. Politicamente, se o poder não tem um centro, a sua tomada pela classe dominada e a modificação dos aparelhos de Estado não são suficientes para fazer desaparecer ou transformar, em suas características fundamentais, a 43
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rede de poderes que impera em uma sociedade. Por negar a idéia de “revolução” que poderia transformar o poder de Estado (e de seus aparelhos), os althusserianos acusarão Foucault de “reformista”. Teoricamente, a idéia de microfísica do poder faz com que as noções de “aparelhos ideológicos” e de “luta de classes” (centrais nas propostas althusserianas) percam seu valor heurístico: como os poderes não estão situados em nenhum ponto específico da estrutura social, se eles funcionam como uma rede de dispositivos sem um exterior possível, limites ou fronteiras, para Foucault não existe, de um lado, aqueles que têm poder (“classe dominante”), e, de outro, os que estão dele alijado (“classe dominada”). Os micropoderes se disseminam por toda a estrutura social. Do mesmo modo, a resistência não tem um ponto fixo, mas pontos móveis, transitórios que também se distribuem por toda estrutura social, e há, no interior das próprias “classes”, microlutas pelo poder. Além disso, Foucault não relaciona o saber e o poder diretamente com a economia (a infra-estrutura), como no marxismo clássico. Compreendido como materialidade, como prática, como acontecimento, o saber está intimamente relacionado com os poderes. Decorre disso que Foucault não faz distinção entre ciência e ideologia. Ele evita, explicitamente, empregar o termo “ideologia”, por ser muito carregado de significados, o que não denota, entretanto, que ele não mobilize a idéia de luta pelo poder. Situando a ideologia como história do saber, Foucault afasta a idéia de neutralidade objetiva da ciência e da ideologia como “falsa consciência”. Todo conhecimento (científico ou ideológico) só pode existir a partir de condições políticas – condições que determinam a possibilidade de formação tanto do sujeito quanto dos domínios de saber. Todo saber é político; não porque gerado pelo Estado, mas porque tem sua gênese nas relações de poder. Saber e poder se implicam mutuamente. O poder quer gerir, controlar, aumentar a produtividade dos corpos (objetivo econômico e político). Para conseguir essa gestão e controle, criaram-se as sociedades disciplinares, por meio da organização do espaço e do controle do tempo. A vigilância é um dos seus principais instrumentos de controle, pois ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz um saber. Em suas últimas obras (A história da sexualidade, principalmente no seu volume 1, A vontade de saber), Foucault formula a existência de outras formas de poder além da 44
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disciplinaridade: analisando a sexualidade, vê que o seu controle também é exercido por um biopoder, cujos dispositivos envolvem a “segurança”, a “regulação”, etc.30 Decorre dessas idéias a análise de que o poder é produtor da ilusão de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber (o hospício produz o louco como doente mental, personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares de poder). O poder disciplinar não destrói o indivíduo; ao contrário, o fabrica e, por isso, o indivíduo é um dos mais importantes efeitos do poder. Pensando o “sujeito” como essa fabricação, realizada, historicamente, pelas práticas discursivas, é no entrecruzamento entre discurso, sociedade e história que poderemos observar as mudanças nos saberes e sua conseqüente articulação com os poderes. Para Foucault, o sujeito é o resultado de uma fabricação que se dá por intermédio de dispositivos e suas técnicas. Portanto, se o objetivo fundamental de Foucault é produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano na nossa cultura e, se essa história é constituída pelo discurso, a relação entre linguagem, história e sociedade está na base de suas reflexões. Usando as palavras de Foucault, para analisar os diferentes modos de subjetivação é preciso determinar e descrever “a proliferação dos acontecimentos através dos quais, graças ao quais e contra os quais se formaram as noções, os conceitos, os topoi que atravessam e constituem os objetos e engendram os discursos que falam sobre eles.”31 Assim, em vez de considerar o discurso como uma série de acontecimentos homogêneos (as formulações individuais), Foucault distingue, na própria densidade discursiva, diversos planos de acontecimentos possíveis (plano da emergência dos enunciados; do aparecimento dos objetos; dos tipos de enunciação; dos conceitos; das escolhas estratégicas; da derivação de novas regras; da substituição de uma formação discursiva por outra, etc.).
PÊCHEUX, BAKHTIN, FOUCAULT: CONVERGÊNCIAS A partir de 1978, Pêcheux inicia um período de autocríticas que irá deslocálo, teórica e politicamente, das posições dogmáticas da “primeira época”. Essas retificações atingem pontos centrais das posições teóricas e políticas (como 45
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no anexo à edição inglesa de Semântica e discurso, publicada em 1978, cujo título é “Só há causa daquilo que falha”); dos pressupostos e procedimentos da AD (como em “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”),32 1981); do marxismo ( Discurso: estrutura ou acontecimento?)33.34 A discussão da articulação entre discurso e história torna-se proeminente, trazendo com ela uma ampla reformulação que integra a noção bakhtiniana de heterogeneidade e que resulta, entre outros deslocamentos: a) na discussão sobre as relações entre a materialidade discursiva e o interdiscurso, com a leitura feita por Authier-Revuz35 das propostas de Bakhtin e a formulação dos conceitos de heterogeneidade mostrada e constitutiva; b) no encontro com historiadores (Robin, Guilhaumou, Courtine), que traz a rediscussão da relação entre discurso e história a partir da leitura das propostas de Foucault e a incorporação das noções de “acontecimento”, “arquivo”, “práticas discursivas”, etc; c) no papel decisivo da leitura de Bakhtin e de Michel de Certeau para que a AD incorporasse aquilo que Pêcheux chama de registro do ordinário do sentido: “Coloca-se cada vez mais a necessidade de entender esse discurso – na maior parte das vezes silencioso – da urgência às voltas com os mecanismos de sobrevivência: trata-se, para além da leitura dos Grandes Textos, de se pôr na escuta das circulações cotidianas, tomadas no ordinário do sentido”.36 A transformação no objeto de estudos da AD traz novas questões ao deslocarse dos discursos escritos-legítimos-oficiais para o registro dos diálogos, réplicas, narrativas, histórias, provérbios, aforismos, etc. Como em Bakhtin, encontra-se em De Certeau,37 em sua reflexão sobre a escrita da história, a preocupação com a alteridade, com a palavra do outro – o patois durante a Revolução Francesa, o possuído, o estrangeiro, o místico – e as formas utilizadas pelos sujeitos para se apropriarem dos códigos e lugares que lhe são impostos ou para subverterem as regras a fim de comporem novas formas (as invenções do cotidiano). Essas reflexões, em cuja base está um diálogo com as idéias da arquegenealogia de Foucault,38 traz para a AD a problemática da tensão entre os poderes e as resistências e a crítica de Pêcheux, em seu último texto, às teses althusserianas: Esse caráter oscilante do registro do ordinário do sentido escapou completamente à intuição do movimento estruturalista, que o fechou totalmente no inferno da ideologia dominante e do empirismo
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prático, considerados como ponto-cego, lugar de pura reprodução do sentido.39
A revisão teórico-metodológica, que aproxima a AD pecheutiana de Foucault, Bakhtin e De Certeau, leva à análise do real da língua e do real da história, integrados na produção “em espiral” de reconfigurações do corpus. São explicitadas, nos textos posteriores a 1978, a tematização da heterogeneidade, a idéia da alteridade (“presença do discurso do outro como discurso de um outro e/ou discurso do Outro”), as relações entre intradiscurso e interdiscurso (no “fio do discurso”, vestígios da memória discursiva), etc.
HERANÇAS,
FILIAÇÕES...
A discussão das recusas e das aproximações entre o projeto da AD pecheutiana e os projetos de Bakhtin e Foucault, apenas esboçada neste texto, não propõe, evidentemente, que seja possível decidir “quem estava com a razão”, porque as verdades científicas são relativas. A própria verdade, conforme afirma Foucault, é uma construção histórica. Trata-se de entender essas “vontades de verdade” produzidas em certo contexto histórico, sob a ação e a determinação da História. É nesse sentido que podemos compreender as singularidades das propostas desses autores, suas divergências e convergências. Ao mesmo tempo, a compreensão dessas singularidades pode permitir que se comece a enfrentar alguns efeitos provocados pela homogeneização – encontrada com freqüência em trabalhos brasileiros que afirmam filiar-se à “análise do discurso” – das propostas desses autores: a) em relação à circulação das idéias de Bakhtin, promove-se uma “desmarxização” de suas formulações e a redução de suas propostas a conceitos operatórios desligados das motivações filosóficas que os engendraram. Essa “desmarxização” (que é, fundamentalmente, uma “des-historicização”) acaba produzindo como efeito o apagamento das polêmicas estabelecidas entre Bakhtin e outros “marxistas” (como os althusserianos e foucaultianos); b) em relação ao desenvolvimento, no Brasil, da AD derivada de Pêcheux, a distância temporal e espacial provoca alguns efeitos interpretativos: 47
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• a maior parte dos textos produzidos na França a partir de 1975 ainda não foram suficientemente discutidos, e, por isso, mantêm-se fortemente a vinculação com as teses althusserianas (“ideologia”; “sujeito assujeitado”, etc.) e as críticas a Bakhtin e a Foucault no que respeita à relação com Saussure e com o “marxismo”; • do mesmo modo, a circulação dos textos de Pêcheux, no Brasil, não acompanha a cronologia de sua produção em francês e isso leva à mistura de conceitos estabelecidos em diferentes “épocas” (muitos conceitos foucaultianos são incorporados sem que se alterem outros, de base althusseriana, como, por exemplo, a convivência pacífica entre diferentes concepções de “história” e “sujeito” conjugando “arquivo” e “forma sujeito”; “acontecimento”, “práticas discursivas” e “interpelação ideológica”); • apagando as polêmicas (teóricas e políticas), apagam-se as retificações que o próprio Pêcheux realizou em seu projeto; assim, ao mesmo tempo, há uma “des-althusserianização” por meio da incorporação de conceitos dos outros autores e a reprodução das recusas a esses mesmos autores.
Será hoje a ocasião – quando nos voltamos para os inúmeros trabalhos brasileiros que enumeram (como referências-fetiches teóricas), Pêcheux, Foucault e Bakhtin – de retomarmos a fala de Pêcheux40 de que é chegado o momento de começar a partir os espelhos?
NOTAS 1
J. J. Courtine, “A estranha memória da análise do discurso”, em F. Indursky e M. C. LeandroFerreira (org.), Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos, Claraluz, 2005.
2
Maldidier escreve: “Foi em 1968, em um artigo intitulado ‘Le mot, le dialogue, le roman’, que Julia Kristeva introduziu Bakhtin na França. Essa primeira recepção concerne essencialmente à literatura, ao terreno da semiótica literária e das práticas significantes múltiplas. Os lingüistas puderam ler, no nº 12 de Langages (preparado por Roland Barthes, 1968), um artigo de Bakhtin chamado ‘O enunciado no romance’. Nos anos 1980 começa um segundo período de descoberta de Bakhtin, marcada pela multiplicação das traduções e dos estudos e a generalização das referências em todos os campos, notadamente na Lingüística. Um pandialogismo parece, então, se instalar, no qual as correntes as mais diversas se apropriam dele.” (D. Maldidier, “(Re)lire Michel Pêcheux ajourd’hui”, em M. Pêcheux, L’inquiétude du discours, Paris, Cendres, 1990.)
3
Se hoje pensamos em um “Círculo de Bakhtin”, no momento da primeira recepção da obra na França encontramos uma espécie de “volatização” da autoria Voloshinov/Bakhtin. Isso significa que a própria constituição do lugar de autoria de Bakhtin foi uma construção posterior ao momento da leitura que dele se fez na Europa nos anos 1970.
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4
B. Brait, “O discurso sob o olhar de Bakhtin”, em M. R. Gregolin e R. L. Baronas (orgs.), Análise do discurso: as materialidades do sentido, São Carlos, Claraluz, 2001.
5
Acompanhar esses embates entre os teóricos exige, também, que se incorpore a dimensão trágica das transformações históricas e políticas que determinou a interrupção brusca desse projeto na França, na metade dos anos 1980. Essa tragicidade envolve o desaparecimento desses e de outros grandes pensadores franceses entre 1975-1985.
6
M. Pêcheux, “Análise do discurso: três épocas”, em F. Gadet e T. Hack, Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux, Campinas, Unicamp, 1995.
7
A leitura bakhtiniana de Freud provavelmente ainda não era conhecida, já que a tradução do estudo de Voloshinov/Bakhtin sobre o Freudismo (1927) só foi publicada, em francês, em 1982.
8
M. Pêcheux, Analyse automatique du discours, Paris, Dunod, 1969; M. Pêcheux, et al., “La sémantique et la coupure saussurianne: langue, langage, discourse”, em Langages 24, Paris, Larrousse, 1971; M. Pêcheux, “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”, em Langages 61, Paris, Larrousse, 1981.
9
Cf. F. Gadet, e M. Pêcheux, A língua inatingível: o discurso na história da Lingüística, Campinas, Pontes, 2004: “O espaço do valor é o de um sistêmico capaz de subversão em que, no máximo, qualquer coisa pode ser representada por qualquer coisa”.
10
M. Pêcheux, “Sobre a desconstrução das teorias lingüísticas”, em Línguas e Instrumentos Lingüísticos (4/5), Campinas, Unicamp, 1998.
11
Gadet e Pêcheux (op. cit.) argumentam que escapou a Bakhtin a intuição fundamental de Saussure de que “a língua não poderia ser pensada completamente se a ela não se integrasse a possibilidade do poético”.
12
“A translingüística proposta por Bakhtin incorpora na linguagem os fatores sociais que haviam sido erradicados pelos lingüistas pós-saussureanos, [...] um dos modos pelos quais Bakhtin formula essa distinção é dizer que os lingüistas estudam a língua ao passo que ele está preocupado com a comunicação.” (K. Clark e M. Holquist, Mikhail Bakhtin, São Paulo, Perspectiva, 1998, p. 237.)
13
R. Godel, Les sources manuscrites du Cours de linguistique génerale, Géneve, Un. Géneve, 1957.
14
J. Starobinsky, As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure, São Paulo, Perspectiva, 1974.
15
D. Maldidier, op. cit.
16
Gadet e Pêcheux, op. cit.
17
Essa crítica ao “humanismo teórico” de Bakhtin tem como base as teses althusserianas sobre os aparelhos ideológicos e o assujeitamento, que propõem um sujeito atravessado pela ideologia e pelo inconsciente – um sujeito que não é fonte nem origem do dizer; que reproduz o já-dito, o já-lá, o préconstruído. A recusa ao “humanismo” fundamenta-se, portanto, na proposta de uma teoria não subjetivista, já que é a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos. Por outro lado, o grupo dos “humanistas”, na França dos anos 1970, criticava as teses althusserianas por serem “teoricistas”.
18
F. Gadet, e M. Pêcheux, op. cit.
19
J. B. Marcellesi, e B. Gardin, Introdução à sociolingüística, Lisboa, Áster, 1975.
20
D. Maldidier op. cit.
21
Há vários textos de Pêcheux nos quais se pode ler essas batalhas teórico-políticas, como, por exemplo: M. Pêcheux, Remontons de Foucault à Spinoza, em L’Inquietude du discourse, Paris, Cendres, 1990; M. Pêcheux, Há uma via para a Lingüística fora do logicismo e do sociologismo?, em Escritos 3, Campinas, Labeurbe/Nudecri, 1998.
49
BAKHTIN
outros conceitos-chave
22
Foucault, A arqueologia do saber, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986, p. 43.
23
A noção de formação discursiva aparece, pela primeira vez, em M. Pêcheux, et al., “La sémantique et la coupure saussurianne: langue, langage, discourse”, em Langages 24, Paris, Larrousse, 1971, mas lá ele o atribui “aos clássicos do marxismo”. “Apoiando-nos sobre um grande número de propostas contidas naquilo que se denomina ‘os clássicos do marxismo’, propomos que as formações ideológicas, assim definidas, comportam, necessariamente, como um de seus componentes, uma ou mais formações discursivas interligadas, que determinam aquilo que se pode e se deve dizer (articulada sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada: o ponto essencial, aqui, é que não se trata somente da natureza das palavras empregadas, mas também (e sobretudo) das construções nas quais essas palavras se combinam, na medida em que elas determinam a significação que essas palavras adquirem: como nós indicamos anteriormente, as palavras mudam de sentido de acordo com as posições sustentadas por aqueles que as empregam; pode-se precisar, então: as palavras ‘mudam de sentido’ ao passarem de uma formação discursiva a uma outra.” ( M. Pêcheux et al, “La sémantique et la coupure saussurianne: langue, langage, discourse”, em Langages, 24, Paris, Larrousse, 1971, pp. 102-3.)
24
Foucault, op. cit., p. 98.
25
Idem, p. 122.
26
Idem, pp. 55-6.
27
Trata-se de ditos e escritos desenvolvidos no início dos anos 1970 e que foram reunidos posteriormente em livros: Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, Petrópolis, Vozes, 1987; Foucault, Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
28
Para discussão mais demorada sobre essas conflituosas relações, ver M. R. Gregolin, Foucault e Pêcheux na análise do discurso, Diálogos e Duelos, São Carlos, Claraluz, 2004.
29
Essa polêmica com Foucault está explícita no texto “Remontons de Foucault à Spinoza”, produzido em 1977 e publicado em Pêcheux, L’Inquiétude du discours: Textes choisis par D. Maldidier, Paris, Cendres, 1990.
30
J. Revel, Foucault: conceitos essenciais, São Carlos, Claraluz, 2005.
31
Foucault, “O sujeito e o poder”, em P. Rabinow e H. Dreyfus, Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
32
M. Pêcheux, “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”, em Langages 61, Paris, Larrousse, 1981.
33
M. Pêcheux, Discurso, estrutura ou acontecimento, Campinas, Pontes, 1999.
34
Nesse último texto de Pêcheux pode-se ler: “Como todos os saberes de aparência unificada e homogênea, o dispositivo de base da ontologia dialética marxista foi capaz de justificar tudo, em nome da urgência. [...] Não se pode dizer que a escolástica produziu a inquisição, nem que o marxismo produziu o Gulag, nem que o neo-positivismo produziu a servidão humana. No entanto, a capacidade justificadora desses sistemas filosóficos é incontestável” (Pêcheux op. cit., p. 63).
35
J. Authier-Revuz, Héterogéneité montrée et hétérogeneité constitutive: élements pour une approche de l’autre dans le discours, em DRLAV 26, 1982, pp. 91-151.
36
A análise das produções ordinárias aproxima a AD também dos estudos de Foucault que, desde o início dos anos 1970, estava interessado em estudar o que ele chamou de “história dos homens infames” (Foucault, Eu, Pierre Riviére, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, Rio de Janeiro, Graal, 1977; Foucault, “A vida dos homens infames”, em Les cahiers du chemin 29). Na introdução à análise do dossiê Pierre Riviére (p. xii), Foucault explica: “Creio que o que nos
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Bakhtin, Foucault, Pêcheux MARIA DO ROSÁRIO GREGOLIN
fixou nesse trabalho [...] é que se tratava de um dossiê, isto é, de um acontecimento em torno do qual e a propósito do qual vieram a se cruzar discursos de origem, forma, organização e função diferentes: o do juiz de paz, o do procurador [...] do médico de província e o de Esquirol; os dos aldeões com seu prefeito e seu cura. Por fim o do assassino. Todos falam ou parecem falar da mesma coisa – pelo menos é ao acontecimento do dia 3 de junho que se referem todos esses discursos. Mas todos eles, e em sua heterogeneidade, não formam nem uma obra nem um texto, mas uma luta singular, um confronto, uma relação de poder, uma batalha de discursos e através de discursos”. 37
M. de Certeau, A escrita da História, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002; M. de Certeau, A invenção do cotidiano, tomos I e II, Petrópolis, Vozes, 1994.
38
Discutindo os fundamentos de seu método arquegenealógico de análise dos discursos, assim se expressa Foucault: “O discurso anônimo, o discurso cotidiano, todas essas falas esmagadas, recusadas pela instituição ou afastadas pelo tempo, o que dizem os loucos nas profundezas dos asilos há séculos [...] o que foi dito nessas condições, essa linguagem a um só tempo transitória e obstinada, que jamais ultrapassou os limites da instituição literária, da instituição da escrita, é essa linguagem que me interessa cada vez mais” (Foucault, Da arqueologia à dinástica, em M. B. da Motta (org.), Foucault: estratégia, poder-saber, Ditos e Escritos IV, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003).
39
Pêcheux op. cit. Segundo o autor, este “é um dos pontos fracos da reflexão althusseriana sobre os e de suas primeiras aplicações na AD na França.”
AIE 40
M. Pêcheux, “L’étrange mirroir de l’analyse du discours”, em Langages 61, Paris, Larrousse, 1981.
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BAKHTIN
outros conceitos-chave
______ Eu, Pierre Riviére, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977. ______ Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. ______ História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ______ A vida dos homens infames. Les cahiers du chemin 29, 1977. ______ Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. ______ O sujeito e o poder. In: RABINOW, P. e DREYFUS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. GADET, F e PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Campinas: Pontes, 2004. GODEL, R. Les sources manuscrites du Cours de linguistique génerale. Géneve: Un. Géneve, 1957. GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz, 2004. MALDIDIER, D. (Re)lire Michel Pêcheux ajourd’hui. In: PÊCHEUX, M. L’inquiétude du discours. Paris: Cendres, 1990. MARCELLESI, J. B. e GARDIN, B. Introdução à sociolingüística. Lisboa: Áster, 1975. PÊCHEUX, M. Analyse automatique du discours. Paris: Dunod, 1969. ______ et al. La sémantique et la coupure saussurianne: langue, langage, discours. Langages 24. Paris: Larrousse, 1971. ______ Remontons de Foucault à Spinoza. In: L’Inquietude du discours. Paris: Cendres, 1990. ______ Há uma via para a lingüística fora do logicismo e do sociologismo? Escritos 3. Campinas: Labeurbe/Nudecri, 1998. ______ L’étrange mirroir de l’analyse du discours. Langages 61. Paris: Larrousse, 1981. ______ Sobre a desconstrução das teorias lingüísticas. Línguas e Instrumentos Lingüísticos (4/5). Campinas: Unicamp, 1998. ______ Análise do discurso: três épocas. In: GADET, F. e HACK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1995. ______ Discurso, estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1999. ______ L’Inquiétude du discours: Textes choisis par D. Maldidier. Paris: Cendres, 1990. REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. STAROBINSKY, J. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. São Paulo: Perspectiva, 1974.
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Carnavalização Norma Discini
A
COSMOVISÃO CARNAVALESCA
Bakhtin apresenta como uma das descrições mais antigas do carnaval uma visão mística do inferno vivenciada por um santo dos primórdios da Idade Média, São Grochelin, e relatada por um historiador normando do século XI, Orderico Vital. Uma procissão de almas errantes do purgatório, ocupadas em resgatar-se, assim é apresentada:1 À frente vêm homens vestidos de peles de animais que carregam todo um aparato culinário e doméstico. Em seguida outros homens trazendo cinqüenta caixões sobre os quais estão empoleirados curiosos homenzinhos com enormes cabeças, segurando vastas cestas na mão. Depois dois etíopes com um cavalete de tortura sobre o qual o diabo suplicia um homem, enfiando-lhe agulhas de fogo no corpo. Em seguida vem uma multidão de mulheres a cavalo que saltitam sem cessar sobre as selas guarnecidas de pregos incandescentes; vêem-se entre elas algumas mulheres nobres, algumas reais e vivas no tempo da visão. Depois avança o clero e, para fechar o cortejo, guerreiros envoltos em chamas.
BAKHTIN
outros conceitos-chave
Alerta Bakhtin para a interpretação cristã da cena infernal, no que diz respeito ao relato tanto do visionário como do historiador, o que, segundo o filósofo russo, determina “o tom, o caráter, às vezes mesmo certos detalhes da narrativa de Oderico”.2 Dessa visão, identificada pelo santo e pelo historiador como do “exército de Arlequim”, sendo Arlequim descrito como um gigante armado de uma clava monumental, é destacado pelo estudioso da linguagem, como elementos componentes do tom e caráter cristãos, “o terror de Gochelin, as lamúrias e lamentações das personagens, as punições de que algumas são vítimas (o homem supliciado é o assassino de um padre, as mulheres são castigadas pela sua depravação)”.3 Alerta também Bakhtin para a ausência do termo e da noção de carnaval no relato dos homens medievais, mas acaba por demonstrar que, “apesar da influência deformadora das concepções cristãs [...] o caráter carnavalesco de certas imagens e da procissão no seu conjunto é absolutamente certo”.4 O que entende Bakhtin por caráter carnavalesco de certas imagens? Essa é a pergunta a partir da qual se iniciam as reflexões a ser aqui desenvolvidas, as quais se apóiam fundamentalmente em duas obras do autor: A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento:o contexto de François Rabelais e Problemas da Poética de Dostoiévski5 ambas voltadas, cada qual a sua maneira, para a questão do carnaval e da carnavalização. Atentando primeiramente para o estudo sobre a obra de Rabelais, voltamos à citada visão mística do inferno. Bakhtin aponta como elementos do carnaval, entre outros, as figuras: do gigante, por seu corpo grotesco, o que por ora pode ser entendido como afastado da estética realista e naturalista, naquilo que ela tem de acabamento e estaticidade; das criancinhas empoleiradas sobre os caixões, pela alusão à ambivalência da morte que dá à luz; das entranhas tocadas por pregos incandescentes como alusão à vida renovada. A ambivalência projeta o relato para uma dimensão carnavalizada: é o que veremos. São ainda dados por Bakhtin como eminentemente carnavalescos os homens vestidos de peles de animais e armados de utensílios culinários e domésticos. A partir da orientação oferecida pelo autor, justifica-se a natureza carnavalesca de todas essas figuras pela excepcionalidade e inacabamento da apresentação. Dessa carnavalização não se excluem as mulheres saltitantes sobre selas. O galope/ coito que não cessa contém sugestão ao “baixo” material e corporal regenerador. 54
Carnavalização
NORMA DISCINI
É, entretanto, o aspecto de “procissão dos deuses destronados” o enfatizado por Bakhtin como elemento carnavalesco do sonho de São Grochelin, já que os pecadores eram apresentados como antigos senhores feudais, cavaleiros, damas da alta sociedade, eclesiásticos, todos transformados em almas destronadas. Nesse ponto e a título de curiosidade, Bakhtin observa como característico o fato de que desde a segunda metade do século XIX estudiosos alemães identificaram a origem alemã da palavra carnaval, “que teria a sua etimologia de Karne ou Karth, ou ‘lugar santo’ (isto é, a comunidade pagã, os deuses e seus servidores) e de val (ou wal) ou ‘morto’, ‘assassinado’”.6 À penetração dos elementos carnavalescos na visão oficial do inferno, fato consumado na obra de Rabelais, Bakhtin chama carnavalização do inferno: o inferno, como símbolo da cultura oficial, como encarnação do acerto de contas, como imagem do fim e do acabamento das vidas e do julgamento definitivo sobre elas, é transformado em alegre espetáculo, bom para ser montado em praça pública e no qual o medo é vencido pelo riso, graças à ambivalência de todas as imagens. O inferno carnavalizado, apresentado por Bakhtin como constituinte do sistema de imagens rabelaisianas, testemunha a permutação do alto e do baixo ou a lógica da inversão, própria à cultura popular: os grandes são destronados, os inferiores são coroados. Esse inferno confirma ainda dois princípios da literatura cômica popular, fonte para a criação de Rabelais: o do inacabamento de tudo o que há e o dos baixos regenerados, porque regeneradores. Como vemos, a cosmovisão carnavalesca não diz respeito à “concepção espetaculosa-teatral do carnaval, bastante característica dos tempos modernos”, como alerta Bakhtin.7 A cosmovisão carnavalesca diz respeito, segundo essa fonte, a “uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios passados”. Vamos à obra de Rabelais, Gargântua e Pantagruel.8 Nela é narrada a saga de ambos os gigantes: Gargântua, o pai, e Pantagruel, o filho. A trajetória de Gargântua é desenvolvida no Livro Primeiro e a de Pantagruel ao longo dos livros Segundo, Terceiro, Quarto e Quinto. Em episódio do capítulo XXX, do Livro Segundo, apresenta-se o amigo de Pantagruel, Panúrgio, às voltas com a ressurreição de um guerreiro aliado, Epistemon, morto em combate.9 Ressalta-se que, entre as providências de Panúrgio, apresenta-se a primeira: “Pegou a cabeça [de Epistemon] e a apertou contra a sua bragui55
BAKHTIN
outros conceitos-chave
lha, a fim de que não tomasse vento”. O relato das experiências no inferno é feito pelo ressurrecto logo depois que começou a respirar: “De súbito Epistemon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois deu um peido com todo o gosto”. A este último gesto de Epistemon segue imediatamente o diagnóstico de Panúrgio: “A estas horas ele já está seguramente curado”. Vejamos parte da cena da ressurreição do guerreiro: E então começou a falar, dizendo que tinha visto os diabos, conversado familiarmente com Lúcifer e se divertido muito no inferno e nos Campos Elíseos. E afirmava na frente de todos que os diabos eram bons sujeitos. A respeito dos danados, disse que estava aborrecido por ter Panúrgio tão cedo lhe feito voltar à vida. “Pois, disse ele, eu me divertia muito em vê-los. – Como? disse Pantagruel. – Não são tratados tão mal como pensais, disse Epistemon; mas o seu estado é mudado de modo bem estranho.” Pois vi Alexandre o Grande que remendava velhos calções e assim ganhava a vida.10
Prossegue a narração sobre o cotidiano no inferno. Xerxes lá vende mostarda, Rômulo é lenhador, Dario limpador de latrinas, ao que junta o ressurrecto: Todos os cavaleiros da mesa redonda são pobres remadores, que fazem a travessia dos rios Cócito, Flegeton [e outros] [...], quando os senhores diabos querem passear na água [...]. Mas para cada passagem só ganham um piparote no nariz e à noite um pedaço de pão duro. [...] Dessa maneira os que foram grandes senhores neste mundo terão uma vida pobre e trabalhosa lá embaixo. Ao contrário os filósofos e os que foram indigentes neste mundo lá serão grandes senhores por sua vez. Vi Diógenes que andava magnificamente, com uma grande túnica de púrpura e com um cetro na destra, e ralhava com Alexandre o Grande quando este não remendava direito os calções, e lhe pagava com bastonadas. [...] Vi Pathelin, tesoureiro de Radamento, querendo comprar os pastéis que o Papa Júlio vendia, perguntar-lhe quanto custava uma dúzia. “Três blancs, disse o papa.” Mas Pathelin lhe disse: “– Três bordoadas é o que mereces; sai daqui, vilão, sai daqui, vai procurar outros.” O pobre papa foi-se embora chorando; quando se viu diante de seu patrão pasteleiro, disse-lhe que tinham lhe tirado os
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pastéis. Então o seu senhor lhe deu uma chicotada tão forte que a sua pele não serviria para fazer cornamusas.
Procurando entender as imagens rabelaisianas segundo a orientação de Bakhtin, vemos aí confirmada a lógica das permutações, as quais, por sua vez, remetem à relatividade das verdades para que se definam as degradações próprias a um mundo dado ao revés. Tais degradações são demonstradas no exercício do destronamento do papa e do imperador e na configuração da flatulência como diagnóstico definitivo da ressureição de Epistemon. Entendidas, então, como o ato de entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, dada como “baixo produtivo”, as degradações, próprias da cultura cômica popular, justificam a ressurreição do soldado após o aquecimento de sua cabeça nas braguilhas de Panúrgio. As degradações rebaixam o corpo ao dá-lo como aproximado da terra. Mas a terra, vista como túmulo, ventre, nascimento e ressurreição, viabiliza o movimento de regeneração dos baixos. O baixo material e corporal concebido na sua função regeneradora ampara-se na reversibilidade dos movimentos, o que é fundante do grotesco. A função regeneradora do rebaixamento grotesco compõe a cosmovisão carnavalesca. A propósito, no parto de Pantagruel temos o lamento de Gargântua pela perda da esposa: “Ah! falsa morte, és má, és ultrajante, roubando-me aquela à qual a imortalidade pertencia por direito!”, desabafo seguido da explicação do narrador: “Assim falando, [Gargântua] chorava como uma vaca, mas, ao mesmo tempo, ria como um bezerro, quando lhe vinha à memória seu filho Pantagruel”.11 Na seqüência das comparações disparatadas, um epitáfio feito pelo esposo para prantear a amada morta contribui para reverter a dor da perda. O efeito de nonsense é então amparado pela argumentação tautológica dos dois versos finais: Rezai a Deus, rezai por ela, Pra ter a paz que mereceu. Deixou o mundo, pura e bela, No ano e dia em que morreu.
Não poderia ser dado na seriedade confirmadora das aspirações e crenças do mundo oficial o epitáfio feito por Gargântua, pois o que permeia a cena é a relação aberta e reversível entre morte e nascimento, dada sob a 57
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outros conceitos-chave
perspectiva da degradação carnavalesca. Em consonância ao sistema de imagens rabelaisianas, tal como descrito por Bakhtin, o epitáfio tinha de discursivizar-se por meio do princípio da movimentação, segundo o qual o lamento se ancora no riso e o pranteador se junta à vaca que chora. Assim se constitui o realismo grotesco.
A IMAGEM GROTESCA Vamos à Roma do século XV. O termo grotesco, segundo Bakhtin, teve na origem a acepção de metamorfose “em movimento interno da própria existência”.12 Uma pintura ornamental encontrada no século XV nas paredes subterrâneas das termas de Tito, denominada grottesca devido ao substantivo grotta (gruta), reunia representações de formas vegetais, animais e humanas que se transformavam e se confundiam entre si. O termo grotesco passou então a exprimir a “transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento da existência”.13 Bakhtin alerta também para o fato de que “o motivo ornamental romano era apenas um fragmento (um caco) do imenso universo da imagem grotesca que existiu em todas as etapas da Antigüidade e que continuou existindo na Idade Média e no Renascimento”.14 Para isso são enfatizados os elementos de leveza, liberdade e “alegre ousadia, quase risonha”, segundo os quais se apresentavam as figuras descobertas durante as escavações. Lembrando a mãe de Pantagruel que, na cena citada da obra de Rabelais, morreu ao dar à luz, destacamos a idéia do “inacabamento da existência” nesse modo de representar a morte, assim incorporada à concepção cômica do mundo. Esse olhar sobre a morte alia-se a outro, o da contemplação do corpo nas suas fendas e aberturas, nos seus buracos, enfim. Não custa voltar os olhos para aquele corpo idealizado pelo ascetismo cristão segundo a celsitude e idealizado pelos cânones clássicos segundo o acabamento e a perfeição. Esse corpo é rebaixado pelo ponto de vista que constrói a imagem grotesca. Compatível com a vida corporal dada na sua inesgotabilidade e não sancionada por um olhar normalizador, emerge a imagem grotesca emparelhada à loucura alegre do carnaval e das festas populares da praça pública. Adiantamos, entretanto, que essa praça 58
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pública poderá legitimar-se em espaço interno, tal como uma sala de visitas. É o que veremos adiante. Neste momento, para que examinemos a concretização do corpo grotesco na literatura, tomemos outra personagem de Gargântua e Pantagruel: a velha que mostra ao diabo “sua como-é-que-se-chama” e por isso salva o marido das garras do inimigo. Essa velha é emblemática da cosmovisão carnavalesca e se encontra no episódio “De como o diabo foi enganado por uma velha papafigas”, narrado no Livro Quarto, intitulado “Dos fatos e ditos heróicos do nobre Pantagruel” (capítulo XLVII).15 Antes, porém, façamos uma digressão. É interessante observar que em ambos os episódios antecedentes ao da velha, chamada papafigas como os outros habitantes da ilha na qual Pantagruel desembarcara, explicita-se a própria designação daquele povo (capítulo XLV) e a razão por que o demônio deveria atacar o lavrador, marido da velha (capítulo XLVI).16 A designação se justifica por uma ofensa cometida pelos Galhardetes, antigo nome dos papafigas: aquelas pessoas “diante do retrato papal tinham feito figa”, justamente numa festa na ilha vizinha de Papimania. Os papimanos se vingaram: Para se vingar, os papimanos, alguns dias depois, sem dizerem uma palavra, puseram-se todos em armas, surpreenderam, saquearam e arruinaram a ilha dos Galhardetes, passaram a fio da espada todo homem que tinha barba. Às mulheres e aos jovens perdoaram com condições semelhantes às que o imperador Frederico Barbarossa usou com os milaneses.
A narração das condições estabelecidas pelo imperador Frederico para perdoar os milaneses é por sua vez antecedida pelo relato das ações correspondentes à rebelião desse povo, entre as quais está a expulsão da imperatriz “ignominiosamente montada em uma velha mula chamada Tacor, cavalgando às avessas, quer dizer, o cu virado para a cabeça da mula, e o rosto para as ancas”. O imperador em seu regresso, tendo subjugado e prendido os revoltosos e tendo recuperado a célebre mula Tacor, impõe aos revoltosos o castigo efetuado pelo carrasco. Vejamos o castigo: Por sua ordem o carrasco pôs nos membros vergonhosos de Tacor uma figa, presentes e vendo os cidadãos cativos; depois gritou, de parte do imperador, ao som da trompa, que quem quer deles que
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quisesse se livrar da morte teria de arrancar publicamente a figa com os dentes, depois a colocar no lugar devido, sem ajuda das mãos. Quem quer que se recusasse, seria no mesmo instante enforcado e estrangulado. Alguns deles tendo vergonha e horror de tão abominável provação, a sobrepuseram ao temor da morte e foram enforcados. A outros o temor da morte foi mais forte do que tal vergonha. Esses, tendo com os dentes tirado a figa, a mostravam ao carrasco abertamente, dizendo: Ecco lo fico. Em igual ignonímia, o resto daqueles pobres e desolados galhardetes foram da morte poupados e salvos. Tornaram-se escravos e tributários e foi-lhes imposto o nome de papafigas.
Na progressão do narrado, apresenta-se entre os míseros papafigas o lavrador, marido da velha. Era um homem que “semeava trigo no dia e na hora em que um diabinho (o qual ainda não sabia trovejar, somente podendo estragar a salsa e a couve, e também não sabendo ler nem escrever) tinha a Lúcifer pedido ir àquela ilha de Papafigas para se recrear e se divertir”. Diante do lavrador, o diabinho atribui a si direitos de posse sobre o campo, confirmando o momento de origem dos seus direitos: “desde o tempo e a na hora em que ao papa fizestes figa”. É feita então pelo diabo a exigência da divisão do lucro na colheita do trigo: “Eu escolho o que ficar na terra; tu terás o que ficar por cima”. Não conhecedor da lavoura, o representante dos infernos fica com a palha deixada na terra e concede ao homem os grãos a ser ceifados. No mercado, o diabinho, que viera acompanhado por um séquito, vê-se na impossibilidade de vender seu produto e, ainda, para maior desgosto, vê-se cercado da zombaria dos camponeses. Inquirido, o lavrador explica: “O grão que vedes, na terra é morto e corrompido; a corrupção dele é a geração do outro que me vistes vender. Assim escolhestes o pior. É por isso que sois maldito no Evangelho”. Em novo acordo para outra lavoura, a dos rábanos, o diabo decide reter o que ficaria em cima da terra. Manda o homem trabalhar, enquanto informa sobre o que vai fazer: “Vou tentar os heréticos, que são apetitosa carne assada; o senhor Lúcifer está com cólica e isso lhe fará muito bem”. Nova decepção ocorre para o diabinho que, no mercado, presencia o lavrador vender os rábanos, enquanto ele próprio, com as folhas da planta nas mãos, torna-se alvo de zombaria pela segunda vez. Para se vingar, o pequeno demo marca um arranhamento mútuo com o lavrador para dali a uma semana: 60
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quem vencesse ficaria com o campo todo. Enquanto isso, sai o diabinho à caça de almas “de advogados perversores do direito e espoliadores dos pobres”, entre outras, para as refeições de Lúcifer. O dia escolhido para a contenda foi aquele em que chegaram à ilha Pantagruel e seus seguidores, para quem o lavrador conta sua história. Entretanto, mal o lavrador terminara o relato, chega a todos a notícia de que a velha enganara o diabo e ganhara o campo. Confrontada com o diabrete, que entrara em sua casa disposto a acabar com o “vilão”, a velha se queixa do marido para o apadrinhado de Lúcifer. Para isso deita-se no chão, “chorando e se lamentando”: “Ah! disse a velha, ele me disse, o carrasco, o tirano, o arranhador dos diabos, que tinha marcado um encontro convosco para se arranharem; para ensaiar as unhas, ele me arranhou apenas com o dedo mindinho aqui entre as pernas e me deixou toda machucada. Estou perdida, não vou me curar jamais. Vede. E ainda foi à casa do ferreiro, para apontar e afiar as unhas ainda mais. Estais perdido, senhor diabo, meu amigo. Fugi, antes que ele vos veja. Retiraivos, eu vos peço”. Então se descobriu até o queixo, da forma que outrora as mulheres persas se apresentavam aos filhos, fugitivos da batalha, e lhe mostrou sua como-é-que-se-chama. O diabo, vendo aquela enorme solução de continuidade de todas as dimensões, exclamou: “– Mahon, Demiurgon, Megera, Alecto, Personfe! Ele não me pega. Vou-me embora. Nunca! Eu lhe deixo o campo”.
Diluem-se verdadeiramente as fronteiras, a fim de que o sistema de imagens rabelaisianas se consolide. Viabiliza-se a mutabilidade dos fenômenos e fica reforçada a metamorfose contínua da própria existência. Não é gratuita, portanto, a ênfase dada ao renascimento do grão do trigo apodrecido sob a terra e à galhofa inspirada pelo ridículo representante dos infernos, “muito novo no ofício”, como acrescenta Rabelais. No lugar do temor está o riso que libera, para a composição da imagem de um Lúcifer que sente cólicas e se alimenta de “advogados perversos do direito e espoliadores dos pobres”. Seja o mais experiente, seja o neófito, a imagem da entidade do inferno é contraditória àquela, assustadora e punitiva, tão cara à ética oficial cristã. Não poderia ser representação nem do coroamento da sentença moral, nem do pavor diante do erro irreversível, que atormenta o ho61
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mem, a imagem grotesca, cuja concepção se ampara na idéia de superação de tudo o que tem caráter acabado. Atentemos um pouco mais para a seqüência das cenas recém-transcritas. Observamos a ambivalência regeneradora dos baixos corporais, confirmada por meio do “inferior” corporal afastado do valor negativo e censor. Ratifica-se o baixo regenerado justamente por meio da mulher ida em anos e, portanto, mais próxima da morte. O órgão genital feminino, apresentado como “aquela enorme solução de continuidade de todas as dimensões” e configurado como instrumento de confrontação, ainda que diante de um diabrete, confirma o mesmo sistema de imagens: é transferido ao baixo tudo o que é elevado. Essa parte do corpo feminino, enfatizada na sua abertura, confirma a importância dos orifícios para a concepção do corpo como o lugar que o mundo penetra e de onde o mundo emigra. Esse é o corpo grotesco, dado pela cosmovisão carnavalesca, tal como propõe Bakhtin. Por sua vez a hiperbólica seqüência de blasfêmias, proferida pelo diabinho diante do que vê, mistura o cômico ao espanto. Coerentes na ambivalência, as imagens da velha e do diabinho, respaldadas pelo riso, juntam-se àquela dos membros vergonhosos da égua Tacor, destacados em função da prova imposta aos papafigas. Por ordem solene do carrasco, ao toque da trompa os órgãos do animal tornaram-se receptáculo da figa a ser retirada com os dentes pelos cidadãos cativos. Na verdade tudo é degradantemente solene. A retirada da figa é tanto prova glorificante como castigo desonroso. Luta e conquista, ignonímia e honra, coragem e medo apresentam-se, cada elemento e todos conjuntamente, relativizados pelas funções de degradar, destronar e regenerar, constantes das imagens grotescas. Na multiplicidade de significações definem-se essas imagens, enquanto negam o princípio da estaticidade e aliam-se a uma certa gramática jocosa, tal como pede a visão carnavalesca do mundo. Dos episódios citados, fica então destacada a hiperbólica valorização da fissura vaginal do corpo da velha como elemento corroborador não apenas do inacabamento, mas também da metamorfose desse corpo, assim remetido para além de seus limites. Ao exibir-se por meio de tais recursos, o corpo legitima-se em função de suas aberturas e se aproxima em relação à fronteira tanto da morte como do nascimento. Que fique também ressaltada a contra62
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dição formal do corpo grotesco diante dos cânones literários e plásticos da Antigüidade clássica, os quais constituem a base estética do Renascimento. A fim de ressaltar a imagem grotesca em confronto com a estética clássica, esta para a qual se apagam protuberâncias, tapam-se orifícios, retiramse excrescências, abstraem-se imperfeições e para a qual concepção, gravidez, parto e agonia passam despercebidos, Bakhtin cita esculturas que representam as velhas grávidas que riem:17 Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu l’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte que dá à luz. Não há nada perfeito, nada estável ou calmo no corpo dessas velhas. Combinam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a concepção grotesca do corpo.
Vinculando o clássico não só aos parâmetros estéticos da Antigüidade incorporados pelo Renascimento como ideal de perfeição, mas também à “estética da vida cotidiana preestabelecida e completa”, Bakhtin alerta que, diante de tais cânones, nada resta à imagem grotesca senão ser interpretada como monstruosa.18 O grotesco será então considerado monstruoso, se se perder a ambivalência regeneradora, se se perder o tom alegre comandado pelo riso. Pensando no duelista que se confronta com o lavrador papafiga, concordamos que, se for eliminado o tom de bobagem alegre, será perdido o estatuto de espantalho, que compõe o diabinho. Pensando no relato da ressurreição de Epistemon, abstraído desse mesmo tom, veremos que se tornará falso o livre contato familiar entre os entes do inferno e os humanos. O caráter alegre e festivo é também depreensível da fala da velha papafiga diante do diabo. Que o diga a seqüência de epítetos por meio dos quais é designado o marido (“carrasco, tirano, arranhador dos diabos”). Que o diga principalmente a figura do dedo mindinho, arranhador das partes baixas da mulher. É ainda alegre e festivo o modo como se apresenta o papa que 63
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chora e apanha, enquanto vende pastel. O inferno cotidianizado contribui para a representação do destronamento dos poderosos. Vê-se que não há, ao longo das cenas, uma única ocorrência da sátira que exagera o “negativo que não deveria ser”, reproduzindo agora a expressão que Bakhtin usou para a referência ao sarcasmo, afastado do grotesco rabelaisiano.19 Sem a regeneração e o inacabamento contínuos, base da metamorfose amparada pelo riso alegre, não há realismo grotesco, marca do estilo de Rabelais. Um princípio positivo rege esse fenômeno. Com apoio nesse princípio, é possível entender tanto o conceito de tal realismo como a descrição da gradativa degeneração do grotesco ao longo dos séculos. Eis a caracterização dada por Bakhtin do realismo grotesco:20 herança (um pouco modificada, para dizer a verdade) da cultura cômica popular, de um tipo peculiar de imagens e, mais amplamente, de uma concepção estética da vida prática que caracteriza essa cultura e a diferencia claramente dos séculos posteriores (a partir do Classicismo).
A DEGENERAÇÃO DO GROTESCO A degeneração do grotesco corresponde a um enfraquecimento da cosmovisão carnavalesca e é fato verificável na estética filosófica e nas manifestações literárias, tais como obras românticas e realistas. Ao longo do estudo que faz sobre a obra de Rabelais, Bakhtin insiste na definição das imagens grotescas medievais e renascentistas como realistas e corrobora a necessidade da compreensão de tais imagens dentro do próprio sistema aos quais elas pertencem. As reflexões do filósofo se encaminham para a denúncia em relação ao abastardamento do realismo grotesco nas dimensões tanto da literatura como dos estudos literários. No que diz respeito à literatura, é feito o alerta em relação à degeneração do realismo grotesco em empirismo naturalista, fato do qual é apontado como isento o chamado realismo em grande estilo, sustentado por autores como Stendhal e Balzac, que são tidos como os que mantêm vivos alguns elementos do grotesco medieval e renascentista. Na crítica literária, é apontada por Bakhtin a distorção no exame do grotesco, considerado fora do âmbito da cultura 64
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popular da Idade Média e da literatura do Renascimento, o que teria viabilizado a interpretação do fenômeno como mero riso destrutivo. Ao tocar nos séculos posteriores àquele de Rabelais, Bakhtin afirmará então que, a partir do século XVII, certas formas do grotesco começam a degenerar em “caracterização estática e estreita da pintura de costumes, como conseqüência da limitação específica da concepção burguesa de mundo”.21 Fará referência à estética que, se consegue escapar da construção séria e unilateral do mundo, cai no riso trivial. O autor enfatiza então, para a compreensão desse processo, a necessária atenção para determinado tom de certas obras literárias: grave e monótono, do que é dado como sério; sentencioso e acusatório, quando não puramente recreativo e despreocupado, do que é dado como cômico. Mas é interessante atentar para as diferentes concepções de mundo que justificam a complexidade da cultura renascentista vista como uma totalidade: a concepção derivada da cultura popular e aliada ao princípio material ridente, destronador e renovador, tal como se apresenta em Rabelais e aquela tipicamente aliada aos cânones clássicos, segundo os quais os atos efetuados pelo corpo são dados como exteriores ao mesmo corpo, assim consumado no próprio fechamento. O texto que segue, extraído de um manual intitulado A Civilidade Pueril, de autoria de Erasmo de Rotterdam, publicado no ano de 1530, confirma a imagem ditada pelos cânones clássicos:22 Em relação aos mais velhos há que falar com respeito e em poucas palavras; com os da mesma idade, afetuosamente e de boa vontade. Quando se fala com alguém, deve-se pegar no chapéu com a mão esquerda, deixando a direita pousar suavemente sobre o estômago; é ainda mais aconselhável segurar o chapéu com as duas mãos, deixando os polegares de fora, de maneira a tapar a parte do abdômen. Apertar um livro ou a boina debaixo do braço é próprio de uma criança mal educada. Um decoro íntimo fica bem; o que dá cor ao rosto, não o que parece ser estúpido. O olhar deve estar voltado para a pessoa com quem se fala, mas este deve ser calmo, franco e não deve denotar nem descaramento nem maldade. Fixar os olhos no chão, como faz o catoblepas, leva a supor uma má consciência; fitar alguém de viés é testemunhar-lhe aversão.
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Virar a cabeça para um lado e outro é prova de leviandade. Também é pouco próprio dar toda espécie de expressão ao rosto, como frisar o nariz, enrugar a fronte, soerguer as sobrancelhas, torcer os lábios ou abrir e fechar bruscamente a boca; todas essas caretas são prova de um espírito tão inconstante como o de Proteu.
A dedicatória feita por Rotterdam e registrada na página de rosto sugere o caráter pedagógico do texto: Ao muito nobre Henri de Bourgogne, filho de Adolphi, príncipe de Veeri, criança de quem muito se espera, salve. É curioso observar mecanismos textuais que constroem a ilusão da assepsia da subjetividade de quem “fala” e de quem “escuta”: não se diz eu, nem tampouco tu. Tais mecanismos resultam no abafamento da função conativa da linguagem. Essa função, proposta por Jakobson, prevê a valorização da presença do sujeito com quem se fala, o que seria compatível com a cena de aconselhamento.23 Entretanto, à dissimulação do tu corresponde a dissimulação do eu, para que sejam consolidados autor e leitor segundo determinado ideal. Podemos supor outro modo de construção textual, com o emprego da segunda pessoa e do vocativo. Teríamos o efeito de aproximação e não de dissimulação do sujeito. Vejamos essa hipótese: “Em relação aos mais velhos, caro aprendiz, deverás falar com respeito. Quando falares com alguém, apega-te no chapéu com a mão esquerda. Aconselho-te ainda, meu rapaz, que segures o chapéu com as duas mãos”. No texto de Rotterdam, a hexis corporal radicada no corpo equilibrado ampara-se na condenação tanto dos movimentos exagerados como de qualquer posição de assimetria e diagonalidade, as quais remeteriam ao inacabamento do próprio corpo. Não é a falta, nem o excesso, mas é a justa medida o fundamento do perfil idealizado. Deparamo-nos então com uma época, o século XVI, que engendra imagens contraditórias entre si: aquelas ditadas pelos princípios da univocidade e da completude, tal como se apresentam no manual citado, e aquelas ditadas pelo princípio do contínuo devir, que traça o corpo incompleto, porque valorizado concomitantemente naquilo que definha e naquilo que nasce. Entre as últimas se emparelham as imagens constituintes da obra O Elogio da Loucura, do mesmo Erasmo de Rotterdam. No manual de civilidade não apenas os recursos gramaticais contribuem para a construção de um sujeito dado como asséptico, o que o vincula à 66
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idéia de acabamento e de perfeição. O abdômen devidamente tapado com o chapéu, entre outras imagens que completam o corpo a que se aspira, testemunha o ideal clássico, este que é visto por Bakhtin como herança incorporada pela contemporaneidade: “O cânon clássico nos serve de guia até a atualidade”.24 As imagens do corpo dadas no manual acabam, entretanto, por demonstrar o entrecruzamento de valores contraditórios que palpitam no próprio signo, assim consolidado como “arena onde se desenvolve a luta de classes”.25 Jogados nós, no manual de civilidade, para longe do inferior positivo capaz de renovar a vida, podemos então vislumbrar a dialética interna do signo lingüístico e a palavra como “indicador sensível de todas as transformações sociais”.26 Atentando um pouco mais para o caráter anticanônico da imagem grotesca diante do ideal clássico, lembramos agora que Bakhtin elucidou a acepção por meio da qual o termo cânon é por ele empregado, ou seja, “tendência determinada, porém dinâmica e em processo de desenvolvimento” e não apenas conjunto de regras e normas que integram determinado sistema de imagens.27 Faz isso o filósofo para enfatizar a incompatibilidade do corpo grotesco em relação tanto aos cânones clássicos como aos modernos e para respaldar o entendimento das “sobrevivências petrificadas” do próprio grotesco: “as grosserias e obscenidades modernas conservaram as sobrevivências petrificadas e puramente negativas dessa concepção do corpo”.28 Ao ressaltar esse empobrecimento contínuo, dado ainda no “nível cômico de baixa qualidade” e na “decomposição naturalista” das artes dos séculos XVII e XVIII, o autor reserva para o século XVIII a denúncia em relação ao didatismo e ao utilitarismo dos filósofos iluministas, entendidos estes como aliados das tendências artísticas de tom sério e unilateral e de um “racionalismo estreito”.29 Não deixa, entretanto, de ser feito por Bakhtin um alerta para a riqueza e o vigor grotescos subsistentes em determinadas comédias, como as de Molière, e em determinados romances filosóficos, como os de Voltaire. Por sua vez, um grotesco peculiar tido como muito distante da visão popular e carnavalesca e como determinado pelo crivo da subjetividade exacerbada será identificado na primeira metade do século XIX. Também reconhecido como “de câmara” e classificado como romântico, esse grotesco é apresentado por Bakhtin como confrontante em alguns aspectos com 67
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os cânones da época clássica e com aqueles do século XVIII. Sob a orientação dos parâmetros oferecidos pelo filósofo, podem ser identificadas manifestações desse grotesco no texto da literatura brasileira ora recortado.
É ELA! É ELA! É ELA! É ELA! É ela! é ela! – murmurei tremendo, E o eco ao longe murmurou – é ela! Eu a vi – minha fada aérea e pura – A minha lavadeira na janela! Dessas águas-furtadas onde eu moro Eu a vejo estendendo no telhado Os vestidos de chita, as saias brancas; Eu a vejo e suspiro enamorado! Esta noite eu ousei mais atrevido Nas telhas que estalavam nos meus passos Ir espiar seu venturoso sono, Vê-la mais bela de Morfeu nos braços! Como dormia! Que profundo sono!... Tinha na mão o ferro de engomado... Como roncava maviosa e pura!... Quase caí na rua desmaiado! Afastei a janela, entrei medroso: Palpitava-lhe o seio adormecido... Fui beijá-la... roubei do seio dela Um bilhete que estava ali metido... Oh! De certo... (pensei) é doce página Onde a alma derramou gentis amores; São versos dela... que amanhã de certo Ela me enviará cheios de flores... Tremi de febre! Venturosa folha! Quem pousasse contigo neste seio! Como Otelo beijando a sua esposa, Eu beijei-a a tremer de devaneio...
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É ela! é ela! – repeti tremendo; Mas cantou nesse instante uma coruja... Abri cioso a página secreta... Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja! Mas se Werther morreu por ver Carlota Dando pão com manteiga às criancinhas, Se achou-a assim mais bela, – eu mais te adoro Sonhando-te a lavar as camisinhas! É ela! É ela! Meu amor, minh’alma, A Laura, a Beatriz que o céu revela! É ela! É ela! – murmurei tremendo, E o eco ao longe suspirou – é ela! Álvares de Azevedo30
Antonio Candido refere-se a esse texto como aparente antídoto ao motivo dos amores intangíveis, motivo este recorrente nos outros poemas de Álvares de Azevedo.31 Atribui, ainda, ao mesmo texto, a pecha de “poema até certo ponto perverso”, argumento este desenvolvido mediante o reconhecimento de “um sentimento de classe tão antipático nesse filho família bem-educado”. Cotejando o chamado elemento burlesco com o platônico dos outros poemas do mesmo autor, Candido assim descreve a esquivança do poeta diante da mulher adormecida: “Marcando de grotesco os amores tangíveis, o poeta se exime deles, recuando-os para o impossível, da mesma forma que fez com os demais por meio da idealização extremada”. Ao prosseguir na análise, o literato afirma: “Os amores aparentememente tangíveis, a posse grosseira que reserva à ‘filha do povo’, servem para elevar mais alto o pedestal dos outros, mostrando que são belos apenas os que se perdem de todo na esfera das coisas irrealizáveis”.32 Os amores ditos tangíveis, dados como razão para afastamento do amante devido à marca grotesca neles impressa, são concretizados no poema em imagens como a do corpo que ronca, contrária àquele das outras adormecidas do poeta, em que “um suspiro tépido ressona”. A propósito, sugere o literato que ambos os corpos fazem o poeta recuar: o tangível, pela fealdade grotesca; o intangível, pela beleza platônica. Importa que o riso toma a forma de ironia e sarcasmo dirigidos à lavadeira adormecida. Importa que poeta e literato confirmam o grotesco como da ordem do repudiável. 69
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Certo que temos o destronamento daquela donzela adormecida “no leito perfumado”, virgem de cujas “pálpebras divinas” vê-se orvalhar “um pranto de amor”, tal como é dado em outro poema de Álvares de Azevedo.33 Certo também que a hiperbólica repetição do “É ela!”, no título, com o fim de imitar o eco ao longe, projeta o cômico. Certo também que a inadequação da figura do ferro de engomar nas mãos da bela dormente remete ao inacabamento da própria figura feminina. Certo, por fim, que a expectativa em relação à perfeição, recorrentemente frustrada pela substituição dos altos, como o “bilhete derramado de gentis amores”, pelos baixos, como o “rol de roupa suja”, ratifica o destronamento. Mas resultam em abstração esses mecanismos. Primeiro, porque os altos são substituídos por baixos estáticos, aliás como todo o objeto de contemplação, que em nada reage: ao longo dos versos a moça mantém-se imóvel na ocupação do espaço físico. A lavadeira permanece virgem destronada até o final do poema, quando recupera o estatuto de revelação feita pelos céus, ao ser admitida entre as mulheres excelsas: Carlota, Laura, Beatriz. Mantém-se, entretanto, o corpo esvaziado das imagens da vida material. Altos e baixos não se misturam. O próprio poema, aliás, autoriza a pensar em outras estaticidades, que fundam o ideal do corpo fechado. Escolhas enunciativas, como o apagamento de paixões advindas de ofensa sofrida por um amante recusado, enfraquecem a dinamicidade da cena narrada e enrijecem o ideal de corpo. Poderiam encetar dinamismo ao narrado paixões como a cólera e a vingança vividas pelo amante devido a uma frustração sofrida. Mas essas paixões se tornam inviáveis, pois não há, da parte da mulher contemplada, ofensa ao amante, nem há recusa na intangibilidade dada por meio do sono. Tudo se consuma na estaticidade. Poderíamos replicar que a mobilidade trazida pela seqüência ofensa, cólera e vingança incompatibilizaria o poema com o grotesco ridente, já que conduziria a cena para o sério unilateral. Temos aí um engano. O sujeito ofendido, encolerizado e em ação de vingança, pode ser dado por meio da imagem material aliada ao riso jocoso e alegre, próprio à cosmovisão carnavalesca. Isso acontecerá desde que ofensa, cólera e vingança não sejam elementos coincidentes consigo mesmos, isto é, sejam dados em contradição interior, o que abre a brecha para o “inacabamento da própria existência”. 70
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Vejamos outra criação literária, em que contracenam uma mulher inacessível e um galanteador, em passagem dada segundo o realismo grotesco e na qual se incorporam as paixões citadas. O episódio, comparativamente ao poema, valerá como indicativo do que se perdeu da cosmovisão carnavalesca no grotesco romântico. Voltamos à obra Gargântua e Pantagruel. Estamos no capítulo XXI, intitulado “De como Panúrgio se apaixonou por uma dama de Paris”. Teremos demonstradas as paixões da cólera e da vingança carnavalizadas, enquanto se apresentará a mulher inatingível aos apelos do apaixonado, por ser tempo de quaresma, “em que não se atrevem a tocar na carne”, e inatingível por ser de alta estirpe, casada e avessa aos desejos de Panúrgio, que abre a cena com sua fala:34 “Madame, seria muito útil a toda a república, deleitável para vós, honroso para a vossa estirpe, e para mim necessário, que sejais coberta pela minha raça; e podeis crer que a experiência vos demonstrará.” A estas palavras a dama recuou mais de cem léguas, dizendo: “Louco desprezível, como vos atreveis a me fazer tal proposta? Com quem pensais que estais falando? Ide e não apareçais diante de mim, pois, do contrário, eu vos farei cortar os braços e as pernas.” – “Ora, disse ele, ser-me-ia bom ter os braços e as pernas cortadas, com a condição de que fizéssemos, eu e vós, um tronco unido, juntando os manequins pela parte de baixo; pois (acrescentou, mostrando seu comprido membro) eis mestre João Quinta-feira, que vos tocará uma antiquaille que sentireis até a medula dos ossos. Ele é galante e conhece bem o seu ofício.” [...] Assim se foi [Panúrgio], sem se preocupar muito com a recusa que sofrera e não deixou de comer muito bem. No dia seguinte, ele se encontrava na igreja à hora em que ela foi à missa, e à entrada ofereceu-lhe água benta, inclinando-se profundamente diante dela; depois se ajoelhou ao seu lado, familiarmente, e disse-lhe: “Madame, sabei que estou a tal ponto apaixonado por vós que já não consigo mijar nem cagar; já imaginastes se me acontecer algum mal por vossa causa?”
No capítulo XXII, “De como Panúrgio se vingou da dama que o desdenhou”, temos a vingança de Panúrgio e a “patifaria” referida pelo narrador afirmadas no modo da carnavalização, como o foi a própria declaração amorosa recém-citada, o que significa que, de todo o relato, mantêm-se 71
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indepreensíveis quaisquer pretensões de significação incondicional. Esse episódio enfatizará a diferença do realismo grotesco diante do grotesco “de câmara”:35 Panúrgio tanto procurou de um lado para o outro, que encontrou uma cadela no cio, a qual amarrou com o seu cinto e a levou para o seu quarto, e a alimentou muito bem durante aquele dia e toda a noite; de manhã a matou e tirou aquilo que conhecem os geomantes gregos, e o partiu em pedaços os mais miúdos que pôde, levou-os bem escondidos, e foi aonde a dama devia ir acompanhar a procissão.
Panúrgio espalha o material no papel de um rondó que entrega à dama, bem como nas dobras do vestido da senhora. Despede-se, então, em tom de lamento pelas noites passadas em claro e pelos percalços e aborrecimentos a ele impostos. Não terminara de formular o adeus, quando “todos os cães que se achavam na igreja correram para aquela dama, por causa do cheiro das drogas que ele nela espalhara: pequenos e grandes, gordos e magros, todos vinham, de membro duro, e a cheiravam e mijavam em suas pernas: a maior patifaria do mundo”.36 Observamos que as paixões podem verdadeiramente ser carnavalizadas.
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Como último estágio destas reflexões serão consideradas as repercussões da cosmovisão carnavalesca no romance polifônico, reconhecido por Bakhtin na ficção de Dostoiévski. O objetivo é ratificar a carnavalização como categoria analisável nos textos. É então mister recuperar a noção de polifonia proposta por Bakhtin37 e explicitada por Bezerra38 no primeiro volume destes Conceitos-chave. A polifonia de uma obra diz respeito à multiplicidade de vozes que, orientadas para fins diversos, se apresentam libertas do centro único incorporado pela intencionalidade do autor. Por meio desse recurso temos, segundo o filósofo russo, a “interação de consciências eqüipolentes e interiormente inacabadas”39 e a “vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento”.40 Dessa maneira a polifonia viabiliza o herói (personagem) que fala com o autor e não é falado 72
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por ele; o herói com autonomia de voz e constituído como avesso à biografia “no sentido do ido e do plenamente vivido”;41 o herói carnavalizado. Não coincidente consigo mesmo, esse herói diverge de si, a identidade criada como acabamento, e do outro, o próprio autor. Por sua vez o autor, não constituído para o vezo da dominação sobre a criatura, radica-se num modo de dizer resistente a qualquer dogmatismo. Estamos diante do herói e do autor dialógicos não somente porque são dados em co-participação no ato de narrar, mas porque se entrecruzam as entonações das vozes na orientação responsiva do discurso do herói em relação ao do seu criador e viceversa. O sujeito (autor e herói), assim apresentado, revela-se no texto por meio de bruscas mudanças do agir e do ser. Revertem-se, então, as posições previstas: o autor, delegador de vozes; o herói, voz delegada; o autor, aquele que comanda; o herói, o comandado. Da parte do herói, a não coincidência consigo mesmo leva-o a um modo variado de ocupar o espaço social. Se for o jogador Aleksei Ivanovitch, teremos refletida, na voz não conclusiva, outra, a de Polina, mulher concomitantemente travada e solta no amor pelo próprio jogador. Teremos também, dada em contato interno com o mesmo Aleksei e, portanto, por meio de verdades colocadas cara a cara, outra personagem, a “avozinha” que, tal como Aleksei, se debate entre a fé e o ceticismo em relação aos que a cercam, enquanto arrisca, perde e ganha muito dinheiro na roleta da cidade de Roletemburgo. Segue transcrita cena de O Jogador, de Dostoiévski, obra à qual pertencem as personagens recém-identificadas.42 Será a passagem em que Polina, num momento de vulnerabilidade, vai ao quarto de Aleksei, que costuma oferecer-lhe dedicação quase idólatra sem nada pedir em troca. Polina relata ao rapaz que Des Grieux, um quase-vilão, fez-lhe certa cobrança urgente de cinqüenta mil francos. [O quase se compatibiliza com o princípio do inacabamento, que rege o caráter desses heróis.] Por sua vez, Aleksei, que supunha alguma atração de Polina por outro, o inglês Mr. Asteley, no começo da cena assim expressa o desejo de ajudar a moça: – Mas, então, onde buscar esses cinqüenta mil francos? – repeti, rangendo os dentes, como se fosse possível de repente apanhar o dinheiro do chão. – Escute: e Mr. Astley? – perguntei, dirigindome a ela com o princípio de uma estranha idéia. Seus olhos brilharam.
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– Mas, então, tu queres que eu te deixe por esse inglês? – disse, encarando-me com um olhar penetrante e sorrindo com amargura. Era a primeira vez que me tratava por tu. Pareceu-me que a cabeça lhe rodava de emoção: ela sentou-se de repente no sofá, como que sem forças. Foi como se um raio me atingisse. Fiquei ali de pé, sem acreditar nos meus olhos, sem acreditar nos meus ouvidos! Então, ela me amava! Tinha vindo procurar a mim e não a Mr. Astley! Ela, sozinha, uma moça, tinha vindo ao meu quarto, num hotel, comprometendo-se aos olhos de todos, e eu ali estava, diante dela, ainda sem compreender! Um pensamento louco me fulgurou na mente. – Polina! Dá-me uma hora só! Espera aqui só uma hora e... eu volto! Isto... isso é necessário! Verás! Fica aqui, fica aqui! Saí correndo do quarto, sem responder ao seu olhar interrogador; ela gritou-me alguma coisa, mas não voltei. Sim, às vezes o pensamento mais louco, o mais impossível na aparência, implanta-se com tal força em nossa mente que acabamos acreditando em sua realidade... Mais ainda: se essa idéia está ligada a um desejo forte, apaixonado, acabamos acolhendo-a como algo fatal, necessário, predestinado, como algo que não pode deixar de acontecer! Talvez ainda haja mais: uma combinação de pressentimentos, um extraordinário esforço de vontade, uma autodireção da própria fantasia, ou lá o que seja – não sei; o fato é que comigo àquela noite (que nunca na vida esquecerei) aconteceu uma aventura miraculosa. [...] Eram dez e um quarto, entrei no cassino com firme presença, e ao mesmo tempo com uma emoção como nunca experimentara. Nos salões de jogo havia bastante gente, se bem que duas vezes menos que durante o dia. Às onze horas só ficam ao redor das mesas os verdadeiros jogadores, os jogadores inveterados para os quais nas estações de águas existe uma única coisa, a roleta; que só por causa dela vieram, que mal observam o que se passa em redor, que por nada mais se interessam em toda a saison, só fazem jogar de manhã à noite e estariam prontos a jogar a noite inteira, até o amanhecer, se isso fosse possível. E é sempre com pesar que se dispersam, quando o cassino fecha à meia-noite. E quando o mais antigo dos crupiês, antes do fechamento, um pouco antes da meia-noite, anuncia: Les trois derniers coups, messieurs! – estão prontos a jogar nessas três últimas
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jogadas tudo o que têm no bolso – realmente é então que mais se perde. Dirigi-me à mesa onde estivera sentada a avozinha.
Voltemos à carnavalização. Ao propugnar essa noção organicamente combinada com a polifonia, Bakhtin destaca na poética da obra dostoievskiana o vínculo próprio com a tradição do gênero cômico-sério, o que justifica a carnavalização como algo revivido. Antes de examinar tal tradição, atentemos, porém, um pouco mais para a cena recém-citada, tal como contextualizada em O Jogador. Os movimentos carnavalescos aí se concretizam: na situaçãolimite e fronteiriça com a crise; na tangibilidade em relação aos momentos decisivos; na inconclusibilidade da voz de Aleksei, sempre responsiva à de Polina; na paixão ambivalente de Polina e nas próprias “excentricidades do tipo carnavalesco”, como diz Bakhtin em sua análise.43 Para a carnavalização, valem ainda as reviravoltas dadas num espaço do limiar, o do cassino com seus salões e mesas de apostas, onde se oferecem fortuna e miséria simultaneamente. Essas reviravoltas também compõem o tempo do limiar, correspondente tanto àquele da abertura rumo às apostas como àquele próprio ao ato de jogar. O tempo, representado no limiar das transformações vitais, apresenta-se como realidade (des)construída, à revelia das indicações dadas com precisão: eram dez e um quarto; às onze horas; um pouco antes da meia-noite. Vale ainda para a carnavalização o discurso confessional que Aleksei faz sobre si mesmo, amparado pela função de narrador-personagem. Da voz de Aleksei se depreende o entrecruzamento de outras tantas vozes, como a do indivíduo que se dá conta da própria entrega irrestrita ao pensamento “mais louco”. Acontece que a representação da autoconsciência de Aleksei poderia remeter a um sujeito tipificado como jogador compulsivo, com papel fixo e definido nas relações sociais cotidianas. Pelo contrário, Aleksei acaba por configurar-se como homem do subsolo, não incorporável à temática “normal” da vida. Esse homem do subsolo viabiliza a polifonia. Aleksei ficará milionário na jogada que sucede a cena recém-transcrita. Viajará, sem verdadeiramente querer, para Paris, “aonde vão todos os russos que ganham no jogo”, dará conscientemente toda a fortuna para Mademoiselle Blanche, com quem não frui nenhum prazer, voltará a ser miserável, para, no final, dizer: “Amanhã, amanhã acaba tudo”. 75
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Na seqüência de situações de limiar, temos mais um depoimento de Aleksei, em que se encontram em mútua relação os termos contrários entre si: idade madura/ infância e adolescência; razão/ loucura, o que subsidia a construção do herói polifônico:44 Às vezes é engraçado, pelo menos para mim. Não posso me dar conta do que se passa comigo, se realmente eu me encontro em estado de frenesi ou se simplesmente me transviei e faço bobagens enquanto não me agarram. Por momentos parece-me que perco a razão. E por momentos parece-me que saí há pouco da infância, dos bancos escolares e apenas faço grosseiras travessuras de colegial.
Os heróis de Dostoiévski, segundo Bakhtin, são gerados não só pela idéia do homem do subsolo, mas também pela idéia do herói da família casual, o que possibilita um modo próprio de profanação e destronamento. Assim “o fermento carnavalesco” se mantém nos romances polifônicos de Dostoiévski, é o que comprova o estudioso. A praça pública estará transposta, sem degeneração, para a sala de visitas, já que a forma histórica da carnavalização ora considerada é outra. Para entender esse homem do subsolo, acompanhemos, no estudo citado de Bakhtin sobre Dostoiévski, a procura da gênese da linha carnavalesca do romance no campo do cômico-sério, desde a Antigüidade. Consideremos, então, que o estudioso russo remonta ao método dialógico de Sócrates, apresentado como inicialmente o da busca da verdade, concebida como revelação nascida entre homens e afastada do monologismo oficial. Ao afirmar que “em Sócrates já podemos falar de um tipo especial de ‘diálogo no limiar’”, Bakhtin45 projeta a categoria limite vs. limiar, por meio da qual descreverá a transposição, para a literatura, do carnaval, “forma sincrética de espetáculo de caráter ritual [...], espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores”.46 O pólo do limiar, correspondente ao inacabamento, opõe-se ao do limite, correspondente ao fechamento. O limiar sustenta a carnavalização nos discursos polifônicos. Fala-se agora de uma forma alterada de inacabamento, se tomarmos como parâmetro a imagem grotesca rabelaisiana. Em Rabelais temos o inacabamento em função do riso estridente; em Dostoiévski esse efeito estará em função do cômicosério e do riso reduzido. 76
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Para demonstrar a materialização do gênero cômico-sério no romance polifônico, Bakhtin aponta não só para os diálogos socráticos, mas também para a sátira menipéia. Esse gênero, indicado em relação de convergência com o folclore carnavalesco e de divergência com gêneros sérios como epopéia e tragédia, apresenta-se impregnado da força transformadora da cosmovisão carnavalesca e sobrevive “mesmo em nossos dias”, segundo Bakhtin:47 “Aqueles gêneros que guardam até mesmo a relação mais distante com as tradições do cômico-sério conservam mesmo em nossos dias o fermento carnavalesco que os distingue acentuadamente de outros gêneros”. É importante entender o gênero cômico-sério para o reconhecimento da relação entre polifonia e carnavalização. Veremos duas cenas exemplares da sátira menipéia. Os textos foram extraídos da obra Diálogo dos Mortos, de autoria de Luciano de Samósata, satírico do fim da Antigüidade, que viveu na Grécia no segundo século d.C.48 Teremos os diálogos entre Antístenes, Diógenes e o Velho (Diálogo 27), e entre Menipo e Tirésias (Diálogo 28).49 A cena do primeiro diálogo se passa entre os heróis que decidiram dar um passeio rumo à entrada do mundo dos mortos, para verificar quem eram as pessoas que desciam e quais seriam as reações de cada uma delas. “O espetáculo pode ser divertido, ver dentre eles os que choram, os que suplicam que os soltem, alguns descendo com dificuldade e empacando – apesar de Hermes os empurrar pelo cangote – e dobrando-se para trás para oferecer resistência, inutilmente”, diz Antístenes.50 Ao longo do caminho, cada um dos interlocutores conta o que viu e como se sentiu durante sua própria descida. Podemos confirmar a fusão do sério e do cômico já na fala de Antístenes, herói que assim se comporta em relação aos outros mortos no momento da descida: “Sem fazer conta de suas choradeiras, corri na frente até a barca e ocupei antes de todos um lugar, para fazer a travessia confortavelmente.” Por sua vez Diógenes, no mesmo diálogo, relata ao interlocutor o interrogatório que dirigira a um homem extremamente idoso: DIÓGENES Por que você está chorando, se morreu com tanta idade? Por que essa indignação, nobre amigo, se está chegando aqui já velho? Acaso você era algum rei?
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VELHO De modo algum! DIÓGENES Um sátrapa, então? VELHO Nem isso. DIÓGENES Então vai ver que você era rico e o que te aflige é estar morto, tendo abandonado muita luxúria? VELHO Nem isso. Ao contrário, eu cheguei aos noventa anos levando uma vida sem recursos, vivendo da vara e do anzol, pobre demais, sem filhos, e ainda por cima era manco e enxergava mal. DIÓGENES E você queria viver ainda, em tais condições? VELHO Sim! A luz era doce e a condição de morto é uma coisa horrível, que se deve evitar. DIÓGENES Você não bate bem, velho, e se comporta como um adolescente rebelde diante do inevitável, apesar de ter a mesma idade que o barqueiro. O que se haveria de dizer, então, a respeito dos moços, quando homens de tanta idade, que deviam perseguir a morte como um remédio para os males da velhice, são amantes da vida!
Tendo narrado esse episódio, Diógenes convida os comparsas para ir embora, pois “ficar rodeando a entrada” poderia, segundo ele, gerar desconfiança sobre algum planejamento de fuga. De modo abrupto se encerra o Diálogo 27, para que se apresente o outro, entre Menipo e Tirésias, o adivinho que tinha sido mulher, não-estéril mas sem filhos, e de cujas partes, um dia, enquanto criava barba, “brotou um membro masculino” (Diálogo 28). Perguntado se não mentia, o adivinho lembra ao interlocutor as mulheres que “se tornaram aves, ou árvores ou feras”. O texto, que apresenta fusões variadas, promovendo o encontro entre o sublime e o rasteiro, tem no início da cena ora recortada a fala do inquiridor:
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MENIPO [Você] aprendeu a ser homem e adivinho ao mesmo tempo? Tirésias Está vendo? Você ignora tudo a meu respeito! Ignora até que solucionei uma discussão entre os deuses, que Hera me tornou cego e que Zeus compensou minha desgraça com a arte da adivinhação. MENIPO E você ainda sustenta essas mentiras, Tirésias? Mas você age assim à maneira dos adivinhos! É costume de vocês dizer insanidades.
Conforme os estudos que constam do prefácio à obra de Luciano, é identificável, no diálogo dos mortos, outro, o filosófico, o qual Luciano “teria feito andar com os pés no chão” e no qual se apresenta “o riso cômico sob a gravidade filosófica”.51 Diremos, com apoio em Bakhtin, que esse diálogo dos mortos propõe o limiar como modo de presença carnavalizada. O limiar está no espaço da entrada ao mundo dos mortos e no tempo da morte “vivido” nesse mundo. Desse tempo a vida cotidiana não se exclui, como fica demonstrado em ações de outro herói, o guerreiro que, morto em combate sobre um cavalo, por não querer andar a pé na descida para aquele mundo, pede pelo animal morto juntamente com ele, como relata Crates (Diálogo 27). O limiar está também na simultaneidade dos elementos, esta que é a base da duplicidade de cada um deles, assim apresentados: homem/ mulher; insanidade/ razão; pranto/ galhofa; constrangimento/ conforto; deuses/ figuras históricas. O limiar está ainda na dimensão da relatividade, para a qual entra tanto a espoliação sofrida em vida pelo nonagenário pobre e sozinho, como a luz da vida, considerada doce. O limiar está, por fim, no exercício de experimentação da verdade, depreensível diretamente das falas de Menipo e Tirésias, e indiretamente das situações extraordinárias ligadas à visita ao mundo dos mortos. As cenas narradas apresentam-se libertas tanto do caráter previsível de luto, como das exigências daquilo que Bakhtin chama verossimilhança externa e que permite compreender a verdade objetivada com pretensão de acabamento e transparência. Constatam-se nessas cenas “a combinação orgânica do diálogo filosófico, do elevado simbolismo, do fantástico, da aventura e do naturalismo de submundo”, conforme aponta Bakhtin.52 Vale a conexão entre verdade e carnavalização, o que será adiante retomado. 79
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Frisemos por ora os diálogos no limiar (do Olimpo e do Inferno) dados na sátira menipéia e definidos por Bakhtin como subsídios da linha dialógica da prosa romanesca de Dostoiévski. Da vinculação desses diálogos com a carnavalização, o filósofo russo abstrairá um princípio classificatório para diferentes modalidades da própria carnavalização, do qual resultam estas categorias: carnavalização externa/ carnavalização interna; paraíso carnavalesco/ inferno carnavalesco. Tomando este último par opositivo para análise da composição do herói dostoievskiano, vemos que, para o paraíso, está reservado o herói dado por meio da alegria própria à integridade ingênua; para o inferno, está o herói dado por meio da sombra da culpa e do tormento. A noção do limiar constitui ambos igualmente. Para heróis ancorados no limite, Dostoiévski não dedica nem o paraíso nem o inferno carnavalescos. A eles é reservada a ironia. Observemos esta cena, que se abre com referência ao que Totski pensa de si mesmo. Serão narradas as sensações de Afanássi Ivánovitch, o Totski, diante de Nastácia Filíppovna, que fora seduzida por ele na adolescência e entre gargalhadas naquele momento se rebelava. Temos à mão o romance O Idiota.53 Mais que tudo no mundo, ele amava e apreciava a si, a sua tranqüilidade e conforto, como cabia a um homem decente ao extremo. Não se podia admitir a mínima violação, o mínimo abalo naquilo que durante a vida inteira foi se estabelecendo e tomara essa forma tão maravilhosa. Por outro lado, a experiência e a visão profunda das coisas sugeriram a Totski, com muita brevidade e uma certeza extraordinária, que agora ele estava diante de um ser absolutamente fora do comum, precisamente daquele ser que não só ameaça mas sem falta cumpre e, o principal, não se detém terminantemente diante de ninguém, ainda mais porque não aprecia decididamente nada no mundo, de sorte que nem seduzi-lo é possível. Pelo visto, aí havia algo diferente, pressupunha-se alguma coisa intragável da alma e do coração – algo como uma indignação romântica sabe Deus com quem e por quê, como um insaciável sentimento de desprezo totalmente fora da medida –, em suma, algo extremamente ridículo e inadmissível numa sociedade decente.
O ser “absolutamente fora do comum”, resistente à sedução por ser dotado de um “sentimento de desprezo totalmente fora da medida”, é Nastácia. Sabemos disso por meio do narrador, cuja voz é invadida por 80
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outra, a de Totski, o herói. Define-se assim a bivocalidade da palavra do narrador, para o que contribuem recursos advindos do emprego do discurso indireto livre. Provam-no o uso do pronome demonstrativo “essa” no lugar de “aquela”, a expressão avaliativa “sabe Deus com quem e por quê” e o trecho de síntese final “em suma, algo extremamente ridículo e inadmissível numa sociedade decente”. Quem pensa a sociedade com tal decência é o herói, não o autor, comprova-se no texto e na obra. O discurso indireto livre viabiliza, nesse caso, a ironia que alveja o herói. Dessa maneira, o que corresponde à voz de Totski é desqualificado, para que sejam ratificados pontos de vista contraditórios e dados em concomitância: o do herói e o do autor. Totski passa a manter-se mais nas mãos do autor do que outros heróis como a própria Nastácia, que tem assegurada para si a última palavra. Totski é, portanto, menos dialógico do que Nastácia; a última palavra não será a dele, mas a do autor, que o avalia ironicamente. Esse herói se consolida no limite. Emparelhado com a natureza de Totski, está o general Ivan Fiódorovitch, pai de Aglaia. Esse homem, segundo o narrador, merecia respeito da sociedade por ser rico e bastante decente, embora limitado. Dostoiévski ironiza, enquanto generaliza:54 “Um certo embotamento da inteligência parece ser uma qualidade quase indispensável, senão de todo e qualquer homem de ação, pelo menos de todo sério ganhador de dinheiro”. Totski e o general não são dados segundo a “função carnavalizadora da imagem do Príncipe Míchkin” (e de Nastácia), é o que nos autoriza pensar Bakhtin.55 Vejamos outra cena de O Idiota, da qual emergem o príncipe Míchkin, de miserável a rico herdeiro na virada de uma noite, e Nastácia Filíppovna, a mulher que desencadeará no príncipe “idiota” sensações simultâneas de intimidade e estranhamento, enfeixadas, tais sensações, por um fio contínuo de inevitável fascínio. Acrescenta-se que o príncipe amará, como irmão, juntamente com Nastácia, Rogójin, seu rival em relação a ela, bem como Aglaia, a bela que se define como moça concomitantemente acessível e inacessível a Míchkin. A “inconveniência” de personalidade e comportamento excluem tanto o príncipe como Nastácia das relações comuns da vida. É daquele, entretanto, o paraíso, e é desta o inferno carnavalesco, afirma Bakhtin.56 Para Míchkin, o “idiota”, a integridade ingênua é impeditiva da aceitação da vida no seu aspecto definitivo. Para Nastácia, a “louca”, as contradições internas orientam a 81
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existência pela depressão. Uma atmosfera luminosa, quase alegre, cerca Míchkin; uma atmosfera sombria, infernal, cerca Nastácia, diz Bakhtin. O próprio estudioso, no entanto, autoriza o olhar analítico sobre Nastácia e Míchkin como, cada qual a seu modo, reflexo e refração dos atores do Diálogo dos Mortos, em que o cômico se impregna do filosófico “sem tirar os pés do chão”. Estamos diante de heróis que, em conjunto, são dados em função das últimas e universais questões da vida e da morte, e também são dados em relação de hostilidade diante de qualquer desfecho definitivo. Nastácia, especificamente, espelha outro morto do diálogo da sátira menipéia de Luciano. Trata-se de Ismenodoro que, segundo o relato de Crates (Diálogo 27),57 fora “assassinado por bandidos nos arredores do Citerão”. Esse morto, segundo Crates, “gemia com as mãos no ferimento, chamava os filhos, que deixara pequeninos, e recriminava a si próprio por ter ousado atravessar o Citerão”. Em tormento paralelo dá-se Nastácia. A cena que será agora recortada de O Idiota58 ocorre na casa em que Míchkin se hospedara, levado por Gânia, que havia pedido Nastácia em casamento, por outros interesses, que não o amor. Gânia, após ter ofendido gratuitamente o príncipe, discutia com a mãe e a irmã, as quais se negavam receber Nastácia. Esta, por sua vez, seduzida na sua adolescência pelo rico senhor da sociedade, Totski, como já foi dito, mantinha-se até então como sua concubina, sem o ser verdadeiramente. Nastácia deveria naquela noite dar o aceite a Gânia. Nesse primeiro encontro com o príncipe, ela terá um comportamento não usual com aquele que julga ser um criado. O príncipe, contudo, já se encontrava encantado pela mulher que contemplara em fotografia. Chegamos, como anunciado anteriormente, à sala de visita carnavalizada. Ele [o príncipe] atravessou a sala em direção à ante-sala, a fim de chegar ao corredor, e daí ao seu quarto. Ao passar ao lado da porta de entrada que dava para a escada, ouviu e notou que do outro lado da porta alguém fazia todos os esforços tentando tocar a sineta; mas pelo visto havia nela alguma coisa danificada: ela apenas estremecia levemente, mas não tinha som. O príncipe puxou o ferrolho, abriu a porta e – recuou maravilhado, chegando até a estremecer por inteiro: à sua frente estava Nastácia Filíppovna. Ele a reconheceu imediatamente pelo retrato. Os olhos dela chamejaram numa explosão de irritação quando ela o viu; ela passou rapi-
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damente para a ante-sala, empurrando-o do caminho com o ombro, e disse colérica, arrancando o casaco de pele: – Se tem preguiça de consertar a sineta devia ficar pelo menos na ante-sala quando estão batendo. Vejam, agora deixou o casaco cair, bobalhão. O casaco realmente estava no chão; sem esperar que o príncipe lhe tirasse das costas, ela mesma o lançou nos braços dele sem olhar, por trás, mas o príncipe não conseguiu segurá-lo. – Tu precisas ser posto na rua. Vai, comunica [quem acaba de chegar]! O príncipe quis dizer alguma coisa mas estava tão perdido que nada conseguiu pronunciar e foi para a sala de visitas levando o casaco que apanhara do chão. – Vejam só, agora está indo com o casaco! Por que está levando o casaco? Quá-quá-quá! Ora, tu és louco?
Observam-se como elementos de carnavalização na composição das personagens: o encontro entre contrários que se olham mutuamente para refletir-se um no outro; o contraste entre o maravilhamento de um e a explosão de irritação de outro; o contato interno e familiar estabelecido entre os dois desconhecidos; a inoportunidade do comportamento de ambos, acompanhada por certa disposição para revelar-se; a entronização e o destronamento; a coexistência de contrários. Sobre o espaço e o tempo, nota-se que a ante-sala se vincula a um tempo que favorece mudanças radicais, para que se confirme o limiar. A propósito, é interessante observar como Bakhtin se expressa a respeito desse episódio: “É característica a breve cena acentuadamente carnavalesca na ante-sala, no limiar, quando aparece inesperadamente Nastácia Filíppovna e confunde o príncipe com um criado e o destrata grosseiramente”.59 No episódio subseqüente ao da ante-sala, reúnem-se na sala, além de Míchkin e Nastácia, o pai de Gânia, que é um general semi-embriagado e que insiste em contar histórias malucas e imediatamente desmentidas pelos ouvintes, mais a turma mista e embriagada de Rogójin, mais os anfitriões e, entre os convivas, ainda Ferdischenko, que faz repetidas diabruras e provocações. Bakhtin designará essa reunião na sala de visita como “exageradamente carnavalesca”, o que faz supor graus de carnavalização na composição de cenas. Dirá então que “a sala de visitas dos Ivolguin se transforma em praça pública carnavalesca, onde se cruzam e se entrelaçam pela primeira vez o paraíso carnavalesco de Míchkin e o inferno carnavalesco de 83
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Nastácia Filíppovna”.60 O estudioso classificará, então, Ferdischenko e o general Ivolguin, personagens regidas pela inconseqüência escandalosa, como “figuras carnavalescas externas”, o que permite a identificação desses heróis em relação a figuras carnavalescas internas, tais como Míchkin e Nastácia, dados estes últimos segundo o “carnaval-mistério”. Este último remete ao Diálogo dos Mortos, de Luciano. Por sua vez, o tempo em que se inserem todas as cenas dostoievskianas citadas dura um dia e toma a primeira parte do romance, esta que “começa no raiar da manhã e termina tarde da noite”. Esse é o tempo carnavalesco, “como que excluído do tempo histórico”. Diz Bakhtin que os acontecimentos dados no limiar e, portanto, em seu profundo sentido interno, acompanhados de heróis como Míchkin, não poderiam ser revelados no tempo biográfico e histórico comum. O filósofo acrescenta que a polifonia, entendida como “ocorrência de consciências eqüipolentes e interiormente inacabadas” requer concepção própria de tempo e espaço, o que equivale a “uma concepção ‘nãoeuclidiana’”.61 Destaca-se que a carnavalização do espaço liga-se ao clima carnavalesco do herói e ambos, espaço e herói, vinculam-se ao tempo das metamorfoses radicais e revelações decisivas: o tempo carnavalizado.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Chegam ao fim estas reflexões sobre a literatura que consegue transpor a linguagem do carnaval para o campo da ficção e aí instalar a visão carnavalesca de mundo. Fica registrada a carnavalização como movimento de desestabilização, subversão e ruptura em relação ao “mundo oficial”, seja este pensado como antagônico ao grotesco criado pela cultura popular da Idade Média e Renascimento, seja este pensado como modo de presença que aspira à transparência e à representação da realidade como sentido acabado, uno e estável, o que é incompatível com a polifonia. De Rabelais a Dostoiévski, fica patente a transformação sofrida pela noção de carnavalização nos estudos de Bakhtin. A obra de cada um desses clássicos, considerada como resposta às transformações sociais e históricas, somente confirma a variação semântica do próprio discurso. O topos burguês sala de visita, como elemento semântico histórico, não se coaduna com 84
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o discurso do realismo renascentista. Entretanto, esse mesmo topos, por meio de uma variação do ritual de coroação e destronamento, pode transformar-se em espaço carnavalizado. Nesse topos, tal como tratado pela poética de Dostoiévski, diz Bakthin que “por um instante as pessoas se vêem fora das condições habituais de vida, como na praça pública carnavalesca ou no inferno, e então se revela um outro sentido – mais autêntico – delas mesmas e das relações entre elas”.62 O inferno carnavalesco, constituinte das contradições internas do herói dado na sala de visitas, radica-se no gênero cômico-sério, de cuja materialização tivemos a sátira menipéia de Luciano. Esse inferno faz não crer num mundo de evidências e inquestionabilidades. Guia-se, isto sim, para a desconstrução da realidade dada como transparência, ao desestabilizar a verdade dada como acabamento. Para isso, o discurso multiplica indagações sobre o rumo da vida depois e, simultaneamente, antes da morte. Muita coisa fica fora do lugar habitual, na evolução da temática para as últimas questões existenciais, enquanto se firmam na opacidade do sentido os heróis dados em diálogo, seja no mundo dos mortos (inferno menipéico), seja no mundo dos vivos (inferno na sala de visitas), postos ambos os mundos na relação cara a cara. Por sua vez, o efeito recorrente do absurdo e da surpresa poderia viabilizar críticas que se referissem a tais cenas infernais como “inverossímeis em termos reais e artisticamente injustificadas”, segundo apontamentos de Bakhtin.63 É curioso que o filósofo tenha feito essa alusão à crítica contemporânea a ele, com o fim de rebater avaliações similares a respeito de cenas de escândalos do romance de Dostoiévski. Para a réplica às inverossimilhanças alegadas com base nas cenas de escândalo e excentricidade de Dostoiévski, Bakhtin confirma nos romances em questão a “verdade artística” sustentada na linha carnavalesca. Por conseguinte, as noções de “verdade artística” e de carnavalização encontram-se para mútuo subsídio. Tudo indica que a linha carnavalesca da prosa literária remete à chamada experimentação da verdade, o que, nos estudos sobre a sátira menipéia foi classificado como provocação filosófica. Diz Bakhtin:64 A particularidade mais importante do gênero da menipéia consiste em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura
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são interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim puramente filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica.
No rastro da provocação e da experimentação filosófica ancora-se a verdade carnavalizada. Com apoio nos estudos bakhtinianos, conclui-se que a experimentação da verdade, tal como exercida pela menipéia, dá-se, no romance polifônico, no modo próprio de projetar o herói, o tempo e o espaço como elementos do limiar. Ressalta-se que, no quadro teórico proposto por Bakhtin, essas categorias discursivas são descritas semanticamente. Por isso é considerado o tempo das metamorfoses radicais, o espaço da abertura para movimentos vitais decisivos, o herói de consciência autônoma e, portanto, não dado como mero objeto do autor. Tais elementos assim tratados remetem ao diálogo interno, fundante da carnavalização, e ao espaço emblemático da sala de visitas, constituído no limiar entre a vida e a morte, a mentira e a verdade, a razão e a loucura. Pelo que temos visto a respeito do herói, do tempo e do espaço carnavalizados no romance polifônico, entendemos que a experimentação da verdade, herança da sátira menipéia, orienta-se para um tipo peculiar de contrato entre autor e leitor, compatível com o limiar da própria verdade.65 Retomemos, então, a título de encerramento, a composição da imagem da heroína Nastácia. Temos a cena de um embate que, investido do traço de fatalidade, é travado entre Aglaia, “a grã-senhorinha”, e Nastácia (O Idiota). Observa-se que esta, dolorosamente destratada por aquela, proclama aos gritos e com “o rosto morto e deformado” a posse sobre o príncipe. Acrescenta-se que a própria Nastácia tentara aproximar esse homem de Aglaia e que a mesma Nastácia fugira dele muitas vezes e assim continuou fazendo até o fim:66 “É meu! É meu! – bradou ela! – A grã-senhorinha orgulhosa foi embora? Quá-quá-quá! – ria num ataque de histeria. – Quá – quá-quá! Eu o havia dado àquela senhorinha? E para quê? Para quê? Louca! Louca!... Vai embora, Rogójin, quá-quá-quá!” É da carnavalização externa a risada escandalosa e a fala entrecortada de exclamações. É da carnavalização interna a negação da equação A = A, naquilo que essa negação fundamenta a definição do caráter de Nastácia. Não
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coincidente consigo mesma, a heroína põe em crise a verdade dogmática; não previsível nas próprias ações e reações, provoca o efeito de não-reconhecimento; não tipificável, confirma o próprio inacabamento. Nastácia, heroína segundo a qual nada é fixo e imutável, concretiza o herói dado no modo da carnavalização interna. Verdade não dogmática e carnavalização interna são noções que se amparam mutuamente. Para o esclarecimento da categoria carnavalização externa/ carnavalização interna proposta por Bakhtin, contribuem, então, as noções de “verdade artística” e de verossimilhança interna. É à carnavalização interna que o russo vincula a cosmovisão carnavalesca profunda, tal como se verifica em Nastácia e Míchkin; é à carnavalização externa que Bakhtin mantém ligada a forma “um tanto simplificada da carnavalização”, expressão esta usada em momentos como a referência ao emprego do tema fantástico em Bobok67 e também em momentos como a caracterização das figuras de Ferdischenko e o general Ivolguin;68 aquele, que só faz diabruras; este, que vive semi-embriagado: ambos e, cada qual a seu modo, tão idênticos a si mesmos, que se afastam de contradições internas, do inacabamento do próprio ser no mundo e do limiar. A estrutura do herói dado na coexistência e na simultaneidade de contrários consolida a verossimilhança interna. A essa estrutura pode juntar-se o entrecruzamento de entonações diferentes na voz do narrador, a fim de que se consolide a experimentação da verdade e a carnavalização interna para a construção do herói e do autor. É oportuno observar outra passagem de O Idiota, como exemplo da voz do autor dada como responsiva à voz do leitor. No contexto da narração, quem não coincide consigo mesmo será agora o próprio narrador, o qual discorre sobre o ato de narrar para desconstruí-lo e assim confirmar a carnavalização interna vinculada a esse ato: Passaram-se duas semanas depois do acontecimento narrado no último capítulo e a situação das personagens de nossa história mudou a tal ponto que nos seria sumariamente difícil continuá-la sem explicações particulares. Não obstante, sentimos que devemos nos limitar a uma simples exposição dos fatos, na medida do possível sem maiores explicações e por um motivo muito simples: porque em muitos casos nós mesmos temos dificuldade de explicar o ocorrido. Esse aviso de nossa parte deve parecer muito estra-
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nho e vago ao leitor: como narrar aquilo de que você não tem uma noção nítida nem opinião pessoal? Para não nos colocarmos em uma situação ainda mais falsa, o melhor é tentarmos nos explicar exemplificando, e talvez o leitor bem intencionado compreenda a nossa dificuldade, ainda mais porque esse exemplo não será uma digressão, mas, ao contrário, uma continuação direta e imediata da história.69
O desabafo subsidia a imagem do autor não centralizado, nem centralizador, nem tampouco conclusivo, seja no que diz respeito à voz dos heróis, seja no que diz respeito à própria voz. Esse desabafo também diz respeito à imagem do autor compromissado com a representação da verdade como experimentação, para o que contribui a assunção explícita da narrativa como ato em construção. Sai robustecida a imagem do inacabamento tanto do narrado como do próprio ato de narrar, o que permite confirmar a carnavalização da imagem do autor. Autor e leitor da cena recém-transcrita, tal como dados pelo narrador, fortalecem a polifonia; aquele, ao conversar com o leitor; este, ao ser dado como quem pode escutar e responder. A experimentação da verdade, posta em função do ato de narrar, demonstra uma vez mais a carnavalização interna. Procedimentos afins podem ainda ser verificados na passagem de Os Demônios, que segue transcrita.70 Identifica-se na cena a coexistência e a simultaneidade dos tempos passado, presente e futuro, para que se firme o tempo do limiar: o narrador fará com que o passado seja recordado e vivido como presente, enquanto o futuro vira passado, o que aprofunda a carnavalização interna: “Esse dia de amanhã, isto é, o próprio domingo em que devia decidir-se irremediavelmente o destino de Stiepan Trofímovitch, foi um dos mais notáveis de minha crônica”. Vamos à cena: Saí. Um pensamento inverossímel se consolidava mais e mais em minha imaginação. Pensava com tristeza no amanhã... [...] Esse “dia de amanhã”, isto é, o próprio domingo em que devia decidir-se irremediavelmente o destino de Stiepan Trofímovitch, foi um dos mais notáveis dias de minha crônica. Foi um dia de surpresas, um dia de desfechos do velho e de desencadeamento do novo, de vários esclarecimentos e de ainda mais confusão. Pela
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manhã, como o leitor já sabe, eu estava obrigado a acompanhar meu amigo à casa de Varvara Pietrovna, conforme ela mesma havia marcado, e às três horas já deveria estar em casa de Lizavieta Nikoláievna para lhe contar – eu mesmo não sei o quê – e ajudála – eu mesmo não sei em quê. Enquanto isso, tudo se resolveu de um modo que ninguém havia suposto. Em suma, foi um dia de coincidências surpreendentes.
Antes de proceder ao exame do tempo, pensemos no não-saber do narrador sobre o narrado. Ao falar do agora do ato de narrar, com os olhos voltados ao passado, o narrador é previsto como aquele que sabe tudo sobre o vivido. Não é, entretanto, o que acontece. É no desconhecimento sobre o que foi contar a Lizavieta e em que foi ajudá-la que se mantém o narrador. Com a corroboração do não-saber do narrador (“não sei”, duas vezes afirmado), confirma-se como semanticamente inacabado o próprio passado; isso, à revelia do uso das formas verbais do pretérito perfeito, que encerram a passagem: “tudo se resolveu; foi um dia de coincidências surpreendentes”. Por meio da utilização de tais recursos, narrador e passado narrado são mantidos na ambigüidade carnavalesca profunda. Como já foi ressaltado, estamos no âmbito da carnavalização interna, para o que contribui a neutralização dos tempos. Destaca-se, ainda, a neutralização da oposição futuro do pretérito (deveria)/ pretérito imperfeito (devia). Este tempo, usado no lugar daquele, respalda o efeito de certeza, mas, ao ratificar a instabilidade temporal, consolida o inacabamento e, com ele, a verossimilhança interna: “Esse dia de amanhã, isto é, o próprio domingo em que devia [deveria] decidir-se irremediavelmente o destino de Stiepan Trofimovitch, foi um dos mais notáveis de minha crônica”. Atentemos um pouco mais para essa verossimilhança: “Pensava com tristeza no amanhã. Esse dia de amanhã foi um dos mais notáveis de minha crônica”. “Amanhã”, advérbio usado para exprimir a posterioridade em relação ao momento presente, é da ordem do futuro; no entanto, na cena narrada, o “dia de amanhã” vira passado, como já observamos: “foi um dos mais notáveis”. Rompe-se, então, uma vez mais, a verosssimilhança externa, esta que poderia ter sido viabilizada de tantas maneiras, como por meio do uso do presente: Esse ‘dia de amanhã’ é um dos mais notáveis de minha crônica. Com essa hipótese, ficaria confirmada a concomitância do narrado em 89
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outros conceitos-chave
relação ao agora do ato de narrar. Na cena de Os Demônios fica, entretanto, neutralizada a oposição presente vs. passado, em benefício deste último. Com isso confirma-se a destruição da previsilibilidade e da fixidez, para que se instaure a carnavalização do ato de narrar.71 Há ainda uma outra hipótese, também formulada sob a perspectiva do acabamento e da verossimilhança externa: Esse dia foi um dos mais notáveis da minha vida. Eliminada a expressão “de amanhã” (futuro) e “minha crônica” (presente), teríamos o encadeamento temporal dado sem desestabilizações na anterioridade. Notamos, contudo, que não interessam estabilidades vinculadas à univocidade e ao limite, nem para a polifonia da obra de Dostoiévski, nem para o realismo grotesco da obra de Rabelais. Para que possa ser arquitetada a carnavalização de maneira própria em cada uma das totalidades referidas, é imprescindível a ambivalência estrutural das imagens. A função carnavalizadora do herói, do tempo e do espaço articula-se a um sistema de representação que se afasta da fixidez e do acabamento. Ao fim destas notas que fique então a noção do limiar como elemento constituinte da carnavalização. Entretanto, anteriormente a isso, que fique a constatação de que a carnavalização é categoria que pode ser depreendida e analisada nos textos de qualquer época. Certamente cobra pesquisa a descrição do riso reduzido, considerado como efeito de sentido dos textos. É preciso procurar entender, para que se possa fruir a percepção carnavalesca do mundo a partir da sala de visita.
NOTAS 1
Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, trad. Yara Frateschi Vieira, São Paulo, Hucitec, 1987, p. 343.
2
Idem, p. 344.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, ibidem.
5
Mikhail Bahtin, Problemas da Poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1981.
6
Idem, ibidem.
7
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 138-9.
8
François Rabelais, Gargântua e Pantagruel, trad. David Jardim Júnior, Belo Horizonte, Hitatiaia, 2003.
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9
As passagens transcritas, que dizem respeito ao episódio da ressurreição, encontram-se na obra recém-citada de Rabelais (2003), entre as páginas 363 e 369.
10
Respeitou-se em todas as transcrições o uso das aspas tal como apresentado na fonte.
11
As citações que dizem respeito ao parto encontram-se na obra indicada de Rabelais (2003), entre as páginas 253 e 255.
12
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, pp. 28-9.
13
Idem, ibidem.
14
Idem, ibidem.
15
Rabelais, op. cit., 2003, pp. 732-4.
16
As citações que dizem respeito ao episódio dos papafigas encontram-se na obra indicada de Rabelais (2003), entre as páginas 724 e 733.
17
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, pp. 22-3.
18
Idem, ibidem.
19
Idem, p. 268.
20
Idem, p. 17.
21
Idem, p. 45.
22
Erasmo de Rotterdam, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreio, Lisboa, Estampa, 1978, pp. 100 -4.
23
Roman Jakobson, Lingüística e Comunicação, trad. Isidoro Blinkstein e José Paulo Paes, São Paulo, Cultrix, 1970.
24
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, p. 26.
25
Mikhail Bakhtin e Voloshinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira, São Paulo, Hucitec, 1988, p. 46.
26
Idem, p. 41.
27
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1987, p. 27.
28
Idem, p. 25.
29
Idem, pp. 29, 33.
30
Álvares de Azevedo, Poesias Completas de Álvares de Azevedo, São Paulo, Saraiva, 1957, pp. 219-20.
31
Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos), 3. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1969, v. 2, pp. 182-3.
32
Idem, ibidem.
33
Álvares de Azevedo, op. cit., 1957, pp. 56-7.
34
François Rabelais, op. cit., 2003, p. 328.
35
Idem, pp. 332-5.
36
Idem, p. 334.
37
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981.
38
Paulo Bezerra, Polifonia, em Beth Brait (org.), Bakhtin: conceitos-chave, São Paulo, Contexto, 2005, pp. 191-200.
39
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 153.
40
Idem, p. 16.
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outros conceitos-chave
41
Idem, p. 23.
42
Fiódor Dostoiévski, O Jogador (do diário de um jovem), trad. Moacir Werneck de Castro, 6. ed., Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2002, pp. 144-6.
43
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 149.
44
Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2002, p. 54.
45
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 95.
46
Idem, p. 105.
47
Idem, p. 92.
48
Luciano de Samósata (Luciano), Diálogo dos Mortos, trad. e notas de Maria Celeste Consolin Dezotti, São Paulo, Hucitec, 1996, pp. 173-83.
49
Segundo notas da edição consultada da obra de Luciano, temos esclarecimentos a respeito dos heróis: Antístenes (personagem histórica) foi discípulo de Sócrates, viveu de 445 a 365 a.C. É o fundador da escola cínica. Diógenes (personagem histórica) dito filósofo cínico, discípulo de Antístenes, converteu-se numa das figuras mais populares da Antigüidade. Em Atenas, morava num tonel e costumava andar com uma lanterna à procura de um homem de verdade. Hermes (personagem mitológico) foi mensageiro dos deuses, era o único deus que transitava pelos três mundos, o céu, a terra e o mundo dos mortos. Menipo (personagem histórica) é tido também como filósofo cínico do século III a.C. e celebrizou-se como o criador da “sátira menipéia”. Tirésias (personagem mitológico) é o mais célebre dos adivinhos gregos. Como revelou a Zeus que de dez partes do prazer sexual a mulher experimentava nove e o homem uma só, Hera enfureceu-se e puniu-o com a cegueira. Zeus, em recompensa, concedeu-lhe o dom da profecia. Foi o único mortal que viveu os dois sexos: foi homem e foi mulher.
50
Todas as passagens transcritas do Diálogo dos Mortos encontram-se na obra citada de Luciano, 1996, nas páginas já indicadas.
51
Luciano, op. cit., 1996, p. 15.
52
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 99.
53
Fiódor Dostoiévski, O Idiota, trad. Paulo Bezerra, São Paulo, Editora 34, 2003, p. 65.
54
Idem, p. 368.
55
Mikhail Bakhtin, op. cit., 1981, p. 151.
56
Idem, p. 152.
57
Luciano, op. cit., 1996, p. 175.
58
Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2003, pp. 130-1.
59
Mikhail Bakhtin, 1981, p. 152.
60
Idem, ibidem.
61
Idem, p. 153. (Essa indicação cobre todas as citações do parágrafo.)
62
Idem, p. 125.
63
Idem, p. 126.
64
Idem, p. 98.
65
José Luiz Fiorin desenvolveu interessante estudo sobre diferentes tipos de contratos enunciativos, dados em função da representação da verdade e da realidade em obras literárias. Trata-se do artigo intitulado “Crise de representação ou aumento de complexidade? O exemplo do romance” (2005, cópia xerog.). Esse estudo aprofunda a análise do trabalho com a linguagem na literatura.
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66
Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2003, p. 635.
67
Mikhail Bakhtin, 1981, op. cit., p. 126.
68
Idem, p. 152.
69
Fiódor Dostoiévski, op. cit., 2003, p. 636.
70
Fiódor Dostoiévski, Os Demônios, trad. Paulo Bezerra, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 157.
71
Sobre Neutralização entre Tempos Verbais, ver Fiorin, op. cit., 1966, pp. 191-228.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas de Álvares de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 1957. BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1981. _______. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira, São Paulo/Brasília: Hucitec/UnB, 1987. _______, Voloshinov. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1988. BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, pp. 191-200. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, v. 2, 1969. DOSTOIÉVSKI, F. Mikhailovitch. O Jogador: (do diário de um jovem). Trad. Moacir Werneck de Castro. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. _______.O Idiota. 2. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2003. _______. Os Demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2004. FIORIN, José Luiz. As Astúcias da Enunciação. São Paulo: Ática, 1996. _______. Crise da Representação ou Aumento da Complexidade? O Exemplo do Romance. Cópia xerog., 2005. LUCIANO. Diálogo dos Mortos. Trad. e notas de Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo: Hucitec, 1996. R ABELAIS , François. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Hitatiaia, 2003. ROMAN, Jakobson. Lingüística e Comunicação. 4. ed. Trad. Isidoro Blinkstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970. ROTTERDAM, Erasmo. A Civilidade Pueril. Trad. Fernando Guerreiro. Lisboa: Estampa, 1978.
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Cronotopo e exotopia Marilia Amorim
Cronotopo e exotopia são dois conceitos de Bakhtin que falam da relação espaço-tempo. O primeiro foi concebido no âmbito estrito do texto literário; o segundo refere-se à atividade criadora em geral – inicialmente à atividade estética e, mais tarde, à atividade da pesquisa em Ciências Humanas. Os dois conceitos, construídos em momentos distintos, tratam da relação espaço-tempo de modo também distinto, mas, apesar disso, em nenhum momento do pensamento bakhtiniano, eles se substituem. Permanecem, ao longo de sua obra, como dois modos possíveis de abordar essa relação. A tradução da expressão em russo para o francês exotopie foi proposta por Todorov1 naquela que foi a primeira obra a sistematizar, para a Europa Ocidental, o pensamento de Bakhtin. Talvez pela sua importância no trabalho de difusão e de introdução no Ocidente da obra de Bakhtin, a tradução de Todorov ficou consagrada. Alguns tradutores a criticam pelo seu
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outros conceitos-chave
caráter estranho à língua portuguesa e mesmo ao idioma russo. Mas consideramos que, do ponto de vista do enunciado e não da língua, a expressão forjada por Todorov é bastante feliz, pois sintetiza o sentido que se produz na obra de Bakhtin e que é o de se situar em um lugar exterior. A idéia de um lugar exterior, fundamental ao trabalho de criação e de objetivação, já aparece no primeiro grande texto de Bakhtin, o “Para uma filosofia do ato”. Mas seu texto de base é “O autor e o herói”, publicado na coletânea Estética da criação verbal. Esses dois textos indicam que a idéia de exotopia começou a ser concebida a partir de 1919 e que tomou forma entre 1922 e 1924. Veremos, adiante, que o conceito de cronotopos é engendrado e formulado em um ensaio escrito entre 1937 e 1938, portanto mais de dez anos depois.2 A criação estética expressa a diferença e a tensão entre dois olhares, entre dois pontos de vista. Se tomarmos o exemplo do retrato, em pintura, falaremos do olhar do retratado e do olhar do retratista ou artista. O trabalho deste último consiste em dois movimentos. Primeiro, o de tentar captar o olhar do outro, de tentar entender o que o outro olha, como o outro vê. Segundo, de retornar ao seu lugar, que é necessariamente exterior à vivência do retratado, para sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus valores, sua perspectiva, sua problemática. O retratado é aquele que vive cada instante de sua vida como inacabado, como devir incessante. Seu olhar está voltado para um horizonte sem fim. O sentido da vida para aquele que vive é o próprio viver. O retratista tenta entender o ponto de vista do retratado, mas não se funde com ele. Ele retrata o que vê do que o outro vê, o que olha do que o outro olha. De seu lugar exterior, situa o retratado num dado ambiente, que é aquilo que cerca o retratado, e em relação ao qual é situado pelo artista. O ambiente é uma delimitação dada pelo artista, uma espécie de moldura que enquadra o retratado. A delimitação do artista dá um sentido ao outro, fornece uma visão do outro que lhe é completamente inacessível. Não posso me ver como totalidade, não posso ter uma visão completa de mim mesmo, e somente um outro pode construir o todo que me define. Os acontecimentos maiores que definem minha existência, meu nascimento e minha morte, não me pertencem. Porque, para que ganhem sentido de acontecimento, precisam ser situados em relação a um antes e a um 96
Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM
depois. E não posso estar antes do meu nascimento nem depois de minha morte. O que faz Bakhtin dizer que “ninguém é herói de sua própria vida”. Somente posso me constituir como herói no discurso do outro, na criação do outro. O outro que está de fora é quem pode dar uma imagem acabada de mim e o acabamento, para Bakhtin, é uma espécie de dom do artista para seu retratado. O acabamento aqui não tem sentido de aprisionamento, ao contrário, é um ato generoso de quem dá de si. Dar de sua posição, dar aquilo que somente sua posição permite ver e entender. Um interessante exercício para trabalhar o conceito de exotopia é tentar observar um retrato que Picasso fez de uma de suas mulheres, Dora Mäar. Sabemos que Picasso teve várias mulheres e que delas fez vários retratos, mas entre os vários que pintou desta mulher, este se tornou o mais conhecido. Chama-se A mulher que chora e foi concluído no final de 1937. Primeiramente, é preciso dizer que a própria estética do cubismo coloca em cena uma multiplicidade de olhares. Mais do que o objeto em si, o que se vê são os múltiplos olhares possíveis sobre um objeto. O que poderíamos tomar como deformação do objeto é, na verdade, um certo corte do objeto e de alguns de seus ângulos. Como o próprio Picasso disse, “eu pinto o que penso e não o que vejo”. Essa estética rompe com a idéia de um objeto idêntico a ele mesmo, o que permitiria um olhar estável. Assim, ele restitui o movimento do sentido do objeto pela restituição do movimento do olhar. Em tensão direta com essa abertura a possíveis e infinitos olhares, há o gesto exotópico de acabamento e totalização pelo olhar do artista. Para Picasso, neste quadro, Dora Mäar é a mulher que chora. Ela é definida pelas suas lágrimas, pelo seu choro, e toda a composição do retrato está a serviço desta única idéia. Todos os elementos participam na criação do todo: o rosto decomposto, sacudido, animalizado, terrível, é o próprio retrato do choro e do sofrimento.3 A beleza feminina, tantas vezes cantada e pintada, é aqui literalmente desfeita. A decomposição dos traços, os traçados rápidos e espessos das linhas constroem, então, um outro movimento. O movimento do choro, do rosto sendo abalado e sacudido pelo sofrimento e pela convulsão das lágrimas. O movimento do olhar e da decomposição da figura presentifica o movimento do corpo de quem chora. O movimento do 97
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outros conceitos-chave
sofrimento é dado na totalização que cria o artista do olhar do outro. O próprio retrato inspira terror, porque Dora Mäar está aterrorizada pelo que vê, pelo que olha. Pode-se dizer que uma das razões do sucesso desse retrato é que ele passou, de certo modo, a representar o choro ou o sofrimento da mulher em geral. Ou ainda, o choro e o sofrimento da humanidade em geral. Enfim, a totalização exotópica do artista criou, a partir de uma mulher singular, em uma situação particular, um sentido abstrato e universal. Alguns dados da história permitem consolidar nossa leitura bakhtiniana dessa obra. Picasso e Dora Mäar eram comunistas militantes e, no momento do retrato, estamos em plena Guerra Civil Espanhola. Em maio/junho do mesmo ano, Picasso finaliza o famoso painel Guernica. Painel este que se inspirou em fotos da guerra de jornais da época. Dora Mäar também era artista, fotógrafa e criadora de montagens cubistas. Ela fotografou as diferentes fases do painel Guernica, enquanto este estava sendo feito por Picasso. Pode-se então dizer que Dora Mäar olha a guerra e que Picasso restitui o que vê do olhar de Dora Mäar olhando a guerra. Passando agora para a história individual da personagem, outras coincidências com nossa leitura aparecem. Sabe-se por inúmeros documentos que Dora Mäar era uma mulher que foi se tornando cada vez mais depressiva. Ao final de sua vida, a depressão tomou conta dela e ela tornou-se louca. Pode-se dizer que Picasso, de seu lugar exterior, captou algo de profundo e essencial dessa mulher. E que até anteviu que as lágrimas e o sofrimento viriam efetivamente a definir o sentido da existência de Dora Mäar. O conceito de exotopia é também muito importante para o trabalho de pesquisa em Ciências Humanas. As Ciências Humanas são entendidas por Bakhtin como ciências do texto, pois o que há de fundamentalmente humano no homem é o fato de ser um sujeito falante, produtor de textos. Pesquisador e sujeito pesquisado são ambos produtores de texto, o que confere às Ciências Humanas um caráter dialógico. Uma primeira conseqüência disto é que o texto do pesquisador não deve emudecer o texto do pesquisado, deve restituir as condições de enunciação e de circulação que lhe conferem as múltiplas possibilidades de sentido. Mas o texto do pesquisado não pode fazer desaparecer o texto do pesquisador, como se este se eximisse de qualquer afirmação que se distinga do que diz o pesquisado. 98
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Picasso, retrato de Dora Mäar. 99
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outros conceitos-chave
O fundamental é que a pesquisa não realize nenhum tipo de fusão dos dois pontos de vista, mas que mantenha o caráter de diálogo, revelando sempre as diferenças e a tensão entre elas. Importante ressaltar que esse diálogo não é simétrico e aqui reaparece o conceito de exotopia. O pesquisador deve fazer intervir sua posição exterior: sua problemática, suas teorias, seus valores, seu contexto sócio-histórico, para revelar do sujeito algo que ele mesmo não pode ver. No âmbito da cultura, a exotopia é o motor mais potente da compreensão. Uma cultura estrangeira não se revela em sua completude e em sua profundidade que através do olhar de uma outra cultura [e ela não se revela nunca em toda sua plenitude, pois outras culturas virão e poderão ver e compreender mais ainda]. [...] Face a uma cultura estrangeira, colocamos perguntas novas que ela mesma não se colocava. Procuramos nelas uma resposta a essas questões que são as nossas, e a cultura estrangeira nos responde, nos desvelando seus aspectos novos, suas profundidades novas de sentido. Se não colocamos nossas próprias questões, nos desligamos de uma compreensão ativa de tudo que é outro e estrangeiro [trata-se, bem entendido, de questões sérias, verdadeiras].4
Em seus últimos escritos, o valor do conceito de exotopia para a pesquisa é confirmado pelo modo como Bakhtin analisa o trabalho de compreensão do texto do outro: Em um primeiro momento, a tarefa consiste em compreender a obra como a compreendia o próprio autor, no interior dos limites da compreensão que lhe era própria. Dar conta desta tarefa é difícil e necessita geralmente que se recorra a um material considerável. Em um segundo momento, a tarefa consiste em tirar partido de sua exotopia temporal e cultural – incluir a obra em seu próprio contexto (estrangeiro ao autor).5
Como já dissemos, o conceito de exotopia, embora possa designar uma posição no tempo, por exemplo, de um pesquisador que analisa um texto de outra época, enfatiza a dimensão espacial. Essa ênfase não é casual. O conceito está relacionado à idéia de acabamento, de construção de um todo, o que implica sempre um trabalho de fixação e de enquadramento, como uma fotografia que paralisa o tempo. O espaço é a 100
Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM
dimensão que permite fixar, inscrever o movimento ou, dito de outra forma, a dimensão em que o movimento pode se escrever e deixar suas marcas. A fixação é o resultado de todo trabalho de objetivação, seja científico ou artístico, pois esse trabalho distingue dois sujeitos e duplica seus respectivos lugares: o daquele que vive no instante e no puro devir e o daquele que lhe empresta um suplemento de visão por estar justamente de fora. Por mais provisória que possa ser a objetivação produzida, ela implica sempre o extrair-se do puro movimento. Isto não significa que o autor ou o pesquisador vivem fora do tempo e dos acontecimentos. Mas o acontecimento do qual o pesquisador participa já é um outro: é o acontecimento do próprio pensar. Nesse acontecimento, o autor ocupa um lugar singular e único que o constrange a se responsabilizar, face ao outro, pelo seu pensamento. Ao assinar seu pensamento ou sua obra, o autor a torna não-indiferente: dota-lhe de valor no contexto. Interessante notar que o acabamento daquilo que é por natureza inacabado, a objetivação e o excedente de visão, acessíveis somente por exotopia, são os mesmos elementos que constituem o estilo do autor. Beth Brait,6 em seu artigo sobre o conceito dialógico de estilo, coloca a seguinte epígrafe de Bakhtin: “Onde o poeta achou esse ponto? Onde ele se encontra e de onde observa?”
E mais adiante, o estilo é assim definido: Chamamos estilo a unidade constituída pelos procedimentos empregados para dar forma e acabamento ao herói e ao seu mundo [...].7
Vemos assim que assinatura em Bakhtin é algo que designa a singularidade do autor na relação de alteridade colocada por um dado contexto social. Ela é, ao mesmo tempo, originalidade e responsabilidade. Em relação ao estilo, Brait lembra que se “ele é o homem”, no dito de Buffon conhecido por todos, em Bakhtin, ele é pelo menos duas pessoas ou mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social. Do mesmo modo, o conceito de exotopia designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro. 101
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outros conceitos-chave
A criação estética ou de pesquisa implica sempre um movimento duplo: o de tentar enxergar com os olhos do outro e o de retornar à sua exterioridade para fazer intervir seu próprio olhar: sua posição singular e única num dado contexto e os valores que ali afirma. Quanto ao conceito de cronotopos, este traz no nome um maior equilíbrio entre as dimensões de espaço e de tempo. Bakhtin toma-o emprestado à matemática e à teoria da relatividade de Einstein para exprimir a indissolubilidade da relação entre o espaço e o tempo, sendo este último definido como a quarta dimensão do primeiro. O cronotopos em literatura é uma categoria da forma e do conteúdo que realiza a fusão dos índices espaciais e temporais em um todo inteligível e concreto. Os índices do tempo descobrem-se no espaço e este é percebido e medido de acordo com o tempo.8
Assim, por exemplo, o cronotopos da estrada, em um certo tipo de romance, indica o lugar onde se desenrolam as ações principais, onde se dão os encontros que mudam a vida dos personagens. No encontro, a definição temporal (naquele momento) é inseparável da definição espacial (naquele lugar). A estrada é, portanto, o lugar onde se escande e se mede o tempo da história. A cada vez, é preciso voltar a ela para que o tempo avance. Analogamente, encontramos no âmbito do cinema um tipo de filme que se convencionou chamar de road movie. O termo designa aqueles filmes que se desenrolam inteiramente na estrada. Um bom exemplo da filmografia recente é Diários de motocicleta, em que, por assim dizer, a personagem histórica que irá se tornar Che Guevara revela-se na experiência da estrada e se forja na temporalidade da viagem. Entretanto, quando lemos o texto básico do conceito de cronotopos, descobrimos que há na verdade uma inversão com relação ao conceito de exotopia. Aqui, o elemento privilegiado é o tempo. Esse privilégio é formulado brevemente e entre parênteses. Em todas as análises que se seguem, concentraremos nossa atenção no problema do tempo (princípio primeiro do cronotopos) [...].9
Ao longo de todo o texto, Bakhtin deixa claro que deseja saber, em cada época da história do romance, como o problema do tempo é trata102
Cronotopo e exotopia MARILIA AMORIM
do ou qual é a concepção de tempo que vigora. A concepção de tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova temporalidade, corresponde um novo homem. Parte, portanto, do tempo para identificar o ponto em que este se articula com o espaço e forma com ele uma unidade. O tempo, conforme já indicamos, é a dimensão do movimento, da transformação e, várias vezes nesse ensaio, vemos Bakhtin analisar a natureza da metamorfose a que é submetido o herói. Por exemplo: identifica a metamorfose por crise, a metamorfose da prova e assim por diante. Em todos os casos estamos diante de uma análise que põe em relevo a relação alteração/identidade. As questões centrais da história do romance são: como o herói se torna outro? Como é obrigado a passar por outro? Como o herói acaba por ser identificado ou que provas lhe são exigidas para que confirme sua identidade? Estamos, portanto, no campo das transformações e dos acontecimentos. E este é o campo do tempo. Não por acaso, Bakhtin segue uma linha (evolutiva?) de análise que se tece entre dois pontos precisos da história. Começa com o romance grego, cujo tempo é voltado para um passado mítico estável e em que o herói atravessa todas as provas permanecendo idêntico a ele mesmo. Termina com o cronotopos de Rabelais, da cultura popular e do carnaval. Ora, o ponto final opõe-se assim ao inicial, pois o movimento se torna máximo e a metamorfose radical. Em seu estudo maior dedicado a Rabelais e à cultura popular,10 Bakhtin explica que o verdadeiro herói do carnaval é o tempo. Diferentemente da literatura que trata do indivíduo e em que se encontram múltiplos tempos correspondentes aos diferentes indivíduos e às diferentes esferas de suas atividades, na cultura popular e no carnaval, o tempo é coletivo. Ou seja, o sujeito da cultura popular é o sujeito coletivo. Seu espaço é a praça pública, espaço de todos. O coletivo remete aqui à idéia de uma sociedade sem classes em que todos compartilham do trabalho e, por conseguinte, compartilham do tempo. Tempo compartilhado, porque suposto como anterior e posterior à sociedade de classes. Esse tempo compartilhado, porém, se distingue também do tempo mítico, o qual se volta para um passado que é sempre o mesmo. Aqui o tempo integra o passado e o futuro mais longínquos, para ressignificá-los a 103
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cada vez. Tempo de transformações incessantes e inevitáveis, em que as gerações desempenham um papel fundamental de transmissão e de superação. Tempo que se define como grande temporalidade, pois projeta a humanidade e o mundo para um além do contexto conhecido e representado. As hierarquias e os poderes estabelecidos são contingentes e serão transformados. Esse tempo é maior do que todos porque é utópico da abertura de novas possibilidades. Renovação dos sentidos do passado e criação de sentidos futuros. Aqui, o sentido não morre, já que se inscreve em um espaçotempo de permanente abertura às transformações. Como a terra da semeadura e da colheita, o espaço da praça pública acolhe tanto os ciclos cósmicos quanto as sucessões históricas. Aqui, a morte é o que engendra a vida e a vida é o que vai morrer. O corpo não é o corpo individual e biográfico, mas é a carne do mundo. Aqui, os ideais e os valores não pertencem a um mundo abstrato, mas se materializam e tomam forma nos elementos da vida. Em resposta direta à ordem religiosa medieval do tempo de Rabelais, no carnaval não é preciso matar o corpo ou condenar a matéria ao que é pecaminoso e sujo para alcançar a outra esfera, seja ela mundo das idéias ou mundo da alma. A morte não começa nada, e não conclui nada de essencial no mundo coletivo e histórico da vida humana.11
Chegamos a um ponto em que Bakhtin parece dialogar consigo mesmo. Ao contrário do que diz em seu texto de base sobre o conceito de exotopia, a morte na cultura popular não designa um acontecimento constitutivo nem definitivo. Mas, justamente, no texto sobre exotopia, a morte e o nascimento dizem respeito à constituição do indivíduo ou do herói, que somente pode ser herói para um outro sujeito, para aquele que o representa e o totaliza. Já no carnaval, estamos no âmbito do sujeito coletivo, do povo na rua e da rua no tempo. A diferença entre o conceito de cronotopo e o de exotopia não constitui uma contradição. Quando Bakhtin retoma, nesse mesmo texto dedicado ao conceito de cronotopo, a questão da criação e do lugar do autor, as idéias apresentadas no texto dedicado ao conceito de exotopia permanecem as mesmas. Ele distingue o tempo que representa do tempo representado para responder à seguinte questão: a partir de que ponto espaço-temporal o au104
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tor considera os acontecimentos que narra? Responde, então, reafirmando enfaticamente o conceito de exotopia, embora sem nomeá-lo. Mesmo no caso de uma escrita autobiográfica ou confessional, o autor permanece de fora do mundo que é por ele representado. Se narro (ou relato por escrito) um acontecimento que acaba de me acontecer, já me encontro, enquanto narrador (ou escritor), fora do tempo e do espaço onde o episódio ocorreu. A identidade absoluta de meu “eu” com o “eu” de que falo é tão impossível quanto suspender-se a si próprio pelos cabelos. Por mais verídico, por mais realista que seja o mundo representado, ele não pode nunca ser idêntico, do ponto de vista espaço-temporal, ao mundo real, àquele que representa, àquele onde se encontra o autor que criou essa imagem.12
Esse trecho prova que os dois conceitos, longe de se substituírem, completam-se ao tratarem de domínios distintos. O conceito de exotopia trata da questão da criação individual. Desde seu esboço em Para uma filosofia do ato, este é um conceito que visa consolidar duas teses. A primeira, que irá atravessar todo o pensamento bakhtiniano, diz que o estético e o epistemológico, isto é, a criação artística e a criação de conhecimentos, são irredutíveis ao um. Há sempre no mínimo dois que não se misturam, que não se fusionam: dois olhares, o que em outros textos de Bakhtin irá corresponder a duas vozes (no mínimo). E quando, em uma obra qualquer, se ouvem vozes, ouvem-se também, com elas, mundos: cada um com o espaço e o tempo que lhe são próprios. A segunda tese trazida com o conceito de exotopia afirma que a criação é sempre ética, pois do lugar singular do criador derivam-se valores. O conceito de cronotopo trata de uma produção da história. Designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem. Está ligado aos gêneros e a sua trajetória. Os gêneros são formas coletivas típicas, que encerram temporalidades típicas e assim, conseqüentemente, visões típicas do homem. Por exemplo: Bakhtin mostra que à visão do sujeito individual e privado corresponde um tempo individualizado e desdobrado em múltiplas esferas: o tempo de cada um dos sujeitos, em função de suas múltiplas vivências. Já numa visão do homem como sujeito público, que se define inteiramente pela esfera social, 105
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corresponde um tempo coletivo e único: tempo partilhado por todos em esferas comuns de atividade. Podemos então concluir que, no trabalho de análise dos discursos e da cultura, quando conseguimos identificar o cronotopo de uma determinada produção discursiva, poderemos dele inferir uma determinada visão de homem. Determinadas produções culturais facilitam essa tarefa, pelo seu poder de síntese e por sua precisão, e podem, assim, nos ajudar a identificar o que poderíamos chamar de cronotopo contemporâneo. Se tomarmos como exemplo o cinema do iraniano Kiarostami, encontramos algo de sistemático a esse respeito. Em muitos de seus filmes,13 uma grande parte das cenas se passa no interior de um carro ou na visão exterior de um carro. Pode-se dizer que o carro desempenha em seus filmes um verdadeiro papel de cronotopo, pois é ali que o tempo da ação se escande e avança. Isso nos convida a refletir sobre a possibilidade de entender o carro como um dos principais cronotopos do mundo contemporâneo e que, com ele, uma visão de homem se afirma. O carro é um lugar fechado, idêntico a si mesmo, que atravessa lugares abertos. Freqüentemente, vemos em seus filmes, imensos espaços no campo recortados por uma pequena estrada e a visão minúscula de um carro ao longe. Com o carro, é possível mudar de lugar, sem mudar de lugar. Atravessar diferentes paisagens tendo sempre o mesmo ângulo de visão. Em Através das oliveiras (1994), a câmera restringe o ângulo de visão à janela da Kombi, o que faz com que várias vezes se perca a visibilidade do outro que ficou pra trás ou do rosto que é mais alto do que a janela. O outro é obrigado a se abaixar e enquadrar o rosto na janela do carro para poder dialogar com o motorista impassível e ereto em seu volante. Com o carro encontramos o outro: outro lugar, outra cultura, outras pessoas, de dentro de nosso mundo, recobertos por nossa carapaça. Com ele, podemos ir mais longe do que a pé ou a cavalo, e, sobretudo, estamos protegidos e exercemos um maior controle daquilo que poderia interferir em nossa viagem. Nosso contato com o outro obedece às condições ditadas pelo “estar de carro”. O carro nos torna mais independentes do outro. Levando a imagem ao extremo, podemos evocar os carros de turismo que vemos em nosso cotidiano, circulando pelas cidades dos diferentes países: os viajantes permanecem entre si, ouvindo e falando sua própria lín106
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gua. No ônibus, sentem-se “em casa” e é dessa pequena janela que observam o mundo. O desenvolvimento e o monopólio da indústria automobilística condenam o sujeito contemporâneo ao carro. Assim, tornou-se possível a contradição de viajar sem sair de casa. Mas o cinema de Kiarostami não se conforma com essa visão de homem. Ao contrário, ele desmonta essa lógica, introduzindo justamente o princípio da alteração dentro do carro. A grande viagem, dentro desse lugar idêntico a si mesmo que é o carro, se dá pelo diálogo com o outro. Os diálogos são a ação, os diálogos são o que transforma. Pode-se mesmo dizer que, nos filmes de Kiarostami não acontece nada, nada além de diálogos. Nada além da trama delicada e tensa de um diálogo, em que se buscam respostas, em que se busca dar sentido, no qual há enigmas a decifrar. O outro é, por princípio, opaco. Opacidade que contradiz inteiramente o valor de “transparência” que se afirma nas formas atuais de comunicação. Em O gosto da cereja (1996), o personagem-motorista quer se suicidar e, com cada um que sobe em seu carro, ele conversa a respeito. Ele está à procura de alguém que o queira enterrar o que, evidentemente, coloca um enigma. Outro aspecto importante é que os carros de Kiarostami não correm nunca. Ao tempo da velocidade que o carro poderia proporcionar, opõe-se o tempo lento que um verdadeiro diálogo exige. Ao contrário do carro que aparece nos filmes de ação e de aventura do mundo contemporâneo, o carro aqui não exibe performance nem precisão. Muitas vezes é um carro velho ou claudicante. O que importa é o diálogo que pode ocorrer dentro dele. Diálogo no sentido bakhtiniano que não tem nada de harmônico e que é muito mais uma arena. Discussões, discordâncias, mas também um profundo entendimento. Mas é um entendimento que altera. A personagem do diretor em Através das oliveiras decifra, nas conversas de carro, o enigma que ela encontra no outro. Por que os habitantes daquela paisagem tão bonita e tranqüila preferem morar na beira da estrada? Porque, dizem eles, durante o terremoto que ali aconteceu, salvaram-se aqueles que estavam mais próximos do contato externo. Uma outra lógica, a da sobrevivência, sobrepõe-se àquela de quem está a passeio e que prefere os lugares calmos e isolados. Por que o rapazinho analfabeto não quer casar com uma moça analfabeta? Porque, 107
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diz ele, um casal deve ser complementar. Ele, que é marceneiro, poderá construir a casa para morar, e a esposa, que tiver estudos, poderá ajudar os filhos na escola. A descoberta de outras lógicas diferentes da sua transforma o ponto de vista do diretor. O carro em Kiarostami é, assim, o cronotopo a partir do qual se dão as transformações de sentido. O filme que melhor condensa essa idéia não se passa no campo, mas na cidade, e isso faz com que as paisagens exteriores desapareçam quase por completo. O filme inteiro se passa dentro de um mesmo carro, o que não deixa de ser uma maneira de sublinhar o fato de que o homem da cidade passa a maior parte do seu tempo dentro de um carro. Trata-se do filme Dez (2001), que consiste em dez diálogos da personagem-motorista com outros. Nada mais acontece além disso. O acontecimento, mais uma vez, é a produção de sentido. A motorista e dona do carro é uma mulher que vive grandes conflitos com seu filho pequeno, depois de ter se separado do marido e pai da criança. Entre os dois há grandes discussões, pois o menino argumenta muito bem. Como a iniciativa da separação foi dela, o menino a acusa de egoísta. E durante todo o filme há uma reflexão, através dos diálogos com dez personagens diferentes, a respeito da condição da mulher: sua relação com o casamento, com o trabalho, com os filhos. O que claramente remete à questão da condição feminina nas sociedades orientais, mas que também se dirige a uma problemática geral da mulher contemporânea. Em contraponto com Dez encontra-se O vento nos levará (1999). Neste último, o lugar principal não é ocupado pela palavra, mas pela imagem e, mais precisamente, pela paisagem, por sinal, lindíssima. Esse é o filme de maior cronotopia do cinema de Kiarostami. Aqui, os diálogos são importantes, como sempre, mas o diálogo mais importante se dá entre o carro e a paisagem, entre a imagem e a ação. É a história de uma equipe de cinema que chega em um vilarejo iraniano para fazer um documentário sobre uma cerimônia tradicional ligada à morte e ao enterro dos habitantes deste vilarejo. Mas esse objetivo não pode ser relatado aos habitantes e também não é explicado ao expectador que somente compreende no final do filme. Enquanto espera a morte de uma velhinha que está quase morrendo, o diretor do documentário vai conhecendo e interagindo com a comunidade. Mais uma vez no cinema de 108
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Kiarostami, o principal acontecimento é dado pelas alterações recíprocas. E, mais uma vez,14 é o próprio cinema que chega interferindo na vida de uma comunidade, a qual acaba por se deixar transformar. O principal diálogo, porém, como já dissemos, não se dá entre os personagens. A paisagem e o vilarejo são lindíssimos e cada cena é uma obra de arte, com sua luz, suas cores, suas formas. O carro atravessa as imagens como um puro meio de transporte, utilitário, que permite o acesso mais rápido aos lugares. O carro é metonímia da equipe que se impacienta por poder filmar o enterro e a cerimônia, para poder voltar para casa. O carro e o telefone celular são as marcas do mundo contemporâneo, da pressa, do desejo de “maximizar” as ações e o controle sobre os acontecimentos. A eles se opõem um espaço-tempo arcaico: a comunidade com seus costumes e a arquitetura do vilarejo branco incrustado na colina. Ao tempo acelerado do personagem do diretor com suas máquinas contrapõe-se o ritmo lento do vilarejo e da câmera de Kiarostami. E enquanto o personagem do diretor tenta agir, as imagens nos convidam a simplesmente olhá-las. O diretor vai se interessando e se deixando alterar, pelo vilarejo. Ao final, a velhinha melhora e sua equipe se impacienta para ir embora, enquanto ele faz de tudo para ficar um pouco mais. A velhinha melhorou com os remédios receitados por um médico que passava pela região e foi o próprio diretor do documentário quem foi comprá-los. Esse médico, já significativamente idoso, circula pela região em uma mobilete: uma mobilete é bem menor e menos potente que um carro; nela, tudo é aberto e, praticamente, não há fronteira entre quem está nela e o espaço que é atravessado. Esse mesmo médico dá carona ao diretor e lhe explica, durante o caminho, que o melhor dessa vida é poder apreciar a beleza do mundo. Detalhe: o médico dá esta explicação ao documentarista recitando um poema enquanto dirige a mobilete. E as imagens de Kiarostami desse espaço-tempo do vilarejo são como um poema visual. Para terminar, é como se o filme tivesse sido feito de encomenda para os analistas bakhtinianos: as últimas imagens são do rio da região. O rio correndo por entre as margens, sabemos todos, é uma imagem consagrada universalmente como metáfora do tempo que passa.
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Paisagem com carro (filme do Kiarostami) com o título do filme: “O vento nos levará” (1999). A utilização de um retrato como exemplo para o conceito de exotopia e a de um carro para o conceito de cronotopo foi intencional. Queríamos mostrar, com a gravura, uma forma de arte que fixa no espaço e, com o cinema, a imagem do movimento. Essa diferença de ênfase, colocada ora no tempo ora no espaço, parece indicar dois aspectos fundamentais que se alternam no pensamento bakhtiniano e que constituem na verdade os pólos extremos entre os quais suas idéias se movem: acabamento e inacabamento, totalização e abertura. No interior do conceito de exotopia, aparece a alternância entre acabamento e inacabamento. Tensão que se torna, às vezes, contradição. No primeiro texto de sistematização do conceito, “O autor e o herói”, Bakhtin critica Dostoiévski por não assumir uma posição exotópica e manter sua voz em pé de igualdade com a dos personagens. Nesse momento, para Bakhtin, o acontecimento estético é acabamento e totalização e o que os torna possíveis é a exotopia. Mas todos sabemos que, um pouco depois, em 1929, o livro dedicado à obra de Dostoiévski15 faz do inacabamento e do diálogo aberto entre autor e personagens o próprio princípio da 110
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polifonia literária. Para esta contradição, podemos encontrar uma resposta em um dos últimos textos, apostando, assim, que o que foi dito por último é o que vale: O discurso do autor (real), daquele que opera a representação (se esse discurso ocorre) é, em seu princípio, um discurso de tipo particular que não pode se situar no mesmo plano que o discurso dos personagens. Esse discurso é, precisamente, quem determina a unidade última da obra e é sua instância última de sentido, por assim dizer, sua última palavra.16
Bakhtin está distinguindo o discurso exotópico do autor, da imagem do autor representada no texto. Esta última é que está lado a lado com as imagens das personagens e que com elas dialoga no interior da obra. Portanto, a aparente contradição se resolve por uma distinção de planos: o plano do criador e o plano da criatura. O autor do texto é autor representado, o que significa que ele é uma personagem como as demais. Portanto, o autor que dialoga com as personagens em pé de igualdade no romance polifônico, é a personagem do autor e não o criador. E a criação supõe a exotopia do criador. Além da resposta que Bakhtin apresenta, gostaríamos de sugerir uma resposta mais geral para a presença dos pólos opostos e das alternâncias no pensamento de Bakhtin. Ele seria, segundo nossa leitura, um pensador das tensões17 que unem e que, ao mesmo tempo, separam os diferentes pólos do discurso e da cultura. A tensão em Bakhtin não é algo negativo nem algo a ser superado. Ao contrário, ela é constitutiva da criação humana, porque ela é o que atesta a presença do outro, daquele que não se identifica comigo, daquele que me escapa e a quem minha palavra se dirige. Do mesmo modo, em se tratando de cronotopo e exotopia, eles seriam, seguindo nossa hipótese, conceitos que colocam em cena, ao mesmo tempo, a indissolubilidade e a diferença entre dimensão espacial e dimensão temporal. Para terminar, gostaríamos de indicar um outro aspecto dos conceitos aqui trabalhados. Como ocorre freqüentemente no pensamento bakhtiniano, os conceitos de exotopia e cronotopo parecem estar sujeitos a uma gradação. Há textos mais cronotópicos do que outros. O uso do substantivo denotando propriedade e, conseqüentemente, originando o 111
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adjetivo, é do próprio Bakhtin, em um texto redigido na mesma época, entre 1936 e 1938, mas publicado apenas no volume póstumo Estética da criação verbal. Trata-se de um ensaio sobre Goethe18 que, provavelmente, seria publicado juntamente com o ensaio sobre cronotopo que examinamos anteriormente. Nesse texto, Bakhtin fala de autores ou de literaturas profundamente cronotópicos e analisa, particularmente, a cronotopia19 excepcional de Goethe. Na obra desse autor, tempo e espaço são indissolúveis e concretos – um lugar geográfico preciso corresponde a um acontecimento histórico trabalhado pelo homem. Isso distingue, por exemplo, a natureza descrita por Goethe da natureza descrita por Rousseau. Embora neste último ela apareça igualmente humanizada, o tempo que se marca não é histórico e concreto, mas é um tempo idealizado, tempo do idílio ou tempo utópico de uma idade de ouro estável. Bakhtin está propondo, portanto, que a existência de uma maior ou menor capacidade do texto ou do autor de revelar a indissolubilidade entre a geografia (ou topologia) e a história (ou a temporalidade). A capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no espaço e, simultaneamente, de perceber o preenchimento do espaço sob a forma de um todo em formação, de um acontecimento, e não sob a forma de uma tela de fundo imutável ou de um dado pronto. A capacidade de ler em todas as coisas – seja na natureza ou nos costumes do homem e até em suas idéias (em seus conceitos abstratos) –, os índices da marcha do tempo.20
Assim, podemos dizer que é pertinente falar do cinema de Kiarostami como sendo dotado de grande cronotopia. As paisagens são concretamente iranianas e, ao mesmo tempo, mostram uma história e uma temporalidade específicas do campo e dos trabalhadores rurais. Em contraste com o espaço do carro que é puro movimento, é o próprio tempo da cidade que se contrapõe e se deixa alterar pelo tempo/espaço do campo. Do mesmo modo, podemos dizer que, na pintura e no retrato, determinadas composições ou concepções estéticas permitem uma visibilidade maior ou menor da exotopia entre o autor e seu herói. O choque primeiro que causa o retrato de Dora Mäar pela feiúra, pela deformação ou pela monstruosidade atribuídas a uma mulher bela e amada, atesta uma estética onde se rompe qualquer coincidência entre olhares. Retrato altamente exotópico, 112
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em que se desfaz toda ilusão de correspondência entre o objeto do olhar e o olhar que o representa, por um lado, e, por outro, entre o que vê um sujeito e o que se pode ver do que ele vê.
NOTAS 1
T. Todorov, Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique, Paris, Seuil, 1981.
2
As datas aqui mencionadas são as fornecidas por Todorov na lista cronológica dos escritos de Bakhtin e de seu Círculo. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique, op. cit., pp. 173-4.
3
Comparar, por exemplo, com a escultura de Rodin, O choro, onde reencontramos essa mesma “feiúra” do rosto. Museu Rodin de Paris.
4
M. Bakhtin, Les études littéraires aujourd’hui, em Esthétique de la création verbale, op. cit, p. 348, traduzido por mim.
5
M. Bakhtin, Les Carnets. 1970-1971, em Esthétique de la création verbale, op .cit, p. 365, traduzido por mim.
6
B. Brait, Estilo, em B. Brait, (org.), Bakhtin: conceitos-chave, Contexto, São Paulo, 2005.
7
Brait cita Bakhtin in op cit, p. 87.
8
M. Bakhtin, Formes du temps et du chronotope dans le roman (essais de poétique historique), em Esthétique et théorie du roman, Paris, Gallimard, 1978, p. 237, traduzido por mim.
9
Idem, p. 239.
10
M. Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais, São Paulo, Hucitec, 1987.
11
M. Bakhtin, Formes du temps et du chronotope, op. cit, p. 348, traduzido por mim.
12
Idem, p. 396.
13
Ver, por exemplo, Où est la maison de mon ami?, Através das oliveiras, O gosto da cereja e Dez.
14
A outra vez é em Através das oliveiras.
15
M. Bakhtin, La poétique de Dostoiévski, Paris, Seuil, 1970.
16
M. Bakhtin, Le problème du texte, em Esthétique de la création verbale, op. cit, p. 327, traduzido por mim. Segundo a cronologia de Todorov, este texto foi escrito entre 1959 e 1961.
17
Desenvolvemos essa idéia em nosso livro O pesquisador e seu outro. Bakhtin nas Ciências Humanas, São Paulo, Musa, 2001.
18
M. Bakhtin, O romance de aprendizagem na história do realismo, em Estética da criação verbal, op. cit.
19
Idem, p. 249, traduzido por mim. Em francês, o termo utilizado é chronotopicité; optei por cronotopia, por me parecer mais simples do que um eventual cronotopicidade.
20
Idem, p. 232, traduzido por mim.
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REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa, 2001. BAKHTIN, M. La poétique de Dostoiévski. Paris: Seuil, 1970. __________. Formes du temps et du chronotope. In: ________. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978. __________. Les études littéraires aujourd´hui. In: _________. Esthétique de la creation verbale. Paris: Gallimard, 1984. __________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. __________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRAIT, B. Estilo. In: ______ (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. TODOROV, T. Mikhaïl Bakhtine: le príncipe dialogique. Paris: Seuil, 1981.
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Diálogo Renata Coelho Marchezan A vida [...] não afeta um enunciado de fora; ela penetra e exerce influência num enunciado de dentro, enquanto unidade e comunhão da existência que circunda os falantes e unidade e comunhão de julgamentos de valor essencialmente sociais, nascendo deste todo sem o qual nenhum enunciado inteligível é possível. A enunciação está na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela, por assim dizer, bombeia energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa lingüisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único. Finalmente, o enunciado reflete a interação social do falante, do ouvinte e do herói como o produto e a fixação, no material verbal, de um ato de comunicação viva entre eles. (Voloshinov/Bakhtin)
DO DIÁLOGO COMO CONCEITO Nos estudos do Círculo de Bakhtin, afirma-se a característica dialógica da linguagem. Diante disso, é razoável afirmar que, entre seus conceitos-chave, destaca-se o diálogo. Caberia, pois, apontá-lo e, em obra dedicada ao assunto, apresentar uma definição do termo, quem sabe já lida, já ouvida? Talvez se consiga algo mais, depois de uma certa convivência com o conceito.
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Um bom começo é introduzir aquela citação que se fez esclarecedora, abriu caminhos e que, assim, nos animou a explorá-los como se fôssemos os primeiros: “Um diálogo no sistema de Bakhtin é um dado oriundo da experiência passível de servir de paradigma econômico para uma teoria que abarque dimensões mais globais”.1 Que a citação seja ainda instigante! Não para nos reter na discussão sobre a oportunidade do emprego dos termos “sistema”, “paradigma”, e das vozes que repercutem, mas a fim de colocarmos o foco na economia teórica sugerida e em sua produtividade. As “dimensões mais globais”, a que se refere mais diretamente a citação, dizem respeito à comunicação, mas se pode manter a mesma proposição para o âmbito da linguagem – e considerar a mesma economia teórica –, uma vez que a comunicação é a essência da linguagem na reflexão bakhtiniana, que considera ficcional2 a Lingüística que abstrai a comunicação, tanto a que o faz para ressaltar sua função expressiva, quanto a que renuncia a ela para conformar um objeto científico mais homogêneo. Assim, o diálogo interessa aos dois domínios de reflexão, tanto à comunicação quanto à linguagem, quando é caso de distingui-los, tarefa ingrata, no contexto bakhtiniano, em que há uma profusão de termos, e de suas traduções, que se relacionam, se articulam. Nessa trama teórica, é mais sensato e fecundo selecionar um fio, impossível outra escolha, e segui-lo, na tentativa de obter uma amostra relevante. É no âmbito da linguagem que insistimos, na afirmação de seu caráter dialógico, que aponta para a consideração do diálogo como uma boa amostra, um conceito-fonte irradiador e organizador da reflexão – como nos confirma o trecho a seguir –, que, além de explicar porque celebra o diálogo, também ajuda a defini-lo como a alternância entre enunciados, entre acabamentos, ou seja, entre sujeitos falantes, entre diferentes posicionamentos. O diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal. Cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamento específico que expressa a posição do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva.3
Bem apropriada a um contexto de crítica à abstração, à neutralidade, a forma clássica é também do rés-do-chão; uma terminologia nada complica116
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da, até popular, que a obra bakhtiniana, como mostra a citação, faz reviver, ativando o reconhecimento da reciprocidade entre o eu e o outro, presente em cada réplica, em cada enunciado, que compreende o verdadeiro diálogo, o diálogo “real”, concreto, não aquele que já se fez letra morta, decorada mecanicamente, repetida sem razão, sem vontade. Diálogo e enunciado são, assim, dois conceitos interdependentes.4 O enunciado de um sujeito apresenta-se de maneira acabada permitindo/provocando, como resposta, o enunciado do outro; a réplica, no entanto, é apenas relativamente acabada, parte que é de uma temporalidade mais extensa, de um diálogo social mais amplo e dinâmico. Considerado dessa maneira o diálogo, não é difícil acompanhar a extensão do conceito para a linguagem em geral, para a pertinência do reconhecimento de seu caráter dialógico, para o entendimento de que qualquer desempenho verbal é constituído numa relação, numa alternância de vozes. Não é também difícil recortar uma citação que estimule esse aproveitamento do conceito: O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.5
DA CONVERSA DO COTIDIANO À OBRA ESCRITA É claro – e produtivo, conforme se quer enfatizar aqui – o convite à aplicação do diálogo para a compreensão da linguagem verbal6 como um todo, de modo a considerá-la sempre como um acontecimento entre sujeitos. Como é recorrente, e imprescindível, não somente nos estudos lingüísticos, mas nas Ciências Humanas em geral, a reflexão bakhtiniana reúne sujeito, tempo e espaço – e o diálogo o mostra de maneira modelar –, mas, diferentemente de outras perspectivas, lhes conserva e releva a constituição histórica, social e cultural, também explorada por meio do conceito de cronótopo. 117
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A afirmação a seguir, que, à primeira vista, parece contradizer as anteriores, valoriza e acentua a diversidade dos diálogos, dos cronótopos que os motivam e em que ocorrem: [...] A relação existente entre as réplicas de tal diálogo [o diálogo real (conversa comum, discussão científica, controvérsia política, etc.)] oferece o aspecto externo mais evidente e mais simples da relação dialógica. Não obstante, a relação dialógica não coincide de modo algum com a relação existente entre as réplicas de um diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e mais complexa. Dois enunciados, separados um do outro no espaço e no tempo e que nada sabem um do outro, revelam-se em relação dialógica mediante uma confrontação do sentido, desde que haja alguma convergência do sentido (ainda que seja algo insignificante em comum no tema, no ponto de vista, etc.).7
Sem recuo ao convite, o reconhecimento das propriedades do diálogo permite apreender a linguagem viva, em ato, não apenas para a afirmação de sua base comum, para a necessária identificação de suas invariantes – desde que sem desvios para a reificação –, mas também para a caracterização de seus diferentes modos de existência. Não se considera, pois, um grande diálogo geral, sem feições, mas uma diversidade de diálogos, traduzíveis em especificidades de estilo8 e gênero, que os particularizam e localizam em práticas sociais cotidianas e em esferas de atividade mais sistematizadas.
DOS DIÁLOGOS AOS GÊNEROS Entende-se que os diálogos sociais não se repetem de maneira absoluta, mas não são completamente novos, reiteram marcas históricas e sociais, que caracterizam uma dada cultura, uma dada sociedade. Por meio do conceito de gênero, apreende-se a relativa estabilidade dos diálogos sociais, ou seja, assimilam-se as formas pregnantes que manifestam as razoabilidades (e também a constituição) do contexto sócio-histórico e cultural. Assim se configura o desafio a que se propõe responder com a noção de gênero: apreender a reiteração na diversidade, organizar a multiplicidade buscando o comum, sem cair em abstrações dessoradas de vida. Longe disso, é a própria dinâmica e heterogeneidade social que podem explicar os gêneros. 118
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Nessa inter-relação entre conceitos, assinalamos o diálogo, agora em sua relação com o gênero, como o conceito fomentador e organizador da reflexão, como a unidade de base necessária e primordial, requerida por Bakhtin,9 para a classificação dos gêneros. Muitas vezes aproveitado fora do âmbito da reflexão dialógica, o próprio conceito de gênero é, antes, caracterizado com base no diálogo. A distinção entre gênero primário e gênero secundário – que, emprestada a outros domínios, pode ser considerada pouco específica ou operacional – retoma, respectivamente, as duas maneiras de se considerar o diálogo, a que já fizemos menção: em stricto sensu, o diálogo cotidiano, espontâneo, e, com base nele, o diálogo mais extenso e complexo que constitui todo e qualquer enunciado. A atenção dedicada ao romance10 não encobre a importância também conferida ao gênero primário, inclusive para o estudo do próprio romance, cujas características prosaicas, o tom não elevado, o aproximam da linguagem comum e, defende Bakhtin, o deixam à margem da classificação clássica dos gêneros, sem existência oficial.11 O diálogo não é, assim, tão-somente uma metáfora12 na reflexão, resultado da transferência de um termo de um domínio semântico a outro que, não sendo o seu habitual, nele se destaca e atua. Trata-se de considerar, conjuntamente, os diálogos no sentido mais estrito do termo e os diálogos no sentido amplo de condição dialógica da linguagem. Os diálogos que experimentamos sensível e concretamente, no dia-a-dia, são assimilados por gêneros mais complexos, os secundários, que se desenvolvem mediante uma alternância diferente entre sujeitos, não imediata ou espontânea, menos evidente. Nestes gêneros, os diálogos são mais fortemente estabilizados, institucionalizados, mas continuam a receber dos diálogos cotidianos, mais permeáveis a mudanças sociais, o alimento de mudança e transformação. Base, então, da constituição e da dinâmica dos outros gêneros, os diálogos do cotidiano, os gêneros primários, constituem o cerne da linguagem. Proposição que se desenvolve no estudo sobre o romance – tanto no exame da complexa dialogização das falas dos heróis em Dostoiévski, quanto na análise da incorporação da linguagem popular em Rabelais –, e também na reflexão sobre a produção artística de um modo geral, como mostra, já pelo título, a aproximação entre Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica, em que se examinam os “enunciados da fala da vida e das ações 119
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cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística”.13 Segundo o estudo, há entre os participantes do diálogo, tanto na vida quanto na arte, uma parte que não é explicitada, uma parte presumida, que compreende valores comuns para os membros de uma dada sociedade. Este é o mote da reflexão. O diálogo na vida cotidiana não verbaliza o que é presumido pelo evento que o integra: por exemplo, o horizonte comum dos falantes, sua gestualidade, sua entoação. Também não reafirma os valores sociais consentidos: “Um julgamento de valor social que tenha força pertence à própria vida e desta posição organiza a própria forma de um enunciado e sua entoação; mas de modo algum tem necessidade de encontrar uma expressão apropriada no conteúdo do discurso”.14 A significação do diálogo depende diretamente da situação, que, assim, pode-se dizer, também o constitui. Essa íntima dependência expõe claramente a natureza social do diálogo cotidiano, e se mostra exemplar para o entendimento da linguagem como um todo, aí incluída a linguagem artística. É por esse caminho, ou seja, a partir da reflexão sobre o diálogo primário, especificando-lhe as raízes embrenhadas na sociedade, que o estudo caracteriza a obra de arte e responde à proposição da autonomia da obra de arte. A consideração da arte sem seus laços sociais, fora da vida, é o fundamento de duas abordagens da arte, ambas identificadas e criticadas pelo estudo: a que reduz a obra a um objeto, convertendo-a em um artefato e, até, em um fetiche; e a que define a obra como expressão de uma individualidade do autor ou do contemplador.15
DO DIÁLOGO DO COTIDIANO À OBRA DE ARTE. DO GÊNERO PRIMÁRIO AO GÊNERO SECUNDÁRIO. DO EXEMPLAR À PARTICULAR RELAÇÃO ENTRE A OBRA DE ARTE E A SOCIEDADE
O exemplar não é, obviamente, assimilado tal qual pelos gêneros artísticos. A dependência destes em relação à situação social em que são produzidos é relativa. Não é a mesma que caracteriza os diálogos do cotidiano e também não é a mesma que configura os enunciados de outras esferas da
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atividade humana mais diretamente submetidas a injunções, réplicas e razões históricas, políticas, religiosas, científicas. O que é pressuposto socialmente, o já-conhecido, o já-admitido, não é repetido diretamente no conteúdo da obra de arte, não é reproduzido em sua temática; é, sim, incorporado em sua forma artística, que “libera o conteúdo de suas amarras com a ciência e com a ética e permite que o autor-criador se torne um elemento constitutivo da forma”.16 À negação da autonomia da arte, o estudo não vincula, portanto, uma rejeição da forma; enfatiza, ao contrário, sua importância para a consideração da estética. Não se trata, porém, da forma do material, nem da forma dessubstancializada, mas da forma forjada pelo trabalho social, pelos valores da época – aí incluídos os juízos estéticos –, modulada pela entoação, pela inflexão das vozes, cujo exame revela significados, posicionamentos sociais: Quando uma pessoa entoa e gesticula, ela assume uma posição social ativa com respeito a certos valores específicos e esta posição é condicionada pelas próprias bases de sua existência social. É precisamente este aspecto objetivo e sociológico da entoação e do gesto – e não o subjetivo ou psicológico – que deveria interessar os teóricos das diferentes artes, uma vez que é aqui que residem as forças da arte responsáveis pela criatividade estética e que criam e organizam a forma artística.17
O estudo argumenta que a tarefa do estudioso da arte seria compreender o diálogo especial que ela realiza e de que participam o autor, o herói, o contemplador. No trabalho dedicado a Dostoiévski, Bakhtin critica, já no início, os estudos que desconsideram a forma artística, a arquitetônica das obras, tanto os conteudísticos, que se aplicam à discussão apaixonada dos conteúdos filosóficos expostos pelos heróis, convertidos, então, em filósofos autônomos; quanto os de cunho psicológico, que procuram localizar as diferentes vozes dos heróis no universo único da consciência do autor. Ambas são perspectivas monológicas, pois ou promovem um monólogo filosófico ou traçam um psiquismo uno e único. As críticas iluminam a análise (e vice-versa, certamente), que depreende das obras de Dostoiévski uma forma artística inovadora configurada pela polifonia: uma multiplicidade de consciências eqüipolentes e imiscíveis dos heróis, com quem o autor dialoga. 121
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A arquitetônica artística denota valores sociais, posicionamentos promovidos pela vida social e em resposta a ela. Para Bakhtin, no caso das obras de Dostoiévski, a polifonia – a forma artística produzida – manifesta uma luta contra a coisificação do homem: “Com imensa perspicácia, Dostoiévski conseguiu perceber a penetração dessa desvalorização coisificante do homem em todos os poros da vida de sua época e nos próprios fundamentos do pensamento humano”.18 Essa percepção, esse posicionamento, não é expresso à maneira de ensaio, manifesta-se no conteúdo, sim, e também na própria forma artística, na configuração dos heróis, na relação de sua voz com a voz do autor. Segundo Bakhtin, Dostoiévski não objetifica o herói, “não fala do herói mas com o herói”,19 não confere ao herói uma existência prévia, acabada, una. É como se lhe fossem imputadas uma voz própria e, desse modo, uma existência independente do autor, uma autoconsciência dialogizada, que “em todos os seus momentos está voltada para fora, dirige-se intensamente a si, a um outro, a um terceiro”.20 O herói, o homem, não é objeto de reflexão, de representação, é o “sujeito do apelo”.21 O diálogo é o fundamento dessa reflexão, que continua: [...] Representar o homem interior como o entendia Dostoiévski só é possível representando a comunicação dele com um outro. Somente na comunicação, na interação do homem com o homem revela-se o “homem no homem”, para outros ou para si mesmo. Compreende-se perfeitamente que no centro do mundo artístico de Dostoiévski deve estar situado o diálogo, e o diálogo não como meio, mas como fim. Aqui o diálogo não é limiar da ação mas a própria ação. Tampouco é um meio de revelação, de descobrimento do caráter como que acabado do homem. Não, aqui o homem não apenas se revela exteriormente como se torna, pela primeira vez, aquilo que é, repetimos, não só para os outros mas também para si mesmo.22
É desse modo que o escritor23 se revela para Bakhtin e – no diálogo em tom entusiasmado com as obras de Dostoiévski, revela-se o próprio Bakhtin, o “homem no homem”, a palavra sobre a palavra – depreendem-se a arquitetônica da reflexão bakhtiniana, o seu conceito de diálogo, que caracteriza o falante como “sujeito do apelo”, da consciência dialogizada, consti122
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tuída com a voz do outro e, assim, marcadamente social. A identidade do sujeito se processa por meio da linguagem, na relação com a alteridade. Tal é a importância da linguagem. Nesse contexto teórico, a palavra diálogo é mesmo “mal-dita” – é Faraco24 quem realça – quando utilizada para caracterizar tão-somente tipos de estrutura gramatical ou quando empregada no sentido socialmente cristalizado de consenso. É o diálogo reificado, finalizado, convertido em monólogo. A palavra diálogo, ao contrário, é bem entendida, no contexto bakhtiniano, como reação do eu ao outro, como “reação da palavra à palavra de outrem”, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre círculos de valores, entre forças sociais. A essa perspectiva, interessa não a palavra passiva e solitária, mas a palavra na atuação complexa e heterogênea dos sujeitos sociais, vinculada a situações, a falas passadas e antecipadas.
DAS FRONTEIRAS DO DIÁLOGO A despeito de sua complexidade e dinamicidade, e, como as formas da língua, também os diálogos, os modos de “reação da palavra à palavra”, de transmissão da palavra de outrem, passam por processos de gramaticalização,25 socialmente, reconhecidos, utilizados, obedecidos, recriados. No aprendizado da escrita, as formas gramaticais consagradas a essa funcionalidade são logo ensinadas na representação de diálogos. Com base nessas formas, identifica-se, por exemplo, na propaganda26 que segue, um diálogo: uma pergunta, sinalizada pelo ponto final de interrogação, e uma resposta, que a atende: “Em 97, a Telebrás teve o melhor desempenho da sua história. Então por que privatizar? Para alguém cuidar da telefonia, enquanto o governo se dedica à saúde e educação”. Embaixo dos dizeres, ao modo de assinatura, de responsabilidade pelo texto, estão os logotipos da Telebrás, do Ministério das Comunicações e do projeto Brasil em Ação.
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A obediência às regras formais não é suficiente para caracterizar a seqüência como um diálogo da maneira que o considera a perspectiva bakhtiniana; trata-se, sim, de um diálogo retórico. Uma pergunta feita por quem tem, de antemão, a resposta e a apresenta a serviço da afirmação de um posicionamento; no caso, assumido pelo governo, em conjunto pelas três assinaturas. O governo é o autor27 do texto, mas fala de/por si mesmo em terceira pessoa –28 “enquanto o governo [ele] se dedica à saúde e educação” –, como se, não ele próprio, mas um outro lhe conferisse a atribuição. No contexto da propaganda, como um todo, esse texto-manchete é reiterado, detalhado, exemplificado, ilustrado. O texto-manchete e as assinaturas mostram-se sobre um fundo amarelo, com uma moldura verde, que continua margeando a outra página, incluindo na composição da propaganda uma cena que exemplifica, nas cores da bandeira brasileira, o atendimento à saúde e à educação: a foto de um menino sorridente, de uniforme, com uma bola, um braço quebrado, mas bem cuidado. Sobreposto na parte de baixo da imagem do estudante, um outro texto acrescenta informações, detalha o “desempenho invejável” da Telebrás, o investimento recorde nos serviços brasileiros de telecomunicações; es124
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forços, ainda de acordo com o texto, insuficientes em face da demanda e das necessidades de modernização de um país que cresce a cada dia. Abaixo, na margem, conclui-se, de maneira resumida: “Telebrás. Privatizar para acompanhar o Brasil”. O slogan da vez, parte do programa mais geral do governo da época, que poderia também ser sintetizado: “Privatizar é bom para o país”. A propaganda participa do debate da época (que leitura faríamos se não pudéssemos retomá-lo?). É uma resposta às vozes contrárias à privatização, que recrudesceram no caso de uma estatal não-deficitária, com bom desempenho. O texto publicitário apropria-se dessa reação e contra-argumenta. O posicionamento contrário à privatização é o mote e está explicitado na própria propaganda, mais particularmente no enunciado destacado, que compõe a pergunta anunciada, mas figura, ali, refutado pela trama do texto, regulado pelo contrapeso prometido: dedicação à saúde e à educação. Rompem-se fronteiras, toma-se a outra voz, para dominá-la em terreno próprio. O texto é bem arquitetado, mas, obviamente, isso não lhe garante pleno êxito junto a seus interlocutores; pode provocar ecos de identificação, sim, mas também de refutação, hesitação. Ecos, que continuam a soar, certamente de maneira menos intensa, nos ouvidos de hoje, ocupados também com outras manchetes, outros diálogos, outras conversas.
DE CONVERSA EM CONVERSA Com direito a uma pequena chamada, a Folha de S.Paulo, de 9 de fevereiro de 2006, publica em página interna:29 Furlan diz que presidente não bebe há 40 dias Do enviado especial a Argel A dieta que levou Luiz Inácio Lula da Silva a perder 12 quilos em quatro meses tem privado o presidente de mais uma coisa, além de massas e doces: a bebida. Numa conversa informal ontem com jornalistas, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, afirmou que Lula está abstêmio há cerca de 40 dias. “No avião agora, só Coca Light e sorvete”, brincou o ministro, quando contava sobre como tinha sido a viagem de nove horas no
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Aerolula, de Brasília a Argel. “Ele vem seguindo à risca o regime dele, inclusive está abstêmio há cerca de 40 dias”, disse. Nos últimos meses, o presidente está feliz com os quilos a menos e toca no assunto sempre que pode, com ministros e auxiliares. Na semana passada, disse ao ministro Antonio Palocci (Fazenda) que ele precisava emagrecer: “Como eu, que estou com corpinho de toureiro espanhol”, brincou. A nova inconfidência sobre esse ingrediente da dieta de Lula acontece menos de dois anos depois de uma das maiores polêmicas da história do Brasil sobre seus líderes e bebidas. Em maio de 2004, o correspondente do New York Times no Rio de Janeiro, Larry Rohter, publicou uma reportagem segundo a qual o país estava “preocupado com o hábito de beber” do presidente. Em reação, o governo chegou a cassar o visto de permanência no país do jornalista norte-americano, mas, após a repercussão negativa do caso, recuou da decisão. [...] (PDL)
O texto termina com comentários sobre a dieta das proteínas do presidente, os exercícios físicos adotados e a boa saúde de que goza. O que nos interessa aqui, no entanto, além da saúde do presidente, são, no trecho acima, as falas do ministro. Elas foram puxadas do evento em que foram confiadas. O próprio enunciado nos diz que se tratava de uma “conversa informal com jornalistas”, e, conforme avalia, um momento de brincadeiras (“‘No avião agora, só Coca Light e sorvete’, brincou o ministro [...]”). Entre os participantes de um diálogo informal, que se pode vincular aos chamados gêneros íntimos, são atenuadas as convenções culturais e é dispensada a atenção a hierarquias e a diferentes papéis sociais. Desse relaxamento de regras e coerções sociais, derivam a descontração, a confiança, a expectativa de boa vontade. No caso em análise, recomposto com aspas, o diálogo informal é transposto em outro gênero, as palavras do ministro passam a limitar com os enunciados alheios, que se pode atribuir a um jornalista (PDL, enviado especial a Argel); perdem a relação estreita, espontânea, que certamente tinham com o evento em que despertaram, e com os outros enunciados que o constituíram. Ganham o status de notícia, que, por definição do gênero, acolhem o relato de acontecimentos da atualidade e de interesse público. Do privado ao público, um caminho explorado pela notícia. De conversa 126
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espontânea à notícia com direito a chamada. De brincadeira à inconfidência, como calcula a própria notícia. Os enunciados estão fora de seu acontecimento primário, espontâneo, face a face, em que, a qualquer indício de resposta do interlocutor, podiam ser reajustados de imediato. As falas do ministro são, agora, sem o ministro, e sob a batuta de um jornalista, reacomodadas em outro domínio, encaminhadas a outros destinatários. Mesmo relatado o contexto em que primeiramente ocorreram, elas não se orientam mais em função dos jornalistas “em pessoa”,30 que antes as ouviram em (aparente) descanso, mas aos leitores do jornal, aos demais jornalistas também, enfim, ao público como um todo. Esse terceiro participante não é, conforme já dissemos, aquele íntimo, situado face a face, quase em fusão com o locutor, e também não se caracteriza da maneira mais ou menos homogênea e seleta como se definem os membros de uma área de atividade específica, com suas polêmicas aí estabelecidas e circunscritas.31 Trata-se de um auditório plural; o enunciado em análise, no entanto, não parece considerá-lo desse modo, mas como uma coletividade homogênea, toda ela interessada nas confidências (inconfidências?) do ministro, divulgadas por jornalistas (inconfidentes?). O enunciado, portanto, não antevê ou não se preocupa com eventuais reações diversificadas de seus interlocutores, uma vez que não as prenuncia em forma de uma “dramaticidade”32 interna. Sem pejo, sem conflito, dá como de interesse público e comum o que revela e como apropriado o tom brincalhão que emprega. A considerar-lhe um público plural, a notícia pode ter gerado respostas diversificadas: esquecimento, desinteresse, menosprezo, reprovação, indignação, identificação, preocupação em relação ao autor e/ou aos “heróis”. E até zombaria, como a publicada no dia seguinte em trecho do Painel, espaço bem descontraído do mesmo jornal, que também interpreta o semblante do ministro, como uma possível resposta ao que fora divulgado: Ressaca brava Senador governista comenta declaração do ministro do Desenvolvimento: “O presidente está sem beber, mas o Furlan parece ter inaugurado o bar do Aerolula”. Chateado com a repercussão de
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suas palavras sobre a abstinência presidencial, Furlan passou o dia de cara amarrada.33
A fala informal e sua entoação – que transpostas para gêneros formais, oficiais, tradicionais, desencadeiam um processo renovador e destruidor –,34 configuram, em nosso tempo, os próprios gêneros do jornalismo institucional. A quebra das hierarquias, das formalidades, das barreiras – também as definições de certo e errado, de verdadeiro e falso –, não é, obviamente, absoluta, mas relativa à vida social, de um modo geral, e à esfera do jornalismo, em particular. Sua apreciação depende também do assunto em pauta, seu espaço de divulgação e suas circunstâncias. A notícia, de carona com o ministro, traz de volta às páginas do jornal a reportagem de Larry Rohter, baseada na qual qualifica as falas do ministro como uma “nova inconfidência”. Obedecendo as regras do gênero, sem nomear-se, mas, evidenciando-se por meio de modalizações, o autor da notícia relembra os desdobramentos polêmicos da reportagem e lhes confere caráter histórico. Quer fornecer, assim, importância, motivo e ocasião para ativar nova (semelhante) contenda, em que, entretanto, não dá a sua cara a bater, e sim a do ministro.
DO DIÁLOGO NA VIDA AO DIÁLOGO NA TEORIA Das fronteiras do diálogo, de conversa em conversa, o diálogo, alçado a conceito paradigmático, revela, na relação que mantém com outros conceitos, a “coerência” da reflexão bakhtiniana, não sem razão designada “dialogismo”. O diálogo fundamenta e também instrui a consideração da linguagem em ato, que constitui e movimenta a vida social, que surge como réplica social e contra a réplica que consegue antever. Guarda em relação à linguagem, assim entendida, estreita “adequação”. Da vida à teoria, o diálogo, de maneira recursiva, é identificado na ação entre interlocutores, entre autor e leitor, entre autor e herói, entre heróis, entre diferentes sujeitos sociais, que, em espaços e tempos diversos, tomam a palavra ou têm a palavra representada, ressignificada. O ponto de vista dialógico não cria um objeto ideal, de sujeito ausente, a ser tratado a distância; orienta, antes, o estudioso a participar do jogo, a 128
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considerar o enunciado, o texto, como vozes a compreender, com as quais dialogar.35 O texto não se dirige, ele também, a um outro ausente, reificado. O esforço do diálogo do estudioso com o texto é, então, de se aproximar, compreender as forças vivas de que surge e em que atua, de vivenciá-las, para, depois – de volta ao seu cronótopo, ao presente e às fronteiras da reflexão teórica, sem confundir seus posicionamentos e a especificidade de sua atividade –, examinar o texto de fora, com a visão de um todo.36 O diálogo instrui a perspectiva de análise, ao mesmo tempo que nomeia seu próprio “objeto” e, a despeito de outras reverberações semânticas – de que se tenta proteger a metalinguagem mais abstrata e arbitrária –, auxilia o estudioso da linguagem, que também o experimenta na vida, a contornar o dualismo entre a teoria e a vida.37 O emprego dos termos “teoria” e “conceito”, no contexto bakhtiniano, solicita esse esforço.
NOTAS 1
Clark; Holquist, 1998, p. 238.
2
Bakhtin, 1997, p. 290.
3
Idem, p. 294. Em inglês: “Because of its simplicity and clarity, dialogue is a classic form of speech communication. Each rejoinder, regardless of how brief and abrupt, has a specific quality of completion that expresses a particular position of the speaker, to which one may respond or may assume, with respect to it, a responsive position.” (Bakhtin, 1986, p. 72).
4
De que este texto não esquece, apenas privilegia o conceito de diálogo como fio condutor de sua reflexão.
5
Bakhtin, Voloshinov, 1979, p. 109. Em inglês: “Dialogue, in the narrow sense of the word, is, of course, only one of the forms – a very important form, to be sure – of verbal interaction. But dialogue can also be understood in a broader sense, meaning not only direct, face-to-face, vocalized verbal communication between persons, but also verbal communication of any type whatsoever.” (Voloshinov, 1986, p. 95).
6
E, embora se trate principalmente da linguagem verbal, as linguagens não-verbais também são acolhidas nas reflexões.
7
Bakhtin, 1997, p. 354.
8
Sobre estilo, de que não se trata aqui, ver Brait (2005).
9
Bakhtin, 1997, p. 284.
10
“O romance em seu todo é um enunciado, da mesma forma que a réplica do diálogo cotidiano ou a carta pessoal (são fenômenos da mesma natureza); o que diferencia o romance é ser um enunciado secundário (complexo).” (Idem, p. 281).
11
Nos domínios estabelecidos pela grande literatura clássica – em que os diferentes gêneros se completam organicamente –, não há lugar para receber o insurgente romance (Bakhtin, 1988).
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12
Holquist, 2002, p. 41.
13
Voloshinov; Bakhtin, 2001, p. 5.
14
Idem, p. 7.
15
Procedimentos que configuram, respectivamente, os chamados objetivismo abstrato e subjetivismo idealista.
16
Bakhtin, 1988, p. 61.
17
Voloshinov, Bakhtin, 2001, p. 10.
18
Bakhtin, 1981, p. 53.
19
Idem, p. 54.
20
Idem, p. 222.
21
Idem, ibidem.
22
Idem, pp. 222-3.
23
“O autor [não o homem real] se encontra no momento inseparável em que o conteúdo e a forma se fundem, e percebemos-lhe a presença acima de tudo na forma.” (Bakhtin, 1997, p. 403).
24
Idem, 2003, p. 58.
25
Bakhtin, Voloshinov, 1979, p. 142.
26
Veja, São Paulo, 29, abr. 1998.
27
Não é relevante, aqui, considerar a mediação do trabalho publicitário.
28
Sobre essa neutralização entre as pessoas do discurso ver Fiorin (1996).
29
Folha de S.Paulo, 9 fev. 2006, p. A11.
30
Bakhtin, 1997, p. 321.
31
Idem, p. 322.
32
Idem, ibidem.
33
Folha de S.Paulo, 10 fev. 2006, p. A4.
34
Bakhtin, 1997, p. 323.
35
Idem, pp. 401-14.
36
Procedimento que configura a exotopia, tratada por Bakhtin (1997), no contexto estético e epistemológico. Ver também Amorim, 2003, pp. 11-25.
37
Para uma discussão dessa questão, que aparece principalmente em Bakhtin (1973), ver Faraco, 2003, pp. 19-23.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Esfera e campo Sheila V. de Camargo Grillo
A obra de Bakhtin e de seu Círculo deu origem a uma das correntes de pensamento mais influentes do século XX. Entre os aspectos responsáveis pela sua repercussão, está a formulação de uma complexa malha conceitual,1 construída nos interstícios de diversos domínios das Ciências Humanas (a Filologia, a Filosofia da Linguagem, a Lingüística, a Sociologia, a Estética, a História, a Antropologia) e, por isso mesmo, capaz de produzir questões, de orientar abordagens e de apontar caminhos de pesquisa que não se esgotam em uma única disciplina acadêmica. Essa natureza interdisciplinar pode explicar o fato de que a obra do Círculo tenha sido incorporada e articulada a diversos outros teóricos, das formas as mais variadas.2 O conceito de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simplesmente da ideologia) está presente ao longo de toda a obra de Bakhtin e de seu Círculo, iluminando, por um lado, a teorização dos aspectos sociais nas obras literárias e, por outro, a natureza ao mesmo tempo onipresente e diversa da linguagem verbal humana. Por-
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tanto, a esfera ou o campo da comunicação discursiva é um conceito-chave para compreendermos o modo de articulação entre os domínios da Sociologia, da Lingüística e da Teoria Literária. O sociólogo e filósofo francês Pierre Bourdieu é produtor de uma importante teoria social, composta, assim como a obra bakhtiniana, por uma potente malha conceitual, tecida com os conceitos de habitus, sentido prático, trajetória, capital simbólico, capital econômico, posições relativas, tomada de posição e campo. Este último apresenta grandes semelhanças com a obra do Círculo, mas também diferenças advindas das especificidades do objeto de investigação e das condições sócio-históricas nas quais as duas obras foram produzidas, com destaque para o ambiente intelectual e os conseqüentes interlocutores de cada autor. Considerando esses elementos, serão expostos, aqui, os conceitos de esfera e de campo, com vistas a demonstrar que eles dão conta de um conjunto de fenômenos sociais ao mesmo tempo comuns e distintos nas duas obras, o que faz com que a sua articulação complementar produza uma melhor compreensão desses mesmos fatos. Nesse momento, as semelhanças formam o terreno necessário para que as especificidades de cada enfoque proporcionem uma ampliação em profundidade e em extensão dos instrumentos de análise das duas teorias.
SUBJETIVISMO E OBJETIVISMO: AS ALTERNATIVAS DO CÍRCULO E DE BOURDIEU As novas formulações teóricas surgem e se desenvolvem em razão do diálogo que travam com as correntes de pensamento vigentes. A lógica desse diálogo é a da distinção, com vistas a produzir novos problemas, objetos e formulações para as disciplinas acadêmicas envolvidas. Com isso em mente, serão apresentadas, nesta seção, algumas linhas de pensamento às quais os autores se opõem, as soluções por eles encontradas e a concepção da relação método/objeto. Nas obras do Círculo de Bakhtin e de Pierre Bourdieu, são expostas, de forma sintética e clara, as teorias que compunham o ambiente intelectual da Rússia no início do século xx e da França nas décadas de 1960 e de 1970. Ambos os autores formularam seus trabalhos como contraposição 134
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e alternativa ao subjetivismo não-hegemônico, porém ainda influente nas formas de pensar das respectivas épocas, e ao objetivismo reinante. O Círculo de Bakhtin, sobretudo nos domínios da filosofia da linguagem e da estética, e Bourdieu, na sociologia, buscaram inserir a ordem social, a história e o sujeito em suas teorias, de forma a deslocar as duas perspectivas disponíveis. No projeto de construção de um método sociológico para o estudo da linguagem, Bakhtin e seu grupo se contrapõem às duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. A primeira orientação, sintetizada na idéia de Vossler da “primazia do estilístico sobre o gramatical”, localiza no psiquismo individual o fundamento da língua: “O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da criação Lingüística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia individual, e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem”.3 Ao colocarem em primeiro plano os fatores psicológicos e os dados estilísticos individuais, os representantes do subjetivismo permanecem em uma dimensão monológica da linguagem como expressão das particularidades do sujeito. Essa corrente se contrapunha ao positivismo reinante que via a língua como constituída de formas e do ato psicofisiológico de sua produção. A obra de Bourdieu também investe contra o subjetivismo, só que, aqui, formulado no âmbito da filosofia de Sartre, o qual fundamentará correntes do interacionismo que se dedicam ao estudo das estratégias individuais, explicitamente orientadas, dos sujeitos em processo de comunicação verbal: O exemplo de Sartre, o intelectual por excelência, capaz de viver como ele o diz e como por dizer as “experiências” produzidas pela e para a análise, ou seja, essas coisas que merecem ser vividas porque merecem ser contadas, faz ver que, como o objetivismo universaliza a relação erudita ao objeto da ciência, o subjetivismo universaliza a experiência que o sujeito do discurso erudito faz de si próprio enquanto sujeito.4
Bourdieu vê, nessa perspectiva, a transferência da visão do filósofo sobre si próprio para a sua concepção do sujeito, ou seja, a ênfase sartreana na liberdade e na escolha do sujeito está atrelada à visão do intelectual como 135
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ser capaz de compreender os determinismos sócioideológicos e, portanto, de libertar-se deles. Apesar de não ocuparem uma posição hegemônica no cenário intelectual, o subjetivismo permeia a visão corrente das práticas de produção de linguagem cotidianas, em que os indivíduos, imersos no seu fazer prático, pouco refletem sobre a ordem social que eles (re)produzem, ao mesmo tempo que são por ela produzidos. A linha mestra das Ciências Humanas na época em que Bakhtin e Bourdieu formularam suas obras é, certamente, o objetivismo. Conforme Bakhtin, “a pouca audiência que a escola de Vossler tem na Rússia corresponde inversamente à popularidade e influência de que a de Saussure aí goza”. Sem cair na visão do sujeito como consciência livre, auto-reflexiva e criadora, própria do subjetivismo, os dois teóricos se contrapõem a uma concepção da língua e da sociedade, como sistema sem sujeito. Bakhtin situa as raízes filosóficas do objetivismo no racionalismo cartesiano do século XVII na França, onde, ainda no início do século XX, se mantém influente: A idéia de uma língua convencional, arbitrária, é característica de toda a corrente racionalista, bem como o paralelo estabelecido entre o código lingüístico e o código matemático. Ao espírito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e integrado.5
Saussure é apontado como o melhor representante dessa visão da língua como sistema de signos. A obra do Círculo apresenta as origens históricas do sistema como o produto de uma reflexão sobre a língua, decorrente do estudo filológico das línguas mortas e do ensino de línguas estrangeiras. Na França, a Lingüística saussureana tornou-se modelo para domínios como a Antropologia, os estudos literários, a psicanálise, gerando releituras estruturalistas de Freud por Lacan e de Marx por Althusser. É no contexto do estruturalismo francês das décadas de 1950 e 1960 que Bourdieu começa a produzir sua obra sociológica. No final da década de 1970, o sociólogo faz a crítica ao estruturalismo em Antropologia e em Sociologia, ao formular seus conceitos de habitus e sentido prático, sendo estes alternativas para introduzir o sujeito e a sua constituição sócio-histórica no domínio das formações sociais. 136
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Basta ignorar a dialética das estruturas objetivas e das estruturas incorporadas que se opera em cada ação prática para se fechar na alternativa canônica que renasce sem parar sob novas formas na história do pensamento social, declaram aqueles que pretendem tomar o contraponto do subjetivismo, como hoje os leitores estruturalistas de Marx, a cair no fetichismo das leis sociais; converter em entidades transcendentais, que estão para as práticas na relação da essência à existência, as construções às quais a ciência deve recorrer para dar conta de conjuntos estruturados dotados de sentido que produzem a acumulação de inumeráveis ações históricas, é reduzir a história a um “processo sem sujeito” e substituir simplesmente o “sujeito criador” do subjetivismo por um autômato subjugado pelas leis mortas de uma história da natureza. Essa visão imanente que faz da estrutura, Capital ou Modo de produção, uma enteléquia se desenvolvendo ela mesma em um processo de auto-realização, reduzindo agentes históricos ao papel de “suportes” da estrutura e suas ações a simples manifestações epifenomenais do poder que pertence à estrutura de se desenvolver segundo suas próprias leis e de determinar ou de sobredeterminar outras estruturas.6
De forma clara, Bourdieu recusa a visão estruturalista de um sujeito “assujeitado” e da ordem social como estrutura sem sujeito do objetivismo. Em síntese, apesar de pertencerem a países distintos e com um intervalo de aproximadamente trinta anos,7 a obra do Círculo de Bakhtin e do sociólogo francês Pierre Bourdieu são surpreendentemente próximas na identificação das linhas mestras do pensamento de suas épocas e nas críticas que fazem ao subjetivismo e ao objetivismo, com vistas a redimensionar a inserção da linguagem, do sujeito, da história, da ideologia e do social no âmbito das Ciências Humanas. Passemos, agora, às soluções apresentadas aos questionamentos acima expostos. Elas são motivadas, em grande parte, pelas diferentes áreas de atuação dos autores e seus respectivos objetos de análise. Bourdieu concentra-se no estudo da relação entre estruturas sociais e constituição da subjetividade, enquanto a obra do Círculo privilegia a natureza social da linguagem. Bakhtin e seus companheiros localizam na interação verbal8 o espaço de constituição e existência da língua: “A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela 137
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enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.”9 Concebida como uma opção às duas perspectivas vigentes, o conceito de interação verbal concentra os principais aspectos da teoria dialógica da linguagem, elaborada pelo Círculo: a relação do enunciado com o contexto social imediato e amplo, o modo de constituição da subjetividade na inter-subjetividade e a delimitação do conteúdo temático. A interação se dá entre indivíduos organizados socialmente, o que coloca em jogo condições sócio-históricas de duas ordens. Primeira, a situação social mais imediata, cujos componentes, descritos em trabalho anterior,10 são o horizonte social comum aos co-enunciadores (a unidade do lugar visível), o conhecimento e a compreensão da situação, compartilhados pelos co-enunciadores, e a avaliação que eles fazem dessa situação. Segunda, o meio social mais amplo, definido, por um lado, pelas especificidades de cada esfera da produção ideológica (ciência, literatura, jornalismo, religião, etc.) e, por outro, por um certo “horizonte social” de temas recorrentes, em razão da onipresença social da linguagem verbal e da relação que as esferas ideológicas estabelecem com a ideologia do cotidiano: “Com o horizonte ideológico de cada época, há um centro valorativo em direção ao qual todos os caminhos e aspirações da atividade ideológica levam.”11 Nessa relação entre material verbal e contexto, o discurso não é concebido como um reflexo da situação, mas como o seu acabamento avaliativo. Brait12 vê, nesse contexto mais amplo, a participação do interdiscurso que, apesar de nem sempre explícito, faz parte da produção de sentidos. Em segundo lugar, a consciência individual é constituída no meio social ou “de fora para dentro”, por meio dos materiais semióticos que a organizam, adquiridos nas interações verbais. No contexto interior, esses signos assumem nova significação, devido à sua inserção em um novo contexto vivencial. Sua orientação ideológica ocorre em razão das duas dimensões sociais acima descritas. Com isso, a expressão individual já é dialogicamente orientada, uma vez que se manifestará em razão das condições sócio-históricas da existência dos sujeitos e da relação com a alteridade. Poderíamos dizer que o Círculo não apresenta propriamente uma teoria da subjetividade, mas antes da inter-subjetividade. 138
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Terceiro, a delicada questão do sentido dos enunciados é resolvida pela distinção entre significação e tema. A significação se define pelos elementos reiteráveis e estáveis do sistema lingüístico e o tema pelo seu caráter concreto, singular, sócio-historicamente determinado e irredutível a uma análise totalizante. O tema incorpora o caráter ativo da compreensão de um enunciado, ou seja, o processo interpretativo do co-enunciador se dá na sua capacidade de dialogar com o enunciado, por meio da sua inserção em um novo universo pessoal. Além do tema e da significação, toda palavra é constituída por “acento de valor ou apreciativo”, cuja manifestação mais evidente é a entoação expressiva. Bourdieu vai buscar, sobretudo na noção de habitus – mas também de trajetória, sentido prático e estratégia –, uma via mediana, no dizer de Dosse, para reintroduzir o agente, sem desconsiderar as coerções sociais de sua ação. Escapando à alternativa das forças inscritas no estado anterior do sistema, no exterior dos corpos, e das forças interiores, motivações surgidas, no instante, da decisão livre, as disposições interiores, interiorização da exterioridade, permitem que as forças exteriores se exerçam, mas segundo a lógica específica dos organismos nos quais elas são incorporadas, quer dizer de maneira durável, sistemática e não mecânica; sistema adquirido de esquemas geradores, o habitus torna possível a produção livre de todos os pensamentos, de todas as percepções e de todas as ações inscritas nos limites inerentes às condições particulares de sua produção, e delas somente. Por meio dele, a estrutura, da qual ele é o produto, governa a prática não segundo as vias de um determinismo mecânico, mas por meio de coerções e de limites originariamente atribuídos a suas invenções. [...] Uma vez que o habitus é uma capacidade infinita de produzir em toda liberdade (controlada) produtos – pensamentos, percepções, expressões, ações – que têm sempre por limites as condições historicamente e socialmente situadas de sua produção, a liberdade condicionada e condicionadora que ele assegura é assim distanciado de uma criação de imprevisível novidade assim que de uma simples reprodução mecânica dos condicionamentos iniciais.13
Semelhantemente à obra do Círculo, Bourdieu concebe que o sentido da constituição dos sujeitos caminha do social para o individual. Os sujeitos são formados pela incorporação de disposições produzidas por regularidades ob139
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jetivas, situadas dentro da lógica de um campo determinado (ciência, religião, mídia, família, classe social, etc.), mas que são redimensionadas em razão da trajetória individual e da posição ocupada pelo sujeito nesse campo. A relação entre as condições sociais nas quais se constitui um habitus e as condições sociais nas quais ele é operado produz o sentido prático, o qual é engendrado sem a sua representação explícita pelos sujeitos, que são pegos na urgência de agir. Nesse ponto, vemos uma proximidade entre o modo de constituição do sentido prático em Bourdieu e a produção de avaliações socialmente condicionadas na obra do Círculo. Estas são tratadas como componentes da situação extraverbal de qualquer discurso, tal como discutido no texto “Le discours dans la vie et dans la poésie”: O sentido prático, necessidade social transformada em natural convertida em esquemas motores e em automatismos corporais, é o que faz com que as práticas, no e pelo que elas permanecem obscuras aos olhos dos seus produtores e por onde se traem os princípios transubjetivos de sua produção, são dotadas de sentido, isto é, habitadas por um sentido comum. É porque os agentes não sabem nunca completamente o que eles fazem, e o que eles fazem tem mais sentido do que eles sabem. (Bourdieu)14 As avaliações subentendidas tomam, nesse caso, uma significação particularmente importante. De fato, as principais avaliações sociais, que se enraízam imediatamente nas particularidades da vida econômica de certo grupo social, não são, na maioria das vezes, enunciadas: elas entram na carne e no sangue de todos os representantes desse grupo; elas organizam as ações e a conduta das pessoas; elas são de qualquer modo coladas às coisas e aos fenômenos correspondentes; é porque elas não requerem formulações verbais particulares. [...] Se a avaliação é efetivamente condicionada pela vida mesma de certa coletividade, ela é admitida à maneira de um dogma, como algo que vai de si e não se presta à discussão. Inversamente, se a avaliação fundamental é enunciada e demonstrada, é porque ela tornou-se duvidosa, que ela está descolada de seu objeto, que ela cessou de organizar a vida e, em conseqüência, que seu laço com as condições de existência da coletividade foi rompido. (Voloshinov)15
Tanto as práticas sociais de Bourdieu quanto as avaliações subentendidas de Voloshinov são produzidas pelos sujeitos sociais sob condições sócio140
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históricas determinadas. Esses sujeitos atribuem um sentido evidente às práticas e às avaliações, sendo que o seu questionamento é sinal de que elas estão em via de alteração. Como vimos anteriormente, a avaliação social está articulada, na obra do Círculo, à interação verbal, da qual é componente. Em Bourdieu, a incorporação do habitus comporta modos de percepção e de apreciação da realidade. Dessa aproximação, podemos concluir que os autores estão descrevendo aspectos inter-relacionados, uma vez que as avaliações bakhitinianas são uma das práticas engendradas pelo habitus que, por sua vez, é produzido sob condições sociais específicas. As soluções encontradas por Bourdieu e pelo Círculo podem ser compreendidas em razão, por um lado, das oposições às correntes de pensamento vigentes e, por outro, da relação entre o método elaborado e o objeto de estudo. Nesse sentido, os autores se aproximam em uma orientação teórico-metodológica, voltada para a delimitação e a explicação de seus objetos. O método tem, obviamente, de ser adaptado ao objeto. Por outro lado, sem um método definido não pode certamente haver abordagem do objeto. É necessário ser capaz de isolar o objeto de estudo e corretamente tomar nota de seus aspectos importantes. Esses aspectos distintivos não são etiquetados. Outros movimentos vêem outros aspectos do objeto como distintivos. [...] Abordagens primárias e orientações têm de ser colocadas em um contexto metodológico amplo. A Teoria Literária entra na esfera de outras disciplinas. Ela deve ser orientada nessa esfera, tem de estar em harmonia com os métodos e objetos de disciplinas aliadas. As inter-relações das disciplinas têm de refletir as inter-relações de seus objetos. (Medvedev/ Bakhtin)16 É uma transformação semelhante que é preciso operar para chegar a impor nas Ciências Sociais um novo espírito científico; teorias que se alimentem menos da defrontação puramente teórica com outras teorias que do confronto com objetos empíricos sempre novos; conceitos que, antes de tudo, têm por função indicar, de maneira estenográfica, conjuntos de esquemas geradores de práticas científicas epistemologicamente controladas. (Bourdieu) 17
Os dois excertos revelam que os autores, sem cair em um empirismo ingênuo, elaboram seus quadros teóricos motivados por uma dupla pers141
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pectiva: o diálogo com o ambiente intelectual de sua época e a atenção para a natureza do objeto de estudo. Essas semelhanças não apagam, entretanto, as especificidades de cada um. O fragmento de Medvedev/Bakhtin – extraído da obra em que os autores descrevem e criticam o método formal de análise da obra de arte – destaca a natureza do objeto de estudo que impõe uma aproximação interdisciplinar, a fim de não mutilar a sua compreensão. Esse princípio pode explicar a impossibilidade de enquadrar a obra do Círculo em uma disciplina particular, uma vez que, nesse trabalho, os autores estão dialogando com uma corrente teórica que propõe que a análise da obra de arte deve prescindir dos aspectos sociológicos. Já a obra de Bourdieu se mostra mais preocupada com a consolidação da autonomia e da abrangência do campo sociológico, o que explica o seu ataque a outras disciplinas. Do que foi exposto, podemos perceber semelhanças entre os modos de constituição das duas obras em questão. Primeiramente, o Círculo de Bakhtin e Pierre Bourdieu questionaram, com nuances próprias, as mesmas duas correntes de pensamento: o subjetivismo e o objetivismo. Em seguida, suas obras apresentaram soluções distintas, mas que partiram de um terreno comum: a constituição sócio-histórica do sujeito agente que não é um produto de um determinismo mecânico da estrutura, mas também não é uma individualidade autoconsciente e livre de coerções. Por fim, os dois autores elaboraram suas teorias numa dialética entre, de um lado, o contexto socioideológico do campo intelectual e, de outro, a compreensão da natureza do seu objeto de estudo. Na próxima seção, veremos o desenvolvimento das noções de esfera e de campo nas obras em questão.
O CONCEITO DE ESFERA NA OBRA DO CÍRCULO DE BAKHTIN A obra do Círculo na década de 1920,18 início de sua produção, é particularmente profícua na reflexão sobre a natureza da constituição e da inter-relação entre as diversas esferas da produção ideológica. Nos textos “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”, de 1926, e “The formal method in literary scholarhip”, de 1928, o Círculo desenvolve o conceito de esfera para explicar a natureza e as especificidades 142
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das produções literárias. A posição do Círculo se constrói no diálogo com duas correntes teóricas de sua época: o formalismo russo e o marxismo. O Círculo se opõe à idéia dos formalistas da existência de um núcleo imanente dos estudos literários, o qual escaparia às influências das transformações socioeconômicas e das outras esferas ideológicas (ciência, educação, religião, etc.), mas sem negar o modo próprio de refratar esses domínios externos: “A comunicação artística se enraíza, portanto, em uma infra-estrutura que ela partilha com as outras formas sociais, mas ela conserva, não menos que essas outras formas, um caráter próprio”.19 O estudo da obra de Dostoiévski mostra como essa questão é importante para a compreensão da relação da obra literária com seu contexto social. Bakhtin defende que Dostoiévski não inventava as idéias encarnadas por suas personagens, mas as apreendia a partir da realidade de sua época. Entretanto, o romancista “não copiou nem expôs esses protótipos, mas os reelaborou de maneira livremente artística, convertendo-os em imagens artísticas vivas das idéias”.20 Para Bakhtin, essa reelaboração se deu sob a forma da polifonia em que as idéias eram colocadas em interação dialógica. Com isso, a obra literária, como produto ideológico, não é nem cópia do real nem criação, mas um modo próprio de refração da realidade social, segundo a lógica específica da esfera artística. O diálogo com o marxismo, já presente nos dois textos citados, aparece de forma mais desenvolvida em “Marxismo e filosofia da linguagem”, de 1929, em que se busca superar a visão determinista e mecanicista proveniente da ortodoxia marxista, da influência dos fatos da base socioeconômica comum sobre os produtos ideológicos. Nesse sentido, a noção de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simplesmente ideologia) é compreendida como um nível específico de coerções que, sem desconsiderar a influência da instância socioeconômica, constitui as produções ideológicas, segundo a lógica particular de cada esfera/campo. No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do símbolo religioso, da fórmula científica, da forma jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu
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próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. É seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral.21
A obra do Círculo caracteriza-se, de um lado, por admitir as especificidades coercivas de cada campo/esfera e, de outro, por assentar a sua natureza comum sobre a constituição semiótica, em especial no signo lingüístico. A onipresença social da palavra, ou seja, a sua influência em todos os campos ideológicos (ciência, religião, literatura, etc.) confere-lhe o estatuto privilegiado para o estudo da organização dos diversos campos. Toda refração ideológica do ser em processo de formação seja qual for a natureza de seu material significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação. Todas as propriedades da palavra que acabamos de examinar – sua pureza semiótica, sua neutralidade ideológica, sua implicação na comunicação humana ordinária, sua possibilidade de interiorização e, finalmente, sua presença obrigatória, como fenômeno acompanhante, em todo ato consciente – todas essas propriedades fazem dela o objeto fundamental do estudo das ideologias.22
Uma vez que o signo ideológico, e em especial o lingüístico, só ocorre entre indivíduos socialmente organizados, ou seja, na interação verbal, este é o lugar de existência da psicologia do corpo social e de contato entre a base socioeconômica comum e as diversas esferas ideológicas. Em seção anterior, vimos como a interação verbal foi apontada, por Bakhtin/ Voloshinov, como o objeto de reflexão alternativo às correntes reinantes do objetivismo e do subjetivismo. Na interação verbal, materializam-se a língua, os signos ideológicos, a intersubjetividade, a articulação fatores externos/ internos à esfera. Ao tratar da interação verbal, o Círculo estabelece uma distinção entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ou esferas ideológicas constituídas. A ideologia do cotidiano está ligada à palavra interior e acompanha todos os gestos e atos da consciência humana. Ela é o ponto de partida para a constituição das esferas ideológicas, mas também sofre delas a influência. Voloshinov/Bakhtin faz uma distinção entre o nível inferior 144
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da ideologia do cotidiano, em que o fator biográfico e o biológico têm papel importante, sendo constituído pelas “atividades mentais e pensamentos confusos e informes que se acendem e apagam na nossa alma, assim como as palavras fortuitas ou inúteis”; e seus níveis superiores, caracterizados pelo contato direto com os sistemas ou esferas ideológicas e, por isso mesmo, mais suscetíveis à sua influência. O nível superior realiza-se sob a forma de tipos de discursos da vida cotidiana ou gêneros cotidianos tais como a ordem, o pedido, as conversas de operários à hora do almoço, as conversas de salão, etc. A obra do Círculo, portanto, estabelece, na teorização das esferas, a distinção e a relação entre as interações que ocorrem na ideologia do cotidiano e aquelas que ocorrem nos sistemas ou esferas ideológicas constituídos. No texto “A pessoa que fala no romance”, de 1934/1935, Bakhtin examina o papel do discurso alheio no romance, ao mesmo tempo em que trata da sua presença e transmissão em outros domínios da vida e da criação ideológica, ou seja, dos campos/esferas. A palavra alheia desempenha um papel fundamental na formação ideológica do homem e se apresenta como palavra autoritária e como palavra interiormente persuasiva. A palavra autoritária exige reconhecimento e assimilação, uma vez que está associada às posições de poder – pai, professor, adulto, cientista, padre, etc. – das diversas esferas ideológicas – família, escola, ciência, religião, etc. A palavra interiormente persuasiva está entrelaçada com as palavras do homem em formação e é fundamental para o seu processo de independência. Ela também está presente em todos os domínios ou esferas da criação ideológica. Após essa distinção, Bakhtin passa a examinar a presença e o papel da palavra alheia em diversas esferas: a jurídica, a religiosa, a da ciência natural, a política. Portanto, as esferas são determinantes para a compreensão da presença e do tratamento dado à palavra alheia. No texto sobre os gêneros do discurso, escrito nos anos 50, mas somente publicado no final da década de 1970, a noção de esfera/campo volta a aparecer na obra bakhtiniana. Aqui, a dificuldade de teorização dos gêneros é associada, entre outros, à sua grande diversidade decorrente da complexidade das esferas da atividade humana. Mais à frente, nesse mesmo texto, ao questionar a falta de critérios unificados para a classificação dos gêneros discursivos, Bakhtin atribui essa falha à 145
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“incompreensão da natureza de gênero dos estilos de linguagem e da ausência de uma classificação bem pensada dos gêneros discursivos por campos de atividade”. Bakhtin demonstra a importância da noção de esfera/campo para a compreensão da natureza e a conseqüente classificação dos gêneros. Em seguida, o autor passa a investigar as características das unidades da enunciação (o enunciado) e das unidades da língua (oração e palavra). Aqui, embora não seja expandida, a noção de esfera permeia a caracterização do enunciado e dos seus tipos estáveis, os gêneros, no que diz respeito ao seu tema, à sua relação com os elos precedentes (enunciados anteriores) e com os elos subseqüentes (a atitude responsiva dos co-enunciadores). O tema se refere ao modo de relação do enunciado com o objeto do sentido; ele é, portanto, de natureza semântica. Nessa relação, o tema caracteriza-se por atribuir uma apreensão delimitadora do objeto do sentido e por compor-se de uma expressão valorativa, uma vez que não há neutralidade no domínio do enunciado. A relação deste com o seu referente é condicionada pelo campo da comunicação discursiva: [...] a relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado. Nos diferentes campos da comunicação discursiva, o elemento expressivo tem significado vário e grau vário de força, mas ele existe em toda parte: um enunciado absolutamente neutro é impossível.23
O diálogo do enunciado com os elos precedentes, que podemos nomear sob os títulos de interdiscurso e de intertexto, é condicionado pela identidade temática e pelas coerções de um determinado campo: A expressão do enunciado, em maior ou menor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não só a relação com os objetos do seu enunciado. As formas das atitudes responsivas [...] diferenciam-se acentuadamente em função da distinção entre aqueles campos da atividade humana e da vida nos quais ocorre a comunicação discursiva.24
Por fim, a relação do enunciado com seus co-enunciadores – a antecipação de sua atitude responsiva, o conhecimento de sua posição social, seus gostos, suas preferências, etc. – também é condicionada pelas especificidades de um campo: 146
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Todas essas modalidades e concepções do destinatário são determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere. [...] Cada gênero do discurso, em cada campo da comunicação discursiva, tem a sua concepção típica do destinatário que o determina como o gênero.25
Organizados pelo campo/esfera, esses três aspectos dos enunciados (e de seus tipos estáveis) formam um todo orgânico, ou seja, a elaboração do tema é motivada pela reação a enunciados precedentes sobre o mesmo tema e pela antecipação da posição responsiva do destinatário. O campo/esfera é um espaço de refração que condiciona a relação enunciado/objeto do sentido, enunciado/enunciado, enunciado/co-enunciadores. Em síntese, verificamos que a noção de campo/esfera está presente em toda a obra do Círculo de Bakhtin. Ela se constitui em importante alternativa para pensar as especificidades das produções ideológicas (obras literárias, artigos científicos, reportagens de jornal, livro didático, etc.), sem cair na visão imanente da obra de arte do formalismo nem no determinismo do marxismo ortodoxo. As esferas dão conta da realidade plural da atividade humana ao mesmo tempo que se assentam sobre o terreno comum da linguagem verbal humana. Essa diversidade é condicionadora do modo de apreensão e transmissão do discurso alheio, bem como da caracterização dos enunciados e de seus gêneros.
O CONCEITO DE CAMPO NA OBRA DE BOURDIEU O conceito de campo começa a ganhar destaque na obra do filósofo e sociólogo francês Pierre Bourdieu no final dos anos 70, mas é a partir da década de 1990 que a sua teorização cresce em importância. No livro Homo academicus, de 1984, Bourdieu, ao analisar a crise na universidade francesa em 1968, define o campo como “o lugar de uma luta para determinar as condições e os critérios de pertencimento e de hierarquia legítimos”. Entretanto, é no livro sobre a formação do campo literário francês, publicado em 1992, que Bourdieu produz formulações mais desenvolvidas e explicita que o conceito de campo se coloca como alternativa tanto ao formalismo quanto ao marxismo:
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Mas ela também permitiu escapar à alternativa da interpretação interna e da explicação externa, diante da qual se achavam colocadas todas as ciências das obras culturais, história social e sociologia da religião, do direito, da ciência da arte ou da literatura, ao lembrar a existência dos microcosmos sociais, espaços separados e autônomos, nos quais essas obras se engendram: nessas matérias, a oposição entre um formalismo nascido da codificação de práticas artísticas levadas a um alto grau de autonomia e um reducionismo aplicado em relacionar diretamente as formas artísticas a formações sociais dissimulava que as duas correntes tinham em comum o fato de ignorar o campo de produção como espaço de relações objetivas.26
Assim como o Círculo, Bourdieu desenvolve o conceito de campo, a fim de explicar a complexidade das produções ideológicas (entre as quais se incluem as obras literárias), que não poderiam ser explicadas unicamente pelas leis internas do campo, mas que também não se reduzem aos determinismos socioeconômicos. Dessa forma, o conceito de campo de Bourdieu aparece como um espaço social de transformação das demandas externas. Uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou as demandas externas. [...]
Dizemos que quanto mais autônomo for um campo, maior será o seu poder de refração e mais as imposições externas serão transfiguradas, a ponto, freqüentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhecíveis. O grau de autonomia de um campo tem por indicador principal seu poder de refração, de retradução.27 Aqui também, o modo de existência do campo é sua capacidade de refratar ou retraduzir as demandas externas. As duas obras concebem o campo como um espaço social capaz de refratar, traduzir ou transformar as demandas externas, sobretudo da base socioeconômica comum. Busca-se, em ambos os casos, escapar à visão de que os produtos ideológicos refletem diretamente as transformações políticas, sociais e econômicas, tirando-lhes a sua autonomia social e também, na visão bakhtiniana, semiótica. Em um texto publicado postumamente, em 2001, “Science de la science et réflexivité”, Bourdieu acrescenta que o conceito de campo, como estru148
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tura de relações objetivas, está ancorado em uma filosofia “disposicionalista” da ação que rompe com o finalismo, correlativo de um intencionalismo ingênuo. Primeiramente, o campo “é uma rede de relações objetivas entre posições” e se constitui em um espaço de lutas, onde os agentes assumem posições segundo quatro coerções: a relação com o habitus, ou seja, as disposições incorporadas sob a forma de modos de agir, preferências, gostos, capacidade de compreensão das regras do jogo, etc.; o capital simbólico, decorrente da posição ocupada no campo e do conseqüente reconhecimento pelos pares; o capital econômico, proveniente sobretudo da herança e da renda; e as possibilidades e as impossibilidades oferecidas por um campo aos seus agentes, segundo as disposições por eles incorporadas. Esse espaço social define-se por um sistema de propriedades relativas, isto é, as posições são apreendidas por suas relações recíprocas em um dado momento da existência do campo, portanto, social e historicamente situadas. As posições relativas comandam as tomadas de posição (obras, atos, discursos, manifestos, polêmicas, etc.) que, por sua vez, se definem pelo espaço de possíveis apresentados na “herança acumulada pelo trabalho coletivo”. Neste momento, é importante destacar que a obra do Círculo não é indiferente às posições relativas dos enunciados em um dado campo, como vemos no fragmento a seguir: Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc., é impossível alguém definir sua posição sem correlacionála com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de uma esfera da comunicação discursiva.28
A especificidade, aqui, está no enfoque dado à linguagem e na concepção de que a posição relativa de cada enunciado se manifesta na sua atitude responsiva em relação aos demais de uma determinada esfera. Um segundo aspecto do campo é sua relação de maior ou menor independência com as condições econômicas de existência, cujo princípio básico é “o cálculo dos lucros individuais, portanto, do interesse econômico”. Bourdieu mostra que as sanções dos campos literário, artístico ou científico advêm do reconhecimento do capital simbólico, isto é, do conhecimento e 149
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outros conceitos-chave
do reconhecimento que os pares fazem da trajetória e do prestígio pessoal, decorrente das produções por eles valorizadas. Essas sanções são, muitas vezes, inversas à lógica econômica. O sociólogo mostra que o campo literário francês se formou em um período de ascensão e de influência da sociedade burguesa, que se caracterizava pela exaltação do dinheiro e do lucro, pela expansão da imprensa e dos folhetins, representantes da penetração da produção industrial sobre a literatura. Em face a esse contexto, o campo literário constituiu-se sob uma lógica econômica inversa, ou seja, o prestígio literário de um autor podia ser medido inversamente ao seu capital econômico: “o artista só pode triunfar no terreno simbólico perdendo no terreno econômico (pelo menos em curto prazo), e inversamente (pelo menos em longo prazo)”. Outro componente diz respeito à relação hierárquica entre os gêneros do discurso que o campo engendra e que nele circulam. Essa hierarquia estabelece uma gradação entre os gêneros que melhor representam o campo e aqueles que estão em suas margens. O prestígio do agente se mede pelo modo de acesso aos gêneros “maiores” e aos “menores”. Por exemplo, no jornal impresso, os jornalistas dominantes têm acesso aos editoriais, a artigos assinados, à edição da primeira capa, enquanto os iniciantes se distribuem entre as notícias e reportagens não assinadas do interior do caderno. O prestígio do cientista pode ser medido pelas possibilidades de produção e de publicação dos gêneros dominantes nos veículos mais valorizados, que se constituem pela arbitragem dos pares. O valor do gênero também pode ser medido pelas características do seu público-alvo: em determinados campos, os gêneros voltados aos pares costumam ser mais valorizados do que os produzidos para agentes externos. No campo científico, os artigos publicados em revistas internacionalmente reconhecidas e voltados para cientistas são dominantes em relação a manuais de iniciação ou artigos de divulgação científica em jornal, cujo público é formado, respectivamente, por estudantes e leigos. Um quarto aspecto refere-se ao fato de que o processo histórico de formação do campo acompanha-se de uma reflexão sobre os gêneros e as obras nele produzidas: [...] à medida que o campo se fecha sobre si, o domínio prático das aquisições específicas de toda a história do gênero que estão
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objetivadas nas obras passadas e registradas, codificadas, canonizadas por todo um corpo de profissionais da conservação e da celebração, historiadores da arte e da literatura, exegetas, analistas, faz parte das condições de entrada no campo de produção restrita. A percepção exigida pela obra produzida na lógica do campo é uma percepção diferencial, distintiva, comprometendo na percepção de cada obra singular o espaço das obras compossíveis, logo, atenta e sensível às variações com relação a outras obras, contemporâneas e também passadas.29
O conhecimento dos gêneros é imprescindível para a inserção em um determinado campo da produção cultural. Entretanto, o processo social de atualização varia de campo para campo. Nas artes, as rupturas nos gêneros e a inversão hierárquica dos mesmos constituem uma aposta capaz de marcar época e fazer nomes de prestígio. No campo científico, verifica-se um crescimento de manuais e regras de codificação dos gêneros aí produzidos, sendo o seu domínio indispensável para o sucesso. O investimento dos agentes, aqui, é maior no deslocamento dos temas e das categorias de percepção e de apreciação do real. O quinto aspecto compreende a elaboração de uma linguagem própria que seja parte do processo de emergência de um campo: “entre todas as invenções que acompanham a emergência do campo de produção, uma das mais importantes é, sem dúvida, a elaboração de uma linguagem propriamente artística”. Assim como nas artes, os demais campos produzem uma linguagem própria para nomear e caracterizar os agentes e seus produtos. Essa linguagem elabora esquemas de classificação e de apreciação que visam, dentro da lógica interna do campo, construir hierarquias e modos de percepção. Por fim, a autonomia do campo pode se construir sob o preceito da primazia da forma sobre a função, ou do estilo sobre o conteúdo: “coagir a linguagem para coagir a atenção para a linguagem, tudo isso equivale, em definitivo, a afirmar a especificidade e o caráter insubstituível do produto e do produtor, ressaltando o aspecto mais específico e mais insubstituível do ato de produção”.30 Aqui deparamo-nos com um princípio específico do campo de produção artístico. O modo de valorização do estilo se dá de forma distinta nos campos sociais. Enquanto o campo artístico valoriza os 151
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outros conceitos-chave
efeitos de estilo sobre o conteúdo, o campo científico se constitui em uma lógica distinta, ou seja, seus gêneros são elaborados em função da produção de efeito de teoria ou de objetividade. O que vale no campo científico é que o estilo deve subordinar-se à exposição de conceitos e categorias de análise, capazes de fazer avançar o estado de conhecimentos da área. A noção de campo remete sempre a uma realidade social plural, isto é, à diversidade de manifestações da atividade humana e de seus modos de organização em uma dada formação social. Essa pluralidade se deve a dois componentes inter-relacionados constitutivos do campo: a sua autonomia relativa e a sua capacidade de refração das demandas externas. A autonomia se mede pela capacidade de transformar as demandas externas, originárias das outras esferas e de uma base socioeconômica comum. Essa refração ou transformação ocorre em razão das relações objetivas entre os agentes, as instituições, e do diálogo entre as obras de um campo. A autonomia não significa, entretanto, indiferença e impermeabilidade em relação às demandas externas, as quais, embora interfiram na dinâmica interna de um campo, não se refletem diretamente nas suas produções ideológicas. Portanto, a influência de uma determinada transformação social em uma obra tem que ser analisada em razão das especificidades do campo.
CAMPOS E GÊNEROS DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA A divulgação científica é uma prática discursiva em expansão na sociedade brasileira. A dificuldade em defini-la, seja como gênero discursivo, seja como discurso segundo – derivado do científico –, deve-se, em grande parte, à diversidade de esferas/campos nos quais ocorre. Ela assumirá características próprias, em razão das coerções sociodiscursivas de três campos: o científico, o educacional e o jornalístico. Cada um deles é formado por gêneros próprios, que representam um segundo nível de coerções ou de normas. No campo científico, a divulgação costuma assumir a forma do gênero artigo, com um público-alvo mais restrito, normalmente composto por cientistas de outras áreas (um biólogo escrevendo para químicos, físicos, matemáticos, etc.), universitários e pós-graduandos de uma forma geral. Bueno chama essa modalidade de disseminação extrapar. 152
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No campo educacional, ela está presente em gêneros como os livros e manuais didáticos, a aula (expositiva, seminário, estudo do texto, etc.), livros paradidáticos, etc. Seu público-alvo é composto por estudantes divididos por faixa etária e nível de escolaridade, os quais, quando inseridos na instituição universitária, podem vir a se tornar pares do campo científico. No campo jornalístico, ela toma a forma dos gêneros notícia, reportagem, artigo, perguntas do leitor. Dirige-se a um público amplo, variável em função do meio tecnológico de difusão, e recebe o nome de jornalismo científico. As revistas especializadas (Galileu, Superinteressante, Scientific American Brasil) e os jornais escritos diários (Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil), embora se voltem ao leigo, têm leitores com características socioeconômico-culturais mais restritas: pertencem às classes A e B, moram sobretudo nas cidades, freqüentam ou freqüentaram o sistema educacional até, pelo menos, a universidade, e são consumidores de produtos culturais menos populares (livros, revistas, jornais, cinema, teatro, obras de arte, etc.). A televisão atinge um público mais amplo e heterogêneo, formado tanto por aquele que acabamos de descrever, quanto por camadas mais populares e menos escolarizadas. A divulgação da ciência em jornais e revistas assume particularidades discursivas que são produzidas por cinco coerções constitutivas do campo/ esfera jornalístico: a atualidade, a periodicidade, a objetividade, a informatividade e a captação do leitor. A atualidade caracteriza o jornalismo como um relato dos acontecimentos contemporâneos à sua realização. Esse aspecto é responsável pela falta de perspectiva histórica dos fatos narrados, que são apresentados como um presente sem história. Em razão disso, prevalecem o relato de novas descobertas científicas, apresentadas sem o processo histórico e sem a tradição que permitiu o seu aparecimento, e a explicação de um procedimento científico, atrelado a algum fato da atualidade de outra área, como vemos na reportagem de O Estado de S.Paulo, “Cientistas criticam mistura de temas”, de 3 de março de 2005. A explicação da obtenção de células-tronco é motivada pela votação, no Congresso Nacional brasileiro, de um projeto de lei, ou seja, um fato político da atualidade é o gancho para a divulgação científica.
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outros conceitos-chave
A periodicidade está na base do ritmo das publicações. Segundo Bueno, ela, no caso da ciência, está menos atrelada ao ritmo de edição dos veículos jornalísticos, que em conformidade com o desenvolvimento peculiar da ciência. Entretanto, como vimos na coerção da atualidade, a ciência, ao ser refratada pelo campo jornalístico, está sujeita não só à periodicidade do campo científico, mas dependente de acontecimentos de outros domínios (político, econômico, cotidiano, etc.). A informatividade estabelece uma relação de interlocução jornalística, baseada na detenção de uma informação pelo jornalista e no interesse do 154
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leitor em obtê-la. Essa informatividade é condicionada pelo leitor leigo do jornal, que precisa de informações sobre conceitos e procedimentos científicos, desnecessários para cientistas do campo. A utilização do infográfico na reportagem de O Estado de S.Paulo fornece, de forma esquemática, a explicação dos procedimentos para obtenção de células-tronco. A objetividade é produzida por meio de recursos enunciativos que mostram os acontecimentos noticiados como anteriores e independentes da instância jornalística, cujo papel é registrar e relatar fatos de forma imparcial. No gênero reportagem jornalística, a objetividade é produzida com a utilização maciça do discurso citado de atores detentores de legitimidade social para falar sobre o tema. Essa utilização produz o efeito de duplicação do real ou de reprodução das falas dos envolvidos nos fatos. O texto da reportagem de O Estado de S.Paulo é composto, majoritariamente, pela transmissão das vozes de três atores sociais: o ambientalista Ventura Barbeiro, o advogado Reginaldo Minaré e o pesquisador Aluízio Borém. Entre os três, a voz do cientista tem o estatuto de autoridade legítima, o que faz com que a escolha do sujeito-tópico do título da reportagem recaia sobre os “Cientistas”. Por fim, a captação do leitor é constitutiva do caráter comercial dos veículos de comunicação de massa, os quais sobrevivem da venda do seu produto. Na verdade, a quase totalidade das receitas das empresas de comunicação provém de verbas publicitárias, que são proporcionais à capacidade de captação do público-alvo e do prestígio do veículo. O jornalismo científico apresenta maior apelo junto ao público-leitor, quanto maior for seu impacto sobre a vida cotidiana e sua capacidade de trazer soluções para ela. Os leitores estão menos interessados nos conhecimentos científicos em si que nas suas aplicações terapêuticas, fato que explica o predomínio das áreas da medicina e da biologia no noticiário jornalístico. Na reportagem em questão, o infográfico, que domina a maior parte do espaço e é o elemento de maior captação da atenção do leitor, traz uma explicação sobre as fontes embrionárias das células-tronco e não sobre as pesquisas com transgênicos, também contidas no texto da reportagem. Outro dado semelhante a este é o tema do último parágrafo que aponta o potencial terapêutico das células-tronco para a cura de lesões e de doenças como Parkinson e Alzheimer.
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outros conceitos-chave
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A análise comparativa das duas obras procurou evidenciar as suas semelhanças, as suas diferenças e os pontos de articulação que se mostraram pertinentes. A recente retradução do livro Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin, substitui, em muitos momentos, o termo esfera por campo, fato que facilita a aproximação dos conceitos nas duas obras. Entretanto, as traduções em inglês, em francês e em espanhol dos livros do Círculo mantêm o termo esfera. Se é certo que campo corresponde à tradução dos textos de Pierre Bourdieu, a palavra esfera parece, no momento, ser a mais adequada para o Círculo, embora ocorra uma oscilação terminológica nas traduções brasileiras. Os conceitos de esfera e de campo testemunham a atenção à diversidade das manifestações culturais humanas presente nas duas obras. Com isso, eles proporcionam uma compreensão mais ampla das produções ideológicas, que sofrem as coerções e adquirem um valor relativo no domínio em que são produzidas (literatura, ciência, religião, mídia, educação, etc.). A linguagem é o terreno comum sobre o qual se assentam todos os campos/esferas, adquire especificidades e é responsável pela identidade de cada um deles. É importante ainda salientar que o campo/esfera é um conceito fundamental para o estudo e a classificação dos gêneros discursivos. A relação de um texto com outros da mesma espécie passa pela sua inserção em determinado domínio cultural, adquirindo um modo próprio de refratar a realidade em seus diversos aspectos. Na obra de Bourdieu, a ênfase recai sobre a hierarquia entre os gêneros e sobre o seu acesso desigual pelos agentes de um mesmo campo. A compreensão das práticas de divulgação científica na sociedade brasileira passa pela consideração das influências dos diferentes campos e gêneros nos quais elas ocorrem.
NOTAS 1
A exposição de conceitos dessa malha conceitual, a partir de análises do conjunto da obra bakhtiniana, pode ser encontrada no livro organizado por Brait, Bakhtin: conceitos-chave, São Paulo, Contexto, 2005.
2
No domínio das ciências da linguagem e da literatura, podemos lembrar a utilização dos conceitos de polifonia, de enunciado, de plurilingüismo e de gêneros do discurso, entre outros, pelos
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teóricos franceses Jacqueline Authier-Revuz, Dominique Maingueneau, Oswald Ducrot, Tzvetan Todorov, Julia Kristeva. 3
M. Bakhtin e V. Voloshinov, Marxismo e filosofia da linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira, 6. ed., São Paulo, Hucitec, 1992, p. 72. (Original russo, 1929.)
4
“L’exemple de Sartre, l’intellectuel par excellence, capable de vivre comme il les dit et comme pour les dire des “expériences” produites par et pour l’analyse, c’est-à-dire des ces choses qui méritent d’être vécues parce qu’elles méritent d’être racontées, fait voir que, comme l’objectivisme universalise le rapport savant à l’objet de la science, le subjectivisme universalise l’expérience que le sujet du discours savant se fait de lui-même en tant que sujet.” Pierre Bourdieu, Le sens pratique, Paris, Minuit, 1980, p.77.
5
M. Bakhtin e V. Voloshinov, op. cit., p. 83.
6
“Il suffit d’ignorer la dialectique des structures objectives et des structures incorporées qui s’opère dans chaque action pratique pour s’enfermer dans l’alternative canonique qui, renaissant sans cesse sous de nouvelles formes dans l’histoire de la pensée sociale, voue ceux qui entendent prendre le contrepied du subjectivisme, comme aujourd’hui les lecteurs structuralistes de Marx, à tomber dans le fétichisme des lois sociales; convertir en entités transcendantes, qui sont aux pratiques dans le rapport de l’essence à l’existence, les constructions auxquelles la science doit avoir recours pour rendre raison des ensembles structurés et sensés que produit l’accumulation d’innombrables actions historiques, c’est réduire l’histoire à un “processus sans sujet” et substituer simplement au “sujet créateur” du subjectivisme un automate subjugué par les lois mortes d’une histoire de la nature. Cette vision émanatiste qui fait de la structure, Capital ou Mode de production, une entéléchie se développant elle-même dans un processus d’autoréalisation, réduit les agents historiques au role de “supports” (Träger) de la structure et leurs actions à de simples manifestations épiphénoménales du pouvoir qui appartient à la structure de se développer selon ses propres lois et de déterminer ou de surdéterminer d’autres structures.” Pierre Bourdieu, op. cit., p.70.
7
Mikhail Bakhtin passou toda sua vida (1895-1975) na Rússia. Suas primeiras obras datam do início década de 1920. Pierre Bourdieu nasceu e viveu na França entre 1930 e 2002. Começa a publicar no final da década de 1950.
8
Para conferir a importância do conceito de interação verbal no conjunto da obra do Círculo, ler o artigo de Brait (2002).
9
M. Bakhtin e V. Voloshinov, op. cit., p. 123.
10
M. Bakhtin e V. Voloshinov, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. Contribution à une poétique sociologique, em Tzvetan Todorov, Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine, Paris, Seuil, 1981, pp. 181-215. (Original russo, 1926.)
11
“With the ideological horizon of every epoch, there is a value center toward which all the paths and aspirations of ideological activity lead.” M.Bakhtin, P. Medvedev, The formal method in literary scholarship: a critical introduction to sociological poetics, trad. Albert J. Wehrle, Maryland, Johns Hopkins Press, 1991, p. 157. (Original russo, 1928.)
12
Beth Brait, Interação, gênero e estilo, em D. Preti (org.), Interação na fala e na escrita, São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP, 2002, pp. 125-57.
13
“Echappant à l’alternative des forces inscrites dans l’état antérieur du système, à l’extérieur des corps, et des forces intérieurs, motivations surgies, dans l’instant, de la décision libre, les dispositions intérieures, intériorisation de l’extériorité, permettent aux forces extérieures de s’exercer, mais selon la logique spécifique des organismes dans lesquels elles sont incorporées, c’est-à-dire de
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outros conceitos-chave
manière durable, systématique et non mécanique; système acquis de schèmes générateurs, l’habitus rend possible la production libre de toutes les pensées, toutes les perceptions et toutes les actions inscrites dans les limites inhérentes aux conditions particulières de sa production, et de celles-là seulement. A travers lui, la structure dont il est le produit gouverne la pratique, non selon les voies d’un déterminisme mécanique, mais au travers des contraintes et des limites originairement assignées à ses inventions. [...] Parce que l’habitus est une capacité infinie d’engendrer en toute liberté (contrôlée) des produits – pensées, perceptions, expressions, actions – qui ont toujours pour limites les conditions historiquement et socialement situées de sa production, la liberté conditionnée et conditionnelle qu’il assure est aussi éloignée d’une création d’imprévisible nouveauté que d’une simple reproduction mécanique des condionnements initiaux.” Pierre Bourdieu, op. cit., p. 92. 14
“Le sens pratique, nécessité sociale devenue nature, convertie en schèmes moteurs et en automatismes corporels, est ce qui fait que les pratiques, dans et par ce qui en elles reste obscur aux yeux de leurs producteurs et par où se trahissent les principes transsubjectifs de leur production, sont sensées, c’est-à-dire habitées par un sens commun. C’est parce que les agents ne savent jamais complètement ce qu’ils font que ce qu’ils font a plus de sens qu’ils ne le savent.” Idem, p. 116.
15
“Les évaluations sous-entendues prennent dans ce cas une signification particulièrement importante. En effet, les principales évaluations sociales, qui s’enracinent immédiatement dans les particularités de la vie économique du groupe social donné ne sont pas le plus souvent énoncées: elles sont entrées dans la chair et dans le sang de tous les représentants de ce groupe; elles organisent les actions et la conduite des gens; elles sont en quelque sorte soudées aux choses et aux phénomènes correspondants; c’est pourquoi elles ne requièrent pas de formulations verbales particulières. [...] Si l’évaluation est effectivement conditionnée par la vie même de la collectivité donnée, elle est alors admise à la manière d’un dogme, comme quelque chose qui va de soi et ne prête pas à discussion. Inversement, si l’évaluation fondamentale est énoncée et démontrée, c’est qu’elle est devenue douteuse, qu’elle s’est détachée de son objet, qu’elle a cessé d’organiser la vie et, par conséquent, que son lien avec les conditions d’existence de la collectivité a été rompu.” Bakhtin/Voloshinov, 1926/1981, p. 193.
16
“Method must of course be adapted to the object. On the other hand, without a definite method there can certainly be no approach to the object. It is necessary to be able to isolate the object of study and correctly make note of its important features. These distinctive features are not labeled. Other movements see other aspects of the object as distinctive features. [...] Primary approaches and orientations must be set in the broad methodological context. Literary scholarship enters the sphere of other disciplines. It must be oriented in this sphere, must be in harmony with the methods and objects of allied disciplines. The interrelationships of disciplines must reflect the interrelationships of their objects.” Bakhtin/Medvedev, 1928/1991, pp. 77-8.
17
Pierre Bourdieu, As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário, trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo, Companhia. das Letras, 1996, p. 251. (Original francês, 1992.)
18
Em especial, os textos: “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. Contribution à une poétique sociologique” (1926/1981), “The formal method in literary scholarship: a critical introduction to sociological poetics” (1928/1991), “Marxismo e filosofia da linguagem” (1929/ 1992) e “Problemas da poética de Dostoiévski” (1929/1997).
19
“La communication artistique s’enracine donc dans une infraestrutucture qu’elle partage avec les autres formes sociales, mais elle conserve, non moins que ces autres formes, un caractère propre”. M. Bakhtin e V. Voloshinov, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie. Contribution à une poétique sociologique, em Tzvetan Todorov, Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique. Suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine, Paris, Seuil, 1981, pp. 187. (Original russo, 1926.)
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20
M. Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1997, p. 90. (Original russo, 1929.)
21
M. Bakhtin e V. Voloshinov, Marxismo e filosofia da linguagem, trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira, 6. ed., São Paulo, Hucitec, 1992, p. 33.
22
Idem, p. 38.
23
M. Bakhtin, Os gêneros do discurso, em Estética da criação verbal, trad. Paulo Bezerra, São Paulo, Martins Fontes, 2003. p. 289. (Original russo, 1979.)
24
Idem, p. 298.
25
Idem, p. 301.
26
Pierre Bourdieu, op. cit. 1996, pp. 254-5. (Original francês, 1992.)
27
Pierre Bourdieu, Os usos sociais da ciência, Por uma sociologia clínica do campo científico, trad. Denice B. Catani, São Paulo, Unesp, 2004, pp. 21-2. (Original francês, 1997.)
28
M. Bakhtin, Os gêneros do discurso, em Estética da criação verbal, op. cit., p. 297.
29
Pierre Bourdieu, op. cit., 1996, pp. 273, 280.
30
Idem, p. 334.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Interdiscursividade e intertextualidade José Luiz Fiorin
Nam ubi ea uiderunt qui futura cecinerunt, si nondum sunt? Neque enim potest uideri id quod non est. Et qui narrant praeterita, non utique uera narrarent, si animo illa non cernerent: quae si nulla essent, cerni omnino non possent.1 (Santo Agostinho) Só não existe o que não pode ser imaginado. (Murilo Mendes) Exister, c’est coexister. (Gabriel Marcel)
Agostinho, em sua bela reflexão sobre o tempo, mostra-nos, ao discutir a existência do passado e do futuro, que só se pode falar do que é e não daquilo que não é. Conclui pela existência do passado e do futuro porque falamos dele. Sunt ergo et futura et praeterita. Essas reflexões agostinianas vêm bem a propósito, quando se trata de explicar o problema da interdiscursividade e da intertextualidade em Bakhtin. Se formos ater-nos
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ao significante, não temos o que dizer, pois, na obra bakhtiniana, não ocorrem os termos interdiscurso, intertexto, interdiscursivo, interdiscursividade, intertextualidade. No conjunto da obra do autor russo aparece uma única vez o termo intertextual: “As relações dialógicas intertextuais e intratextuais. Seu caráter específico (extralingüístico). Diálogo e dialética” (Bakhtin, 1992, p. 331). No entanto, a primeira coisa a verificar diante dessa ocorrência é se ela se trata de um problema de tradução. Como a tradução brasileira foi feita a partir do francês, consultou-se primeiro o texto em francês, em que a palavra também aparece: “Les rapports dialogiques intertextuels et intratextuels. Leur caractère particulier (extra-linguistique). Dialogique et dialectique” (Bakhtin, 1984, p. 313). Como, no entanto, a tradução francesa certamente estaria impregnada das ressonâncias da obra de Kristeva, que introduziu Bakhtin na França, seria preciso consultar outras traduções feitas a partir do texto russo. Tomando a tradução espanhola, nota-se que nela o termo não ocorre: “Las relaciones dialógicas entre los textos y dentro de los textos. Su carácter específico (no lingüístico). El diálogo y la dialéctica” (Bakhtin, 1985, p. 296). Essa tradução parece mais fiel ao texto russo (Bakhtin, 1986, p. 299). Assim, não há nem mesmo o termo intertextual na obra bakhtiniana2 e esse verbete, portanto não teria lugar. No entanto, a questão é mais complexa, pois, como nota Sírio Possenti, “sob diversos nomes – polifonia, dialogismo, heterogeneidade, intertextualidade – cada um implicando algum viés específico, como se sabe, o interdiscurso reina soberano há algum tempo” (Possenti, 2003, p. 253). Assim, a questão é: a) verificar se, sob outro nome, a questão do interdiscurso está presente na obra de Bakhtin; b) examinar se é possível distinguir, com base nas idéias bakhtinianas, interdiscursividade e intertextualidade.
O APARECIMENTO DO TERMO INTERTEXTUALIDADE A palavra intertextualidade foi uma das primeiras, consideradas como bakhtinianas, a ganhar prestígio no Ocidente. Isso se deu graças à obra de Júlia Kristeva. Obteve cidadania acadêmica, antes mesmo de termos como dialogismo alcançarem notoriedade na pesquisa lingüística e literária. Rastreemos brevemente a história do aparecimento desse termo. 162
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Em 1967, Kristeva publica, na Critique, uma longa discussão acerca das teorias bakhtinianas expostas nas obras Problemas da poética de Dostoiévski e A obra de François Rabelais (Kristeva, 1967, pp. 438-65).3 A preocupação da semioticista era discutir o texto literário. Segundo ela, para Bakhtin, o discurso literário “não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escrituras” (Idem, p. 439). Todo texto constrói-se, assim, “como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (Idem, p. 440). Em sua leitura da obra de Bakhtin, Kristeva identifica discurso e texto: “O discurso (o texto) é um cruzamento de discursos (de textos) em que se lê, pelo menos, um outro discurso (texto)” (Idem, p. 84). Afirma ainda que, no lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade (Idem, p. 441). Bakhtin opera com a noção de intertextualidade, porque considera que o “diálogo é a única esfera possível da vida da linguagem” (Idem, p. 443). Por isso, ele vê “a escritura como leitura do corpus literário anterior e o texto como absorção e réplica a um outro texto” (Idem, p. 444). Está aí entronizada a noção de intertextualidade como procedimento real de constituição do texto. Mais tarde, Kristeva vai elaborar a proposta teórica de uma ciência do texto, a que denominou Semanálise (Kristeva, 1974). No entanto, essa intertextualidade generalizada não pode funcionar se se vê o texto da maneira como tradicionalmente ele foi definido. Por isso, Kristeva trata de repensar essa noção. Roland Barthes, em verbete para a edição de 1973 da Encyclopedia universalis, explica, de maneira didática, esse conceito redefinido pela semioticista búlgara (Barthes, 1994, pp. 1.677-89). Segundo a opinião corrente, o texto é “a superfície fenomênica da obra literária: é o tecido das palavras utilizadas na obra e organizadas de maneira a impor um sentido estável e tanto quanto possível único” (Idem, p. 1.677). Como diz Barthes, no fundo, ele não passa de “um objeto perceptível pelo sentido da visão” (Idem, ibid.). Como o texto é “o que está escrito”, ele é, na obra, o que suscita a garantia da coisa escrita, cujas funções de salvaguarda ele concentra: de um lado, a estabilidade, a permanência da inscrição, destinada a corrigir a fragilidade e a imprecisão da memória; de outro, a legalidade da letra, traço irrecusável, indelével, do sentido que o autor da obra nela intencionalmente depositou. O texto é uma arma contra o tempo, o esquecimento, e contra as velhacarias
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da palavra, que, muito facilmente, volta atrás, altera-se, renega-se. A noção de texto está, portanto, historicamente ligada a todo um conjunto de instituições: direito, Igreja, literatura, ensino; o texto é um objeto moral: é o que está escrito, enquanto participa do contrato social; ele assujeita, exige ser observado e respeitado; mas em troca confere à linguagem um atributo inestimável (que em sua essência ela não tem): a segurança. (Idem, ibid.)
O texto assim concebido, como “depositário da própria materialidade do significante” (Idem, p. 1.678), deveria ser mantido em sua exatidão. Para isso, cria-se a filologia, que se vale da técnica da crítica textual. Essa concepção de texto está ligada a uma metafísica, a da verdade. Ora, no final do século XIX, começa-se a demolir essa metafísica. Por isso, também a noção de texto entra em xeque (Idem, pp. 1.677-80). Citando Kristeva, Barthes redefine o texto: “aparelho translingüístico que redistribui a ordem da língua colocando em relação uma palavra comunicativa, que visa à informação direta, com diferentes enunciados anteriores ou sincrônicos” (Idem, p. 1.680). Atribui a Kristeva a elaboração dos principais conceitos teóricos implicados nessa noção de texto: práticas significantes, produtividade, significância, fenotexto e genotexto e intertextualidade. Dizer que o texto é prática significante quer dizer que “a significação se produz, não no nível de uma abstração (a língua), tal como postulara Saussure, mas como uma operação, um trabalho, em que se investem, ao mesmo tempo e num só movimento, o debate do sujeito e do Outro e o contexto social” (1994, p. 1.681). O texto é uma produtividade, porque é o teatro do trabalho com a língua, que ele desconstrói e reconstrói (Idem, ibid.). É significância, porque é um espaço polissêmico, onde se entrecruzam vários sentidos possíveis. A significância é um processo, em que o sujeito se debate com o sentido e se descontrói (Idem, p. 1.682). O fenotexto é “o fenômeno verbal tal como ele se apresenta na estrutura do enunciado concreto”. É contingente. Já o genotexto é o campo da significância, domínio verbal e pulsional, onde se estrutura o fenotexto, lugar da constituição do sujeito da enunciação (Idem, pp. 1.682-3). “Todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis” (Idem, p. 1.683). A intertextualidade é a maneira real de construção do texto (Idem, ibid.). 164
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Como se observa, o conceito de texto em Kristeva e Barthes, na medida em que é prática significante, em que desconstrói e reconstrói a língua, em que é o lugar de constituição do sujeito, em que seu modo de funcionamento real é a relação constitutiva com outros textos, poderia muito facilmente recobrir aquilo que entendemos por discurso. Aliás, esse conceito de texto apresenta um problema, que é distinguir, de um lado, manifestação acabada do trabalho com a língua e, de outro, esse próprio trabalho. Não é sem razão que Kristeva teve de diferençar o fenotexto do genotexto. E Barthes faz uma distinção entre o texto e a obra. Esta é um objeto acabado, aquele é um trabalho, uma produção (Idem, p. 1684). Cabe uma última pergunta: por que esses autores não utilizaram o termo discurso? Porque, segundo Barthes, esse termo estava comprometido semanticamente. A linguagem estava dividida em duas regiões distintas e heterogêneas para fins de análise: tudo o que era de nível inferior ou igual à frase era do domínio da Lingüística; tudo o que estava no nível superior ao da frase, o discurso, era objeto de uma ciência normativa, a retórica (Idem, ibid.). Barthes não desqualifica a Lingüística, nem a retórica, nem a semiótica, nem a semiologia. Apenas propugna a constituição de uma semanálise, que teria um objeto, o texto, diverso daqueles dos campos do conhecimento acima citados. A semiótica, por exemplo, para ele, estudaria o fenotexto. Ora, nesse conjunto de níveis e de objeto, o que é exatamente a intertextualidade? Qualquer referência ao Outro, tomado como posição discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens, variantes lingüísticas, lugares comuns, etc. O conceito foi sendo utilizado de maneira muito frouxa, ao longo do tempo. É hora, entretanto, de voltar à obra de Bakhtin e começar a discutir os problemas enunciados na introdução.
A QUESTÃO DO INTERDISCURSO EM BAKHTIN Em Bakhtin, a questão do interdiscurso aparece sob o nome de dialogismo. É preciso examinar mais detidamente esse conceito. Cumpre, no entanto, inicialmente, afastar duas leituras recorrentes da obra bakhtiniana: a) dialogismo equivale a diálogo, no sentido de interação face 165
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a face; b) há dois tipos de dialogismo: o dialogismo entre interlocutores e o dialogismo entre discursos (cf., por exemplo, Authier, 1982, pp. 118-9). Essas duas afirmações parecem equivocadas. Bakhtin, em O problema do texto, afirma; O diálogo real (conversa comum, discussão científica, controvérsia política, etc.). A relação existente entre as réplicas de tal diálogo oferece o aspecto externo mais evidente e mais simples da relação dialógica. Não obstante, a relação dialógica não coincide de modo algum com as relações existentes entre as réplicas de um diálogo real, por ser mais extensa, mais variada e mais complexa. (Bakhtin, 1992, pp. 353-4)
O dialogismo não se confunde com a interação face a face (cf. Bakhtin, 1998, p. 92). Essa é uma forma composicional em que ocorrem relações dialógicas, que se dão em todos os enunciados no processo de comunicação, tenham eles a dimensão que tiverem. Não se pode, portanto, pensar o dialogismo como algo que possa reduzir-se aos estudos que faz, por exemplo, a Análise da Conversação. Em segundo lugar, não se pode dizer que haja dois dialogismos: entre interlocutores e entre discursos. O dialogismo é sempre entre discursos. O interlocutor só existe enquanto discurso. Há, pois, um embate de dois discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo se dá sempre entre discursos. Isso fica claro quando Bakhtin discute a questão do que chama as “ciências do espírito” e o problema da “compreensão”: O espírito (o próprio e o do outro) não pode ser dado enquanto objeto (objeto diretamente observável nas ciências naturais), mas somente na expressão que lhe dará o signo, na realização que lhe dará o texto – em se tratando de si mesmo e do outro. [...] O gesto natural na representação do ator que adquire valor de signo (a título de gesto deliberado, representado, submetido ao desígnio do papel). [...] O estenograma do pensamento humano é sempre o estenograma de um diálogo de tipo especial: a complexa interdependência entre o texto (objeto de análise e de reflexão) e o contexto que o elabora e o envolve (contexto interrogativo, contestatório, etc.) através do qual se realiza o pensamento do sujeito que pratica o ato da cognição e do juízo. Há encontro de dois
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textos, do que está concluído e do que está sendo elaborado em relação ao primeiro. Há, portanto, encontro de dois sujeitos, de dois autores. (Idem, pp. 332-4).
Mas o que é efetivamente dialogismo em Bakhtin? Interessam-nos dois sentidos: a) é o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto, é seu princípio constitutivo; b) é uma forma particular de composição do discurso.4
Por que o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem? Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com ela é sempre mediada pela linguagem. Afirma Bakhtin que “não se pode realmente ter a experiência do dado puro” (Bakhtin, 1993, p. 32). Isso quer dizer que o real se apresenta para nós semioticamente, o que implica que nosso discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que semiotizam o mundo. Essa relação entre os discursos é o dialogismo. Como se vê, se não temos relação com as coisas, mas com os discursos que lhes dão sentido, o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem, uma vez que [...] todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado, sempre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico. (Bakhtin, 1998, p. 86)
Como não existe objeto que não seja cercado, envolto, embebido em discurso, todo discurso dialoga com outros discursos, toda palavra é cercada de outras palavras (Bakhtin, 1992, p. 319). 167
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Bakhtin, ao contrário do que faz crer certa leitura eivada de marxismo vulgar, não nega a existência do sistema da língua, já que, “por trás de todo texto, encontra-se o sistema da língua” (Idem, p. 331).5 Não condena seu estudo; ao contrário, considera-o necessário para estudar as unidades da língua (Idem, pp. 357-8). No entanto, mostra que ele não dá conta do modo de funcionamento real da linguagem (Idem, pp. 346-7). Por isso, propõe uma outra disciplina, a translingüística,6 que teria por objeto o exame das relações dialógicas entre os enunciados, seu modo de constituição real (Bakhtin, 1970, p. 239; 1992, p. 342). As palavras e as orações são as unidades da língua, enquanto os enunciados são as unidades reais de comunicação. As primeiras são repetíveis, os segundos, irrepetíveis, são sempre acontecimentos únicos (Idem, pp. 334-5; p. 287; pp. 295-7; p. 332). Bakhtin, diante da irreprodutibilidade do enunciado, pergunta-se se a ciência pode tratar de uma individualidade tão irrepetível, que estaria fora do domínio do conhecimento científico – que deve tender à generalização. Responde que, em seu ponto de partida, a ciência trabalha com singularidades. Depois, faz generalizações sobre a forma específica e a função dessas singularidades, o que significa, no caso da translingüística, estudar os aspectos e as formas da relação dialógica que se estabelece entre os enunciados e entre suas formas tipológicas (Idem, p. 335). Não é a dimensão que determina o que é um enunciado: ele pode ser desde uma réplica monolexemática até um romance em vários tomos (Idem, p. 305). O que delimita sua fronteira é a alternância dos sujeitos falantes. Isso significa que o enunciado é uma réplica de um diálogo que se estabelece entre todos eles (Idem, p. 298). Nesse caso, o dialogismo é constitutivo do enunciado, ele não existe fora do dialogismo: Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem auto-suficientes; conhecemse uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado numa esfera comum da comunicação verbal.
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O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra “resposta” está empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. Não se pode esquecer que o enunciado ocupa uma posição definida numa dada esfera da comunicação verbal relativa a um dado problema, a uma dada questão, etc. Não podemos determinar nossa posição sem correlacioná-la a outras posições. (Idem, p. 316)
A relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se justapostos no plano do sentido (não como objeto ou exemplo lingüístico), entabularão uma relação dialógica (Idem, pp. 345-6). A primeira característica de um enunciado é ter um autor, ao passo que as unidades da língua não pertencem a ninguém. Os enunciados revelam sempre uma posição de autoria (Bakhtin, 1963, pp. 240-1; 1992, p. 308). É por isso que as relações dialógicas não são relações lógicas ou semânticas, mas relações entre distintas posições (Bakhtin, 1963, pp. 24241). O enunciado, sendo como que uma réplica de um diálogo, possui um acabamento específico (Bakhtin, 1992, p. 299). Por isso, ele constitui um todo de sentido (Idem, p. 351) e, por conseguinte, permite uma resposta. As unidades da língua não têm acabamento, não constituem um todo que possibilita uma resposta (Idem, p. 299). As unidades da língua são completas, mas não tem acabamento. A completude é característica do elemento, o acabamento é o que singulariza o todo (Idem, p. 307). A palavra fogo é completa, mas não suscita nenhuma resposta. Só quando adquire uma autoria e ganha um acabamento, transforma-se em enunciado, que denuncia uma situação de perigo e permite ser objeto de uma resposta. Sendo réplicas de um diálogo, os enunciados têm um destinatário, enquanto as unidades da língua não são dirigidas a ninguém (Idem, p. 353). As unidades da língua são neutras, os enunciados contêm necessariamente emoções, juízos de valor, expressões (Idem, pp. 308-12).7 As unidades da língua, puramente potenciais, têm significação, que se determina na relação com outras palavras da mesma língua ou de outra língua (Idem, p. 346). Os enunciados não têm significação, mas sentido (Idem, 169
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p. 355). Se eles são constitutivamente dialógicos, seu sentido é de ordem dialógica (Idem, p. 342 e p. 355). O sentido concreto (distinto da significação) é o conteúdo do enunciado (Idem, p. 310) e sua natureza é dialógica (Idem, pp. 310, 335 e 326). Como se vê, o conceito de enunciado em Bakhtin recobre o que chamamos habitualmente discurso. Adiante, apresentaremos algumas precisões a mais sobre essas correspondências. Quando se diz que o dialogismo é constitutivo do enunciado, está-se afirmando que, mesmo que, em sua estrutura composicional, as diferentes vozes não se manifestem, o enunciado é dialógico. Toda réplica, considerada em si mesma, é monológica, enquanto todo monólogo é dialógico (Idem, pp. 345 e 317-8). Todo enunciado possui uma dimensão dupla, pois revela duas posições: a sua e a do outro. Como nota Faraco, um dos significados da palavra diálogo é o que remete à “solução de conflitos”, “entendimento”, “promoção de consenso”; no entanto, o dialogismo é tanto convergência, quanto divergência; é tanto acordo, quanto desacordo; é tanto adesão, quanto recusa; é tanto complemento, quanto embate (Faraco, 2003, p. 66). Prossegue ainda Faraco, mostrando que, na verdade, “o Círculo de Bakhtin entende as relações dialógicas como espaços de tensão entre os enunciados”, pois, “mesmo a responsividade caracterizada pela adesão incondicional ao dizer de outrem se faz no ponto de tensão deste dizer com outros dizeres (outras vozes sociais)” (Idem, p. 67). Isso significa que, do ponto de vista constitutivo, o dialogismo “deve ser entendido como um espaço de luta entre as vozes sociais” (Idem, ibid.). Assim, pode-se dizer que, constitutivamente, a relação dialógica é contraditória. Exemplifiquemos esse caráter constitutivo do dialogismo. Para isso, tomemos um fragmento do sermão do quinto domingo da Quaresma, de Vieira: Como estamos na corte, onde das casas dos pequenos não se faz caso, nem têm nome de casas, busquemos esta fé em alguma casa grande e dos grandes. Deus me guie. O escudo desta portada em um quartel tem as quinas, em outro as lises, em outro as águias, leões e castelos; sem dúvida este deve ser o palácio em que mora a fé cristã, católica e cristianíssima. Entremos e vamos examinando o que virmos, parte por parte. Primeiro que tudo vejo cavalos, liteiras e coches; vejo criados de
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diversos calibres, uns com libré, outros sem ela; vejo galas, vejo jóias, vejo baixelas; as paredes vejo-as cobertas de ricos tapizes; das janelas vejo ao perto jardins, e ao longe quintas; enfim, vejo todo o palácio e também o oratório; mas não vejo a fé. E por que não aparece a fé nesta casa? Eu o direi ao dono dela. Se os vossos cavalos comem à custa do lavrador, e os freios que mastigam, as ferraduras que pisam e as rodas e o coche que arrastam são dos pobres oficiais, que andam arrastados sem poder cobrar um real, como se há de ver a fé na vossa cavalariça? Se o que vestem os lacaios e os pajens, e os socorros do outro exército doméstico masculino e feminino dependem do mercador que vos assiste, e no princípio do ano lhe pagais com esperanças e no fim com desesperações, a risco de quebrar, como se há de ver a fé na vossa família? Se as galas, as jóias e as baixelas, ou no Reino, ou fora dele foram adquiridas com tanta injustiça ou crueldade, que o ouro e a prata derretidos, e as sedas se se espremeram, haviam de verter sangue, como se há de ver a fé nessa falsa riqueza? Se as vossas paredes estão vestidas de preciosas tapeçarias, e os miseráveis a quem despistes para as vestir a elas, estão nus ou morrendo de frio, como se há de ver a fé, nem pintada nas vossas paredes? Se a Primavera está rindo nos jardins e nas quintas, e as fontes estão nos olhos da triste viúva e órfãos, a quem nem por obrigação, nem por esmola satisfazeis, ou agradeceis o que seus pais vos serviram, como se há de ver a fé nessas flores e alamedas? Se as pedras da mesma casa em que viveis, desde os telhados até os alicerces estão chovendo os suores dos jornaleiros, a quem não fazíeis a féria, e, se queriam ir buscar a vida a outra parte, os prendíeis e obrigáveis por força, como se há de ver a fé, nem sombra dela na vossa casa? (Vieira, 1959, vol. II, tomo 4, pp. 203-4)
Nesse sermão, Vieira fala do que é a fé e resolve mostrá-la no palácio (alguma casa grande) de um nobre (dos grandes). Simula estar entrando, juntamente com os ouvintes por ele convidados, em um palácio de fidalgos muito ricos cujo escudo no alto da portada exibe os signos heráldicos (quinas, lises, águias, leões e castelos) da “fé cristã, católica e cristianíssima” da família. Vai, então, fazendo ver, de um lado, as riquezas da casa, os objetos de luxo, os cavalos e coches, a multidão de criados, as belezas dos jardins e das quintas, etc; de outro, os seres humanos explorados para que essa riqueza possa existir: os pequenos proprietários de terra, a quem não se paga o 171
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que os cavalos comem; os artesãos, a quem não se pagam os objetos (freios, ferraduras, rodas e coches) que fizeram; os mercadores, a quem não se pagam as mercadorias que forneceram; os criados, a quem não se pagam os salários; os diaristas (jornaleiros), a quem não se paga a féria (a diária); as viúvas e os órfãos de criados, a quem se deixa no abandono. Vieira nota, então, que não pode haver fé, sem que se leve uma vida em conformidade com ela, ou seja, deixa claro que não há fé sem as obras correspondentes. A fé cristã, segundo o pregador, exige a justiça com os que trabalham, implica que o trabalho seja remunerado, que a riqueza não se construa sobre a exploração do outro. O sermão de Vieira constitui-se em oposição ao discurso feudal, que defendia os privilégios da nobreza e as relações servis de trabalho, em que os servos tinham obrigação de prestar serviços ao senhor e não podiam mudar de trabalho, pois estavam presos a uma propriedade (“se queriam buscar a vida a outra parte, os prendíeis e obrigáveis pela força”). Em oposição ao discurso que defendia os privilégios da nobreza, dados por seu nascimento, Vieira tem o ponto de vista da sociedade mercantil, que valoriza o trabalho dos operários e dos burgueses (mercadores, etc.); que condena as relações servis de trabalho e defende o assalariamento, em que o operário tem a liberdade de fazer contrato de trabalho com quem quiser; que preconiza que o valor de cada homem não é dado por seu nascimento, mas por sua ação no mundo. Condena vivamente os que dizem ter fé, mas que não praticam as obras correspondentes. O sermão de Vieira faz parte da esfera do discurso religioso, é um discurso jesuítico, pregando que o ser humano se define por sua ação no mundo. Opõe-se ao discurso jansenista, segundo o qual a fé basta para salvar o homem, mesmo que desacompanhada das obras. O discurso religioso de Vieira manifesta uma voz ativista e pragmática, que se constitui numa relação polêmica com o que foi chamado o quietismo, que sustenta que a perfeição consiste na anulação da vontade, na indiferença total em relação aos acontecimentos e na união contemplativa com Deus. Observe-se que mesmo que essas vozes todas não sejam mostradas no enunciado, elas constituem o enunciado de Vieira, pois ele se constrói em oposição a elas, em contradição com elas. É dessa forma que Bakhtin explica a produção da estatuária grotesca, que se constitui em oposição à estatuária clássica (Bakhtin, 1970a, pp. 33-6). 172
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No “simpósio universal” (Bakhtin, 1989, p. 293), que poderíamos interpretar como uma formação social específica, definida pelo presente de seus múltiplos enunciados contraditórios, pelo passado discursivo, a tradição de que é depositária, e pelo futuro discursivo, suas utopias e seus objetivos, atuam forças centrípetas e centrífugas. Aquelas buscam impor uma centralização enunciativa no plurilingüismo da realidade; estas procuram minar, principalmente, por intermédio da derrisão e do riso, essa tendência centralizadora (Bakhtin, 1988, pp. 80-3). As ditaduras são centrípetas; as democracias centrífugas. As ditaduras têm um forte componente narcísico. Com efeito, poderíamos fazer uma leitura dos mitos de Narciso e Eco, à luz do princípio do dialogismo. Esses dois mitos aparecem sempre juntos: em Eco existe a negação radical da identidade, já que ela foi condenada por Juno a jamais ter a iniciativa da palavra; em Narciso ocorre uma recusa total da alteridade, pois ele se apaixona pela própria imagem refletida no espelho das águas de uma fonte. Eco e Narciso são a própria negação do dialogismo. As ditaduras, em seu afã centrípeto, apresentam um forte componente narcísico, tentando negar a alteridade, impondo sua identidade e exigindo que os outros a ecoem. No entanto, essa mesma identidade é constituída dialogicamente (Idem, p. 81). Como observa Faraco, Bakhtin, com os conceitos de forças centrípetas e forças centrífugas, “aponta para a existência de jogos de poder entre as vozes que circulam socialmente” (Faraco, 2003, p. 67). Isso significa que, para o autor russo, não há uma neutralidade na circulação de vozes. Ao contrário, ela tem uma dimensão política. As vozes não circulam fora do exercício do poder; não se diz o que se quer, quando se quer, como se quer. Além desse dialogismo que não se exibe no fio do discurso, há um outro, que nele se mostra. É quando as diferentes vozes são incorporadas no interior do discurso. Dizemos que, nesse caso, o dialogismo é uma forma composicional. É aquilo a que Bakhtin chamará “concepção estreita do dialogismo” ou “formas externas, visíveis”, do dialogismo (Bakhtin, 1992, p. 350). Cabe aqui um esclarecimento. O autor russo não as considera menos importantes. Quando afirma que reduzir o dialogismo a elas é ter uma visão estreita desse fenômeno, quer dizer que o dialogismo vai muito além dessas formas em que as vozes entram na composição do enunciado, pois ele é o próprio modo de funcionamento real do enuncia173
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do, o próprio modo de sua constituição. No entanto, essas formas de incorporação do discurso do outro são a própria maneira de tornar visível esse princípio de funcionamento das unidades reais de comunicação, os enunciados. São modos pelos quais o princípio real de funcionamento da linguagem é enunciado. Há duas maneiras básicas de incorporar distintas vozes no enunciado: a) aquela em que o discurso do outro é “abertamente citado e nitidamente separado” (Idem, p. 318); b) aquela em que o enunciado é bivocal, ou seja, internamente dialogizado (Idem, p. 348 e pp. 337-8; 1970, pp. 24858). Na primeira categoria, entram formas composicionais como o discurso direto e o discurso indireto (Bakhtin, 1979, pp. 141-59), as aspas (Bakhtin, 1992, p. 349), a negação (Bakhtin, 1970, pp. 240-1); na segunda, aparecem formas composicionais como a paródia, a estilização, a polêmica velada ou clara (Idem, pp. 259-60); o discurso indireto livre (Bakhtin, 1979, pp. 160-82). Observemos um exemplo de cada um desses procedimentos composicionais. Para o primeiro, tomaremos um caso de negação. Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era Messias, nem Elias, nem profeta pediram-lhe, finalmente, que, pois eles não acertavam a perguntar, lhes dissesse ele quem era. A esta instância não pôde deixar de deferir o Batista. E o que vos parece que responderia? Ego sum vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que clama no deserto. Verdadeiramente não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que fazia, então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o que o Batista fazia no deserto era dar vozes e clamar; mas se os embaixadores perguntavam ao Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o que fazia: porque cada um é o que faz, e não é outra cousa. As cousas definem-se pela essência: o Batista definiu-se pelas ações; porque as ações de cada um são a sua essência. Definiu-se pelo que fazia, para declarar o que era. Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de ponderar. O Batista, perguntado se era Elias, respondeu que não era Elias: Non sum. E Cristo no capítulo onze de S. Mateus disse que o Batista era Elias: Joannes Baptista ipse est Elias. Pois se
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Cristo diz que o Batista era Elias, como diz o mesmo Batista que não era Elias? Nem o Batista podia enganar, nem Cristo podia enganar-se: como se hão de concordar logo estes textos? Muito facilmente. O Batista era Elias, e não era Elias; não era Elias, porque as pessoas de Elias e do Batista eram diversas; era Elias, porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modéstia do Batista disse que não era Elias, pela diversidade das pessoas; a verdade de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade das ações. Era Elias, porque fazia ações de Elias. Quem faz ações de Elias é Elias; quem fizer ações de Batista será Batista; e quem as fizer de Judas será Judas. Cada um é as suas ações, e não é outra cousa. Oh que grande doutrina esta para o lugar em que estamos! Quando vos perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações. O que fazeis, isso sois, nada mais. Quando ao Batista lhe perguntaram quem era, não disse que se chamava João, nem que era filho de Zacarias; não se definiu pelos pais, nem pelo apelido. Só de suas ações formou a sua definição: Ego vox clamantis. (Vieira, 1959, vol I, tomo 1, pp. 211-3)
No Sermão da Terceira Dominga do Advento, a que esse trecho pertence, Vieira parte do episódio bíblico (João, 1, 19-34), que narra a ida a João Batista de uma embaixada de sacerdotes e levitas de Jerusalém, a fim de perguntar-lhe quem era, e sua resposta de que era a voz que clama no deserto. Com base nessa resposta, Vieira tece uma argumentação, para mostrar que cada um se define por aquilo que faz, pelo seu trabalho. O que importa aqui é analisar a negação que aparece no seguinte trecho: “Quando vos perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações”. Vieira nega o ponto de vista social que afirma que a posição de uma pessoa na sociedade é dada pela família em que nasceu, pelo sangue. Ao contrário, assevera que o que define o ser humano é sua ação no mundo. Mais adiante, em outro trecho desse sermão, negará que a fidalguia, a nobreza, seja uma herança familiar, afirmando que pertence à esfera da ação, do trabalho. Diz que ela não é qualidade nem sangue, mas ação. Esse sermão opõe-se à posição aristocrática de que a nobreza é algo ontológico, um valor herdado pelo nascimento. A essa perspectiva Vieira contrasta a idéia de que a nobreza é uma virtude conquistada no trabalho, de que não há uma ordem social natural. Poderíamos dizer 175
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que à maneira de ver da aristocracia feudal Vieira contrapõe o modo burguês de considerar o mundo. A negação, ao receber um autor, mostra os dois pontos de vista distintos. Para o segundo procedimento, tomemos um caso de discurso indireto livre: Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada! [...] Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa. (Ramos, 1971, pp. 138-9)
No discurso indireto livre, misturam-se duas vozes, a do narrador e a da personagem (em nosso texto, Fabiano). No entanto, faltam elementos lingüísticos, como os dois pontos e o travessão no discurso direto ou a conjunção integrante que no indireto, que determinem a fronteira entre as duas. Há dois tons diferentes, que permitem perceber essas duas vozes: o tom mais ou menos neutro da narração e o tom entre colérico e resignado da personagem. Há frases claramente do narrador (“Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços”); outras que, sem dúvida nenhuma, pertencem à personagem (“Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!”). Outras, no entanto, poderiam ser de um ou de outro (“Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam” poderia ser dita tanto pelo narrador quanto pela personagem). Essa impossibilidade de separação nítida entre a voz do narrador e a da personagem, faz do enunciado em discurso indireto livre um enunciado bivocal. Ao misturar sua voz à da personagem, o narrador revela uma “profunda simpatia” por esse homem submetido a condições “pré-capitalistas” de trabalho, a esse homem espoliado e degradado. É como se o narrador assumisse como sua a indignação da personagem diante da exploração a que estava sujeita. 176
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Cabe perguntar agora se o dialogismo é um fenômeno social ou individual. Em outras palavras, as vozes que estão em relação dialógica são individuais ou sociais? A teoria formulada por Bakhtin leva em conta tanto o que é de ordem individual, quanto o que é do domínio social: O locutor não é um Adão, e por isso o objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se encontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca de qualquer acontecimento da vida cotidiana) ou então as visões de mundo, as tendências, as teorias, etc. (na esfera da comunicação cultural). A visão de mundo, a tendência, o ponto de vista, a opinião têm sempre sua expressão verbal. (Bakhtin, 1992, pp. 319-20)
Ao levar em conta o individual e o social, Bakhtin pretende considerar não só as polêmicas políticas, culturais, econômicas, que refletem visões de mundo diversas, mas também fenômenos como a fala – que se vai moldando pela opinião do locutor imediato ou a reprodução da fala alheia com uma entonação zombeteira, dubitativa, admirativa, indignada, aprovadora, reprovadora, etc. (Idem, pp. 337-8; cf. 1988, pp. 91-3) É toda uma gama de fenômenos que estão presentes na comunicação real. No entanto, a relação entre o individual e o social não é simples nem estanque em Bakhtin. De um lado, Bakhtin mostra que a maioria das opiniões dos indivíduos é social. Todo enunciado, além de um destinatário imediato, que é percebido com maior ou menor consciência, dirige-se a um superdestinatário, cuja compreensão responsiva, idealmente correta, é determinante em sua produção. Esse superdestinatário assume uma identidade que varia de época para época, de formação social para formação social, de grupo social para grupo social: a Igreja, a “correção política”, o partido, a ciência, etc. (Bakhtin, 1992, pp. 356-7). Na medida em que mesmo uma réplica individual numa conversação cotidiana se dirige ao superdestinatário, os enunciados são, na maior parte das vezes, sociais. De outro, não preconiza um sujeito absolutamente assujeitado, o que seria a própria negação da heteroglossia e do dialogismo. Como observa Faraco, a utopia bakhtiniana é “a resistência a qualquer processo centrípeto, centralizador” (Faraco, 2003, p. 72); o dialogismo incessante é “a única forma de preservar a liberdade do ser humano e do seu inacabamento; uma relação, portanto, em que o outro nunca é reificado; em que os sujeitos não se fundem, mas cada um preserva sua 177
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própria posição de extra-espacialidade e excesso de visão e a compreensão daí advinda” (Idem, p. 73-74). A singularidade do sujeito ocorre na “interação viva das vozes sociais” e, por isso, ele é social e singular (Idem, p. 83). Normalmente, quando se fala em dialogismo, pensa-se em relações com enunciados já constituídos e, portanto, enunciados anteriores, passados. No entanto, o enunciado está relacionado não só aos que o precedem, mas também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal. Com efeito, na medida em que um enunciado é elaborado em função de uma resposta, está ligado a essa resposta, que ainda não existe. O locutor sempre espera uma compreensão responsiva ativa e o enunciado se constitui para essa resposta esperada (Bakhtin, 1992, p. 320).
INTERDISCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE Notam Beth Brait e Rosineide de Melo que, como [...] é próprio do pensamento bakhtiniano, a concepção de enunciado/enunciação não se encontra pronta e acabada numa determinada obra, num determinado texto: o sentido e as particularidades vão sendo construídos ao longo do conjunto das obras, indissociavelmente implicados em outras noções paulatinamente construídas. [...] O enunciado concreto, visto dessa perspectiva teórica poderá, ao longo de outras obras (e em diferentes traduções) [...] ser substituído ou fundido na idéia de palavra, de texto, de discurso (e até mesmo de enunciação concreta). (Brait, 2005, p. 65 e 67).
Pelas razões apontadas por Brait e Melo, há uma dificuldade em distinguir os conceitos de texto, enunciado e discurso na obra de Bakhtin. Ora eles se equivalem; ora se distinguem. Para nossos propósitos, tomaremos o trabalho O problema do texto,8 em que Bakhtin tratou, de maneira específica, da questão do texto. Nele, os termos texto, enunciado e discurso não se recobrem. O texto “representa uma realidade imediata (do pensamento e da emoção)” (Bakhtin, 1992, p. 329). Sendo o texto “um conjunto coerente de signos”, ele não é uma entidade exclusivamente verbal. Na verdade, ele é uma categoria presente em todas as linguagens, em todas as semióticas (Idem, ibid.). A diferença fundamental entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, embora sua separação não seja rígida, reside no fato de que, naquelas, “o pensamento é 178
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orientado para o pensamento, o sentido, o significado do outro, que se manifestam e se apresentam ao pesquisador somente em forma de textos. Quaisquer que sejam os objetivos de um estudo, o ponto de partida só pode ser o texto” (Idem, p. 330). O texto, em Bakhtin, é uma unidade da manifestação: manifesta o pensamento, a emoção, o sentido, o significado. Cada texto tem atrás de si um sistema compreensível para todos (convencional, dentro de uma dada comunidade) – uma língua, “ainda que seja a língua da arte” (Idem, p. 331). Não há texto que não pressuponha uma língua. Se não há uma língua atrás de um texto, temos um fenômeno natural e não um texto: por exemplo, uma sucessão de gritos e gemidos (Idem, ibid.). Tudo o que no texto é repetitivo e reproduzível é da ordem da língua, pois o texto é único, individual e irreproduzível (Idem, ibid.). Mesmo quando o texto é reproduzido por um sujeito (excetuada evidentemente a reprodução mecânica, como, por exemplo, a reimpressão), “é um acontecimento novo, irreproduzível na vida do texto, é um novo elo na cadeia histórica da reprodução verbal” (Idem, p. 332). Todo texto tem um autor e, por isso, o texto enquanto entidade “não se vincula aos elementos reproduzíveis de um sistema da língua (dos signos) e sim aos outros textos (irreproduzíveis) numa relação específica, dialógica” (Idem, ibid.). “O acontecimento na vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (Idem, p. 333). Temos, pois, num texto, dois pólos: o que é reproduzível e o que é irrepetível. As Ciências Humanas situam-se entre esses dois pólos: Pode-se tender para o primeiro pólo, isto é, para a língua – a língua de um autor, a língua de um gênero, de um movimento literário, a língua natural (o procedimento da Lingüística) – e, por fim, para a língua potencial (o procedimento do estruturalismo, da glossemática). Pode-se tender para o segundo pólo, para o acontecimento irreproduzível do texto (Idem, ibid.).
Se o texto tem um autor, é irrepetível e só ganha sentido na relação dialógica, texto não é, na verdade, sinônimo de enunciado? É preciso ler cuidadosamente o trabalho de Bakhtin, juntando indícios colocados ao longo de seu texto:
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“O texto enquanto enunciado (Idem, p. 330). Dois fatores determinam um texto e o tornam um enunciado: seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto (Idem, p. 332). Fora dessa relação (a relação dialógica), o enunciado não tem realidade (a não ser como texto) (Idem, p. 351). A Lingüística lida com o texto, não com a obra. [...] Pode-se dizer, simplificando, que a abordagem puramente lingüística (ou seja, o objeto lingüístico) encara a relação do signo com o signo e com os signos dentro dos limites do sistema de uma língua ou de um texto (relações com o interior de um sistema ou relações lineares entre os signos). A relação de um enunciado com a realidade existente, com o sujeito falante real e com os outros enunciados reais (relação que faz que um enunciado seja o primeiro a articular o verdadeiro ou o falso, o belo, etc.), esta relação não poderia tornar-se objeto da Lingüística. Os signos tomados isoladamente, o sistema de uma língua ou o texto (enquanto unidade de signos) não podem ser verdadeiros, nem falsos, nem belos”. (Idem, pp. 352-353).
Na medida em que o texto se torna um enunciado, ele é distinto deste. O texto pode ser visto como enunciado, mas pode não o ser, pois, quando o enunciado é considerado fora da relação dialógica, ele só tem realidade como texto. Pode-se ter uma Lingüística que estuda o texto, mas o faz como uma entidade em si, fora das relações dialógicas, já que essas não podem ser objeto da Lingüística. Se o texto é distinto do enunciado e este é um todo de sentido (Idem, p. 351) – marcado pelo acabamento (a obra) (Idem, p. 345), dado pela possibilidade de admitir uma réplica –, cuja natureza específica é dialógica, o texto é a manifestação do enunciado, que é uma “postura de sentido” (Idem, p. 352). Por isso, ele é uma realidade imediata, dotada de uma materialidade, que advém do fato de ser um “conjunto de signos”. O enunciado é da ordem do sentido; o texto é do domínio da manifestação. O sentido não pode construir-se senão nas relações dialógicas.9 Sua manifestação é o texto e este pode ser considerado como uma entidade em si. Há ainda um elemento curioso nesse texto: é que Bakhtin diferencia enunciado e discurso. Diz ele:
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Pode-se estabelecer um princípio de identidade entre a língua e o discurso, porque no discurso se apagam os limites dialógicos do enunciado, mas jamais se pode confundir língua e comunicação verbal (entendida como comunicação dialógica efetuada mediante enunciados). (Idem, p. 335).
O discurso deve ser entendido como uma abstração: uma posição social considerada fora das relações dialógicas, vista como uma identidade. Poder-se-ia então acusar Bakhtin de considerar as relações dialógicas como exteriores ao discurso. Não, pelo contrário, o enunciado (interdiscurso) não é um conjunto de relações entre intradiscursos (discurso, em Bakhtin). O interdiscurso é interior ao intradiscurso, é constitutivo dele. Na comunicação verbal real, o que existem são enunciados, que são constitutivamente dialógicos. O discurso é apenas a realidade aparente (mas realidade) de que os falantes concebem seu discurso autonomamente, dão a ele uma identidade essencial. Entretanto, no seu funcionamento real, a linguagem é dialógica. Com base em tudo o que foi dito, é possível distinguir interdiscursividade e intertextualidade. Voltemos a Bakhtin: “O texto como mônada específica que refrata (no limite) todos os textos de uma dada esfera. Interdependência do sentido (na medida em que se realiza através do enunciado)” (Bakhtin, 1992, p. 331). Há claramente uma distinção entre as relações dialógicas entre enunciados e aquelas que se dão entre textos. Por isso, chamaremos qualquer relação dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, interdiscursiva. O termo intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é materializada em textos. Isso significa que a intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade, mas que o contrário não é verdadeiro. Por exemplo, quando a relação dialógica não se manifesta no texto, temos interdiscursividade, mas não intertextualidade. No entanto, é preciso verificar que nem todas as relações dialógicas mostradas no texto devem ser consideradas intertextuais. Bakhtin fala em “relações dialógicas intertextuais e intratextuais” (Idem, ibid.). Como já mostramos, seria mais fiel ao texto russo falar em relações dialógicas entre textos e dentro do texto. As relações dentro do texto ocorrem quando as duas vozes se acham no interior de um mesmo texto: no caso do exemplo de Vidas 181
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secas, temos uma relação dialógica dentro do texto, pois as vozes do narrador e de Fabiano se encontram no interior de um texto, não estão constituídas num outro texto fora do texto em análise. A mesma coisa acontece no exemplo da negação em Vieira. No entanto, pode-se ter também relações entre textos, quando um texto se relaciona dialogicamente com outro texto já constituído. Há no texto que se relaciona com ele um encontro de dois textos. É o que acontece, por exemplo, na negação que aparece em Satélite, de Manuel Bandeira:
SATÉLITE Fim de tarde. No céu plúmbeo A Lua baça Paira Muito cosmograficamente Satélite. Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas, O astro dos loucos e enamorados, Mas tão-somente Satélite. Ah Lua deste fim de tarde, Demissionária de atribuições românticas; Sem show para as disponibilidades sentimentais! Fatigado de mais-valia, Gosto de ti, assim: Coisa em si, – Satélite. (Bandeira, 1973, p. 232)
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Nas linhas de 1 a 6, o poeta constrói uma figura da lua, situando-a num fim de tarde, num céu plúmbeo, atribuindo-lhe a qualidade de baça e dizendo que ela paira muito cosmograficamente. Como cosmografia é a astronomia descritiva, principalmente referente ao sistema solar, o que o poeta quer dizer com paira muito cosmograficamente é que a lua está no alto pura e simplesmente como um astro. Ele sintetiza essa imagem numa palavra: Satélite. Com essa figura, pretende enfatizar o conceito “puro” de lua, despojado de qualquer tipo de associação paralela, sem as impressões sentimentais que ele evoca. O uso reiterado do prefixo des, que indica ação contrária (desmetaforizada, desmitificada, despojada), e a afirmação de que a lua não é agora o astro dos loucos e dos enamorados pressupõe que, no passado, ela foi metaforizada, mitificada, considerada como o depósito do velho segredo de melancolia, como um golfão de cismas, como o astro dos loucos e enamorados. A negação, tanto a indicada pelo prefixo des, quanto a feita pelo advérbio não, implica a presença de duas vozes, dois pontos de vista a respeito da lua: um que a vê como uma fonte e um repositório de sentimentos, de mitos e de metáforas; outro que a considera em sua realidade nua indicada pela palavra satélite. Apesar de essas duas perspectivas estarem delimitadas pela negação, precisamos ainda de nosso conhecimento dos textos literários, para entender bem o que o poeta está refutando. As expressões “golfão de cismas” e “astros dos loucos e enamorados” remetem-nos a uma estrofe do poema Plenilúnio, de Raimundo Correia: Há tantos anos olhos nela arroubados, No magnetismo do seu fulgor! Lua dos tristes e enamorados, Golfão de cismas fascinador. (Correia, 1976, p. 65)
Ao opor-se a uma concepção a respeito da lua, atribuída a um literato do passado, podemos concluir não que o poeta esteja lamentando o fim dos bons tempos românticos e criticando a frieza do mundo moderno, mas que é avesso aos exageros sentimentais de uma certa literatura em torno da lua. Quando ele diz sem show para as disponibilidades sentimentais, quer dizer 183
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que a lua à qual dirige seus versos não está mais a exibir-se para pessoas predispostas a vê-la de maneira sentimental. Se levarmos em conta que a mais-valia se define como a diferença entre o custo da força de trabalho e o valor do produto produzido pelo trabalhador, ao dizer fatigado de maisvalia, o poeta manifesta sua aversão aos exageros próprios de literatos de épocas passadas, que consistem em explorar a lua, roubando dela significados que ela não comporta. O poeta expõe sua predileção pela concepção moderna (Gosto de ti assim: / Coisa em si, / Satélite). Por meio das negações, e da negação de um texto poético, o poeta circunscreve no texto dois pontos de vista a respeito da poesia. Contesta uma poesia que idealiza a realidade, assume como sua uma concepção de poética como busca da essência da realidade. Só pode ser considerada intertextualidade a negação explícita dos versos de Raimundo Correia. As outras negações são da ordem da interdiscursividade. No poema de Bandeira, encontram-se dois textos: o de Bandeira e o de Raimundo Correia. O texto de Raimundo Correia tem uma existência como texto fora do texto de Bandeira. É só nesses casos que se deve falar em intertextualidade. Ela é o processo da relação dialógica não somente entre duas “posturas de sentido”, mas também entre duas materialidades lingüísticas. A concepção que, com base na obra de Bakhtin, adotamos de intertextualidade é bastante restrita – nada tem a ver com o uso frouxo que se vem fazendo dela. No entanto, ela pode ser um pouco alargada. Como os estilos são manifestados por “elementos de ordem material”, “quando existe uma vontade consciente de representar uma variedade de estilos, estabelece-se sempre uma relação dialógica entre eles” (Bakhtin, 1992, pp. 339; cf. pp. 345, 347 e 349). Por ter uma materialidade, os estilos de autores, de movimentos literários, de grupos sociais, quando são estilizados ou parodiados, mantêm também relações intertextuais. Mário de Andrade faz, no texto a seguir, uma paródia de estilo. Senhoras: Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saùdade e muito amor com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo no dizer de seus
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prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós se afirma cavalgardes belígeros ginetes e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator vosso, tais dislates de erudição, porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heróicas e mais conspícuas, tocadas por essa pátina respeitável da tradição e da pureza antiga. Mas não devemos esperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos, pois, de imediato, ao relato de nossos feitos por cá. Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrém grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitam e até mesmo muraqué-itã, não sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar a vossas trompas de Eustáquio, é quasi desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que alguns desses termos são neologismos absurdos – bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine fagi”, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalámico, mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro, o “curriculum vitae” da civilização a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. (Andrade, 1978, pp. 71-2)
Esse texto, logo à primeira vista, parece ter sido escrito num período anterior ao modernismo, em que se cultivava uma forma “clássica” de escrever. Os traços que permitem afirmar isso são: a) uso da segunda pessoa do plural para tratamento; b) emprego sistemático do plural majestático; c) utilização do objeto indireto pleonástico, em Muito nos pesou a nós; d) uso de um léxico preciosista e até de sabor arcaizante (voz por “palavra”, missivas por “cartas”, Hélade por “Grécia”, belígeros ginetes por “cavalos de 185
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guerra”, dislates por “asneiras”, conspícuas por “ilustres”, “respeitáveis”, pátina por “envelhecimento”, fero por “feroz”, idos de maio por “dia 15 de maio”; translato por “passado”, petimetre por “homem que se veste com apuro exagerado”, discretear por “discorrer calmamente”, enlace epitalâmico por “casamento”, vulgo por “povo”, mavórticas – adjetivo derivado de Mavorte, forma epentética de Marte – por “guerreiras”); e) utilização de perífrases que chegam ao ridículo, para falar de coisas bastante banais (trompas de Eustáquio por “ouvidos”); f ) emprego de formas da sintaxe clássica, como, por exemplo, oração reduzida de infinitivo em casos em que no português moderno se utiliza uma oração desenvolvida (de vós se afirma cavalgardes belígeros ginetes e virdes da Hélade clássica); g) uso do infinitivo flexionado em locuções verbais ou junto de auxiliares causativos (não devemos esperdiçarmos; fazemos ponto de honra pertencermos); h) emprego das normas portuguesas antigas de acentuação (saùdade em lugar de saudade, epitalámico em vez de epitalâmico); i) citação de dois versos de Os Lusíadas, com que se inicia o célebre episódio do Gigante Adamastor: Porém já cinco sóis eram passados Que dali nos partíramos cortando (V, 37, 1-2).
j) citação de um trecho do primeiro verso das Bucólicas, de Virgílio: sub tegmine fagi.
O texto surpreende no contexto do romance, porque o narrador rompe com a modalidade espontânea de linguagem que vinha utilizando até então e adota um registro marcadamente formal. Ao optar por um léxico e uma sintaxe já desusados, muito a gosto dos parnasianos e pré-modernistas (como Rui Barbosa, Coelho Neto, Bilac), o narrador imita o estilo desses autores, para ridicularizar a literatura brasileira do período anterior ao modernismo e, por conseguinte, toda a cultura brasileira dessa época – já que esse estilo correspondia ao gosto da moda. Ao satirizar o caráter anacrônico e formal da linguagem da época, escarnece do caráter ultrapassado e solene de nossa cultura urbana em geral. Ironiza as discussões etimológicas, muito apreciadas então. Ao dizer que as palavras da gíria ou da linguagem familiar são 186
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neologismos absurdos, bagaço nefando, com que se conspurca a língua portuguesa, satiriza os puristas. Ridiculariza uma certa norma do português, o que era tido por “português castiço” no período. Ironiza uma forma de escrever, em que, sem o menor propósito, cita-se a literatura clássica. É um caso de paródia de estilo, pois o narrador desqualifica o estilo imitado no próprio movimento de imitação. Trata-se de um caso de intertextualidade, pois é a materialidade lingüístico-textual do estilo do pré-modernismo que se encontra presente no texto de Manuel Bandeira. Entretanto, nem tudo o que diz respeito a estilo será do domínio da intertextualidade. O estilo, sendo um fato do funcionamento real da linguagem, constitui-se dialogicamente. Nesse caso, não se encontra num texto a materialidade lingüístico-textual de dois estilos. Temos, então, um fato de interdiscursividade e não de intertextualidade, pois é da ordem do dialogismo constitutivo. A poesia da terceira geração romântica brasileira é uma poesia libertária. Por isso, posicionou-se contra a escravidão e a favor do progresso. É escrita numa linguagem grandiosa, cheia de hipérboles e antíteses. Toma à natureza, à divindade e à história o material para metáforas e comparações. Nela, a natureza significa e revela. Os símiles são construídos com os aspectos da natureza que sugerem a imensidão e a infinitude: os astros, o oceano, as procelas, os tufões, os alcantis, o Himalaia, os Andes, a águia, o condor. É uma poesia indignada (a “ira condoreira”), plena de vocativos, de apóstrofes, de imprecações contra a divindade, de convocação da natureza e dos heróis do passado. Tem um tom oratório e, por isso, apresenta a oralidade do discurso exaltado da praça pública. Esse tom declamatório é marcado por reticências, que indicam as pausas dramáticas; por travessões, que assinalam as pausas de elocução; por pontos de exclamação, que modulam a ênfase. Há um grande subjetivismo no trato dos temas, pois se parte do princípio de que os sentimentos e as emoções têm papel central na História. Aos ideais de liberdade expostos no plano do conteúdo corresponde uma grande liberdade de versificação, de ritmos e de rimas (Bosi, 1975, pp. 132-6). Tomemos, para exemplificar, um fragmento de Navio negreiro, de Castro Alves, sem dúvida nenhuma o maior representante dessa geração.
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Existe um povo que a bandeira empresta Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!... [...] Auriverde pendão da minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas de esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteada dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga!... Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu na vaga, Como um íris no pélago profundo!... ... Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares! (Alves, 1972, pp. 183-4)
Em oposição ao tom grandiloqüente da poesia da terceira geração romântica, o parnasianismo representou uma descida de tom. Constrói uma poesia inenfática, que faz um esforço para aproximar-se impessoalmente das coisas, dos objetos. Há um culto à forma, um ideal da arte pela arte. O supremo cuidado estilístico não é senão a manifestação do desejo de criar um objeto imperecível, longe dos embates da história. A religião da forma tem origem no pessimismo que subjaz à ideologia do determinismo (Bosi, 1975, p. 187). No parnasianismo, há um efeito de objetividade no trato dos temas. Não se trata de temas sociais; ao contrário, há um fetichismo dos objetos: “O parnasiano típico acabará deleitando-se na nomeação de alfaias, vasos e leques chineses, flautas gregas, taças de coral, ídolos de gesso em túmulos de mármore... e exaurindo-se na sensação de um detalhe ou na memória de um fragmento narrativo” (Idem, p. 248). Por isso, o parnasianismo tem um gosto particular pela descrição nítida (a “mímese pela mímese”), trata-se de uma poética descritiva, do quadro, da cena, do retrato. Seu compromisso não é intervir na História, mas operar a mímese. 188
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A esse desejo de construir um objeto imarcescível correspondem os usos de uma língua clássica, de uma sintaxe plena de inversões e sínquises, de formas tradicionais de metro, de rima e de ritmo, de um léxico preciosista. A poética parnasiana acaba com o que era considerado a frouxidão e a incorreção dos românticos (Idem, pp. 246-56). Sirva de exemplo para essa poética, o soneto Vaso grego, de Alberto de Oliveira: Esta de áureo relevos, trabalhada De divas mãos, brilhante copa, um dia, Já de aos deuses servir como cansada Vinda do Olimpo, a um novo deus servia. Era o poeta Teos que a suspendia Então, e, ora repleta ora envasada, A taça amiga aos dedos seus tinia, Toda de roxas pétalas colmada. Depois... Mas o lavor da taça admira, Toca-a, e do ouvido aproximando as bordas Finas hás-de lhe ouvir, canora e doce,
Ignota voz, qual se da antiga lira Fosse a encantada música das cordas, Qual se essa voz de Anacreonte fosse. (Barbosa, 1997, p. 142)
O estilo parnasiano se constitui numa relação dialógica com o da terceira geração romântica. Temos aqui um caso de interdiscursividade, mas não de intertextualidade, pois não se encontram, no mesmo texto, duas materialidades textuais distintas, como se vê, por exemplo, na “Carta pras icamiabas”, de Mário de Andrade. Olavo Bilac tinha consciência da constitutividade dialógica do estilo e expôs isso em sua Profissão de fé. Não quero o Zeus Capitolino, Hercúleo e belo, Talhar no mármore divino Com o camartelo.
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Que outro – não eu! – a pedra corte Para, brutal, Erguer de Athene o altivo porte Descomunal. Mais do que esse vulto extraordinário, Que assombra a vista, Seduz-me um leve relicário De fino artista. Invejo o ourives quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo Faz de uma flor. Imito-o. E, pois, nem de Carrara A pedra firo: O alvo cristal, a pedra rara, O ônix prefiro. Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena, como em prata firme Corre o cinzel. Corre; desenha, enfeita a imagem, A idéia veste: Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem Azul-celeste. Torce, aprimora, alteia, lima A frase; e, enfim, No verso de ouro engasta a rima, Como um rubim. Quero que a estrofe cristalina Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito: E que o lavor do verso, acaso, Por tão sutil, Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril. (Bilac, 1942, pp. 5-7)
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Bilac afirma que não quer fazer o que faz o escultor, mas que seu trabalho é semelhante ao do ourives. O escultor é a figura do poeta da terceira geração romântica com sua grandiloqüência, sua grandiosidade, sua monumentalidade, com sua imersão na realidade, com suas hipérboles, com seu gosto pronunciado pelo narrativo, com sua liberdade formal; o ourives é o poeta parnasiano, com sua leveza, sua sutileza, seu requinte, com seu afastamento da realidade, com sua busca pela perfeição, com seu tom inenfático, com seu culto ao descritivo, com sua rigidez formal.
CONCLUSÃO Se em Bakhtin há uma distinção entre texto e enunciado e este pode ser aproximado ao que se entende por interdiscurso – já que se constitui nas relações dialógicas, enquanto aquele é a manifestação do enunciado –, a realidade imediata dada ao leitor, pode-se fazer uma diferença entre interdiscursividade e intertextualidade. Aquela é qualquer relação dialógica entre enunciados; esta é um tipo particular de interdiscursividade, aquela em que se encontram num texto duas materialidades textuais distintas. Cabe entender que, por materialidade textual, pode-se entender um texto em sentido estrito ou um conjunto de fatos lingüísticos, que configura um estilo, um jargão, uma variante lingüística, etc. O caráter fundamentalmente dialógico de todo enunciado do discurso impossibilita dissociar do funcionamento discursivo a relação do discurso com seu outro. O discurso em Bakhtin é lingüístico e histórico. No entanto, o autor russo não apreende essa historicidade discursiva por meio de “anedotas” acerca da produção de um determinado discurso. Com o conceito de dialogismo, capta-a no próprio movimento lingüístico de sua constituição. É na relação com o discurso do Outro, que se apreende a história que perpassa o discurso. Essa relação está inscrita na própria interioridade do discurso, constitutiva ou mostradamente. Com a concepção dialógica da linguagem, a análise histórica de um texto deixa de ser a descrição da época em que o texto foi produzido e passa a ser uma fina e sutil análise semântica, que leva em conta confrontos sêmicos, deslizamentos de sentido, apagamentos de significados, interincompreensões, etc. Em síntese, em Bakhtin, 191
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a História não é algo exterior ao discurso, mas é interior a ele, pois o sentido é histórico. Por isso, para perceber o sentido, é preciso situar o enunciado no diálogo com outros enunciados e apreender os confrontos sêmicos que geram os sentidos. Enfim, é preciso captar o dialogismo que o permeia.
NOTAS 1
Com efeito, aqueles que previram as coisas futuras onde as viram, se elas não existem ainda? Não se pode prever o que não é. E aqueles que narram as coisas passadas, de toda maneira não narrariam coisas verdadeiras, se não as apreendessem pela imaginação: porque se elas não fossem nada, não poderiam de modo algum ser apreendidas.
2
A questão das relações dialógicas entre textos e dentro dos textos será discutida mais adiante.
3
Posteriormente, esse texto constituiu o capítulo 4 do livro Introdução à Semanálise.
4
Poder-se-ia dizer que há ainda um terceiro sentido, mais geral: é um princípio de constituição dos seres humanos; é o modo de agir e de estar no mundo.
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Observe-se ainda: “Cada texto pressupõe um sistema compreensível para todos (convencional, dentro de uma dada coletividade) – uma língua (ainda que seja a língua da arte). Se por trás do texto não há uma língua, já não se trata de um texto, mas de um fenômeno natural (não pertencente à esfera do signo); por exemplo, uma combinação de gritos e de gemidos, desprovida da reprodutibilidade lingüística (própria do signo)” (Bakhtin, 1992, p. 331).
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O termo proposto por Bakhtin é Metalingüística. Preferimos, no entanto, chamar essa ciência, à maneira dos franceses, translingüística, por causa dos valores semânticos que envolvem a palavra Metalingüística. Esse problema de denominação é uma prova da correção das teses bakhtinianas sobre o problema da distinção entre as unidades potenciais do sistema (objeto da Lingüística) e as unidades reais de comunicação (objeto da translingüística). Do ponto de vista do sistema, meta (prefixo grego) e trans (prefixo latino) são equivalentes; no entanto, eles são completamente distintos no funcionamento discursivo. De qualquer forma, o que Bakhtin pretendia era constituir uma ciência que fosse além da Lingüística, pois trataria de analisar o funcionamento real da linguagem e não apenas o sistema virtual que possibilita esse funcionamento.
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Essa tese bakhtiniana mostra o equívoco da chamada linguagem politicamente correta, que pretende dar às palavras da língua um sentido intrínseco. O campo de batalha ideológico não são as unidades da língua, mas os enunciados.
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Esse texto é um manuscrito, não totalmente acabado, que deve ter sido produzido por volta do início da década de 1960.
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Viu-se anteriormente que Bakhtin distingue significação e sentido.
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O centro da produção de Mikhail Bakhtin repousa no conceito de prosa romanesca. Se olharmos retrospectivamente para o conjunto de seus textos, que se fizeram quase todos incompletos ao longo de cinco décadas, abarcaram um leque temático que vai da filosofia à teoria da literatura e passaram pela teoria da linguagem, encontraremos de modo sistemático e recorrente o tópico “prosa romanesca” como uma presença sempre iluminadora. Em alguns momentos, este tópico é o objeto exclusivo do olhar bakhtiniano, como no longo ensaio “O discurso no romance”; em outros, o conceito de prosa é o eixo metodológico, digamos assim, que lhe permite abrir caminhos novos na apreensão de fenômenos literários, como acontece no seu livro sobre Dostoiévski. A célebre categoria do “romance polifônico”, com a qual Bakhtin definiu primordialmente a literatura madura de Dostoiévski, é de fato um corolário da sua apreensão da natureza “prosaica” da linguagem. A categoria da “carnavalização”, já presente na obra de 1929, reaparecerá na catedral que ele ergue mais tarde em torno da produção de François Rabelais – e também aí encontrará na sua singular percepção da prosa boa parte do alicerce teórico.
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Até aqui teríamos, pois, um conceito mais ou menos fechado de “gênero” – o objeto teórico de Bakhtin foi a prosa (Dostoiévski, Rabelais; a configuração da linguagem no romance). Limitando assim o seu olhar, um verbete sobre o conceito de poesia em Bakhtin não faria sentido; no máximo, seria uma nota de rodapé acidental na vida intelectual de alguém que não escreveu sobre este outro gênero. Do mesmo modo, se acompanharmos a obra do Círculo de Bakhtin, também não encontraremos nada mais específico sobre a poesia. Tanto em Voloshinov como em Medvedev, para ficar nos nomes mais proeminentes do Círculo, o centro teórico está ou na filosofia da linguagem, ou nas questões teóricas diretamente vinculadas à natureza da produção estética, ou ainda nas questões político-filosóficas relacionadas diretamente a estes tópicos, de acordo, aliás, com a atividade prática, com o dia-a-dia do período revolucionário em que tanto um como outro estiveram envolvidos.
O UNIVERSO BAKHTINIANO À medida entretanto que nossa leitura de Bakhtin se amplia, abarcando, numa ponta, os seus escritos filosóficos de juventude, e noutra ponta, os manuscritos dos últimos vinte anos de sua vida, alguns complicadores se apresentariam ao analista que se contentasse em fechar o universo bakhtiniano no conceito de “prosa”, delimitando-o mais ou menos como expressão de um gênero literário isolado, ainda que amplo. Consideremos, por exemplo, o ensaio “Sobre o autor e o herói”, escrito ao longo do ano 1919. Embora trate de uma questão estritamente literária – “a relação do autor com o herói”, como ele se apresenta na primeira linha que chegou até nós –, vai ficando mais ou menos visível que Bakhtin está tomando o discurso literário como ponto de partida para a discussão de tópicos da linguagem que vão transcender em muito os limites de um “gênero” (o gênero narrativo, por exemplo). “Tópicos da linguagem” ainda é uma expressão insuficiente para definir o ponto em que Bakhtin quer chegar. Vejamos didaticamente dois momentos deste ensaio. Num primeiro momento, Bakhtin diz que é preciso compreender a reação do autor diante do seu herói: 196
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Só depois de compreender essa resposta total e essencialmente criadora do autor à personagem, de compreender o próprio princípio da visão da personagem – princípio que a cria como um todo definido em todos os seus momentos –, pode-se pôr uma ordem rigorosa na definição da forma-conteúdo das modalidades de personagem, dar a estas um sentido unívoco e criar para elas uma classificação sistemática não aleatória.1
Veja-se que estamos, parece, estritamente no terreno da Teoria Literária. O leitor que não conheça Bakhtin poderá até sonhar que em algum momento de sua obra encontrará uma “tipologia” organizada ao modo das definições de “gêneros literários” ou modelos estéticos. Na verdade, embora muitas vezes Bakhtin prometa tais esquemas, eles nunca se realizaram. Não porque as vicissitudes de sua vida o impediram quase sempre de terminar suas obras, mas porque, muito provavelmente, desde o início não era mesmo este (a organização tipológica do que quer que seja) o objeto de sua palavra. A tipologia bakhtiniana será sempre um breve gancho didático, volátil e mais ou menos inútil. Daí porque será um equívoco metodológico tomar ao pé da letra o conceito de “prosa romanesca” e encerrá-lo – agora sim – numa “tipologia” de gêneros literários. Para tornar evidente o fato de que Bakhtin se move em outra esfera, leia-se mais um trecho de “O autor e o herói”, que aparecerá algumas páginas adiante, sempre sobre o mesmo tema (a relação entre o autor e o herói): O modo como eu vivencio o eu do outro difere inteiramente do modo como vivencio o meu próprio eu; [...] e essa diferença tem importância fundamental tanto para a estética quanto para a ética. Para o ponto de vista estético é essencial o seguinte: para mim, eu sou o sujeito de qualquer espécie de ativismo: do ativismo da visão, da audição, do tato, do pensamento, do sentir, etc.; é como se eu partisse de dentro de mim nos meus vivenciamentos e me direcionasse em um sentido adiante de mim, para o mundo, para o objeto.2
Mesmo sem considerarmos aqui os conteúdos específicos discutidos por Bakhtin, o que iria além dos limites deste verbete, salta aos olhos já nas primeiras páginas do ensaio o fato de que Bakhtin encontra, na constituição do discurso romanesco, representações outras, de natureza filosófica, 197
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que vão desde a noção de constituição dialógica do sujeito até a – agora no terreno estritamente estético – inseparabilidade entre esse dialogismo primeiro da natureza da linguagem e os modos de sua realização estética em diferentes discursos. O conceito de prosa e o conceito de poesia, tais como ele os definirá anos mais tarde, são pois expressões de diferentes modos de apropriação da linguagem, numa atividade em que necessariamente haverá, no mínimo, dois participantes, que, neste primeiro momento, Bakhtin chama de “autor” e de “herói”. Assim, para Bakhtin, apenas secundariamente prosa e poesia se diferenciam como formas genéricas, catalogáveis e tipologizadas; primariamente, separam-se como dois modos distintos de apreensão da linguagem alheia.
PROJETO DE FILOSOFIA MORAL O jovem Bakhtin de Para uma filosofia do ato3 nos dará mais algumas pistas de seu objeto de estudo e do lugar que a poesia ocupava nele. Nesse projeto filosófico inicial, Bakhtin propõe uma filosofia, necessariamente moral, que desse conta do “evento do ser”, aquele instante perpétuo, a fronteira do tempo, para o qual não temos álibi e de cuja responsabilidade não podemos fugir, o “aqui-agora”, sem transformá-lo num objeto teórico que exclua o olhar do sujeito; uma filosofia, enfim, que rompesse a incomunicabilidade de dois mundos “mutuamente impenetráveis: o mundo da cultura e o mundo da vida”.4 Este projeto de filosofia moral, assim, abdica de um “sistema logicamente unificado”; ele não pretende dar “uma transcrição teórica dos valores que têm sido realmente, historicamente, reconhecidos pela humanidade, de modo [...] a sistematizá-los”. E assim sintetiza sua ambição primeira: O que queremos fazer é uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta, do mundo dos valores experimentados – não com uma fundação analítica à frente, mas com aquele centro real, concreto, tanto espacial quanto temporal, do qual surgem avaliações, asserções e ações, e onde os membros constituintes são objetos reais, interconectados por relações-eventos no evento único do Ser.5
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Este curto parágrafo sintetiza parte do projeto inteiro da vida de Bakhtin, o coração de suas categorias teóricas e literárias. Aí estão alguns dos seus pontos de partida fundamentais: a inseparabilidade da noção de valor em qualquer projeto teórico, o princípio do cronotopo como eixo axiológico do olhar, a obsessão com a “concretude” do evento real da vida, jamais redutível a uma formalização reiterável. Sabemos que, pelas vicissitudes e pelos rumos da vida e da própria Revolução Russa, Bakhtin não voltou mais a fazer filosofia em sentido estrito. É possível que esta opção tenha sido a única razoável diante da realidade política da União Soviética que começava a se erguer à sombra de Stálin. Mas também pode ser porque, em pouco tempo, Bakhtin encontrasse em outra linguagem a realização de seu projeto de natureza filosófica – na linguagem literária, ou mais especificamente, na prosa romanesca. Comparando-se, por exemplo, o projeto deste primeiro manuscrito com a obra sobre Dostoiévski que ele publicaria em 1929, encontramos uma surpreendente semelhança entre o conceito de “polifonia” (aquele conjunto de traços que para ele vai definir o romance dostoievskiano) e a proposta filosófica de “uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta, do mundo dos valores experimentados, [...] com aquele centro real, concreto, tanto espacial quanto temporal, do qual surgem avaliações, asserções e ações, e onde os membros constituintes são objetos reais, interconectados por relações-eventos”. Tal coincidência já não será tão surpreendente assim, se avançamos um parágrafo do jovem Bakhtin filósofo: Para dar uma idéia preliminar da possibilidade de uma arquitetônica valorativa concreta, vamos analisar aqui o mundo da visão estética – o mundo da arte. Em sua concretude e sua impregnação com o tom emocional-volitivo, este mundo está mais perto do mundo unitário e único do ato realizado do que qualquer outro mundo abstrato cultural (tomado isoladamente). Uma análise desse mundo nos ajudaria a chegar mais perto de um entendimento da estrutura arquitetônica do mundo-evento real.6
E daí por diante, Bakhtin passa a teorizar sobre a natureza da “unidade do mundo na visão estética”, como uma unidade “não sistemática”, mas “arquitetônica”, uma distinção sutil: “O mundo se dispõe em torno de um centro valorativo concreto, que é visto e amado e pensado. O que 199
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constitui esse centro é o ser humano: tudo nesse mundo adquire significância, sentido e valor apenas em correlação com o homem”. Nas densas páginas seguintes, Bakhtin vai tocar em praticamente todos os pontos que se tornarão chaves na sua categorização do mundo: a relação entre autor e herói como dialógica e assimétrica (no tempo e no espaço), a inevitabilidade da noção de valor para fundar o objeto estético, a inseparabilidade de forma e de conteúdo (“uma distinção possível apenas com relação a categorias de conteúdo abstrato”), e mesmo o poder da entonação como expressão de um centro de valores (o que terá um peso específico na Lingüística do Círculo de Bakhtin). Assim, não parece despropositado afirmar que Bakhtin descobriu, na linguagem literária, o potencial de um novo projeto filosófico, projeto esse que, na sua utopia inicial, seria capaz de enfim transcender a formalização que marcava o cientificismo da época e sua abstração racionalizante, em direção a um olhar “participativo” (a palavra é dele) que não fosse indiferente ao objeto que vê para melhor manobrar as suas formas abstratas e reiteráveis. Curiosamente, Bakhtin dirá que “a melhor maneira de clarificar a disposição arquitetônica do mundo na visão estética em torno de um centro de valores, isto é, o ser humano mortal, é apresentar uma análise de forma-e-conteúdo de alguma obra particular” – e então ele apresenta não um texto de prosa, mas “o poema lírico Separação [Razluka], de Pushkin”.7 Curiosamente porque, justo na primeira análise literária que encontramos em toda a sua obra, está não um exemplar da prosa romanesca que o tornaria célebre como teórico, mas um poema. Vamos nos deter neste momento para sentir de que modo o primeiro Bakhtin se aproxima da literatura. Mais uma vez, flagramos aqui as categorias básicas da representação estética bakhtiniana, antecipando os temas que serão largamente desenvolvidos no manuscrito seguinte, “O autor e o herói na atividade estética”. Depois de transcrever o poema – aliás, um poema narrativo – diz Bakhtin: Há duas pessoas ativas neste poema – o herói lírico (o autor objetivado) e “ela” [...] e, conseqüentemente, há dois contextos de valor, dois pontos de referência concretos para os quais os momentos valorativos, concretos, do Ser estão correlacionados. [...] Todos os momentos concretos da arquitetônica são atraídos e con-
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centrados em torno de dois centros de valor (o herói e a heroína) e ambos são igualmente abrangidos pela auto-atividade estética humana, afirmadora e valorativa, em um único evento.8
A realização estética (aqui especificamente literária) é compreendida como o ponto de encontro de, no mínimo, dois centros de valores, ambos abrangidos pelo fechamento do “sujeito estético” (e Bakhtin acrescenta: “do autor, do contemplador” – o contemplador para ele é parte integrante do objeto estético), com uma determinação: “estar situado do lado de fora”, a categoria “exotópica” bakhtiniana. Fiquemos neste ponto: a duplicidade de “centros de valores” como constituinte da realização literária – embrionariamente aquilo que, mais tarde, Bakhtin e seu Círculo chamarão de “natureza dialógica da linguagem”, como pressuposto lingüístico, e que Bakhtin ele-mesmo transformará em uma das expressões da história literária, o impulso “dialógico”, em contraposição à centralização “monológica”. Na obra sobre Dostoiévski Bakhtin tratará deste caráter “dialógico” da prosa romanesca, traçando nas entrelinhas um percurso histórico que incluirá, nas origens, até mesmo os diálogos socráticos. O romance polifônico dostoievskiano seria, para ele, a mais completa realização deste impulso. Poucos anos depois, em “O discurso no romance”, Bakhtin sistematizará este seu olhar sobre a prosa, agora não mais preocupado com o conceito de “romance polifônico”, que ele de fato abandona. Num painel mais amplo, Bakhtin reserva um capítulo para discorrer sobre as “duas linhas estilísticas do romance europeu”, uma de natureza lingüística e estilisticamente centralizadora, de certa forma “monolíngüe”, e outra descentralizadora e “plurilíngüe”. Sobre esta arquitetura básica, que jamais se fecha num esquema impermeável, e que faz a literatura se alimentar, sempre, das linguagens sociais em jogo e da presença da estratificação de valores, Bakhtin constrói sua teoria do romance. Justamente neste livro se encontra o único texto mais longo em que Bakhtin discorre sobre a poesia e sobre a linguagem poética: “O discurso na poesia e o discurso no romance”. Aí está o que podemos chamar de o “núcleo duro” de seu conceito de poesia.
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BAKHTIN
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ORIENTAÇÃO DIALÓGICA DO DISCURSO O ponto de partida bakhtiniano é o que ele chama, agora, de “orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem”: Entre o discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante, interpõe-se um meio flexível, freqüentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos “alheios” sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema.9 [...] Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações.10
Pois bem, Bakhtin dirá que a prosa encontra na “concentração de vozes multidiscursivas” que repousam no objeto o seu alimento, a sua razão de ser – essas vozes sociais são o pano de fundo imprescindível do discurso romanesco; e entre o autor e o seu herói mantém-se, obrigatoriamente, uma distância segura. O texto prosaico faz da natureza dialógica da linguagem – o fato de que toda palavra é no mínimo dupla – a essência de sua realização estética. Em uma palavra, na prosa romanesca é um “outro” que fala, e toda a significação estética e estilística da obra se faz em torno da distância entre o autor que organiza o texto, o olhar que narra, e o seu herói, com o qual ele mantém um espectro amplo de relações dialógico-valorativas, encontro vivo de pontos de vista, que podem ir da eventual concordância e empatia (personagens “positivos”), até a mais completa discordância e antipatia (personagens “negativos”). Na prosa, o conjunto de pontos de vista que socialmente já acompanham o objeto quando pela primeira vez ele cai sob o olhar narrativo, é parte integrante e, mais que isso, definidora, da estética prosaica. Assim, em todas as formas genéricas que a narrativa prosaica assumiu ao longo da história até a complexidade do romance moderno, este “plurilingüismo”, esse encontro vivo de pontos de vista no mesmo enunciado (para Bakhtin, toda enunciação é uma réplica, explícita ou implícita), está no seu centro estético-estilístico. O que define o prosaico, para Bakhtin, não é o elemento composicional exter202
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no, mas o modo específico de apropriação da linguagem e o espaço que o dialogismo ocupa nele. Em suas palavras, “o prosador não purifica seus discursos das intenções e tons de outrem” e, deste modo, ele “pode se destacar da linguagem da sua obra, e o faz em diversos graus de algumas de suas camadas e elementos”.11 E a poesia? O poeta, na sua relação com as linguagens alheias, vai em sentido absolutamente contrário: “A exigência fundamental do estilo poético é a responsabilidade constante e direta do poeta pela linguagem de toda a obra como sua própria linguagem, a completa solidariedade com cada elemento, tom e nuança. Ele satisfaz a uma única linguagem e a uma única consciência lingüística”.12 Para que estes dois eixos não se esquematizem mecanicamente, pensemos, antes de avançar, em uma imagem da produção estética literária como um continuum, que vai idealmente da “prosa absoluta” à “poesia absoluta” – todo objeto estético literário encontra-se em algum lugar deste continuum, que assim não se define por essência, mas por “quantidade”. Pois bem, a prosa faz da natureza dialógica da linguagem o seu próprio alimento: [A dialogicidade interna] no romance, penetra interiormente na própria concepção de objeto do discurso e na sua expressão, transformando sua semântica e sua estrutura sintática. [...] No romance [...] a dialogicidade interna torna-se um dos aspectos essenciais do estilo prosaico e presta-se a uma elaboração literária e específica.13
Isso significa que, na prosa, a tensão entre pontos de vista distintos na mesma enunciação, a réplica permanente e sempre inacabada que ela faz aos discursos alheios e aos outros pontos de vista, é um elemento essencial e esteticamente criador – aliás, é aí que Bakhtin situa aquilo que se chama “estilo”. Os estilos prosaico e poético (em todas as suas gradações e interseções históricas) se definem a partir do papel que essa dialogicidade ocupa na enunciação literária. Na outra ponta do espectro, encontramos os gêneros poéticos. Como a noção de diálogo (em sentido estrito e metafórico) tornou-se extraordinariamente cara ao nosso tempo pela idéia democrática que lhe parece intrínseca, a definição bakhtiniana de poesia pode causar estranheza num primeiro momento. Veja-se: 203
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Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) a dialogização natural do discurso não é utilizada literariamente, o discurso satisfaz a si mesmo e não admite enunciações de outrem fora de seus limites. O estilo poético é convencionalmente privado de qualquer interação com o discurso alheio, de qualquer “olhar” para o discurso alheio.14
E, mais adiante, ele acentua o aspecto central do discurso poético: “A língua do poeta é a sua própria linguagem, ele está nela e é dela inseparável”. Bakhtin ressalva que o poeta, existindo “historicamente”, está também, é claro, envolvido no plurilingüismo, mas ele não o emprega dialogicamente (se o empregasse, seria um prosador). Veja-se: Os elementos do plurilingüismo não entram [na poesia] com os direitos de uma outra linguagem, que traria seus próprios pontos de vista particulares, através da qual seria possível dizer aquilo que não se pode dizer em sua própria língua, mas sim com os direitos de coisa representada. E daquilo que lhe é estranho o poeta fala em sua própria linguagem. Para aclarar o mundo de outrem ele jamais se vale da linguagem de outrem como sendo a mais adequada para este mundo.15
Isto é, o poeta submete todas as outras linguagens à sua própria linguagem, às exigências de seu próprio estilo. O prosador, ao contrário, continua Bakhtin, tenta dizer até o que lhe é próprio na linguagem dos outros; “ele mede o seu mundo com escalas lingüísticas alheias”. Em razão desse traço fundamental do estilo poético – esse é outro aspecto fundamental observado por Bakhtin –, o poeta “não tem limites” lingüísticos, ao contrário do prosador. O prosador, ao colocar a linguagem de outrem no centro de sua voz, fica de certo modo escravo dela; o seu grau de liberdade vai até o limite de não descaracterizar a voz alheia a ponto de deixá-la irreconhecível como tal (isto é, como voz alheia, com direitos sobre sua própria palavra). Já o poeta pode fazer da linguagem o que quiser: ela é inteiramente sua e está inteiramente ao seu serviço. Dessa liberdade vem a possibilidade – freqüentemente sonhada e realizada – de uma “linguagem poética” pura, especial, de uma “linguagem dos deuses”, etc., possibilidade bastante freqüente no imaginário poético. A idéia de uma linguagem da poesia, essencialmente desvinculada das outras linguagens, fez parte substancial, no início do século XX, do ideário dos 204
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simbolistas e em seguida do grupo de teóricos conhecidos como os formalistas russos.16 Diz Bakhtin: A idéia de uma linguagem da poesia, única e especial, é um filosofema utópico característico do discurso poético: na base desse filosofema repousam as condições e as exigências reais do estilo poético, que satisfaz a uma linguagem única, diretamente intencional, a partir de cujo ponto de vista as outras linguagens (a linguagem falada, a linguagem de negócios, a linguagem prosaica, etc.) são percebidas como objetivadas e em nada equivalentes a ela.17
É preciso relembrar, entretanto, que estamos falando de um continuum estilístico, que vai do “extremo poético” ao “extremo prosaico”. Nesse leque, o limite poético máximo consolidaria o máximo de centralização lingüística, o que inclui, além das peculiaridades formais isolantes (isto é, que isolam a fala poética de qualquer “contato” com as marcas da linguagem comum) – versos, métrica, rimas, assonâncias e dissonâncias, forte unidade interna (as partes remetendo-se umas às outras, e não ao “exterior”) –, também o isolamento semântico-ideológico,18 a ponto de às vezes se tornar uma voz “autoritária, dogmática e conservadora”, nas palavras de Bakhtin. Assim, a centralização formal e estilística do discurso poético é também útil em outros gêneros não intrinsecamente literários, como o ensaio, a filosofia, o texto religioso – nos momentos de isolamento estilístico, como que se reforça, pela autoridade da voz, pela sua altissonância poética, a força do argumento. Veja-se a importância do estilo poético em Nietszche ou, para ficar no Brasil, em Euclides da Cunha. E o mais clássico exemplo de todos: a linguagem bíblica, que tem no estilo poético um auxiliar poderosíssimo em seu poder centralizador de persuasão.
“IMPULSO
POÉTICO”
Acontece que o grau de centralização ou descentralização da linguagem não é apenas uma escolha pessoal a-histórica: há tempos lingüisticamente centralizadores (que poderíamos chamar de tempos estilisticamente poéticos) e tempos lingüisticamente descentralizadores (que seriam tempos prosaicos, em que o forte contato entre línguas e a intensa estratificação lin205
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güística trabalha para solapar a autoridade de uma voz única e centralizada). É claro que cada nação e cada cultura terá suas peculiaridades em diferentes momentos históricos, e o que Bakhtin, na sua obra dos anos 40, chama de “forças centrípetas” e “forças centrífugas” da linguagem deve ser entendido em sua perspectiva sócio-histórica, e não como alguma deriva estrutural que andasse por conta própria. As peculiaridades históricas podem explicar, por exemplo, por que parte substancial da poesia européia do século XX – peguemos os exemplos de T. S. Eliot, na prática, e as concepções literárias do formalismo russo, na teoria – é “centralizadora”, aproximando-se daquele “limite estritamente poético” a que Bakhtin faz referência, enquanto o movimento modernista brasileiro foi enraizadamente prosaico. Um prosaísmo, aliás, que, até o advento dos poetas concretos, e agora, depois deles, continua sendo uma espécie de renitente marca registrada da poesia brasileira. Entre nós, quando falamos em “rigor formal”, queremos de fato dizer “centralização poética”, “autoridade poética”, correspondentemente distante da “linguagem prosaica”. Os mecanismos pelos quais a linguagem se centraliza poeticamente não são, é claro, apenas temáticos (os temas “elevados”), mas muito especificamente composicionais – todos os recursos gráficos, visuais e sonoros de que o poeta dispõe para isolar sua linguagem de todas as outras, para delimitar o seu território, serão usados. O universo semântico-ideológico, porém, encontrará na sua expressão a resistência da cultura coletiva da qual o poeta faz parte e de onde extrai a convenção de sua arte. Assim, há sempre um toque transcendente na voz poética, a busca do “tom maior”, coletivo, que dá à poesia a autoridade de sua própria presença, a dignidade que a justifica. Se, tecnicamente, o estilo poético “não conhece limites”, como diz Bakhtin, ideologicamente o poeta será “um homem de seu tempo” – o limite de autoridade poética é o eco de sua voz. A questão é que vivemos num tempo prosaico, retomando a arquitetura literária de Bakhtin. Isso acontece não porque haja propriamente uma preferência universal arbitrária pela prosa, mas porque, talvez mais do que em qualquer outro tempo, a consciência e valorização das linguagens alheias – consideradas não como objeto, mas, digamos que democrática e multiculturalmente, como sujeitos ativos do mundo dos significados – está presente; e, parece, é cada vez mais difícil a autoridade poética encontrar eco, 206
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isto é, encontrar recepção e ressonância a uma entonação centralizada, marca absoluta do estilo poético na sua voltagem máxima. Assim, o que podemos chamar de “contaminação prosaica” é a marca contemporânea obrigatória de toda poesia. O poético absoluto – que em outros tempos cantava, em formas composicionais congeladas, a grandeza épica dos povos, a iluminação cristã e sua organização de mundo, ou mesmo, mais modernamente, a busca da perfeição estética como sinal de transcendência artística – ficou sem lugar no poema, ou pelo menos manteve-se como expressão desconfortável de um mundo ideológico que não encontra mais eco, cuja voz não encontra auditório disposto a lhe conceder a autoridade da voz. Mas é claro que esse “impulso poético” prossegue vivíssimo em segundo plano, ou mesmo invadindo (ou recuperando) gêneros que havia perdido ao longo da história, como os gêneros narrativos, ao tirar deles a indispensável dialogicidade interna, a fratura de linguagens, e envernizá-los com uma centralização tematicamente espiritualizante.19
O REFÚGIO DO DISCURSO POÉTICO Pois bem: em que outro lugar pode se refugiar o discurso poético para quem vive a consciência multifacetada das linguagens do nosso tempo? No mundo leigo, não há mais espaço para uma voz “centralizadora”, “autoritária” ou “dogmática”, nos termos em que Bakhtin definia o limite poético. A contaminação prosaica – não necessariamente composicional, mas certamente semântica – acaba sendo a sua marca registrada. A dualidade do modernismo brasileiro, balançado sempre entre o que se chama genericamente de “rigor formal” e o que se chama também genericamente de “emotividade”, “afetividade”, mas que pode se traduzir também como “prosaísmo”, mais do que uma guerra de escolas é uma tensão do tempo. Um exemplo excepcional de alta intensidade poética, que deixa entrever em cada instante a batalha “prosa vs. poesia”, é a obra de um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos, Paulo Henriques Britto. Vejamos alguns poemas tomados de seu livro Macau.20 O primeiro deles (“Três tercinas”, I) pode ser lido como a expressão quase paradoxal, certamente angustiante, de um projeto poético contemporâneo: 207
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Para o que se quer, isto basta. Parece pouco. E é pouco, mesmo, é quase um nada. E no entanto cabe um bocado, cabe tanto que é até preciso dar um basta. Quanto ao assunto – o si-mesmo – é invariavelmente o mesmo. Um ponto. Um fragmento. Entretanto é um universo que se basta – e como! e tanto! – a si mesmo. E agora basta.
Rigorosamente não há uma só expressão deste poema que não seja prosaica. Há uma espécie de “anti-retórica” percorrendo a alma de cada palavra, do modo como o poeta nos apresenta. O tom coloquial se define pelo vocabulário, pela frase curta, pelo solilóquio miúdo, pela despreocupação com o menor sinal altissonante e mesmo pela gaguejante argumentação que deixa entrever. A idéia de “fala” – no que ela tem de dialógica, tensa – e a idéia de “resposta” (há sempre um interlocutor implícito) estão presentes em cada linha. Entretanto, cada um dos traços prosaicos deste texto é rigidamente controlado pelas marcas do estilo poético, que acaba por dominar o conjunto por inteiro. Todos os elementos, em cada verso, estão a serviço de uma voz organizadora que transforma em objeto tudo que toca. E que marcas lingüísticas são essas?
Começamos pelo metro, que é o primeiro estranhamento, o mais comum e o mais popular, do estilo poético. Aliás, o metro é a força milenar da poesia, o seu ponto de contato com o canto, o seu afastamento radical da linguagem “comum”, da fala cotidiana; o metro, seu sistema de cesuras e a reiteração rítmica que dele decorre representam o imediato isolamento da linguagem – cantar é um ato que transforma o outro imediatamente em ouvinte passivo ou, no máximo, em eco da voz que canta, repetindo-lhe o refrão. O canto tem uma natureza estritamente unilateral. Como diz Bakhtin, referindo-se ao poder centralizador do ritmo: [...] por mais que sejam numerosos e multiformes os fios semânticos, os acentos, as associações, as indicações, as alusões, as coinci-
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dências que procedem de cada discurso poético, todos eles servem a uma só linguagem, a uma única perspectiva [...]. O próprio ritmo dos gêneros poéticos não favorece qualquer estratificação substancial da linguagem. O ritmo, ao criar a participação direta de cada momento do sistema acentual do conjunto (através das unidades rítmicas mais próximas) destrói em estado ainda embrionário aqueles mundos e pessoas virtualmente contidos no discurso: em todo o caso, o ritmo coloca-lhes determinadas barreiras, não lhes permitindo se desenvolver e se materializar; ele fixa e enrijece ainda mais a unidade e o caráter fechado do estilo poético e da linguagem única que é postulada por este estilo.21
Na poesia escrita, a composição gráfica cumpre, em outro código, essa função divisória. A composição gráfica do texto em versos, aqui de oito sílabas (com uma cesura variável entre a quarta e a quinta sílaba), já nos coloca de imediato num território visualmente isolado. Lembremos que, na sua versão escrita, o verso é uma arma do isolamento poético: estamos diante de uma escolha composicional que, objetivamente, contrapõe-se à “naturalidade” prosaica do texto. Os olhos do leitor como que saem do seu mundo comum de leitura (o jornal, a revista, o livro de prosa), no qual eles entrariam desarmados, e se adaptam a uma especificação isolante, especial, peculiar, que exige a todo momento uma atenção diferenciada. Assim, o que o poeta Paulo Britto, nestes versos, dá com uma das mãos (o tom coloquial, a proximidade, a conversa simples), tira com a outra (aquilo que parece um diálogo comum é, de fato, um objeto fechado). Toda a liberdade da fala se enclausura rigorosamente no interesse do poeta. Relembremos Bakhtin, em uma de suas afirmações mais controversas (sempre frisando que aqui Bakhtin se refere ao “máximo” poético, dentro do continuum a que fizemos referência): Nos gêneros poéticos (em sentido restrito) [...] o discurso satisfaz a si mesmo e não admite enunciações de outrem fora de seus limites. O estilo poético é convencionalmente privado de qualquer interação com o discurso alheio, de qualquer “olhar” para o discurso alheio.22
Será mesmo assim? No poema de Britto, praticamente todas as palavras e expressões são populares, isto é, têm uma tonalidade comum, coloquial, 209
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fazendo emergir a representação de uma espécie de “voz do povo”; há toda uma sugestão prosódica, quase que podemos ver os gestos do falante: “isto basta”, “parece pouco”, “cabe um bocado”, “e como!”, “e agora basta”. Entrevemos também, em cada instante, um ouvinte imaginário, alguém físico, concreto, que daria pleno sentido ao que o poeta diz – mas a verdade é que lemos o poema como se flagrássemos um pedaço de conversa de que perdemos o início e de que jamais saberemos o fim. E sem esses dois pedaços, que têm de ser adivinhados, completados pela intuição do leitor, o poeta nos deixa no ar e, metaforicamente, sem ar. Aqui não temos, de fato, um “extremo poético”, mas a “linguagem alheia”, prosaica, que o poeta nos oferece, carece de qualquer autonomia. Pois bem, chegamos então em outro traço marcante do estilo poético, que é o seu poder essencial de indeterminação histórica, a sua irresistível transcendência. Ao nos abrir uma conversa comum em estado bruto, mas simultaneamente nos negar a chave de suas referências, todos os traços da linguagem alheia, de um possível interlocutor, de uma autonomia outra que não a do poeta, desaparecem e se objetificam, como Bakhtin queria demonstrar. Sim, o leitor pode concordar que o prosaísmo de Britto significa, de certa forma, uma renúncia à unilateralidade poética, uma renúncia à altissonância do estilo do gênero, um prévio desarmamento da centralização ideológica, como uma escolha, uma recusa, uma descrença do poder poético – mas, no impulso estritamente poético que se revela ao fim, toda a matéria-prima da prosa que, parece, está em suas mãos, nos termos mesmos da prosa, domestica-se docilmente à soberania poética. O chão prosaico alça-se, na síntese absoluta de cada verso, à intencionalidade poética do autor e fica inteiramente inerme, a seu serviço, um objeto de contemplação e não o contraponto de uma outra voz. Na obra de Britto, “a linguagem realiza-se como algo indubitável, indiscutível, englobante. Tudo o que vê, compreende e imagina o poeta, ele vê, compreende e imagina com os olhos da sua linguagem, nas suas formas internas” – as palavras são de Bakhtin. Nesse ponto da análise precisamos transcender o objeto poético em si, a auto-suficiência de seus mecanismos internos, “as peças do automóvel” de que falava Vítor Shklóvski,23 numa das imagens-síntese dos formalistas russos, e considerar os aspectos supostamente extraliterários (mas que, de fato, 210
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determinam o que é e o que não é literário) do objeto estético. As “peças do automóvel”, aqui, são meia dúzia de palavras corriqueiras empregadas numa tonalidade igualmente corriqueira, mas dominadas, sílaba a sílaba, por uma reiteração formal, tanto no isolamento do verso, escravo do antecessor e guia do seguinte (uma reiteração só quebrada no último, cortado pela metade, síntese da idéia central do poema – E agora basta. –, numa firmeza agora sem ênfase, como uma porta prosaica que respira e se abre – para lugar algum), como por uma reiteração semântica: cada palavra ao mesmo tempo afirma e nega o que se disse antes, em soluços adversativos que se encerram abruptamente, sem nenhum tertius. Veja-se: isto basta / parece pouco / e é pouco / e no entanto / cabe tanto / que é preciso um basta / quanto ao assunto / é o mesmo / entretanto / se basta / e tanto / e agora basta. Paulo Henriques Britto, usando apenas peças de um automóvel prosaico, monta-nos um perfeito quebra-cabeças poético, da primeira à última linha, que ilustra perfeitamente as marcas essenciais da linguagem da poesia segundo Bakhtin. Como na linguagem poética estrita só o poeta fala, a idéia elevada de “mensagem” ou de “revelação” – absolutamente inaceitável na prosa, pelo que tem de doutrinário, proselitista, parcial – faz sentido na poesia; na verdade, é esse historicamente o terreno dela, quando em estado “puro”. São duas palavras fortes, para a cultura do nosso tempo – mensagem e revelação –, pelo que têm justamente de doutrinário, religioso ou mesmo dogmático, como diria Bakhtin. Mas, numa arte laica, irrecuperavelmente à deriva, sem a âncora de uma hegemonia ideológica que em outros tempos assegurava a força de sua voz, o que resta à poesia para manter viva a sua linguagem? No caso muito específico de Britto – mas que encontra eco em muitos outros poetas contemporâneos – resta à poesia discutir justamente o seu estatuto, o seu lugar no mundo, com as armas composicionais do discurso poético de um lado, e com a memória semântica de uma hegemonia perdida, em outro. Claro, há um imenso terreno lírico em que essa questão não se coloca ostensivamente, ainda que o poeta, mesmo quando, digamos, apenas canta em louvor de sua amada, sempre se veja obrigado a construir (composicional e semanticamente) o breve oásis em que a autoridade de sua voz possa ser ouvida e ser aceita (na música popular esse oásis se faz instantaneamente pelo magnetismo do canto, que, como já dissemos, colo211
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ca o interlocutor na posição de puro ouvinte). E qual é o estatuto da poesia, segundo Britto? Retomando seus versos, parece pouco, é quase um nada, mas cabe tanto que é até preciso dar um basta. Enfim, a poesia – isso fica por conta do leitor, mas faz pleno sentido no conjunto do livro Macau – “é um universo que se basta”. Virando a página, encontramos a tercina II, agora escrita em língua inglesa, em mais súbito traço da transcendência poética, a sua – de certa forma a palavra é esta mesmo –, “desconsideração” do leitor e de sua determinação histórica. Aliás, é bastante freqüente na história a figura do poeta eventualmente bilíngüe, fazendo valer o peso de um desenraizar-se lingüístico, o exercício da palavra que parece não dever nada a ninguém em seu aqui e agora. Veja-se o primeiro terceto: A word, a will, an eye, a hand – that’s what it takes to make a world. All else follows from that, you say.24
O “you say” dá a marca do diálogo prosaico que acompanha argumentativamente o poema até o último verso, mas também aqui o que faz o mundo é, de modo literal, “uma palavra, uma vontade, um olho, uma mão” – do poeta, podemos interpretar; o mundo inteiro é dele. Deixemos esta segunda tercina – o fato de estar escrita em inglês já é amostra suficiente de seu isolamento composicional, no sentido que estamos considerando. Mais uma vez, o que o poeta dá com a mão direita (um diálogo) tira com a esquerda (escrito em inglês, num livro que metaforicamente faz de “Macau” – a longínqua e perdida colônia portuguesa na China – uma referência simbólica ao isolamento, à distância e à fragilidade da nossa língua). Na última tercina, o poeta, agora sem nenhum álibi, se assume assertivamente como tal. Leia-se: Nunca não ser ninguém nem nada, porém deixar-se estar no tempo como se a vida fosse água, como quem bóia à flor da água sem rumo, sem remo, sem nada além de sono, tédio e tempo,
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senhor de todo o espaço e o tempo, munido só de pão e água e, sem precisar de mais nada, beber sua água enquanto é tempo. E, depois, nada.
Neste belo poema, com uma intensidade que se manifesta em todos os seus segmentos, o poeta “pontifica” – de modo unilateral, ele nos aconselha. Na verdade, pontificar não é bem o caso – de fato, ele não se dirige a nós; ele apenas fala, intransitivamente. Não há mais aqui o nervoso contraponto implícito, adversativo, da primeira tercina, nem o tom coloquial – “you say” – da segunda, como marcas de uma invasão prosaica, de um mundo alheio a que ele tem de responder quase que no mesmo tom. Aqui não. O movimento métrico mantém-se rigorosamente o mesmo do conjunto, como isolante composicional da linguagem; mas, além disso, no campo semântico-ideológico, também só ele fala. O poema é uma ordem – o traço imperativo do primeiro verso (Nunca não ser ninguém nem nada), um imperativo transcendente, já que não se dirige especificamente a ninguém em particular, vai se explicando (mas não se desculpando ou suavizando ou concedendo) nos versos seguintes, até se fechar, igualmente peremptório, na última afirmação: E depois, nada. Como apropriação da linguagem, este poema é a cristalina ilustração das palavras de Bakhtin: Na obra poética a linguagem realiza-se como algo indubitável, indiscutível, englobante. Tudo o que vê, compreende e imagina o poeta, ele vê, compreende e imagina com os olhos da sua linguagem, nas suas formas internas, e não há nada que faça sua enunciação sentir a necessidade de utilizar uma linguagem alheia, de outrem.25
Observe-se que o “indubitável” ou o “indiscutível” não decorrem propriamente de um conteúdo autoritário, de uma mensagem tradicional ou ingenuamente enfeixada numa ordem; a “ordem” pode ser perfeitamente assumida pela prosa, na medida em que se dirige diretamente a alguém, considera esse “alguém” como uma linguagem própria, eventualmente usa essa linguagem alheia para comentá-la, considerá-la, desconsiderá-la ou 213
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destruí-la. O “faça isto” prosaico carrega a tensão de linguagens distintas que se encontram em guerra. Já no discurso poético, como dissemos, não se trata de uma “mensagem” objetiva; os traços peremptórios da linguagem da poesia consubstanciam-se no momento mesmo em que a palavra se assume poética, colocando a seu serviço centralizador todos os recursos composicionais e semânticos à disposição no seu repertório técnico e ideológico e ignorando radicalmente a linguagem do outro; a linguagem poética, pelo princípio organizador de si mesma, não pede uma resposta – ela é uma resposta. Mas é claro que há um outro mundo a considerar no poema lido, além das marcas de sua constituição como linguagem poética. Já fizemos referência às amarras composicionais rigorosas que mantêm o conjunto dos três poemas considerados sob a força de uma intensa unidade, pela reiteração métrica, uma fôrma que se retoma nos três casos. Nesse sentido, há um impulso clássico nesta escolha de formas, na medida em que se contrapõe – pelo menos no caso brasileiro – a uma tradição que tem nas marcas formais prosaicas um dos seus traços mais definidores. Naturalmente, a escolha de formas composicionais mais rígidas coloca o poeta na linha de outros reencontros. No caso, um reencontro em que o verso, o léxico, o tema e o ritmo final que anima esses elementos dão ao poema o seu toque quase que pastoril, de uma écloga comme il faut, de sabor árcade. Visto assim, cruamente, seria o caso de considerá-lo maneirista, mais ou menos em paralelo com as brincadeiras barrocas em que este ou aquele poeta habilidoso brinca de oxímoros no rigor do soneto, mas já sem nenhuma das tensões concretas que criaram o estilo quatrocentos anos atrás? Mais uma vez, como no próprio poema, a resposta é “não”. O reencontro com o passado de Paulo Henriques Britto se dá aqui, no presente. Não há nesses poemas nenhuma entrega dócil ao já formulado, mas a dura conquista de um lugar incerto, ou, melhor dizendo, um roteiro para esta conquista. O poema reconhece plenamente, sim, que faz parte de uma família, que é herdeiro de uma cultura; mas o despreendimento do mundo material se realiza aqui não como expressão mecânica de um ideário clássico ou rousseauniano, sob o concerto ideológico de uma visão comunitária ou coletiva, mas como uma solidão em estado bruto. A radical economia de vocabulário, no chão comezinho das repetições, em que as rimas, mais ain214
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da que pobres, se fazem pela simples duplicação de três palavras,26 concentra e centraliza a angustiante unilateralidade poética. A voz do poeta canta, mas sabe, em cada passo, que, munida “só de pão e água” não há propriamente o que cantar, exceto a negação, uma negação que inclui uma dura consciência do próprio tempo, como atitude (“beber sua água enquanto é tempo”) e como destino (“E, depois, nada”). O poeta se reconhece – e esse é o desespero de sua linguagem – órfão de qualquer cosmogonia. Há quem diga que o conceito de poesia em Bakhtin é parcial e preconceituoso com relação às qualidades da prosa, por contrapor valores tão caros ao nosso tempo como “centralização” (a autoridade de um único ponto de vista) e “descentralização” (multiplicidade de pontos de vista) ou, mais tecnicamente, “arte monológica” e “arte dialógica”, e portanto a poesia seria “inferior” à prosa. Mas uma releitura cuidadosa dos termos em que Bakhtin coloca a questão – como modos distintos de apropriação da linguagem, dentro de um quadro em que a linguagem é essencialmente dupla – e, igualmente, um olhar atento à poesia maior contemporânea, como nesta amostra de Paulo Henriques Britto, demonstrará que, longe de promover uma redução mecânica da questão, o mestre russo abriu um novo caminho de investigação do discurso poético, ultrapassando os limites das “peças do automóvel” de Shklóvski, sem cair nas paráfrases de conteúdo que fazem das palavras meros veículos do pensamento ou ilustrações temáticas. Para Bakhtin, o poético é a expressão completa de um olhar sobre o mundo que chama a si a responsabilidade total de suas palavras. Num mundo fragmentário e prosaico como o nosso, não é tarefa fácil sustentar o poder dessa linguagem sem se entregar aos lugares comuns da cultura de massa ou aos universais poético-religiosos, que, parece, são a hegemonia que nos restou. Não é fácil, mas é possível, como nos mostra a poesia de Paulo Henriques Britto.
NOTAS 1
M. Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 7.
2
Op. cit., pp. 35-6.
3
M. Bakhtin, Toward a Philosophy of the Act, Austin, University of Texas Press, 1993. Translation and notes by Vadim Liapunov. Esta primeira obra de fôlego de Bakhtin, que restou inacabada, foi escrita no início dos anos 20 e permaneceu inédita até 1986. As citações no presente ensaio são de uma tradução inédita da edição americana, feita por Carlos Alberto Faraco e por mim.
215
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4
Op. cit., p. 2.
5
Op. cit., p. 60.
6
Idem, ibid.
7
Op. cit., p. 65.
8
Op. cit., p. 66.
9
M. Bakhtin, Questões de literatura e estética (A teoria do romance), São Paulo, Hucitec/Unesp, 1988, p. 86.
10
Idem, ibid.
11
Op. cit., pp. 104-5.
12
Op. cit., p. 94.
13
Op. cit., pp. 92-3.
14
Op. cit., p. 93.
15
Idem, p. 95.
16
Um reflexo desta postura teórica pode ser encontrado, por exemplo, nos manifestos do movimento concretista brasileiro, que trouxe ao Brasil, em meados dos anos 50, as questões teóricas e os projetos estéticos criados pelo formalismo russo.
17
Op. cit., p. 95.
18
A palavra “ideológico”, em Bakhtin, não tem o sentido estrito que normalmente lhe dão as correntes marxistas – “ideologia” como “mascaramento do real”. Para Bakhtin, o termo “ideológico” compreende tudo aquilo que envolve visão de mundo e axiologia, isto é, escala de valor.
19
Nesse sentido, compreende-se talvez, por exemplo, parte do fenômeno da obra de Paulo Coelho; ela realizaria essa prosa “poética” em pelo menos um dos aspectos frisados por Bakhtin – uma voz centralizadora reduz o mundo inteiro à sua própria autoridade e encontra na audiência a exata aceitação, o eco que a faz respirar.
20
Paulo Henriques Britto, Macau, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. Os três poemas citados aqui estão nas páginas 23, 24 e 25.
21
Op. cit., p. 104.
22
Idem, p. 93.
23
“A pessoa que entende inspeciona o automóvel com serenidade e compreende ‘para que serve cada coisa’: por que o carro tem tantos cilindros, por que tem grandes rodas, onde se coloca a transmissão, por que a parte posterior é cortada em ângulo agudo e por que o radiador não é polido. É deste modo que se deveria ler.” In P. Steiner, Il formalismo russo, Bologna, Il Molino, 1991, p. 54. Tradução nossa.
24
“Um verbo, a volição, um olho, a mão – / é o necessário pra fazer um mundo. / O resto é conseqüência, diz você.” Tradução de Caetano Waldriguez Galindo.
25
Op. cit., p. 94.
26
Observe-se que as tercinas de Britto evocam, ou subvertem, a forma das sextinas renascentistas, poemas em que as mesmas seis palavras apareciam segundo uma ordem preestabelecida. Devo a Caetano Waldriguez Galindo este detalhe.
216
Poesia CRISTOVÃO TEZZA
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _____. Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993. Translation and notes by Vadim Liapunov. _____. Questões de literatura e estética (A teoria do romance). São Paulo: Hucitec/Unesp, 1988. BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. STEINER, P. Il formalismo russo. Bologna: Il Molino, 1991.
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Psicologia Yves Clot Trad. Anna Rachel Machado
À primeira vista, a questão é clara. Como Dostoiévski, Bakhtin não gostava dos psicólogos. Ele poderia ter dito, qual Stavroguine a Tikhon, em Os demônios: “Escute, não gosto de psicólogos e de espiões, pelo menos não gosto de psicólogos e espiões que se querem insinuar na minha alma”. Bakhtin opõe à psicologia, segundo C. Emerson, até mesmo o conceito de “não acabamento”, que é um de seus conceitos fundamentais (Emerson, 1994). Além disso, é certo que o não acabamento está no centro de sua concepção do diálogo. Entretanto, é com Bakhtin que queremos, neste artigo, esclarecer a contribuição de dois grandes psicólogos do século XX. Ambos são russos, como ele, e fundadores da psicologia histórico-cultural. Nossa hipótese é a de que o trabalho de Bakhtin permitiria compreender um pouco melhor a perspectiva desses psicólogos sobre o desenvolvimento. Na verdade, com Pensamento e linguagem, Vygotski1 deixou-nos uma herança que não é só brilhante. Ela envolve enigmas, algumas “possibilidades não realizadas” – para falarmos como ele – com as quais seus herdeiros tiveram de se confrontar. Na seção seguinte, enfocaremos o modo como Leontiev se confrontou com duas questões levantadas por Vygotski: a pri-
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outros conceitos-chave
meira refere-se à teoria da significação. A segunda, à da atividade. Nos dois casos, recorreremos à obra de Bakhtin a fim de compreender as dificuldades encontradas e as tentativas que se desenvolveram para superá-las.
O ENRIQUECIMENTO DAS PALAVRAS Os textos são conhecidos. De um lado, Vygotski escreve: “Desde o início o pensamento e a palavra não se estruturam, absolutamente, pelo mesmo modelo. Em certo sentido, pode-se dizer que entre eles existe antes uma contradição que uma concordância. Por sua estrutura, a linguagem não é simples reflexo especular da estrutura do pensamento, razão pela qual não pode esperar que o pensamento seja uma veste pronta. A linguagem não serve como expressão de um pensamento pronto. Ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento não se expressa mas se realiza na linguagem” (Vygotski, 2001, p. 412). A linguagem modifica, assim, o pensamento. Por outro lado, entretanto, Vygotsky observa que o sentido real de uma palavra é inconstante (Idem, p. 465). Conforme a operação de trabalho do pensamento, a significação varia: Esse enriquecimento das palavras que o sentido lhes confere a partir do contexto é a lei fundamental da dinâmica do significado das palavras. A palavra incorpora, absorve de todo o contexto com o que está entrelaçada os conteúdos intelectuais e afetivos e começa a significar mais e menos do que contém o seu significado quando a tomamos isoladamente e fora do contexto: mais, porque o círculo dos seus significados se amplia, adquirindo adicionalmente toda uma variedade de zonas preenchidas por um novo conteúdo; menos, porque o significado abstrato da palavra se limite e se restringe àquilo que ela significa apenas em um determinado contexto. (Idem, 465-6)
Portanto, o pensamento também modifica a linguagem. A significação das palavras desenvolve-se por proliferação na vida concreta e se enriquece graças à especialização dos domínios em que a palavra é mobilizada. Mas, simultaneamente, a estrita especificação da palavra empobrece a significação. Há, portanto, um “devenir” da palavra, em parte imprevisível, na ação e no pensamento. 220
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É por isso que, mesmo havendo de fato um “processo vivo de nascimento do pensamento na palavra” (Idem, p. 484), esse processo é inseparável de um processo vivo: o de um vir a ser da palavra na comunicação entre os homens e em cada um deles. Tomando forma na vida, a palavra leva o pensamento a seu total acabamento. A significação real da palavra nasce no ponto de contato entre sua significação formal e o sentido que ela retira de uma situação. Destarte, a significação real é um terceiro termo, uma recriação verbal situada; de algum modo, uma morfogênese que assegura o dinamismo das significações formais por meio do enriquecimento das palavras. A linguagem é viva e a língua também o é, dado que são, ao mesmo tempo, o meio e o objeto de uma atividade linguageira dialógica que as renova. Aqui, podemos fazer duas observações que se referem à concepção que podemos ter dos mecanismos do pensamento. Para Vygotski, a interiorização da palavra é, simultaneamente, exteriorização do pensamento. A objetivação do pensamento realiza-se por meio de uma subjetivização da palavra. Podemos falar, então, da realização do pensamento pessoal nas palavras do outro, palavras essas que o sujeito, ao mesmo tempo em que as retoca, deve fazer suas. O pensamento se exterioriza na palavra, delimitando sua significação, e, simultaneamente, a palavra é interiorizada, fixando o pensamento, graças ao apoio que ela lhe oferece. Assim, quando Vygotski fala do processo vivo de nascimento do pensamento na palavra, desse modo, ele ressalta que, para o sujeito, a exteriorização do pensamento é apenas a outra face da interiorização da palavra, e vice-versa. De forma mais ampla, o desenvolvimento psicológico não é apenas a internalização dos instrumentos sociais, dado que é, ao mesmo tempo, externalização do pensamento pessoal vivo. O conceito de apropriação dá conta, de maneira adequada, desse processo, freqüentemente mal descrito pela noção de interiorização. O que o sujeito aprende só é verdadeiramente apropriado por ele quando o objeto da aprendizagem é subvertido, a fim de se tornar um meio a serviço de sua atividade vital: os instrumentos sociais são apropriados por ele, quando são apropriados para ele. Como observa Rivière (1990, p. 92), a aprendizagem deve transformar-se em desenvolvimento. Finalmente, o desenvolvimento – tanto intelectual quanto afetivo – é a transformação das aprendizagens e das experiências em meios para sustentar as paixões. Acreditamos que esse é o fio condutor da obra de Vygotski: 221
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outros conceitos-chave
“São exatamente as paixões que se constituem como o fenômeno fundamental da natureza humana” (Vygotski, 1998, p. 267). A respeito do problema das relações entre internalização e externalização, podemos observar a proximidade entre as preocupações de Vygotsky e as de Bakhtin. Para este, todo discurso recupera um outro discurso e se dirige a um outro (Peytard, 1995, p. 38). Mesmo a linguagem interior é um “discurso relatado”. Assim, “a procura da própria palavra é, de fato, procura da palavra precisamente não minha mas de uma palavra maior que eu mesmo; é o intento de sair de minhas próprias palavras, por meio das quais não consigo dizer nada de essencial” (Bakhtin, 2002, p. 385). Mas, simultaneamente, “compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra (Bakhtin, 1997, p. 132). Dito de outra forma, o sujeito existe para si mesmo, não negando as interações com os outros, mas pela via de seu vir a ser. Conseqüentemente, não existe nada “que não convoque uma resposta e que já tenha dito sua última palavra” (Bakhtin, 1970, p. 343). Aliás, é isso que sempre faz com que a responsabilidade do sujeito esteja engajada em cada um de seus enunciados (Bakhtin, 2003a).
BAKHTIN INDO ALÉM DE SAUSSURE A proximidade que acabamos de assinalar entre Bakhtin e Vygotsky deve ser, entretanto, questionada. A comparação é muito útil, se quisermos compreender melhor o que pôde incomodar, na própria herança de Vygotsky, o que o desenvolvimento da teoria da significação de Leontiev incomodou na herança de Vigotsky. Assim, esse é o primeiro problema que abordaremos. Para isso, uma volta à obra de Bakhtin parece-nos indispensável. Segundo o autor, a língua não é interiorizada. Não é preciso partir da interiorização da língua, mas da produção verbal do sujeito entre os outros, a fim de se apreender como o dado da linguagem se transfigura em criado. De fato, de acordo com o autor, a palavra existe sob três formas: a palavra neutra do dicionário, a palavra do outro, a palavra própria. Não aplicamos as palavras do dicionário na vida. A experiência verbal do homem é um processo de assimilação mais ou menos criativo das palavras de outro e não das palavras da língua em si mesmas. Nossa fala é repleta das palavras do outro e nossos enunciados se 222
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caracterizam, em diferentes graus, pela alteridade ou pela assimilação, por um emprego idêntico ou demarcado, retrabalhado ou desviado das palavras do outro (Bakhtin, 1984, p. 296). Para agir no mundo, vivemos no universo das palavras do outro e toda a nossa vida consiste em orientarmo-nos nesse universo, a enfrentarmos um duro combate dialógico nas fronteiras flutuantes entre as palavras do outro e as palavras próprias (Idem, pp. 363-4). “A linguagem não é um meio neutro que se torne fácil e livremente a propriedade intencional do falante, ela está povoada ou superpovoada de intenções de outrem. Dominá-la, submetê-la às próprias intenções e acentos é um processo difícil e complexo” (Bakhtin, 1988, p. 100). Para chegar a isso, o sujeito não se encontra sozinho diante da língua, abandonado à sua fala, isolado. Beneficia-se do fato de que as palavras do outro têm uma vida dupla. Elas vivem no curso inesperado e imprevisível do desenvolvimento das trocas verbais, mas, ao mesmo tempo, pertencem a funcionamentos sociais previsíveis e esperados, em que o sujeito pode se apoiar. Bakhtin designa essa organização social preexistente das palavras do outro com o conceito de gênero do discurso. Os gêneros prefiguram as ações linguageiras possíveis (Schneuwly, 1994, p. 161; Bronckart, 1996). Assim, as relações entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas. Manifestam-se em gêneros de discurso disponíveis, dos quais o sujeito deve dispor para entrar na comunicação. “Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seia quase impossível” (Bakhtin, 2003, p. 283). Esses gêneros fixam, em um determinado meio, o regime social de funcionamento da língua. Trata-se de um estoque de enunciados esperados, protótipos das formas de dizer ou de não dizer em um espaço sociodiscursivo. Podemos falar, a partir de Fréderic François, de proto-significações (François, 1998, p. 9). Esses enunciados pré-construídos e estabilizados retêm a memória impessoal de um meio social em que são autoridade, dão o tom. Traem os subentendidos que regulam as relações com os objetos e entre as pessoas, as tradições adquiridas que se exprimem e se preservam sob o envelope das palavras. Pré-municiam o sujeito contra o uso deslocado dos signos em uma determinada situação. Um gênero está sempre ligado a uma situação no mundo social. 223
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Com esse conceito, Bakhtin critica a Lingüística de Saussure. Para este, conforme sabemos, a língua se opõe à palavra como o social ao individual. De um lado, a língua prescrita, o signo arbitrário; de outro, a liberdade real do locutor em situação. Bakhtin trabalha para refutar essa bipolarização da vida da linguagem entre o sistema da língua única, de um lado, e o indivíduo do outro (Bakhtin, 1978, p. 94; François, 1998, p. 120; Peytard, 1995, pp. 34-6). Ele descobre, entre o fluxo perpétuo da fala real em situação e as formas de línguas normalizadas de Saussure, outras formas estáveis, que se diferenciam profundamente das formas estáveis da língua: as formas sociais do gênero do enunciado em que a fala se ordena em enunciações-tipos. O querer-dizer de um sujeito se realiza – de modo pior ou melhor – na escolha de um gênero. Falamos na forma de gêneros variados, sem mesmo suspeitar de sua existência. Moldamos nossa fala em determinadas formas precisas de gêneros estandartizados, estereotipados, mais ou menos flexíveis, plásticas ou criativas. Esses gêneros, que são as falas sociais em uso numa situação, nos são quase dados, assim como nos é dada a língua materna. Os gêneros organizam nossa fala, assim como as formas gramaticais. Na melhor das hipóteses, o sujeito recria-os, mas não os cria. Mais que dados, eles lhe são emprestados, para que possa falar e ser compreendido pelos outros. Não podemos produzir um enunciado que não faça referência a um outro enunciado do mesmo gênero. Portanto, a fala não é um ato puramente individual oposto à língua como fenômeno social. Há um outro regime social da linguagem, organizado de acordo com as formas sociais catalogadas da fala em um domínio de atividades. Bakhtin fala de “diapasão lexical” próprio de um meio e de uma época (Bakhtin, 1970, p. 279). Ou seja, “ao falante não são dadas apenas as formas da língua nacional (a composição vocabular e a estrutura gramatical) obrigatórias para ele, mas também as formas de enunciado para ele obrigatótórias, isto é, os gêneros do discurso: estes são tão indispensáveis para a compreensão mútua quanto as formas da língua” (Bakhtin, 2003, p. 285). Bakhtin acrescenta que “é preciso dominar bem os gêneros para empregálos livremente” (Idem, p. 284). É a esse preço que os sujeitos podem aí se liberar dos gêneros, não os negando, mas por via de sua metamorfose, deixando aos gêneros, então, sua vitalidade, isto é, sua eficácia no mundo. Os 224
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gêneros, portanto, são, ao mesmo tempo, restrições e meios de agir no universo das palavras do outro; recursos para fazer valer nossas intenções nas trocas verbais com os outros. Mas também são o instrumento de seleção das formas por meio das quais podemos ver e conceituar a realidade, um sistema impessoal de meios e de métodos que asseguram ao sujeito o controle e a avaliação das finalidades de sua ação singular, mesmo que ele não conheça todos os recursos e todas as ramificações dos gêneros. Um instrumento, escreve B. Schneuwly (1994, p. 158), que faz existir as atividades linguageiras fora de sua realização única, que as prepara, as sustenta e as orienta. Podemos acrescentar que isso se opera de acordo com uma lógica interna e encadeamentos cuja execução pemite ao sujeito economizar muito esforço para “entrar” na troca verbal. As leis do gênero precedem a enunciação, delimitando – mas nunca de modo definitivo – o campo dos enunciados possíveis e impossíveis, sua conexão, sua sucessão. Elas o liberam de um trabalho redundante e não deixam-no se perder na situação. Sem esconder o fato de que um gênero anêmico pode tornar-se um peso morto para o sujeito, lembremos que ele é, senão uma âncora necessária, uma força viva, dado que, em suas formas, conservam-se os laços de um grupo (Clot, 2005).
BAKHTIN INDO ALÉM DE VYGOTSKI? Acabamos de escrever: nunca de modo definitivo. Com efeito, entre a língua e a vida, as leis do gênero tomam forma na atividade que, em troca, não termina de retocá-los. Segundo Bakhtin, é preciso então olhar um gênero não como uma norma, mas como um sistema de variantes em movimento, cujos atritos conservam a heterogeneidade e as dissonâncias do gênero. Este só se revela mesmo nas diversas variantes que se formam no decorrer de sua história. Quanto mais um sujeito tiver pontos de contatos com essas variantes, mais rico e mais ágil será seu manejo do “diapasão lexical” do gênero. É, portanto, uma arena para a significação das palavras, o “atelier” social de sua “finalização”; sendo que o inacabamento do próprio gênero implica que cada sujeito possa nele colocar algo de seu (Brait, 1996). Destarte, graças aos gêneros de discursos mobilizados nas trocas verbais, afrontam-se a significação literal das palavras, a significação dessas 225
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palavras no gênero – estilhaçado entre suas variantes – e tomado no discurso do outro, e, enfim, a significação dessas palavras para mim, eventualmente emprestada de um outro gênero. Logo, a significação é um conflito de significações que mantém a palavra viva entre as palavras, que conserva regras a plasticidade das regras, que oferece à língua os recursos do gênero de discurso em que ela vive. Nesse ponto, contudo, a precisão é necessária. O ponto de vista de Bakhtin não é relativista. É histórico. Vê a diferenciação da significação não apenas no espaço da comunicação presente, mas no tempo, sob o ângulo de seu vir a ser, de seu desenvolvimento: “A vida da palavra é sua passagem de um locutor a um outro, de um contexto a um outro, de uma coletividade a uma outra, de uma geração a uma outro” (Bakhtin, 1970, p. 279). Se interessa-se pela polissemia da palavra é como reavaliação permanente de sua unicidade. Para ele, a significação real da palavra se libera de sua significação literal no contato com a vida; mas, longe de anular essa significação formal, ela a coloca em movimento, a deforma, a transforma, a povoa de reavaliações sucessivas no decorrer de uma evolução histórica da qual a palavra, finalmente, guarda a memória. Há uma história da significação das palavras que se solta, passando de gêneros em gêneros, aumentando ou diminuindo seu raio de ação, retrabalhando suas vizinhanças, a fim de retomar a formulação de F. François (1998). Como Bakhtin, podemos dizer que a significação só é eterna enquanto evolução eterna da significação: “Há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis. No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser una. Ela não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir (Bakhtin, 1997, p. 106). Ela serve para falar de alguma coisa, serve a um tema e, logo, “a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação, com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias (Idem, p. 136). Vygotski não chega até aí. De fato, nada contradiz em seu trabalho a descoberta bakhtiniana dos gêneros sociais do discurso. Mas ele pára no início de uma possibilidade não realizada: uma concepção da significação como intersignificação, zona de interseção e de cruzamento. As palavras também têm suas zonas de desenvolvimento potencial. Parafraseando Wallon, 226
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poderíamos escrever: não há apropriação rigorosa e definitiva entre a palavra e o gênero de enunciados em que ela toma lugar. Diversos gêneros de discurso podem então se recortar no seio da mesma palavra e até mesmo se encontrar em conflito (Wallon, 1971, pp. 288-9). É isso que mantém a palavra viva e confere um vir a ser possível à sua significação literal. Esta não se dissolve em nenhum dos contextos que atravessa. Ao contrário, ela se refrata e, finalmente, pode se liberar deles. A significação da palavra pode sair aumentada dessa liberação dos gêneros e das trocas verbais, elevada a um nível superior, sem ser possível, entretanto, evitar o risco de que ela volte rebaixada desses deslocamentos. A palavra, escreve Bakhtin, “não esquece nunca seu trajeto, não pode se desembaraçar inteiramente dos contextos concretos de que faz parte” (Bakhtin, 1970, p. 279). Desse modo, o uso da palavra na atividade linguageira introduz o sujeito nos conflitos de significação de que a palavra é arena. Convoca o locutor para a interferência dos discursos sociais, implica-o em pertencimentos simultâneos e o expõe ao conjunto dos equívocos que a história deixou persistir. O sujeito se encontra dividido, preso na pluralidade dos mundos de significação, na intersecção dos quais, a fim de escapar de sua desarmonia, ele “joga” com uns para se libertar dos outros e vice-versa. Ao mesmo tempo, palavra neutra da língua, palavra impessoal dos gêneros sociais, palavra do interlocutor imediato; significação literal e significação superpovoada, a significação é polifônica. Sem poder se livrar disso – a não ser pela loucura –, o sujeito, no entrecruzamento dessas diferentes classes de significações, deve fazer ouvir sua voz, acrescentando, assim, às palavras do outro, às do gênero e às palavras neutras do dicionário, a significação real da palavra para ele mesmo, na troca verbal particular em que se encontra: o sentido de sua palavra para ele mesmo nas palavras dos outros e na língua. Preso nas divisões sociais da siginificação, ele se expõe a colocar algo de seu na palavra.
GÊNEROS E INSTRUMENTOS Vygotski não chega até essas conclusões. Duas conseqüências resultam disso, a nosso ver. Ele não retira, de suas primeiras reflexões sobre a vida das palavras e da dinâmica das significações, as conseqüências lógicas para sua 227
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concepção do instrumento. A significação, como vimos, é o objeto de uma hibridificação social. É heterogênea e composta por diferentes elementos. Como instrumento psicológico comum, os gêneros de discurso pré-organizam as significações verbais, proto-significações simultaneamente alargadas e estreitadas em um determinado meio sociodiscusivo. Formam passarelas sociais entre significações literais e os modos de pensar e de agir nesse meio. Vygotski não define assim os instrumentos psicológicos. Os signos que ele intercala entre os sujeitos e que reencontra e segue no próprio sujeito não são “tomados” em gêneros sociais que asseguram o vir a ser conflitual da significação. A significação, na teoria dos instrumentos psicológicos, é bastante “amorfa”. Conforme indica o próprio autor, ela se encontra posta “entre parêntesis”, em seus primeiros trabalhos (Vygotski, 1968).2 Em Pensamento e linguagem, não é mais o caso. A significação é vista em sua mobilidade e em seu dinamismo. Mas esse dinamismo, a nosso ver insuficientemente referido à intersiginificação social dos discursos e à polifonia dos ambientes sociodiscursivos, não chega a renovar a abordagem dos instrrumentos psicológicos, cuja vida ainda fica muito “a-social”. O conceito de gênero proposto por Bakhtin parece poder nos ajudar a fazer essa renovação, na medida em que o gênero é um meio de ação para o sujeito dotado de uma vitalidade social interna.3 Esse ponto é importante, pois também nos leva a reconsiderar a abordagem dos instrumentos técnicos e não apenas dos psicológicos. Rabardel esforçou-se para desenvolver a problemática de Vygotski no domínio dos instrumentos técnicos (1995). Ele mostra, em Les hommes et les technologies, a solidariedade teórica dos dois problemas. A nosso ver, não existem apenas gêneros de enunciados. Acreditamos poder postular que há, mais amplamente, gêneros sociais de atividades (Clot, 1999), que contêm não apenas gêneros de discurso, mas também gêneros de técnicas: estes fazem a ponte entre a operacionalidade formal e prescrita dos equipamentos materiais e os modos de agir e de pensar de um meio social. Não constatamos apenas a presença de enunciados deslocados ou, ao contrário, acordados em um meio social, todavia também a de gestos e de atos materiais e corporais mal ou bem-vindos. De modo geral, encontamos neles uma gama de atividades impostas, possíveis ou proibidas. As expectativas sociais de um gênero – freqüentemente subentendidas – dizem respeito tanto às atividades técni228
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cas e corporais quanto às atividades linguageiras. O gênero de atividades relacionado a uma situação e a um meio, estabiliza e retém – nunca de forma definitiva – os modos comuns de tomar as coisas e os homens. São atividades pré-organizadas que autorizam e dão o tom para se agir nesse meio. Entre elas, o escopo normativo de um gênero técnico4 não é menor do que o de um gênero linguageiro. Além disso, os recursos que o gênero de atividades fornece aos sujeitos para controlarem seus atos dirigidos aos objetos também não têm nada a dever aos que um gênero de discurso fornece. Proto-significações e proto-operações são, aliás, freqüentemente entrelaçadas, formando a textura do gênero e de suas variantes. Finalmente, por intermédio de seus “dizeres” e de seus “retoques” comuns e graças também às regras implícitas que o tramam, um gênero social de atividades retém a memória impessoal de um meio.5 Ele é, ao mesmo tempo, o instrumento técnico e psicológico desse meio de vida. Pelo domínio do gênero próprio a uma situação, cada sujeito pode predizer – ao menos parcialmente – os resultados de sua ação, que ele antecipa com o gênero. O gênero o torna hábil. Mas também pode fazê-lo inábil, se estiver desajustado e perder sua eficácia. Seguem-se então mal-entendidos na comunicação e fracasso na ação. Um retoque se impõe. Nessa perspectiva, pode-se considerar que a operacionalidade técnica não é mais constante que a significação das palavras. Ela tem uma história, um vir a ser. Não é amorfa. Também não pode ser colocada entre parêntesis, assim como a significação, e constitui, com esta, o sistema dos órgãos sociofuncionais preexistentes à atividade pessoal. Luria, a quem se deve penetrantes estudos sobre a questão dos órgãos funcionais da ação, pôde afirmar, por exemplo, que a significação das palavras “reflete os sons que a compõem. Esse é um outro aspecto da transferência de sentido das palavras – transferência sinestésica determinada por suas características sonoras. A maioria das pessoas negligencia a ressonância das palavras para se ater apenas à sua significação convencional” (Luria, 1995, p. 252). Entretanto, a psicologia do trabalho igualmente nos ensinou a considerar os ruídos que cercam as máquinas – sua ressonância – como índices de operacionalidade para os que se servem deles um determinado meio (Clot, 1998). Logo, a sonoridade das palavras também pertence ao gênero de uma situação. Também tem sua história, sua geografia, seus acentos. 229
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LEONTIEV INDO ALÉM DE VYGOTSKI? Portanto, a nosso ver, Vygotsky não pôde levar tão longe quanto Bakhtin a sua teoria da significação, o que implica, como primeira conseqüência, uma teoria instrumental inacabada. A segunda conseqüência talvez seja a de que, sem querer, ele tenha deixado a via aberta para uma interpretação “fria” da significação, reduzindo-a muito rapidamente a um patrimônio cristalizado a ser transmitido. Mais precisamente, a dissonância tão propícia à criação, que Bakhtin analisou, não se encontra na obra de Leontiev. Nesse ponto, Leontiev, além de não desenvolver as possibilidades contidas na herança de Vigotsky, também, em parte, as neutraliza. Voltaremos a isso, mostrando que, de um certo ponto de vista, Leontiev fica abaixo de Vygotski em relação ao problema da significação. Mas, primeiro, queremos insistir ainda sobre um outro aspecto, sustentando a tese de que ele vai além de Vygotsky em relação ao problema da atividade. Mais especificamente, parece-nos que ele soube retirar todas as conseqüências das últimas reflexões de Vygotsky sobre as relações entre o pensamento e a atividade. Vygotski nos deixa, no final de Pensamento e linguagem, com uma metáfora meteorológica em que os elementos desfavoráveis se acumulam: “a chuva, as nuvens e o vento” (Vygotski, 2001, p. 479). Se, como ele sustenta, o pensamento é uma nuvem que deixa cair a chuva das palavras, isso pode nos levar à idéia de que o que leva a pensar – o vento – não pode ser compreendido a partir do pensamento. Segundo Vygotski, o pensamento não é a última instância no processo da existência humana. O pensamento não nasce em um outro pensamento, mas nas nossas necessidades, nossos interesses, nossos motivos: planos de fundo do pensamento. Assim, não se compreende o pensamento a partir dele mesmo, mas como um ato no mundo e sobre si. Um ato para viver: Se separarmos o pensamento da vida, da dinâmica e das necessidades, se o privarmos de toda a realidade, fechar-se-ão diante de nós todos os caminhos de descoberta e de explicação das propriedades. Privaremos o pensamento de seu papel principal, que é o de determinar nosso modo de viver e nosso comportamento, o de transformar nossas ações, de orientá-las, de nos liberar da situação concreta. (Vygotski, 1994, p. 229).
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A nuvem do pensamento é deixada por Vygotsky aos ventos da atividade, no que ela tem de mais vital. Conflitos, paixões e mobilização subjetiva “governam”-lhe o curso e lhe dão sua “causa profunda” (Vygotski, 2001, p. 480). Para sustentar essa concepão e a fim de testar a dependência dinâmica do intelecto e do afeto em relação aos movimentos da atividade, Vygotski retomou, modificando-as, as experiências desenvolvidas por K. Kevwin sobre os processos de saturação no curso da atividade. Damos uma tarefa de desenho a uma criança. Quando a criança pára e manifesta abertamente signos de saturação e das reações afetivas negativas em relação ao trabalho, explica Vygotski, “tentamos levá-la a prosseguir em sua atividade, de modo a saber por que meios seria possível obter isso dela” (Vygotski, 1994, p. 231). Poderíamos, como nas mesmas experiências desenvolvidas com crianças deficientes, “renovar a situação”, trocando, de cada vez, os lápis por pincéis, o papel pelo quadro, os gizes negros por gizes de cor. Isso tudo para tornar a situação mais atraente e prolongar a atividade. Mas, para a criança “normal”, explica Vygotski, isso não é necessário. É suficiente modificar o sentido da situação sem modificar nada dela. Na experiência, foi suficiente pedir à criança que havia interropido o trabalho para mostrar a uma outra criança o modo como ela deveria fazer. Tornando-se a própria criança a experimentadora e instrutora, ela continuou o trabalho precedente; mas a situação para ela tomara um sentido inteiramente novo. Então, tirou-se da criança todo material que poderia fazer a situação atraente, até deixá-la apenas com “um miserável pedaço de lápis”. O resultado foi significativo: “O sentido da situação determinava totalmente, para a criança, a força da necessidade afetiva, independentemente do fato de que essa situação perdia progressivamente todas as propriedades atraentes vindas do material e de sua manipulação direta” (Idem, pp. 231-2). Assim, conclui o autor, chegamos a influenciar “do alto, por afetividade” o desenvolvimento da criança. O que não foi o caso com a criança deficiente. Não acrescentaremos nada a essa análise, se interpretarmos essa metamorfose do sentido como o produto de uma transformação da atividade da criança, mesmo quando o objetivo da ação não é modificado. O desenho continua sendo o resultado a ser atingido, mas a criança está disposta a perseguir esse objetivo com um custo instrumental elevado (ela perde as 231
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vantagens de usar um material melhor), sob a influência de um novo motivo subjetivo, constituído como um eco ao pedido do adulto. O reconhecimento de uma nova posição social e pessoal é subjetivamente vital para a criança. Impulsiona a criança a se sobrepujar. Observemos que esse sobrepujar acontece quando a atividade da criança muda de direcionamento. Seu destinatário não é mais só o pesquisador, mas também outra criança, para quem ela se torna instrutora. Trata-se de uma outra atividade, mesmo que se realize na mesma ação de desenhar. A ocupação da criança obedece a pré-ocupações diferentes – retomando uma formulação de Curie e Dupuy (1994) – e, desta forma, ela muda de sentido. A dialética entre ocupação e pré-ocupação está no centro da experiência aqui relatada. De fato, é a análise da atividade e, mais precisamente, do desenvolvimento e dos impedimentos dessa atividade que retém a atenção de Vygotski no final de sua vida. Leontiev retoma esse problema e, a nosso ver, inova nessa direção. Tomando a atividade como unidade de base, ele possibilita um recentramento da pesquisa psicológica no problema do sentido e não simplesmente no da significação. Decerto, os elementos da conceitualização desse problema já estão presentes em Vygotski. Isso está particularmente claro em A teoria das emoções, obra na qual ele cita um texto de Brett, de 1928, em que esse autor emprega a palavra sentido “para designar toda forma de relação entre uma determinada situação e outras situações, sejam elas rememoradas ou antecipadas” (Vygotski, 1998, p. 256). Leontiev concentrará sua atenção nesse fenômeno (Leontiev, 1984, pp. 111-21). Para ele, o sentido coloca a consciência em relação com a vida. É uma relação entre as incitações vitais que impulsionam o sujeito a agir e aquilo para o que sua ação imediata está conscientemente voltada. Uma relação instável entre o vento e as nuvens. Não há, segundo Leontiev, coincidência entre o objetivo imediato da ação do sujeito e o motivo que o incita a agir, mesmo inconsciente. Enquanto o objetivo da ação é a representação cognitiva do resultado a ser atingido – o que a planifica –, o motivo se refere ao que é vital para o sujeito e suas pré-ocupações, é a acentuação subjetiva da ação. A discordância entre eles pode se revelar de tal modo que o sucesso no alcance de um objetivo pode ser vivido pelo sujeito como uma derrota psicológica. Sem perder sua eficácia intrínseca realizada, a ação pode perder ou não seu sentido psíquico real. 232
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Essas “variações” sobre o sentido são um aporte muito original de Leontiev para a psicologia, pois, assim, ele aborda a atividade a partir dos conflitos internos que a animam e lhe garantem seu dinamismo. Desse modo, na perseguição de um objetivo, uma ação pode se encontrar diante de resultados que se mostram mais vantajosos para o sujeito do que o motivo inicial que o impulsionava a realizá-lo. Esse inesperado pode, então, tornar-se a fonte de uma outra mobilização psíquica, revalorizando o objetivo anteriormente perseguido, colocando-o a serviço de novas preocupações. A atividade é, portanto, construtora de novos motivos que o sujeito descobre depois da experiência – subjacentes a seu pensamento –, nascidos não a partir dele mesmo, mas do real de sua atividade que, em parte, lhe escapa. Como vemos, a atividade do sujeito no mundo mantém ou fecha suas possibilidades, oferece-lhe ou não ocasião de se liberar, não negando seus laços, e sim por meio de sua renovação. Entre laços e desligamentos, o sujeito se desfaz e refaz, ainda que não diretamente. Todavia, para Leontiev, a atividade não é apenas uma relação entre mobilização subjetiva e planificação cognitiva. Não é apenas um conjunto de motivos novos, que podem ser descobertos ou repelido pelo sujeito ou que ele pode redescobrir para seu corpo defensivo. Os objetivos seriam apenas “visões do espírito”, se não encontrassem, em técnicas de ações, em instrumentos gerados, o modo de se realizarem e de também se transformarem. Na atividade, a ação e as operações que a tornam eficaz também buscam a eficiência: a economia dos meios a fim de se atingirem os objetivos é aí decisiva. Encontra-se aqui uma segunda fonte da disponibilidade psicológica. Depois do sentido, a eficiência – mesmo que Leontiev não empregue esse conceito – torna possível a liberação. Menos tempo para chegar ao objetivo é a possibilidade de outros objetivos, além dos que se perseguia até então. Dito de outra forma, em nossas palavras, a eficiência da ação e seu sentido são as fontes motoras do desenvolvimento das atividades (Clot, 1998), abrindo, alternativamente, não uma, mas duas zonas de desenvolvimento potenciais de natureza diferente (Clot, 1997, p. 53). A principal conseqüência que se pode tirar do trabalho de Leontiev talvez seja a que diz respeito às relações entre subjetividade e atividade: o sujeito se libera das determinações de sua atividade, não as negando, mas por meio de sua reabertura. Ele é estruturalmente “deslocado”. É como se a 233
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subjetividade fosse “emprestada”. De fato, poderíamos dizer que ela vence a atividade graças às armas que empresta dela e, aperfeiçoando-as, obriga essa mesma atividade a ir além dela mesma. Aliás, observando-se esse centro da ação em que a última palavra não é jamais dita, podemos compreender por que G. Canguilhem pôde afirmar que a subjetividade é apenas a insatisfação, acrescentando que isso talvez seja a própria vida. Certamente, talvez estejamos, nesse ponto, mais além de Leontiev. Entretanto, de qualquer modo, há em sua obra um autêntico descentramento em relação a Vygotski. É muito real. A teoria da atividade sai daí enriquecida. A elaboração das questões do sentido, como componente interno da atividade, assim como a abordagem original da dinâmica operatória, antecipam, a nosso ver, as tarefas que hoje são as nossas, em psicologia, quando vamos além da oposição muito desgastada entre psicologia cognitiva e psicologia clínica. Para Leontiev, “o problema da formação e do desenvolvimento do pensamento não pode ser inteiramente reduzido ao da aquisição dos conhecimentos, dos saber-fazer e dos hábitos mentais. Uma relação, um sentido, não são coisas que se pode aprender” (Leontiev, 1984, p. 319). Leontiev sabia, desde sua colaboração com Vygostki, do impacto da cultura e das significações sociais no funcionamento psíquico, contudo seu ponto de vista era claro: “Em si mesmas, isto é, abstraídas das relações internas do sistema da atividade e da consciência, as significações e as operações que aí se encontram cristalizadas não são, de modo algum, o objeto da psicologia” (Idem, p. 158). Seguimo-lo sem hesitação nesse ponto, pensando também na formulação bakhtniana: “O sentido não pode ser dissolvido no conceito” (Bakhtin, 1984, p. 382). Lembremos ainda, por sua clareza, esse texto: “O sentido não está de forma alguma contido em potência na significação e só pode aparecer na consciência a partir da significação. O sentido é gerado não pela significação, mas pela vida” (Idem, pp. 311-2). Há um radicalismo do sentido pessoal em Leontiev, uma subjetividade agentiva que, ao mesmo tempo, nunca volta as costas à eficácia da ação no mundo.
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LEONTIEV AQUÉM DE VYGOTSKI? Entretanto, é essa radicalidade do sentido pessoal que gostaríamos de questionar, para finalizar. De fato, talvez seja isso – a relação entre sentido e significação – que faz Leontiev enfraquecer o poder da herança Vygotskiana. Aliás, sua abordagem da significação está muito afastada da polifonia bakhtiniana. Tentamos, mais acima, aproximar esta última da teoria da significação que Vygotski deixou inacabada. E como situar Leontiev? Para ele, a significação conserva e cristaliza a atividade passada. São os objetos que guardam neles mesmos a atividade das gerações precedentes. O indivíduo encontra diante de si todo um oceano de riquezas acumuladas ao longo dos séculos por inumeráveis gerações de homens, únicos seres sobre nosso planeta que são criadores. As gerações desaparecem e se sucedem, mas o que criaram passa às seguintes que, por sua vez, multiplicam e aperfeiçoam a herança da humanidade. (Leontiev, 1975, p. 56)
Cabe à atividade presente reanimar essas cristalizações sedimentadas, “requentá-las”, desenvolvendo para isso “uma atividade que reproduz os traços essenciais da atividade incarnada, acumulada no próprio objeto” (Idem, p. 57). Mediante uma atividade adequada, o sujeito se reapropria do patrimônio da espécie. Verdadeiro para o instrumento, esse processo também vale para a língua: “Aprender uma língua não é outra coisa que aprender a efetuar com palavras as operações que estão historicamente fixadas em suas significações” (Idem, p. 59). Essa atividade adequada constrói-se no homem e na criança por meio da mediação de suas relações com outros homens. As aquisições da humanidade não lhe são diretamente dadas, mas apenas ofertadas. A fim de fazer delas “os órgãos de sua individualidade”, o sujeito deve passar pela intermediação de outros homens. “É por meio desse processo que o homem faz a aprendizagem de uma atividade adequada. Portanto, esse processo é, por sua função, um processo de educação” (Idem, p. 62). Como vemos, a significação, nesse quadro, parece ter perdido muito de seu dinamismo próprio. Até parece não ter, enquanto tal, importância psicológica direta. Seja veículo neutro de uma atividade a ser transmitida, seja 235
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objeto de educação, ela não é vista nem como meio nem como objeto de uma criação. Em uma curta passagem de Atividade, consciência, personalidade, considerada testamento científico de sua obra, Leontiev exacerba a polarização entre sentido pessoal e significação social. O que não pode desaparecer, afirma ele, “é a não-coincidência ininterruptamente renovada entre os sentidos pessoais portadores de intencionalidade, da parcialidade da consciência do sujeito, e as significações ‘indiferentes’, que são a única forma sob a qual eles podem se exprimir” (Leontiev, 1984, p. 172). É por isso que a consciência individual é “o teatro de um drama”: de um lado, sentidos que não podem “se exprimir” em significações adequadas; de outro, significações desprovidas de seu fundamento vital e que, por essa razão, sofrem, às vezes, uma perda de credibilidade torturante para a consciência do sujeito (Idem, p. 173). Podemos sempre pensar que há nesse texto uma espécie de confidência biográfica. Sem dúvida, não se vive sem preocupações na União Soviética do meio dos anos 1970. Entretanto, a contradição não é tão forte em relação ao resto da obra, a ponto de se negar o estatuto científico desse trecho: “Do ponto de vista psicológico, o sentido não é mais reduzível à significação do que as categorias éticas o são em relação às categorias aritméticas” (Idem, p. 324). Daí, porém, a significação, longe de ser o centro social de inter-significação que dela faz Bakhtin, torna-se “indiferente”. Em si mesma, não tem mais nada de equívoco. Não oferece ao sujeito essa polifonia simbólica e essa polivalência instrumental que envolvem as palavras e os instrumentos das ressonâncias sociais que aí se afrontam. Não convoca o sujeito para o meio dessas discordâncias criativas ou destrutivas com as quais ele pode jogar para se deslocar, circular entre mundos. Em uma palavra, as significações existentes não expõem o sujeito a colocar nelas algo de seu. E, certamente, também o social não desempenha nenhum papel na teoria da significação de Leontiev. Ao contrário. Não hesita em retirar, a partir da constatação de que muitos homens estão hoje privados das significações essenciais cristalizadas no patrimônio social, a conclusão de que “a unidade da espécie humana parece não existir” (Leontiev, 1975, p. 65). Entretanto, é exatamente o social que fica “no exterior” das significações: os gêneros sociais da atividade – para retomarmos o conceito que propusemos acima, a partir dos trabalhos de Balkhtin – em sua obra parecem necrosados. Eles 236
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parecem ter-se tornado moldes e ter perdido sua capilaridade, ou qualquer heterogeneidade motora. As significações parecem ser neutras, ao abrigo dos conflitos sociais que todavia nelas se refratam, desvitalizadas, como se o desenvolvimento de seu objeto estivesse submetido a uma lógica apenas interna. O inacabamento do mundo histórico-social de onde elas retiram sua criatividade parece ter perdido muito de seus direitos. Ora, falar não é apenas desenvolver com as palavras as operações que historicamente se fixaram em suas significações, como propõe Leontiev. É se iniciar nos subentendidos de um gênero de discurso e se confrontar com as variantes do gênero que despedaçam a significação de cada palavra na comunicação verbal. Portanto, é também dividir-se e agir, mesmo inconscientemente, na significação: sobre uma significação, por meio de uma outra significação. É, assim, se liberar das operações já fixadas, com a ajuda de outras operações, por via de sua conversão. É tomar parte da dinâmica das significações entre os gêneros sociais e em cada um deles; é, finalmente, participar de uma história em que a última palavra não é jamais dita: a história da palavra na palavra, como afirma Bakhtin (1997, p. 195). Lendo Leontiev atentamente, às vezes temos a impressão de que a significação não contém jogo social, que está fora-do-gênero, muito “fria”. Encontramos muito pouca história da palavra na palavra e também muito pouca história do conceito no conceito. Conseqüentemente, a significação não coloca o sujeito à prova, no sentido preciso do termo: uma situação que não dá todas as respostas às questões que levanta e que, portanto, remete o sujeito a si mesmo, tanto ao que diz respeito aos recursos quanto aos obstáculos de sua história e aos de seu meio. De algum modo, a seus multipertencimentos, parece de fato, ao contrário, que, entre as significações “frias” que povoam o patrimônio e as significações vivas que superpovoam as palavras do outro, as contradições são muito poderosas para que o sujeito busque dar um sentido pessoal a essas interferências. Certamente, ele pode aí se perder, já que deve aí se arriscar. Mas, como escreve Vygotski, “o homem está pleno, a cada minuto, de possibilidades não realizadas ( Vygotski, 1994). Mesmo incluindo o sofrimento nessas possibilidades, o último ato não é jamais realizado. De fato, talvez possamos dirigir a Leontiev as objeções formuladas por Bakhtin em relação ao objetivismo abstrato de uma determinada Lingüísti237
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ca. Ela considera, segundo Bakhtin, que a língua se transmite e, “como uma bola, salta de geração em geração”. Contudo, “a língua não se transmite, ela dura e perdura na forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivídulos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente de comuncação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar” (Bakhtin, 1997, p. 108). Caso contrário, tratamos da língua materna apenas como uma língua estrangeira.6 Dito de outro modo, a língua vive no comércio entre os homens. Estabiliza-se em gêneros de discurso, que retêm a memória das trocas verbais a fim de que elas possam prosseguir. É nesses quadros que se opera a transfiguração do dado em criado e vice-versa. Na verdade, Leontiev admite que as significações levam uma vida dupla. Mas é para insistir no fato de que, entrando na consciência, elas se subjetivizam. Tornam-se meio de exercício para a subjetividade, não apenas objeto de conhecimento. Sem perder sua natureza histórico-social, reitera ele (Leontiev, 1984, p. 162). Assim, a vida pessoal das significações é dupla, porém, como vimos, intencionalidade e indiferença sempre se confrontam. Sua vida social é a fonte externa desse face-a-face íntimo. Ora, nessa segunda vida, as significações são mais cristalizadas que realmente vivas, a história social real quase não penetra nelas. As fronteiras entre as normas do social objetivado e as variações intersubjetivas do social não são objeto do “duro combate dialógico” tão caro a Bakhtin. A ausência do conceito de gênero como sistema de variação na significação se faz cruelmente aí sentir, transformando, de algum modo, a vida social em língua estrangeira.
PARA CONCLUIR Leontiev e Bakhtin não dialogaram. O primeiro morreu em 1979, no mesmo país em que o segundo desapareceu em 1975. Aparentemente, morreram na mesma cidade, em Moscou. Ainda menos que entre Vygotski e Bakhtin, parece não ter havido o menor laço oficial entre eles. Entretanto, é prazeroso imaginar uma discussão entre esses homens em torno dessa frase de Leontiev: “A ação nasce da comunicação entre atividades (Idem, 1984, p. 119). Levada até o fim, essa reflexão com acentos “dialógicos” 238
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poderia levar Leontiev e Bakhtin ao caminho de significações menos “indiferentes”. Mas temos o direito de refazer a história? Podemos apenas sonhar. Para chegar a esse ponto, conservemos a idéia de que, aos limites atingidos por Vygotski, Leontiev provavelmente realiza um avanço no campo da teoria da atividade. Talvez, porém, isso tenha sido feito ao custo de uma estagnação na teoria da significação, restringindo a importância de sua inovação. No final das contas, como se vê, se Bakhtin não é psicólogo – e por essa mesma razão –, ele pode muito bem nos ajudar a o sermos mais.
NOTAS 1
Liev Semionovitch Vigotski (1896-1936)
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Tal avaliação crítica foi formulada por Vygotsky, em um texto retomado no Tomo 1 da edição russa das Obras completas. Tratam-se das notas tomadas por A. Leontiev, durante um seminário realizado em Moscou, em 1933 ou 1934. Esse texto, inédito em francês, nos foi indicado por F. Sève, que fez uma tradução de trabalho. Nós lhe agradecemos. Essa passagem também foi comentada por J. Friedrich (1997) e J. Y. Rochex (1997).
3
Sobre o conceito de gênero, que Bakhtin sempre relaciona ao conceito de estilo, um levantamento do estado da arte da questão está em curso, feito com D. Faïta: Yves Clot e Daniel Faïta, Genres et styles en analyse du travail. Concepts et ,éthodes, Travailler, n. 4, pp. 7-42, 2000.
4
Ce concept recouvre également les techniques du corps dont M. Mauss (1950/1985) a si bien marqué l’importance..
5
Podemos mencionar aqui o penetrante estudo de M. Halbwachs (1968) sobre a memória coletiva dos músicos, sobretudo nas páginas 191-2.
6
Em que ela também deve tornar-se, de algum modo, para que o sujeito possa se apropriar dela de fato. No ensino, ela é objeto da atividade e não apenas meio para agir no mundo e com os outros.
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Já faz alguns anos que Julia Kristeva1 se referia a Bakhtin como um pensador que soube contrapor, em seus estudos de obras literárias, a lógica da linguagem à lógica da ciência. E mesmo se afastando do rigor técnico dos lingüistas, teve o mérito de manipular uma escrita impulsiva e, às vezes, profética, para abordar, entre outras, questões atinentes à construção do relato e à carnavalização. Para o pensador russo era necessário, em sua visão dialógica, substituir a fragmentação estática dos textos, pressuposto seguido pelos estruturalistas ortodoxos, por um modelo em que os construtos textuais somente conquistam sua integridade social quando se elaboram com a colaboração de outros construtos textuais. A base de tal princípio deve ser procurada no conceito de que a palavra, enquanto unidade lexemática de uma língua, não é nunca um signo em estado definitivo. Ao contrário, a palavra é uma encruzilhada de superfícies textuais sobre a qual se instala um dialogismo em que interferem diversas escritas: as do destinatário, da personagem e dos contextos atuais ou anteriores ao construto semiótico tomado como referência. Nesse cruzamento, entram em jogo, portanto, três dimensões fundamentais: as do sujeito, as do receptor e a constituída pelo conjunto de textos exteriores em cujo âmbito o diálogo se desenvolve.
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Claro que, além disso, convém lembrar que, nesse processo, o status da palavra situa o sujeito e o destinatário no eixo da horizontalidade, e que a palavra circula nos entremeios de um corpus de signos em que a diacronia e a sincronia se relacionam constantemente. Vale dizer, por conseguinte, que, sendo a palavra uma encruzilhada de superfícies textuais, ela assume o papel de uma unidade mínima do texto e seu status, como acertadamente assinala Kristeva, funciona como mediador que vincula o construto dos signos de que se compõe com o entorno cultural e, através desse procedimento, incorpora também a função de ser um elemento regulador responsável pela mutação da diacronia em sincronia. Em outros termos, essa cadeia de operações implica, ainda que de maneira genérica, um conceito de cronotopia, pois, de um lado, o status da palavra se define nos eixos da horizontalidade e da verticalidade e, de outro, a mutação da diacronia em sincronia se realiza na dimensão da temporalidade. Daí que, para Bakhtin, a descrição do funcionamento de um texto deva estar submetida a um procedimento translingüístico em que a corporalidade demarca os enunciados e a gestualidade a enunciação. No caso dos textos visuais, esses dois componentes conferem ao carnaval histórico e ao realismo grotesco, eixos em torno dos quais giram os processos de carnavalização, características muito singulares de que, embora de maneira muito concisa, tratarei neste trabalho. Para equacionar a questão, é necessário, desde já, esclarecer alguns pontos. No que diz respeito à metalinguagem, entendida geralmente como um código ideológico ordenado segundo as normas da lógica do simbólico, não será aqui utilizada na acepção de uma espécie de referência epistemológica destinada a legitimar o resultado obtido, por meio da leitura, pelo destinatário de um texto concreto. Creio que a metalinguagem tem também a importante função de levar o leitor desse texto a lugares do enunciado e da enunciação, em que esse leitor se depara com sentidos que dificilmente são perceptíveis, máxime quando a opacidade e a ambivalência interpõem as ressonâncias2 ou vozes do texto entre os sujeitos do discurso em que as práticas textuais se inserem. Além disso, a metalinguagem arquitetada, com mais ou menos precisão, a partir de uma interpretação parcial da mundividência de Bakhtin, me servirá, nesta ocasião, não só para conferir certo grau de consistência no que concerne ao estabelecimento de unidades que me facilitarão a leitura de um pequeno corpus feito de imagens, mas também como instrumento que me 244
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permitirá abordar metodologicamente a questão da ressonância das linguagens não-verbais que se imbricam em discursos, nos quais relatos, gestos, fragmentos da corporalidade e objetos, por exemplo, se ajustam para formar uma obra. Por isso gostaria de advertir que essas ressonâncias, sempre presentes nos processos dialógicos, constituem, no fundo, as bases de mais uma tentativa de ler as mensagens visuais sem me afastar do princípio acatado pelos principais estudiosos de Bakhtin quando coincidem em que o Gargântua do pensador russo é, ao final de contas, uma reescrita de Rabelais, ou seja, o eco de uma sonoridade entranhável que Bakhtin escuta e emprega, para usar uma expressão de Zavala, como “voz de apoio”. Assim, para, de um lado, fazer mais acessíveis meus balbucios analíticos e, de outro, pôr em funcionamento parcelas da metalinguagem tal como definida acima, vou iniciar meu despretensioso exercício de leitura valendo-me de dois termos fundamentais: carnaval histórico e realismo grotesco. Ambos os termos, apesar das nuanças que os diferenciam, significam, no pensamento bakhtiniano,3 carnavalização, pois ambos se reportam aos processos subversores da ordem social, política ou artística. O primeiro mantém uma relação estreita com as festividades das carnestolendas – levando em conta todas as conotações que esta vetusta palavra preserva – e com suas diversas modalidades transgressoras que se exibiam sem recato durante os dias em que seus rituais eram fixados em calendário. O segundo também é transgressor, mas suas formas subversivas possuíam uma acentuada ambivalência, o que fazia com que tanto os gestos quanto as atitudes grotescas tivessem um papel de destaque que, no caso das festividades coletivas do carnaval histórico, se diluía ou naufragava no corpo amorfo das massas que se entregavam à alucinação da folia. Certamente por isso, Bakhtin julgava que o realismo grotesco, ao demarcar de maneira mais precisa os enunciados, representava com mais propriedade seu entendimento de carnavalização, pois propiciava as condições indispensáveis para que esses enunciados ressurgissem e, de algum modo, regenerassem a corporalidade informe dos rituais típicos do carnaval histórico. Durante as celebrações do bicentenário da Revolução Francesa era fácil encontrar nas bancas de jornal de Paris uma série de cartões-postais alusivos ao evento. Em virtude de seu evidente espírito sarcástico e das transgressões que, no geral, apresentavam em desenhos que desafiavam a censura oficial, 245
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comprei alguns deles, pois via em suas cenas o lado oculto de sucessos aos quais, em outros tempos da minha vida, quando minha infância era submetida às imposições perversas da “má educação”, não tinha acesso. Reproduzirei, para ilustrar o que me parece ser a sutil diferença entre o carnaval histórico e o realismo grotesco, apenas dois desses cartazes. No primeiro (Figura 1), o corpo social, feito da integração de vários corpos individuais, possui, visto em conjunto, uma série de enunciados cujas fronteiras, no espaço sintático deste texto visual, se dissipam e projetam na atmosfera da composição gráfica traços de um construto informe que dilapida o sentido monológico. Em contrapartida, no segundo dos cartões (Figura 2), demarcam-se mais nitidamente os enunciados e os corpos nele representados aparecem mostrando com clareza as individualidades corporais das personagens. Na cena, as linguagens dos objetos, dos gestos e das palavras estabelecem um diálogo em que o sistema verbal funciona como sistema interpretante, o que, no fundo, determina um rumo de leitura que leva ao monológico. E digo isso porque se o leitor se orienta pelo significado das palavras e sua atenção não se fixa, por exemplo, na linguagem dos gestos, as ambivalências do texto em questão se desmancham e, desintegradas, cedem lugar aos imperativos semânticos que a linguagem verbal assume na moldura do balão.
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Figura 2
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Por outro lado, admitindo que Bakhtin propõe uma semântica do corpo, a primeira figura deixa em evidência que ao corpo biológico se sobrepõe uma somática política, pois a transgressão, salvo engano, não recai sobre a anatomia das personagens que marcham, sob o ritmo do carnaval histórico, exibindo a genitália livre das amarras do recato, mas sobre os valores simbólicos que, numa cultura hierarquizada, ostentam as partes anatômica da corporalidade simbólica quando se estabelece, por exemplo, que o rei é a alma e a cabeça mística do governo e os braços seus ministros. A composição deste cartão significa, entre outras coisas, que a estrutura visual por meio da qual se representa a corporalidade instaura um enunciado central cuja finalidade pode ser a de desmiolar os sentidos emblemáticos sobre os quais os valores da mistificação foram construídos. Desse processo emerge, sem dúvida, o riso carnavalesco e, o que me parece mais instigador, um enunciado em que o cronotopo predominante se define, embora possa parecer paradoxal, no tempo da aventura, pois tudo leva a crer que o tempo da liberação dos seres humanos não mantém, com a vida real desses seres, um vínculo particularizado ou autobiográfico, como deixa explícito Bakhtin quando, para ilustrar essa modalidade cronotópica, se refere ao romance clássico grego e exemplifica sua forma paradigmática dizendo o seguinte: Um par de jovens em idade de casamento. A origem deles é desconhecida, misteriosa (nem sempre); tal coisa não ocorre em Tatius, por exemplo. Eles são dotados de beleza rara. São também excepcionalmente castos. Encontram-se inesperadamente; via de regra numa festa solene. Apaixonando-se repentina e instantaneamente, de um amor, como coisas do destino ou uma doença sem cura. Entretanto o casamento entre eles não pode ser realizado. Encontram entraves que retardam e impedem o enlace. Os apaixonados são separados, procuram-se, encontram-se; novamente se perdem, novamente se encontram. São freqüentes os entraves e as aventuras dos apaixonados: rapto da noiva na véspera do casamento, discordância dos pais (se existem), que destinam outro noivo ou noiva aos apaixonados (pares falsos), fuga dos namorados, uma viagem, tempestade no mar, naufrágio, salvação espetacular, ataque de piratas, cativeiro e prisão, atentado contra a castidade do herói ou da heroína...4
Bakhtin grifa nesse fragmento um conjunto de palavras com as quais é possível montar frases e a partir delas articular sentidos arquetípicos em 247
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que vislumbro reminiscências de um enunciado mais primitivo com o qual os significados dessas frases estabelecem relações dialógicas, pois vistos no âmbito de um construto metafórico-metonímico, esses dois jovens representam, através de suas múltiplas peripécias, a história da humanidade em sua interminável travessia rumo aos reinos longínquos em que se imagina que a liberdade afincou definitivamente suas raízes. Mas, apesar da variabilidade dos contratempos, esses dois jovens, em virtude da imutabilidade que se depreende de uma repetição de entraves cuja finalidade parece ser a de manter o casal sempre no mesmo lugar e protegido das alterações do tempo, fica, na leitura, a sensação de que o drama dos heróis em questão não se define na adversidade que constantemente os atinge em sua individualidade. Ao contrário, a desgraça desses dois protagonistas arraiga na referência desse enunciado primitivo ao instante em que o animal humano, ao se separar do cosmos e transformar-se em partícula que gravita em torno de uma órbita imutável, perdeu em definitivo qualquer chance de conseguir a liberdade. Talvez por isso, o riso que provoca o cartão seja o reverso desse momento do carnaval histórico que o cartão plasma de maneira canônica. Quero dizer, com isso, que o enunciado central deste cartão não configura tão-somente a ressurreição de outro enunciado carnavalesco, como nos disse Bakhtin em várias passagens da sua obra, quando defende a idéia de que nenhum enunciado morre, já que, ao ser gerado, sempre terá seu dia de renascimento. Mesmo contrariando esses pensamentos, deixo-me tentar pela interpretação de que as renovações que um enunciado sofre em sua trajetória talvez não sejam, simplesmente, indícios de regeneração, mas também, devido aos processos de repetição, constituam um sinal da nostalgia da pulsão de morte que acompanha, desde sempre, a caminhada do animal humano e, conseqüentemente, a história desses dois jovens belos nos avatares de uma aventura que é feita de sucessos matricialmente idênticos.5 Vale, no entanto, se amarrar à expectativa de que a repetição dos entraves e contratempos tenha, ao final de contas, algum sentido. No segundo cartão, a heterogeneidade do texto faz com que o diálogo entre elementos da linguagem verbal e da linguagem dos gestos seja mais direto, o que, entre outras coisas, delimita um espaço de leitura em que os enunciados antecedentes se situam num tempo próximo ao dos acontecimentos que aqui se representam. Mas, de qualquer modo, o texto do balão, 248
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portador de um conteúdo autoritário, monopoliza as possibilidades do diálogo e, em certa medida, reduz suas alternativas. Não fosse o significado dos objetos, o conteúdo se empobreceria já que a entonação da mensagem verbal não dá margem a ambigüidades e, conseqüentemente, as probabilidades de réplica são mínimas. Considerando, entretanto, que a cena representada no cartão caracteriza a meu ver o realismo grotesco de que nos fala Bakhtin, pois ela se centra em detalhes que acentuam, com mais intensidade do que o carnaval histórico, particularidades concretas da anatomia corporal e relegam a somática política à função de pano de fundo. Nessa perspectiva, a apresentação do corpo biológico assume um papel enuncivo, ao passo que a gestualidade que acompanha o lado grotesco dos enunciados corporais propriamente ditos, tem compromissos com a enunciação. Sendo assim, a linguagem gestual do cartão rompe com o tom autoritário da mensagem do balão, o que permite armar outras estratégias de leitura e escutar, por exemplo, ressonâncias que sinestesicamente se plasmam, por exemplo, nos gestos debochados da personagem, que encarna o papel do carrasco, e no gesto comedido que se manifesta na boca da personagem que vai ser guilhotinada. Esses componentes gestuais atualizam uma entonação em que as possibilidades dialógicas ganham alternativas diferentes, pois, deste ponto de vista, é admissível que a entonação possa ser o suporte de processos através dos quais os signos do cartão criam uma atmosfera metafórica em que circulam resíduos significacionais de enunciados mais arcaicos. No cartão em questão, é possível associar o conteúdo dos objetos que integram o construto visual da cena com as vozes que ecoam nos gestos das personagens e, a partir daí, perceber algo da ressonância resultante desse arranjo. É possível, diga-se de passagem, captar resquícios das metáforas que se formam no paradigma a que pertencem os objetos como penico e guilhotina. Unidas, as conotações de tais objetos remetem a significados atinentes à esfera dos detritos e estes, transmutadas figurativamente suas significações, apontam para o domínio semântico da defecação e dos excrementos, o que permite pensar, levando em conta a intromissão da entonação gestual nesse contexto, na idéia de regeneração, isto é, num enunciado cujo compromisso com a carnavalização é patente e a relação do carnaval histórico com o realismo grotesco, apesar de ser sutil, transparece pela simples razão de que, em enunciados arcaicos, os excrementos possuem 249
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valores simbólicos que atuam na formação de metáforas semanticamente atreladas aos sentidos de regeneração. Convencido de que a carnavalização constitui um eixo semântico em torno do qual se ordenam o carnaval histórico e o realismo grotesco, gostaria, agora, de trabalhar um pouco a hipótese de que a ressonância institui um espaço de interseção quando, com base no mencionado eixo semântico, as duas modalidades conjuntam seus traços diferenciais. Direta ou indiretamente, muito tem se feito sobre este assunto, tomando como corpus de estudo os textos literários. Minha intenção, porém, é me liberar o quanto me seja possível das características das manifestações verbais e me centrar nas particularidades de mensagens em que se imbricam signos de outros sistemas que não o das línguas naturais. Além disso, meu propósito não se limita à identificação dos meios expressivos que os construtos visuais utilizam para configurar a ressonância e as vozes que, na acepção de Bakhtin, ecoam nos enunciados em que a ressonância está presente. Vou me servir, para tanto, de um corpus relativamente pequeno: de um número reduzido de cartuns em que o grotesco, o paródico e a intertextualidade conferem aos textos escolhidos um razoável grau de homogeneidade. De início, destaco o princípio de que o realismo grotesco tem como propriedade fundante arremeter contra o discurso especular.6 Sua força transgressora é mais intensa quando o discurso que deve se refletir no espelho já exibe aspectos da degeneração a que é submetida a linguagem cada vez que é utilizada para construir enunciados cuja estrutura obedece a formas consagradas pelo uso ou padronizadas segundo os moldes do agrado daqueles que, na dinâmica da cultura, ditam e preservam as normas imperativas do poder dominante e, com base nele, fabricam em série combinatórias signícas extremamente surradas. Assim, ao me colocar diante deste cartum de Caruso (Figura 3), constato, logo no primeiro lance do meu olhar, que o texto plástico pode ser lido como uma composição em que o enunciado e alguns possíveis aspectos da enunciação foram dispostos tendo em mente uma tênue separação entre essas duas instâncias. De um lado, o pintor dando os últimos retoques a um dos seus quadros colocado ao lado de outras obras do artista. De outro, em desenho que preserva as características do que se entende por uma representação realista, a figura de costas do próprio pintor olhando para Marie Thérèse sentada sobre um banquinho e posando de modelo. 250
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Na descrição que acabo de fazer, tenho já um esboço de leitura em que, ao dar relevância à linha que separa um instante da vida do artista – um instante que me remete a elementos da enunciação – e aos quadros situados num cenário impreciso, fica a impressão de que estou lidando com uma obra monológica, com um texto, enfim, em que os componentes enuncivos e enunciativos se comunicam, como se comunicam duas pessoas ao falar de maneira unissonante sobre de um determinado tema. Mas o cartum me oferece, de imediato, a possibilidade de ampliar o alcance desse esboço, principalmente quando percebo que, mais do que um monólogo, o enunciado e a enunciação da composição de Caruso colocam no palco do desenho um diálogo através do qual não só se instaura a “festividade” do carnaval histórico, senão também um tipo de encenação que, de algum modo, alude ao realismo grotesco. Assim, se fixo minha atenção, constato sem grande dificuldade que o texto inteiro arremete transgressoramente contra as analogias das imagens especulares e, em particular, contra o princípio estético de que a representação de uma coisa deve manter uma estreita semelhança com a forma dessa coisa em seu habitat. Fica patente que existe uma grande diferença entre a Marie Thérèse que posa de modelo7 e a Marie Thérèse plasmada nos quadros ou esculpida no mármore.
Figura 3. Picasso pintando Marie Thérèse. 251
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A ruptura necessária à implantação do dialógico se torna perceptível quando o leitor do cartum se deixa envolver por essa atmosfera de ressonâncias que toma conta da cena representada e arrasta a imaginação do seu sujeito até esses recantos do espaço plástico em que o leitor descobre o realismo grotesco, sem deixar de ser mágico. Surge, de repente, no instante em que esse leitor descobre, de um lado, que a imagem de Marie Thérèse refletida no espelho subverte os traços da Marie Thérèse que se olha no espelho e, de outro, que a imagem da Marie Thérèse representada sonhando atualiza um arranjo cuja expressividade distorcida, usada como recurso grotesco, denuncia algo do conteúdo onírico da personagem, por meio de um enunciado plásticoicônico em que uma parte do corpo – a metade superior do rosto da jovem – se faz metáfora de uma configuração fálica, como se evidencia mais claramente no conjunto de vozes que perambulam pelas ressonâncias do cartum que dialoga intertextualmente8 com a reprodução da tela de Picasso (Figura 4), na qual se inspira a composição de Caruso:
Figura 4. O sonho, de Picasso, 1927. 252
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No caso dos textos visuais, a ressonância, em sua acepção fônica, se manifesta de diversas maneiras e, com freqüência, não se faz perceptível aos leitores educados no exercício de lidar com textos verbais. Em virtude disso, as mensagens que não utilizam o sistema das línguas naturais se valem de determinadas grafias para expressar a sonoridade. O cinema mudo oferece numerosos exemplos desse procedimento e pode-se dizer que, em geral, todos os recursos destinados a provocar nos espectadores uma sensação sonora se atrelam à sinestesia, figura retórica que se ancora no princípio de atribuir sentido a partir do estabelecimento de correspondências entre perceptos que pertencem a domínios sensíveis diferentes. O cheiro de uma fruta pode evocar o som de uma palavra e arrancar da memória significados, vozes ouvidas em circunstâncias especiais do passado. Mas, inserida no pensamento de Bakhtin, a ressonância significa muito mais do que isso. Entre outras coisas, ela significa possuir a capacidade de receber e escutar essa espécie de sussurro entranhável que os enunciados produzem ao renascerem constantemente no seio da vida social e, além disso, a ressonância conota, entendida como sinônimo de “voz”, os vínculos que os signos mantêm com enunciados latentes, enunciados soterrados pelas transformações ou enterrados por normas intransigentes, sejam elas políticas, estéticas ou de outra ordem. A meu ver, a ressonância adquire sua plenitude quando nela se imbricam “vozes” que desmontam as estruturas monológicas, as falsas comodidades do hábito ou as mentes aquilosadas. Nesta charge de Jaguar (Figura 5), os recursos gráficos utilizados pelo caricaturista para expressar a ressonância são, na instância denotada da mensagem, facilmente perceptíveis, como se pode constatar no gesto do pacato senhor que bate, com uma vassoura, no teto do apartamento. Mas, detendo o olhar em alguns detalhes do cartão, o leitor se depara, de imediato, com detalhes em que o realismo grotesco se manifesta. De um lado, ao se servir da vassoura, a personagem articula uma operação algorítmica, desnecessariamente complexa, tendo em vista os seus objetivos e, precisamente, em razão da inútil complexidade, o enunciado em que a operação se atualiza se torna, de algum modo, grotesco. De outro, ao transformar o Guernica em fonte da qual emana um barulho perturbador, o pacato personagem cria, na instância da conotação, condições para que o leitor o considere como a representação de uma pessoa amante das configurações especulares, isto é, uma pessoa que só encontra a tranqüilidade em ambientes 253
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que não são transgressores. Vale dizer, por conseguinte, que a charge coloca o leitor diante da representação de um processo de carnavalização, de um processo em que o carnaval histórico e o realismo grotesco se ajustam.
Figura 5. Vernissage, Jaguar. Por outro lado, levando-se em conta os princípios dialógicos e o papel da intertextualidade no renascimento de enunciados em momentos diferentes da história, a charge de Jaguar pode aumentar suas ressonâncias quando a comparo, por exemplo, com um cartum de Quino (Figura 6). Ao interrelacionar esses dois textos, entro de pleno no que Bakhtin entende por carnavalização discursiva, pois, nessa operação, faço com que o carnaval histórico e o realismo grotesco, frutos de uma estrutura em que entram em jogo formas das linguagens comprometidas com vários antagonismos – de um 254
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lado, na charge de Jaguar, o ruído, em sua acepção informática, se contrapõe ao barulho provocado por uma obra de arte transgressora; de outro, no cartum de Quino, a correção da “subversão decorativa” do Guernica se transforma, segundo a visão da empregada, em uma arrumação – e criam uma ressonância poética pautada numa ruptura da neutralidade dos sistemas comunicativos e, conseqüentemente, na instauração de uma polissemia em que vozes diferentes e conflitantes rompem esse estado de pasmaceira social simbolizada pelos gestos, ações e atitudes das personagens desses dois cartões.
Figura 6. Arrumação, de Quino. 255
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Em soma, se na leitura proposta, o realismo grotesco cria fortes vínculos com o corpo simbólico e com o corpo biológico, parece-me legítimo pensar que os resíduos que seus enunciados concretos deixam na cultura – e em especial nas obras de arte – sobredeterminam aspectos extremamente instigantes. Posso me referir, para terminar, ao resíduo que enigmaticamente aparece, a partir das vanguardas, em textos visuais que parecem ter sido construídos com a intenção de encobrir os buracos que a prepotência e as normas sociais do hábito criaram nos territórios do imaginário por onde circulam, diariamente, as pupilas adormecidas da multidão de transeuntes. Tal gesto nasce, a meu ver, desses enunciados carnavalescos em que as personagens defendem, em nome de uma possível salvação, a integridade de seus corpos, valendo-se do subterfúgio de proteger tudo quanto nesses corpos seja um orifício.
NOTAS 1
Julia Kristeva, Bakhtin, le mot, le dialogue et le roman, em Critique, Paris, Éditions de Minuit, n. 239, 1967, pp. 438-65.
2
Utilizo o termo ressonância, do qual falarei mais adiante, num sentido metafórico, ou seja, no sentido de uma espécie de metáfora conceitual em que a convivência de significados diferentes é possível. Claro que tal estratégia é premeditada e tem, sem dúvida, raízes no pensamento de Bergson. Tenho a convicção de que uma configuração metafórica, como elemento da metalinguagem, pode funcionar como um instrumento capaz de fazer com que minhas intuições alcancem, sem muitas palavras, horizontes mais amplos. A esse respeito é significativa, por exemplo, a metáfora que arma Beth Brait quando, ao comentar uma página do jornal Folha de S. Paulo, diz: “É como se a página, como texto, piscasse o olho (direito?) para o leitor e mostrasse, quase gargalhando, a ironia dos fatos”. Cf. Beth Brait, Estilo, em Beth Brait (org.), Bakhtin: conceitos-chave, São Paulo, Contexto, 2005, p. 86. As duas metáforas que aí se imbricam informam muito mais do que uma longa digressão sobre a questão abordada pela autora.
3
Seria irresponsabilidade da minha parte se no meu texto se infiltrasse a idéia de que sou um leitor assíduo da obra the Bakhtin. Devo confessar que, desde a década de 1980, leio fragmentariamente livros do pensador russo, mas nenhuma das minhas leituras representa, como seria do meu agrado, uma entrega total. Por isso, usando de cautela e assumindo de antemão os riscos, decidi tomar como referência central The Dialogic Imagination, 1981.
4
Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e estética, São Paulo, Unesp, 1993, p. 214.
5
Sabe-se que não há uma total concordância entre os conceitos de corpo manipulados por Bakhtin e Freud. Mas isso não significa que, sobre este assunto, não existam coincidências entre os dois autores. Creio que os matizes de que se revestem as idéias de Freud a respeito da pulsão de morte – entendida às vezes como um sentimento de carência fundamental que o ser humano carrega a partir do instante em que a vida o separa do cosmos – têm a ver com as idéias de um enunciado matricial, que, segundo Bakhtin, se regenera constantemente nas renovações porque tal enunciado
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passa em diferentes momentos da trajetória histórico-social da humanidade. Vale a pena, no que diz respeito ao corpo, à outridade e ao sujeito, ler com atenção obra de La Capra intitulada Rethinking Intelectual History, 1983. 6
Quem, ao que me parece, formulou de maneira consistente esta particularidade foi Íris M. Zavala em La posmodernidad y Mijail Bajtín. Una poética dialógica, 1991, pp. 69-83.
7
No segundo volume da obra de Carsten-Peter Warnkle intitulada Pablo Picasso: 1881-1973, 1995, p. 698, se reproduz uma foto de Marie Thérèse que, a meu ver, constitui uma etimologia iconográfica usada por Caruso para representar a jovem que no cartum posa de modelo.
8
São muitos ainda os que utilizam intertextualidade como um sinônimo de dialogismo. Embora existam coincidências no conteúdo desses dois termos, é preciso observar que, no pensamento de Bakhtin, dialogismo não significa exatamente que as materialidades das vozes que dialogam tenham de manter uma relação intertextual. Talvez o eixo semântico em torno do qual giram aspectos do dialogismo e da intertextualidade tenha suas referências mais precisas não só na obra de Julia Kristeva, mas nos conceitos com os quais Simon Dentith trabalha o universo do paródico. Cf. Parody, 2000, pp. 4-21.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. The Dialogic Imagination. Trad. Caryl Emerson e M. Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981. ____. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1993. BRAIT, Beth. Estilo. In: Brait, Beht (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, pp. 78-102. DENTITH, Simon. Parody. Londres: Routledge, 2000. KRISTEVA, Julia. Bakhtin, le mot, le dialogue et le roman. Critique, Paris, Éditions de Minuit, 1967, n. 239, pp. 438-65. LA CAPRA, D. Rethinking Intelectual History. Itaca: Cornell, 1983. WARNKLE, Carsten-Peter. Pablo Picasso: 1881-1973. Bruxelas, Taschen, 1995. ZAVALA, Iris M. La posmodernidad y Mijail Bajtín. Una poética dialógica. Madrid: Editorial EspasaCalpe, 1991.
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A organizadora BETH BRAIT Crítica, ensaísta, docente, orientadora e coordenadora do LAEL – Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem – da PUC/SP, é também docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Lingüística Geral da FFLCH/USP. Fez doutorado (1981) e livre-docência (1994) na USP, pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris/França e hoje é pesquisadora nível 1 do CNPq. Foi crítica militante de literatura no Jornal da Tarde e outros periódicos paulistas. Autora, co-autora e organizadora de diversas obras, entre elas Bakhtin: conceitos-chave, publicada pela Contexto.
Os autores Cristovão Tezza Romancista e professor do Departamento de Lingüística da UFPR. Doutor em Literatura Brasileira pela USP, é autor ou co-autor de diversas obras na área e também de livros didáticos. Eduardo Peñuela Cañizal Pós-doutorado pela Stanford University, é professor titular da USP. Atualmente coordena o Centro de Pesquisas em Poética da Imagem do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA da mesma universidade e é docente na Pós-Graduação em Comunicação da Unip. É também um dos vice-presidentes da International Association for Visual Semiotics e um dos editores da revista Significação. Tem vários livros publicados no Brasil e no exterior. Colabora, também, em periódicos nacionais e internacionais. José Luiz Fiorin Professor associado do Departamento de Lingüística da FFLCH/USP. Além de inúmeros artigos em periódicos especializados e capítulos de livros, publicou, entre outros, Elementos de análise do discurso e organizou os livros Introdução à lingüística I: objetos teóricos e Introdução à lingüística II: princípios de análise, todos pela Editora Contexto. Foi representante da área de Letras e Lingüística na Capes e membro do Conselho Deliberativo do CNPq.
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Maria do Rosário Gregolin Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa, professora do Departamento de Lingüística da Unesp, campus de Araraquara. Atua na graduação e na pós-graduação em Letras. Coordenadora do Grupo de Estudos de Análise do Discurso de Araraquara (Geada). Tem como temas de suas pesquisas: a história e a epistemologia da análise do discurso, principalmente a partir das obras de Foucault, Pêcheux e Bakhtin; a história conceitual da análise do discurso; a análise da produção de identidades na mídia. É pesquisadora do CNPq. Marilia Amorim Psicóloga pela UFRJ, com mestrado pela PUC/RJ na mesma área. Foi professora do Instituto de Psicologia da UFRJ, onde desenvolveu o programa de Psicologia Escolar que prestava assessoria a escolas públicas e comunitárias da região mais pobre da cidade. Em 1990, foi para Paris fazer o doutorado em Ciências da Educação na Universidade de Paris-8 e, atualmente, é professora desta mesma universidade. Norma Discini É professora do Departamento de Lingüística, da FFLCH da USP. Pesquisadora de Semiótica e da Análise do Discurso, é autora de O estilo nos textos, obra que examina o estilo sob uma perspectiva discursiva. Dedica-se também à escrita de livros didáticos. Entre eles, lançou A comunicação nos textos, obra que, voltada ao público universitário, oferece apoio para leitura e produção de textos. Ambos os livros são publicações da Editora Contexto. Renata Coelho Marchezan É professora do Departamento de Lingüística da Unesp, campus de Araraquara. Mestre em Letras pela mesma universidade, e doutora em Lingüística pela USP. Seus interesses de pesquisa e suas publicações situam-se nos domínios da semiótica e do pensamento bakhtiniano. Coordena projeto de pesquisa coletivo que se ocupa do estudo e caracterização do papel dos gêneros discursivos na organização e na prática dos
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Os autores
discursos. Participa do Grupo CASA, que desenvolve vários projetos em semiótica literária e publica os Cadernos de Semiótica Aplicada. Sheila V. de Camargo Grillo Professora, pesquisadora e orientadora na área de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, é doutora em Lingüística pela mesma universidade. Durante seu doutoramento, realizou estágio na Universidade de Paris X-Nanterre. Fez seu pós-doutoramento na Universidade de Paris X-Nanterre, atuando como pesquisadora associada no laboratório Modyco (Modèles, Dynamiques, Corpus) – CNRS-Paris X. Yves Clot Professor de Psicologia do CNAM (Conservatoire National des Arts et Métiers) de Paris, onde é responsável pela grupo de pesquisa do Laboratório de Psicologia do Trabalho. Sua filiação à tradição vigotskiana, em psicologia, o tem levado a ser um dos maiores incentivadores da rede de relações científicas que se constrói em torno dessa tradição teórica na Europa, tendo, para isso, uma estreita colaboração com Jean-Paul Bronckart e Bernard Schneuwly, da Universidade de Genebra. Desenvolve pesquisas bakhtinianas, conjuntas com lingüistas, dentre os quais se destaca o Prof. Dr. Daniel Faïta (Grupo ERGAPE - Institut de Formation de Maîtres de Marseille) e colabora nas pesquisas desenvolvidas pelo Grupo LAF (Langage-Action-Formation), da Universidade de Genebra, coordenado pelo Prof. Dr. Jean-Paul Bronckart. Sua relação com pesquisadores brasileiros está formalizada em Acordo Interinstitucional firmado entre o CNAM e a PUC/SP. Tem vários livros publicados na França.
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