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Recife I 5 de outubro de 2014 I domingo

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Dê folga ao

padecer

TERAPIA Vítimas de dores crônicas apostam em novas soluções. Especialistas propõem atividade e lazer Veronica Almeida valmeida@jc.com.br

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or perfurante, fulgurante, surda, absurda, difusa, cansada, latejante, insuportável, infernal. Que tal trocar por respirar, alongar, meditar, conversar, mexer-se, estudar, cantar, pintar, distrair-se, acreditar, ter algum prazer? É assim que brasileiros comuns têm reagido à epidemia de sensações dolorosas constantes, o mal que se paga muitas vezes pelo desenvolvimento insustentável, excesso de horas trabalhadas e práticas sem o devido condicionamento físico, exposição a agentes poluentes, estresse, vida longa, mas sem qualidade. “Leve sua dor para passear”, recomenda a médica fisiatra Lin Tchia Yeng, do Centro de Estudos da Dor da Faculdade de Medicina de São Paulo (FMUSP), replicando o que ouviu de uma paciente em reabilitação. Disse isso a uma plateia de céticos médicos, num fórum sobre o assunto no último fim de semana, na maior metrópole do País, a capital da correria, da agonia urbana. Descendente de orientais, Lin conhece o poder de práticas antes chamadas alternativas e hoje consideradas integrativas de saúde, tais como ioga, automassagem e meditação. Mas claro, sem desmerecer a importância do tratamento medicamentoso, na medida certa e necessária, associado ao que já fazem áreas reconhecidas do conhecimento e da assistência, como a acupuntura, especialidade médica no Brasil. No centro especializado do Hospital das Clínicas da USP, a vítima de dor crônica é acompanhada por médico, psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, enfermeiro, assistente social e professor de educação física. Referência para o País, repetem juntos o que muito paciente acabrunhado pelo sofrimento teme ouvir: “Não se entregue à dor, seja ativo, proativo”, quase no tom dos papas do mundo corporativo, guardando as devidas diferenças. No caso, a intensidade dessa ação e reação tem que ser bem individual. Aliás, cada um sabe onde seu calo aperta. E o calo nem sempre é bolha boba no calcanhar. Atende pelo nome de câncer, artrite reumatoide, artrose, doença autoimune, depressão de longa duração. Há dores aparentemente mais simples, nem por isso menos graves pela dimensão na vida do seu portador. “Sofrer pela dor é maior que a própria dor”, considera o neurocirurgião Manoel Jacobsen, do mesmo grupo da doutora Lin. Quebrar o círculo vicioso da dor que gera mais dor é o caminho, mesmo quando não se tem perspectiva imediata de libertação do massacre físico. O hoje empresário Khefren Belém, 29 anos, recifense, é do time dos lutadores. O padecer começou quando nem tinha entendimento sobre doença: aos 2 anos e 9 meses de idade. Foram duas décadas de episódios sucessivos, numa rotina impressionante de 19 cirurgias, diálises peritoniais, hemodiálises, dietas rigorosas, tumores de fígado e rim, quimioterapias, infecções, drásticos efeitos colaterais dos medicamentos até chegar à dor recompensadora dos transplantes. “Nunca deixe a mente adoecer e quando não conseguir, fique aberto à ajuda”, ensina Khefren. “A dor lombar era insuportável, muitos vômitos, enjôo. O tratamento chegou a ser suspenso porque eu não aguentava mais”, lembra. Entre um sofrimento e outro, Khefren adicionou a leitura e os estudos. Assim, quando venceu as doenças também se graduava em direito. Cumpriu com seu dever de lutar, apoiado também na fé católica. Quando estava na UTI, sozinho com a sua dor, mentalizava momentos bons, com a namorada e com o cachorrinho (beagle) Luppy. A dona de casa Maria José do Nascimento Barbosa, 48, moradora de Olinda, sofre há 20 anos do que chama enxaqueca crônica. Sua dor só passa no hospital, com remédios venosos mais pesados que simples analgésicos. Vem tentando alternativas. A últi-

O melhor tratamento é o que lhe traz autonomia, integra corpo e mente e ajuda a incorporar hábitos saudáveis. Desde 2006, o SUS incorporou práticas integrativas de saúde, como ioga e automassagem, que melhoram aspectos físicos e emocionais”, Júlio Lins,

Eu penei por vinte anos até chegar a um tratamento que aliviasse a minha dor. Agora consigo ver luz no fim do túnel”, afirma Késsia Maria

médico, gestor clínico do Centro Integrado de Saúde (CIS) do Recife

da Silva, que sofre com fibromialgia e descobriu que pode associar, às infusões de analgésico, uma mudança de comportamento

ma foi o botox, para inativar o nervo que inflama e detona as crises. Descobriu, no entanto, no recém criado Instituto da Dor do Real Hospital Português, no Recife, que a toxina botulínica não faz milagre se ela continuar contida no sofrimento. “É fundamental que o doente saia, movimente-se”, avisa uma das coordenadoras do serviço, a médica Anna Karla Arraes, algologista, a nova especialidade médica com foco na dor. Anestesista, Anna Karla lembra que metade dos pacientes melhora ao mudar o comportamento e iniciar uma atividade física. Ela alerta: “Muitas dores musculares contínuas têm a ver com a postura errada que a pessoa sustentou durante longo tempo.” O Real Dor, serviço particular e que recebe convênios médicos, oferece uma infinidade de recursos que vão de infusão de medicamentos e cirurgia à fisioterapia analgésica, passando por psicoterapia. Para quase todos dos casos, mexer-se é regra geral, fundamental. A confeiteira Késsia Maria da Silva, também 48 anos, já compreendeu a importância de se ajudar. Depois de passar por diferentes especialistas – ortopedista, reumatologista, psiquiatra, neurologista, psicólogo – nos últimos 20 anos, está aprendendo que sua fibromialgia, dor no corpo inteiro, exige que ela deixe de viver em função da doença. “Estou voltando ao culto na Igreja Evangélica Congregacional e vou iniciar uma atividade física”, adianta, confiante em vencer o que tem lhe maltratado desde o nascimento da única filha. Em matéria de sofrimento, nós, mulheres, fomos as escolhidas. Não bastam as cólicas menstruais e as dores do parto, que têm sua lógica necessária. O reumatologista Aderson Luna, do Hospital da Restauração (um dos maiores da rede pública de Pernambuco), cita que o corpo feminino é mais propenso à doença autoimune, fibromialgia e osteoartrite. A do meio é conhecida mesmo como mal das mulheres, sendo comum entre os 30 e 50 anos de vida. Alterações hormonais estariam por trás da vulnerabilidade feminina. Luna lembra, no entanto, que os homens não levam a melhor sempre. A espondilite anquilosante, que causa inflamação nas articulações da coluna, é tipicamente masculina. “O arsenal terapêutico para a infinidade de males dolorosos”, descreve, “inclui novas classes de medicamentos, como

comodar mais o doente diante do diagnóstico. “Ele não quer sofrer, é a questão primordial. Quer viver o que for possível sem grande sofrimento”, completa o médico.

MENTE E ALMA

Quando a crise de enxaqueca chega, preciso ir para o hospital. Fazendo ginástica, nos momentos fora da dor, sinto-me mais aliviada”, conta Maria José Barbosa, que tem dor de cabeça rotineiramente

imunobiológicos”. Associado a analgésicos, anti-inflamatórios e alguns antidepressivos, o reumatologista também indica fisioterapia, hidroterapia e acupuntura. Quando não há resposta, o algologista pode ajudar, observa. Rubens Barros, oncologista do Hospital Português, com quase 40 anos de experiência em Pernambuco, viu ao longo desse tempo muita coisa mudar a favor do paciente. “Há três décadas, a aquisição das medicações analgésicas de maior potência era difícil. Teve uma época em que a morfina só era liberada depois de submetermos o pedido à Secretaria de Segurança Pública, por ser considerada um entorpecente. Hoje os doentes têm acesso a vários tipos de opioides. É mais fácil tratar a dor com medidas farmacológicas”, conta. Segundo o médico, a dor, no câncer, é sinal, em grande parte dos casos, de doença avançada. No Brasil, muitos só se descobrem com tumor maligno a partir dela, o que, segundo Barros, é uma realidade desastrosa. “O governo gasta muito, a sociedade paga um preço alto com o sofrimento e a mortalidade. O primeiro parece in-

Por isso, na clínica de câncer, o controle da dor é muito importante. “Precisamos, inclusive, pensar no paciente de forma psicossocial”, afirma Barros. A médica Paula Magalhães, do grupo de atendimento domiciliar e cuidados paliativos do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), referência em oncologia e tratamento de demências graves, utiliza o conceito do que chama dor total para designar o sofrimento físico, emocional e espiritual. “Muitas vezes temos que perceber quando a dor é da alma, pois esses pacientes tiveram muitas perdas materiais, afetivas e sociais na longa jornada das suas doenças”. O médico Júlio Lins, coordenador clínico do Centro Integrado de Saúde, no Engenho do Meio, Zona Oeste do Recife, considera que 90% das dores são uma reação ao sofrimento. Daí a necessidade de integrar mente, corpo e alma. Métodos orientais como o tai chi chuan, a meditação e automassagem são significativos. “Temos um programa para saúde da coluna que inclui pilates, osteopatia, biodança, bioenergética e psicologia”, conta. Se a dor física e a emocional ajudam a contrair, a soma de tudo que relaxa a musculatura e a cabeça funciona no sentido inverso, da cura ou superação.” No Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco e no Oswaldo Cruz (Huoc), o tratamento da dor também tem cor e sons. No HC, o Projeto Mais – Manifestações de Arte Integradas à Saúde – leva brincadeiras, oficinas, arte e muita música para as enfermarias, diariamente, comandado pela médica Leniée Maia. “A música causa alterações positivas no ambiente, fazendo o corpo liberar mais endorfinas”, cita, lembrando ação analgésica natural. No Oswaldo, o pneumologista Paulo Barreto Campelo já transformou iniciativa semelhante e mais antiga numa disciplina que roda os cursos de saúde da universidade estadual. Futuros médicos, dentistas e psicólogos formados pela UPE aprendem que arteterapia não pode faltar na extensa linha do cuidado.


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Fotos: Guga Matos/JC Imagem

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ATIVIDADE Alongamentos ajudam pacientes que recorrem o Centro de Práticas Integrativas

k artigo

O sofrer nosso de cada dia Juliana Guerra julianaguerra@hotmail.com

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Tive apoio da família e dos amigos. Encontrei na fé e na mentalização uma forma de não pensar na dor. Mas quando ela era mais forte, não abri mão dos remédios”, ensina Khefren Belém, empresário que passou por 19 cirurgias e duas décadas dolorosas

Estresse, depressão e dor andam mais juntos do que a nossa intuição poderia sugerir. Em encontros médicos internacionais realizados no último final de semana em São Paulo, o 4º Pain e no 3º Depression Forum, psiquiatras, neurologistas e outros especialistas nos três assuntos mostraram que a depressão pode preceder a ocorrência da dor crônica, ser consequência dela ou, ainda, um evento biológico simultâneo, de desenvolvimento bastante similar. Na dor e na depressão há alterações de neurotransmissores como serotonina e noradrenalina, substâncias responsáveis pela comunicação entre os neurônios e que ajudam a controlar o estado emocional. “Por isso, antidepressivos têm sido usados no tratamento da dor”, explica o neurocirurgião Manoel Jacobsen, do Centro da Dor do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Segundo ele, a inflamação, por sua vez, altera a sensibilidade das terminações nervosas onde a dor é deflagrada e atua através de várias moléculas do sistema nervoso, sensibilizando as vias nervosas. “Uma interfere na outra, se a dor vem antes da depressão ou a depressão tem início na dor, é uma matéria ainda não esclarecida”, diz o especialista. Jacobsen explica que no processo doloroso é certo a depressão se instalar. “Cerca de 60% das pessoas com depressão têm dor no corpo inteiro, como dor muscular”, compara. O presidente do Departamento de Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina, Kalil Duailibi, lembra que o estresse de longa duração, maior que três meses, pode causar danos no cérebro, ajudando a desencadear estados de inflamação, depressão e dor. “Estresse constante no trabalho ou na família impacta nos neurônios, que diminuem de tamanho”, explica o psiquiatra. A inflamação gerada no cérebro acaba também

Divulgação

Estresse, dor e depressão seguem juntos

PSIQUIATRA Duailibi estuda a depressão atingindo outras áreas do corpo, como o metabolismo e o sistema cardiovascular, além de deixar o organismo mais frágil a infecções e doenças autoimunes. Para vencer o estresse e a dor, a atividade física é fundamental porque ajuda a restabelecer o equilíbrio na produção das substâncias naturais que ajudam a controlar as emoções. Os especialistas alertam que num quadro depressivo também é fundamental ter o tratamento medicamentoso e psicoterápico correto, sem interrupção. Praticar exercícios aeróbicos quatro vezes por semana, por meia hora ou quarenta minutos já é uma medida preventiva, assim como incluir na dieta alimentos ricos em ômega 3, a exemplo da sardinha. Frutas vermelhas, descanso regular e distração reforçam. A capacidade de enfrentar o estresse também depende de fatores biológicos, como a herança genética e a qualidade emocional dos primeiros anos de vida, na fase de formação da personalidade, explica Duailib. k A repórter acompanhou o 4º Pain & 3º Depression Forum, em São Paulo, a convite da Pfizer

sofrimento humano é objeto de estudo desde os primórdios da civilização. São várias as leituras acerca deste tema. Na filosofia oriental, a dor ajuda no crescimento espiritual. Segundo o Dalai Lama, líder espiritual do budismo, “o sofrimento aumenta nossa força interior”. A tradição judaico-cristã do sofrimento é ilustrada na histórica bíblica de Jó, um homem fiel, abençoado por Deus, íntegro, que perdeu todas as suas posses e os seus dez filhos num único dia. E ainda foi desprezado por todos, inclusive pela esposa. E pra completar, foi acometido por uma terrível doença. O livro de Jó trata de um dos assuntos mais difíceis da experiência humana: como entender e lidar com o sofrimento. Apesar de intenso, o sofrimento de Jó não durou para sempre. É bem provável que ele tenha se lembrado daquelas experiências dolorosas durante o resto da vida. Mas a crise passou, e a vida continuou. E por fim, Deus restaurou as posses dele em porções dobradas. Na literatura grega, os homens foram marcados pelos desígnios cósmicos. Ulisses, Prometeu, Édipo e Antígona são alguns dos personagens cujas tragédias pessoais moveram suas vidas. A tragédia da vida também é ressaltada no pensamento freudiano. A incerteza do destino nos remete à condição de vulnerabilidade. E essa impossibilidade de prever o futuro é fonte de angústia. É impossível não se comover com a novela A morte de Ivan Ilitch, em que Leon Tolstói retrata com uma profundidade exasperada o tema da morte e o sentido da vida. O juiz russo que dá título ao livro, à beira da morte, faz uma reflexão sobre a própria vida. A solidão de Ivan diante do sofrimento se deu, sobretudo, por perceber que sua existência artificial e frívola fora desprovida de um propósito mais significativo. Mas, quando entende o sentido daquilo que enfrenta, algo o liberta da ameaça moribunda. “Ah, a morte: que alegria”! E a recebe de braços abertos! O sentido do sofrimento. Hoje em dia, não há tempo para sofrer nesse mundo cada vez mais curto e acelerado. Não há espaço para o sofrimento. Nem necessidade. Para que sofrer se atualmente temos à disposição as pílulas da felicidade e do prazer? Não há mais os mitos de outrora, que atribuíam à dor um sentido e ao sofrimento uma razão de ser, como o fez Nietzsche em Assim falou Zaratustra. Na obra, o filósofo retomou o mito para propor a capacidade do ser humano de superar as próprias adversidades em direção a um mundo que faça sentido. “Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a roda motriz na engrenagem das coisas”, afirmou Nietzsche. Somos incapazes de perceber o sentido do sofrimento – nem a dor do outro – como força impulsora do desenvolvimento humano. Mas, o que seria de nós se não tivessem existido no mundo artistas como Van Gogh, Camille Claudel, Edvard Munch e Frida Khalo? Será que a produção artística deles seria tão densa, vigorosa e orgânica se não tivessem passado por profundo sofrimento? E você, não aprendeu e cresceu com aquela decepção amorosa no passado ou com a perda daquele parente querido? k Juliana Guerra é jornalista e doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco

q mais na web Veja vídeos com especialistas em tratamento de dor e pessoas que enfrentam longos anos de sofrimento no site: www.jconline.com.br/suplementos/jc-mais


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