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12 jornal do commercio

Recife I 2 de outubro de 2014 I quinta-feira

opinião JC

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Diretor de Redação: Ivanildo Sampaio sampaio@jc.com.br Diretor Adjunto de Redação: Laurindo Ferreira laurindo@jc.com.br Editora-Executiva: Maria Luiza Borges marialuizaborges@jc.com.br

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Lugar de aluno O

Instituto Nacional de Educação e Pesquisa Anísio Teixeira (Inep) trouxe a boa notícia para a educação pernambucana: as escolas públicas estaduais de ensino médio apresentaram a menor taxa de evasão do País, com média de 5,2%, à frente de São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Paraná. Entre as maiores taxas figuram o Pará e Alagoas, com índices de 18%. Vale recordar que, em 2007, o abandono escolar em Pernambuco era de 24%, e o Estado ocupava então a segunda pior posição no ranking nacional. A melhoria dos indicadores tem mostrado que os investimentos em educa-

ção dão resultado. A ampliação das escolas de referência em tempo integral parece uma das causas diretas para a evolução de um quadro que ainda precisa avançar muito – mas o importante é que está avançando. Além disso, medidas como distribuição de tablets e concessão de bolsas de estudo no exterior podem ter contribuído para elevar a atenção dos jovens ao que é exposto em sala de aula. A modernização da infraestrutura da rede e a valorização dos professores, por outro lado, não são menos importantes para que o aluno sinta que a escola é o seu lugar. O ensino médio é essencial para que

Bolinhas de sabão Ângelo Monteiro

a.jmonteiro7@gmail.com

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ara a artista plástica Lorane Barreto, a nossa vida deveria ter o formato de uma bolinha de sabão que, antes de se desfazer, refletiria tudo que estivesse à sua volta. Seria a forma de ela se apagar sem tanto sofrimento e, ainda por cima, com o final cheio do próprio brilho. Daí porque a visão um tanto inóspita de que tudo se encaminha para o fim, desde o começo, não esconda, mas faz ressaltar a presença adormecida das lágrimas no seio sempre ignorado das coisas. Como não aprender, portanto, com a plasticidade de algo que, de tão leve, não consegue se fixar na superfície da terra? E que são os mais ardentes sonhos senão o anúncio de outras bolinhas que logo irão esvanecer, como é tão próprio do ar? E, apesar disso, como viver sem eles, ainda quando conscientes de que, um pouco adiante, sucumbirão sob as pressões já esperadas da realidade? Com sonhos ou sem sonhos, de que modo escapar dessa vertigem a se precipitar sobre os altos e baixos da existência e a envolver a multiplicidade de suas formas? Como bolinha de sabão prestes a se

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eritos da ONU visitaram o Brasil no final de 2013 e divulgaram os resultados de estudos sobre racismo na semana passada. Não deu outra: o racismo em nossos rincões é “estrutural e institucionalizado” e “todas as áreas da vida”. A principal causa disso é a negação de parte substancial da sociedade quanto à própria existência de racismo, “o mito da democracia racial”. De fato, a crença na mistura natural de raças, tida por Gilberto Freyre como “profunda confraternização de valores e de sentimentos”, continua entranhada na sociedade brasileira, um poema romântico e cotidiano declamado nas ruas, nos restaurantes, nas praças, nos foros, nos escritórios, mas, nos mesmos lugares, desmentido pela realidade triste. Tínhamos há bastante tempo nossas próprias pesquisas, uma das quais já mencionei nesta coluna, e torno a fazê-lo, a pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, estudo elaborado pelo Ipea e divulgado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, com informações sobre as principais desigualdades existentes no Brasil (www.ipea.gov.br/sites/0002/destaque/Pesquisa_Ret): homens e mulheres negras vivem menos que os brancos; negros e negras estão menos presentes nas escolas, apresentam médias de anos de estudo inferiores e taxas de analfabetismo bastante superiores (a taxa de analfabetos na população negra e parda é 131,8% maior do que na população branca); nos dados do SUS, é gritante a dife-

adulta e interferem negativamente no desenvolvimento nacional. Pesquisa divulgada em 2012 pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Fundação Victor Civita apontou que os estudantes do ensino médio se queixavam, entre outras coisas, do baixo uso da tecnologia nas aulas. A atratividade das ferramentas tecnológicas, portanto, deve ser priorizada pelos governos, estimulando o ambiente interativo e instigante. A educação integral, que prolonga a permanência do estudante no ambiente escolar, por sua vez, é uma experiência exitosa em Pernambuco desde

2004 – e há uma década só faz aumentar o consenso em torno de sua adoção, hoje presente em mais de 320 unidades de ensino. De acordo com o que se registra não somente aqui, mas em vários estados, a evasão no ensino integral – onde o currículo é estendido e o desempenho, monitorado – chega a ser dez vezes menor do que no sistema tradicional. Por isso, desde junho a implantação do modelo integral está prevista para acontecer em pelo menos metade das escolas públicas de ensino médio do País, de acordo com as metas do Plano Nacional de Educação. Quanto mais cedo isso virar realidade, melhor.

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dissolver, cada um dos existentes conhece um único itinerário, aquele que leva ao desaguar inalterável no mar do tempo. As datas que nos acompanham não passam, assim, de marcos entre os quais se estabelecem os limites do existir, e esses marcos se sucedem sem que cheguem a nenhum termo. Pois o que vivemos ontem perdeu inteiramente a relação com o que vivemos hoje e que, naturalmente, vai se confundir com as areias do amanhã. Nunca deteremos nas mãos as rédeas do tempo, e delas continuamente dependeremos, como as árvores dependem das raízes para florescer. Enquanto erguemos flâmulas e fachos para as alturas, celebrando os palpitantes projetos de vida e de arte, os pés nos conduzem em direção oposta, movidos pela fome insaciável dos dias. E, muitas vezes, sem sabermos que rumos imprimir às nossas vidas, precipitam-se acontecimentos não previstos sem que, ao menos, suspeitássemos, ora alegres, ora tristes, que não fomos mais que frágeis bolinhas de sabão, de variável durabilidade, que refletissem o mundo todo antes de se desfazer... k Ângelo Monteiro é ensaísta

Racismo institucional João Humberto Martorelli

os adolescentes busquem uma eventual recuperação sobre a precária formação de base, bem como para encaminhar o interesse pelo conhecimento que irá desaguar em uma carreira profissional. Segundo relatório divulgado do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), menos de um terço dos jovens pobres conclui o ensino médio no Brasil. Números da ONG Todos Pela Educação, baseados no IBGE, informam que em 2012 quase a metade da população de até 19 anos não terminou o ensino médio. São dados que evidenciam a dimensão de um grave problema, cujos efeitos comprometem a vida

rença entre a população branca e negra, esta última sendo SUS-dependente, não tendo acesso a serviços médico-hospitalares dignos; 69% dos domicílios que recebem Bolsa Família, 60% dos que recebem Benefício de Prestação Continuada e 68% do que participam do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil são chefiados por negros; a entrada no mercado de trabalho ocorre mais cedo para os negros e a saída, mais tarde; os domicílios chefiados por negros são aqueles que se encontram sempre em piores condições. No plano institucional, recente censo do Judiciário concluiu que apenas 1,4% dos magistrados são afrodescendentes. Não é diferente a situação no Executivo e no Legislativo em todas as esferas de competência. Conclusão da pesquisa da ONU: “O Brasil não pode mais ser chamado de uma democracia racial e alguns órgãos do Estado são caracterizados por um racismo institucional, nos quais as hierarquias raciais são culturalmente aceitas como normais”. Realidade que nossa academia tentou desde sempre escamotear, bastando lembrar a prática do tejupabo, que consistia em meter o corpo da criança negra em buracos cavados na terra para garantir sua imobilidade e evitar que engatinhasse para o mato, a qual Gilberto Freyre refere como episódica, acreditando ser “costume seguido numa ou noutra fazenda”, não sendo prática generalizada. Só que era. A história explica tudo. Cabe a nós mudá-la. k João Humberto Martorelli é advogado

O espelho Marcus Accioly

marcusaccioly@terra.com.br

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onservo (desde quando?) um velho hábito, que o leitor achará demais estranho: sempre que vou voltar de uma viagem, despeço-me de mim frente ao espelho. Tal atitude, em vez de narcisista, na verdade é um bocado melancólica – cheia de indagações silenciosas. Se, por exemplo, saio de um hotel, eu me pergunto: “Voltarei outra vez a este hotel?” “Voltarei novamente a este quarto?” “Voltarei o meu rosto a este espelho?” Mas, volte ao mesmo hotel e ao mesmo quarto, o mesmo não serei no mesmo espelho: talvez esteja mais envelhecido (ou foi o espelho quem envelheceu?). Nós envelhecemos ao lado das coisas, dos objetos, das palavras. Capiba decorou seu próprio rosto, para não fazer barba face ao espelho. Somente a infância nunca fica velha, entre os velhos brinquedos do menino. Manuel Bandeira disse ao seu espelho: “Espelho, amigo verdadeiro (...) Mestre do realismo exato e minucioso”. Existem, todavia, espelhos falsos, espelhos que deformam ou distorcem – os espelhos das casas dos espelhos – inexatos e não minuciosos. Cecília Meireles indagou: “Em que espelho ficou perdida a minha face?” Decerto em um espelho de cristal, ou de vidro, ou de água. Virgílio viu-se – face a face – à praia. Narciso se afogou em flor na fonte. Contra os espelhos, há a condenação que remonta a Jorge Luis Borges: “O espelho e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens”. Sim, e se um espelho estiver sobre outro espelho, como

Nós envelhecemos ao lado das coisas, dos objetos, das palavras o reflexo de uma cópula, os espelhos se multiplicarão em um túnel de espelhos infinitos. Os selvagens achavam que o espelho aprisionava a alma, ou a “alma do mato” – como a chamou Jung. O mesmo ocorreu com a fotografia – a heliografia de Niépce, o fotograma de Talbot, a foto de Bayard e o daguerreótipo de Daguerre – que foi amada por Proust, odiada por Baudelaire, fustigada por Flaubert e temida por Balzac. Kierkegaard disse: “Com o daguerreótipo todos poderão ter o seu próprio retrato (...) de sorte que só precisamos de um retrato”. Disse a fotógrafa e escritora Diane Arbus: “Sempre pensei em fotografia como uma maldade”. Não obstante, como saberíamos da fácies de Baudelaire, não fosse aquela maravilhosa foto, citada por Vinicius de Moraes – em Bilhete a Baudelaire: “Folheando-te, reencontro a rara/Delícia de me deparar/Com tua sordidez preclara/Na velha foto de Carjat”. O fato de se ver no espelho como pela última vez talvez seja uma tentativa de fixar o instante da luz, deixando ao retrato – à Dorian Grey – a legenda de Oscar Wilde: “Como é triste! Vou ficar velho, feio, desprezível. Mas este retra-

to ficará jovem para sempre”. Não há, na despedida, a pretensão de que o espelho envelheça, no lugar do rosto, mas que ali se revele, no momento em que se perde a imagem. O espelho de um hotel é um palimpsesto de rostos fugidios. Eis o possível encontro da despedida – no grande e visível espelho que é o mundo – onde o reflexo do homem é uma estrela fugaz com sua lágrima. A juventude gasta o aço dos espelhos: não quer se ver, quer que o espelho a veja, em cada detalhe. O espelho detém a vantagem de ser imóvel, contrário à água do rio, que dá a sensação de nos levar. Narciso foi um Tântalo às avessas. Ele se quis ali, obsessivo, sem se mexer, sem deslizar um traço, sem quase respirar no espelho-fonte, pois a água parada – o espelho-d'água – pode fragmentar-se até no vento, ou (como disse Bashô em seu haikai) pelo salto da rã dentro do tanque. Daí a crença de que espelho partido dá azar. Sim, pois divide a nossa própria imagem. Não enxergar o próprio rosto, espelhado na água de uma jarra, ainda é uma adivinha de São João, que traz o seu presságio sobre a morte. O espelho da bruxa de Branca de Neve era o semblante de Branca de Neve. O que eu faço, leitor, fez Dostoiévsky, como diz no seu livro – Recordações da casa dos mortos – ao sair da prisão da Sibéria: “Despedi-me de todas as vigas enegrecidas e mal esquadrejadas da nossa caserna. Como me pareciam rebarbativas nos primeiros tempos. Sem dúvida que também envelheceram”. k Marcus Accioly é poeta

k Os textos assinados publicados em Opinião e Voz do Leitor não refletem necessariamente a posição do Jornal do Commercio. O JC se reserva o direito de editar e de adaptar os textos à linguagem jornalística.


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