Hapvida jc 24 10 2014

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4 jornal do commercio

Recife I 24 de outubro de 2014 I sexta-feira

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A difícil penicilina injetável

CRISE Ausência do produto no mercado desabastece unidades do SUS no Recife e cria problema para portadores de febre reumática

Em nota, fabricante justifica que o medicamento não está em falta apenas no Brasil Segundo a Anvisa, a empresa detentora do registro da benzetacil pediu suspensão de fabricação do medicamento em 28 de fevereiro de 2014, justificando que o fornecimento da substância ativa benzilpenicilina benzatina tinha sido suspenso pelo fornecedor. Em 17 de julho, a mesma firma solicitou à Vigilância Sanitária a alteração do local de fabricação do fármaco. “Verificando o risco iminente de desabastecimento e considerando que existem poucos medicamentos com o mesmo princípio ativo e concentrações disponíveis no mercado e que a benzilpenicilina benzatina, ou penicilina G benzatina, faz parte da relação de medicamentos essenciais para a rede básica de saúde, a agência tratou a petição de maneira prioritária”, informa a assessoria da Anvisa. Uma exigência técnica foi emitida em 30 de julho deste ano, para a complementação de informações que se faziam necessárias.

Burocracia trava acesso a tratamento A atual falta no mercado não é o único problema. D.M.S, 26 anos, desde os 2 anos de idade faz a profilaxia mensal com penicilina injetável para evitar novas sequelas da febre reumática. A jovem denuncia toda uma burocracia existente na rede de saúde. “Não conseguimos tomar a injeção nos postos de saúde e preciso passar ainda por três médicos para receber a aplicação”, conta. Mesmo com receita do médico do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, onde faz acompanhamento, só conseguia a injeção no posto de saúde depois de marcar consulta e ser avaliada pelo médico generalista. “Depois de perder um

dia de trabalho para obter a ampola, tenho que procurar uma emergência para receber a aplicação. Lá, entro na fila para passar novamente por um terceiro médico e só assim tomar a benzetacil”, conta ela. O médico Lurildo Saraiva, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, que trata doentes com complicações cardíacas da febre reumática, explica que na ausência da injeção benzetacil, a opção é usar penicilina oral, eritromicina ou azitromicina. “Na profilaxia secundária, pode-se tomar meio a um grama por dia de sulfas, como a sulfadiazina, de acordo com a prescrição médica voltada ao quadro do paciente”, observa.

Fotos: Divulgação

nos serviços de pronto-atendimento. Em meados de setembro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu um comunicado, reproduzindo informe do distribuidor do medicamento. “Diante do quadro, a empresa responsável pela distribuição e comercialização do remédio, Supera Rx, orienta a classe médica a prescrever pelo nome do princípio ativo”, diz a nota, disponível no site do conselho. A empresa afirmou, segundo o CFM, que está dedicando esforços a fim de reiniciar o suprimento do produto futuramente. Alegou também que a carência da penicilina benzatina não é apenas no Brasil. A Organização Mundial de Saúde veiculou comunicado sobre a complexidade de produção do fármaco e a limitação de alternativas em muitos países. A Supera Rx afirmou ainda que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi comunicada.

RETRATOS Na foto principal, extraída do estudo do médico Lurildo Saraiva, a moradia de uma paciente na Favela do Chiclete, na Iputinga, Zona Oeste do Recife. Nas demais, manifestações da febre reumática, como os nódulos subcutâneos e o coração crescido Sérgio Bernardo/JC Imagem

P

ortadores de febre reumática, doença negligenciada pelas políticas de saúde que não registram os casos nem têm controle sobre o tratamento contínuo dos pacientes, agora estão diante de um novo problema: a falta de penicilina benzatina nas unidades do SUS no Recife. O problema, que se prolonga desde agosto, é atribuído pela Secretaria Municipal de Saúde, à carência da matéria-prima no mercado e pode gerar sequelas graves nos usuários que precisam tomar doses profiláticas mensalmente, para evitar alterações nas válvulas do coração, distúrbios neurológicos e renais. “Todo dia 8 deveria tomar uma injeção de benzetacil. Mas desde agosto não consigo o tratamento nos postos e policlínicas da rede municipal do Recife”, conta R.E.S, 42 anos. Ela desenvolveu febre reumática e mesmo sendo profissional de saúde, ficando exposta a uma reinfecção, não consegue acesso ao tratamento. Com medo de ter uma recaída grave, R.E.S. tem peregrinado. “Na Policlínica Barros Lima, em Casa Amarela, falta a injeção. Na Albert Sabin, na Tamarineira, eles dizem que não costumam aplicar o medicamento. Já procurei inclusive a emergência do Hospital Agamenon Magalhães, da rede estadual. Lá, disseram que eu deveria procurar outro serviço de saúde, pois não faziam esse tipo de atendimento. Apelei às farmácias particulares e só poucas são habilitadas a vender o remédio. Mesmo essa minoria estava desabastecida”, relatou. Por estar sem tratamento, R.E.S. tem voltado a sentir sintomas antes controlados, como dor nas articulações. Pacientes do interior reclamam do mesmo problema. “Passei dois meses sem tomar a injeção e fiquei rezando para não ter uma complicação grave”, contou Manoel Silva, de Triunfo, no Sertão de Pernambuco. Portador de sequela grave da doença, ele já não consegue trabalhar e uma reinfecção poderia causar grande prejuízo. A assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde do Recife explica que o problema é nacional. “A Gerência Farmacêutica está com dificuldades na aquisição de benzetacil, pois a matéria prima usada na fabricação da injeção está em falta”, explica. A alternativa tem sido a realização de pequenas compras, de urgência, para garantir a medicação

Acompanho doentes com febre reumática há três décadas e não recebi qualquer informe oficial do Ministério da Saúde sobre a falta do medicamento indispensável aos pacientes. É mais uma prova da negligência oficial com as vítimas”, afirma Lurildo Saraiva

Febre reumática sem vez no governo A permanência da febre reumática, doença que desapareceu dos países ricos, encontra guarida nos bolsões de desigualdade social ainda presentes em Pernambuco, apesar da redução da fome e da pobreza. Intrigado com as recaídas de jovens já sequelados pela doença originada em uma amigdalite por estreptococos mal curada, o cardiologista Lurildo Saraiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), resolveu observar as condições de moradia dos pacientes. Surpreendeuse com “verdadeiros chiqueiros, onde as crianças dividem colchões, não têm acesso à água e permanecem expostas à bactéria” e acredita que falta priorizar, nas políticas sociais e de moradia, famílias que convivem com o problema. O resultado dessa observação transformou-se num relato apresentado no 23º Congresso Norte-Nordeste de Cardiologia, realizado no mês passado no Recife. Ao traçar o perfil epidemiológico da febre reumática no Brasil, o médico, com mais de três décadas de experiência no tratamento da doença, associou a imagens que mostram o comprometimento cardíaco de pacientes fotos de casebres onde eles vivem. Uma delas, de 13 anos, mora num cubículo de tábuas, na Rua Imperial, no bairro de São José, área Central da cidade. A outra, de 10 anos, reside em um barraco na Favela do Chiclete, na Iputinga, Zona Oeste da capital. Entre uma história e outra, a pobreza habitacional tem o reforço de outras dificuldades sociais, como o uso de drogas na família e episódios de violência. Para Lurildo Saraiva, há uma clara omissão do Ministério da Saúde e das demais autoridades do SUS que não reconhecem a doença um problema de grande repercus-

são na saúde pública. “Milhões são gastos em implantes cardíacos enquanto o tratamento inicial e profilático é barato, à base de penicilina”. O problema é a dificuldade de acesso às injeções mensais, primeiro por uma equivocada política que enfatizou demasiadamente o risco de choque anafilático, desestimulando a aplicação em postos de saúde. Mais recentemente, um segundo problema tem surgido, a falta do medicamento no mercado.

Doença está associada a más condições de moradia Especialistas também suspeitam da falta de diagnóstico nas manifestações iniciais da febre reumática, com febre e dores articulares. Sucessivas infecções acabam por destruir as valvas do coração ou ocasionam um distúrbio neurológico conhecido como coreia, que causa movimentos involuntários. A sobrevida, após graves sequelas cardíacas e cirurgias, não ultrapassa a terceira década de vida. O reconhecimento da doença passa pela notificação obrigatória dos casos, o que não existe ainda no País, à exceção de pontuais experiências em Minas Gerais e em Santa Catarina, por efeito de leis estaduais. Na rede SUS sequer se sabe quem faz uso regular da penicilina em razão da febre reumática.

q Mais na web Entrevista com paciente e médico no www.jconline.com.br/cidades


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