Cais do sertão jc 07 04 2015

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2 jornal do commercio

Recife I 7 de abril de 2015 I terça-feira

caderno C

www.jconline.com.br/cultura

Diogo Guedes

dgduarte@jc.com.br twitter: @jc_escrita telefone: (81) 3413-6543

LUTA ANCESTRAL Mesmo sem ter sido uma ativista pela igualdade de direitos entre brancos e negros, Billie Holiday cantou injustiças e sentiu na pele o peso da intolerância k Continuação da página 1

“N

fenômeno, afirma, no posfácio: “Pode-se esquecer numa língua e recordar noutra”. Cheio de humor e reflexões belas, Requiem é um desses textos que oscila entre a delicadeza melancólica e o humor autoirônico. Na história, o narrador pretende se encontrar, no fim da noite, com um amigo poeta, talvez um fantasma. Sem nunca dizer o nome, cria uma cena hilária, ainda que altamente simbólica, com sua obsessão, Fernando Pessoa. Íntimo e absurdo, Requiem é uma homenagem a duas paixões absolutas de Tabucchi: o amor por Portugal e o amor pela memória.

k Frankensteins da memória O blog Livros que você precisa ler (livrosquevoce precisaler.wordpress.com), um dos projetos virtuais mais interessantes recentes, já mostrava em suas resenhas de autores desconhecidos – suspeitas e borgianas – a prosa brilhante e absurda de Bernardo Brayner. Em março, a coleção Formas Breves, focada especialmente em e-books com um só conto, publicou Um bicho estranho (E-Galáxia, R$ 1,99). Na obra, o narrador mostra a crueldade da infância e da memória através da recuperação – imprecisa, contaminada de literatura – das viagens de carro com o pai, a mãe e o irmão. Citando Kafka (mas nem sempre é bom confiar nas referências de um borgiano), Bernardo fala que todo conto “é um corpo mutilado tentando ganhar forma”. Talvez as narrativas mais fortes não sejam as que geram rostos e corpos harmônicos, mas as que criam Frankensteins assustadores, monstros feito de lembranças, como esta excelente narrativa.

Sesc no CAC

Michel Foucault

O Sesc Santa Rita leva amanhã, às 16h, para a UFPE, uma conversa entre Arilena Soares, Lúcia Machado e Raimundo de Moraes sobre o escritor Aristóteles Soares.

O IRB organiza, entre 14 e 17 de abril, curso sobre Foucault e as heterotopias do corpo. As inscrições custam R$ 100 e R$ 50 (meia para estudantes e professores).

A cabeça reaparece no entulho Neste mês, a editora virtual Cesárea volta às atividades, publicando o romance A cabeça no fundo do entulho, de Fernando Monteiro. A narrativa, vencedora do Prêmio Bravo em 1999, começa em uma Roma que escapa aos guias turísticos, passa pelo Recife e transforma até Gilberto Freyre em personagem. A reedição tem capa feita por Jaíne Cintra.

k Cenário preocupante Cai número de leitores no Brasil A última edição da pesquisa de hábitos culturais da Fecomércio-RJ mostra um cenário preocupante: a quantidade de pessoas que leram pelo menos um livro em 2014 caiu. Só sete em cada dez brasileiros leram uma obra – o número era de 35% no ano passado e diminuiu para 30%. A pesquisa culpa o uso de smartphones, mas eles mesmo podem ser um mecanismo de leitura; o que parece faltar é ainda mais trabalho de base para incentivar a formação de leitores.

ão se ouviu um único aplauso quando terminei. Então, uma pessoa começou a aplaudir nervosamente, de repente, todos estavam aplaudindo”, Billie Holiday refere-se à noite em que cantou, pela primeira vez em público, Strange fruit (Abel Meeropol, sob pseudônimo de Lewis Allan), no Café Society, lendário nightclub miscigenado de Nova Iorque. Embora tivesse consciência de discriminação que ela e demais negros sofriam no país, Billie Holiday não foi exatamente uma ativista, no sentido convencional. Mas a gravação de Strange fruit a redime de que qualquer recusa por engajamento que possa ter feito. “As árvores do Sul tem um estranho fruto/com sangue nas folhas e sangue nas raízes/ corpos negros balançados pela brisa sulista/estranhos frutos dependurados dos choupos”, em tradução livre, os versos iniciais de Strange fruit, considerada a mais forte canção de protesto contra o racismo. Os frutos estranhos são os muitos negros enforcados, sem julgamento, pelos brancos no Sul dos EUA. Billie Holiday cantou e gravou esta canção, 16 anos antes do famoso episódio da adolescente Rosa Parks, que se recusou a ceder seu lugar num ônibus, em Montgomery Alabama, deflagrando o movimento pelos direitos civis nos EUA. A música se tornou uma de suas assinaturas e, em 1939, deixando plateias indecisas entre o silêncio e o aplauso. Uma canção que mereceu um livro inteiro dedicado a ela, Strange fruit – Billie Holiday, Café Society, na early cry for civil right, de David Margolick. Embora não seja, por razões óbvias, uma das mais tocadas canções de extensa obra de Billie Holiday, Strange fruit é uma das mais regravadas. Cassandra Wilson, Nina Simone, Tori Amos, Marcus Miller, Siouxie and the Banshees, Diana Ross, Jeff Buckley e Annie Lenox são alguns dos nomes que a gravaram.

BOXER Billie Holiday, em foto de 1946, fazendo pose em camarim com Mister, seu cachorro

RACISMO

Billie Holiday arriscou-se a enfrentar a Klu Klux Klan porque sentiu na carne o preconceito diariamente. Em sua autobiografia, ela repassa vários episódios, sobretudo quando cantava na orquestra de Artie Shaw: “Quase todos os dias acontecia um incidente”. Em uma espelunca, em Boston, eles não me deixaram entrar pela porta da frente. Queriam que entrasse pela porta dos fundos. Os carinhas da banda fincaram pé e disseram: ‘Se a senhora não entrar pela porta da frente, a banda não entra. Eles tiveram que ceder. Comer era uma confusão; dormir, um problema. Porém, o mais chato, era fazer coisas simples como encontrar um banheiro. Às vezes a gente rodava 600milhas e só parava uma vez. Então, descobria que era um lugar onde não me serviriam, e muito menos poderia usar o banheiro sem criar uma celeuma. No começo ficava com vergonha. Depois, mandei aos diabos. Quando eu precisava, simplesmente pedia ao motorista para parar e me deixar no acostamento. Era preferível ir no mato, do que arriscar nos restaurantes das cidades.

Museu celebra aniversário L

uiz Gonzaga disse ao amigo Arlindo que voltasse a dedilhar o raro fole de oito baixos, mais difícil de tocar, portanto de mais valia. Falecido em outubro de 2013, Arlindo teve 22 dos seus 50 anos de carreira dedicados ao Rei do Baião. No mês em que o Museu Cais do Sertão comemora um ano de atividades, Arlindo dos 8 Baixos é o homenageado. Na abertura da programação, haverá exibição do documentário sobre a sua vida, O Mestre de Beberibe, de Anselmo Alves e Lêda Dias. O filme será projetado hoje (e nos dias 14, 21 e 28 de abril) às 19h, na Caixa de Poesia, última sala de projeção do pavimento térreo do Cais. A entrada é gratuita. A alcunha de Mestre de Beberibe foi dada por Gonzaga à Arlindo, mestre da cidade de Sirinhaém, na Mata Sul Pernambucana. Para realizar o documentário, os diretores chegaram a gravar 120 horas com Ar-

Guga Matos/JC Imagem

Nada tem um parentesco tão próximo a realidade quanto o absurdo. Em um sonho recheado de memórias, o protagonista da novela Requiem – uma alucinação (Cosac Naify), do escritor italiano Antonio Tabucchi (1943-2012) faz uma travessia íntima e surreal de uma só vez. Trata-se de um mergulho em uma espécie do Mundo das Maravilha, só que em delírios alimentados pelo passado, em um sonho que descreve vividamente Lisboa e Portugal. Não por acaso, o narrador escuta: “tu és como um sonâmbulo que atravessa uma paisagem de braços estendidos e tudo aquilo em que tocas fica a fazer parte do teu sonho”. É importante saber que o personagem tem semelhanças com Tabucchi – ambos são escritores italianos mergulhados na cultura portuguesa e em Fernando Pessoa. O ponto de partida para a narrativa é um sonho do autor: um encontro com o pai italiano, que fala com ele em português e quer saber como foi sua morte. Não por acaso, esse foi o único livro que Tabucchi escreveu em português, para explicar o

Fotos: Divulgação

Entre o sonho e o passado

Voz forte contra o preconceito racial

Biblioteca do Congresso EUA/Divulgação

escrita

HOMENAGEM Documentário lembra Arlindo dos 8 Baixos lindo. O filme conta histórias de vida do sanfoneiro que, antes de se tornar figura marcante da música pernambucana, foi barbeiro e vendedor de feira. Na quinta e na sexta-feira, o Cais integra a programação do

VerOuvindo – 2º Festival de Filmes com Audiodescrição do Recife. Depois da Mostra Competitiva de curtas com audiodescrição e júri popular, às 14h, haverá um bate-papo sobre videoclipe acessível, com a cantora Luíza Caspary.

No valor do ingresso estão incluídas todas as atividades do festival. O livro Pífanos do Agreste será lançado na Praça do Juazeiro, no dia 14, às 18h. Na ocasião, João do Pife se apresentará, além de participar de um debate. Fechando a programação comemorativa do mês de abril, no dia 26, a área interna do museu recebe, a partir das 11h, os projetos Cais Sanfonado e Cais em Cena, trazendo atrações como o Grupo Bongar, Mestre Camarão e Orquestra Sanfônica de 8 Baixos, entre outros. k Documentário O Mestre de Beberibe, de Lêda Dias e Anselmo Alves – Hoje, no Museu Cais do Sertão, às 19h. Também haverá exibição nos dias 14, 21, e 28 de abril. Entrada gratuita. Av. Alfredo Lisboa, s/nº, Bairro do Recife (antigo Armazém 10 do Porto do Recife). Fone: 3089-2974.


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