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Recife I 25 de setembro de 2014 I quinta-feira

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Uma chance para a inclusão REDE MUNICIPAL A prefeitura vai contratar mil agentes de apoio para dar assistência a crianças e adolescentes com deficiências

Fotos: Edmar Melo/JC Imagem

Margarette Andrea

margarettea@gmail.com

V

itória tem 15 anos. Ela cursa a quinta série do ensino fundamental na Escola Municipal Dom Hélder Câmara, localizada no Espinheiro, Zona Norte do Recife, em meio a dezenas de colegas de turma que se derramam em cuidados e carinho com ela. Somando a atenção especial que recebe da professora e de uma estagiária, a garota “descobriu o paraíso” na escola, nas palavras de sua mãe, a engenheira aposentada Ângela Lira, 56. Com diagnóstico de autismo grave aos 2 anos de idade, Vitória saiu de uma escola particular de Casa Forte, também na Zona Norte da cidade, para a rede pública de ensino, há quatro anos, em busca de uma verdadeira inclusão escolar. “Muitas escolas particulares cobram, à parte, para receber crianças especiais e depois não lhes dão a devida atenção. É como se nos fizessem um favor”, critica Ângela, com indignação. Na escola pública, a engenheira encontrou o espaço que precisava para a filha continuar estudando. “A diretora, a professora e a estagiária abraçaram a causa, aceitaram receber orientações e minha filha se integrou à classe. É um ganho não só para ela, mas para os outros alunos”, ressalta, aliviada. Recentemente, a estagiária que acompanhava Vitória há algum tempo se formou e precisou sair do emprego. A substituta desistiu e, no período de espera por outra agente de apoio, a garota passou uns dias sem ir para a escola. “Quem tem autismo não aceita bem mudanças bruscas, então tive de afastá-la uns dias para depois ele retornar à escola, somente com a professora, que já consegue dar conta. Mas essa troca constante de estagiários é uma grande dor de cabeça para os pais”, destaca Ângela. “Sem falar que muitos faltam, não são comprometidos com a causa”, completa. O caso não é isolado. Somente na rede municipal do Recife, estão matriculadas 2.778 crianças e adolescentes com algum tipo de deficiência. A maioria (1.713), de ordem intelectual. Embora o atendimento especializado seja obrigação do Estado (artigo 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente), muitas vezes a assistência não chega a esse público ou não ocorre da forma mais adequada. A contratação de estagiários tem sido a solução mais adotada, mas esbarra no problema vivenciado por Vitória e por tantos outros alunos. Tentando melhorar esse cenário, a Prefeitura do Recife criou, por meio da Lei nº 18.038/2014, publicada no Diário Oficial do dia 30 de agosto deste ano, o cargo de agente de apoio ao desenvolvimento escolar especial. Até outubro próximo, deverá ser lançado concurso público para contratação de 1 mil agentes que vão substituir os 822 estagiários em atuação, atualmente. “O perfil desse novo profissional foi traçado em conjunto com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e, na Câmara de Vereadores, o projeto recebeu emendas para que os agentes passem por

CIDADANIA Vitória saiu de uma escola particular no bairro de Casa Forte para a rede pública de ensino, há quatro anos, em busca de inclusão escolar exame psicotécnico e curso de formação”, informa o secretário-executivo de Gestão Pedagógica do Recife, Rogério Morais. “Esperamos que no início do próximo ano já estejamos com esses funcionários,” comenta. A função do agente é fazer com que os alunos com limitações de comunicação, interação, compreensão, orientação e mobilidade possam realizar as atividades cotidianas e pedagógicas propostas pelo estabelecimento de ensino. Para isso, eles vão acompanhálos na chegada e saída, ajudar na locomoção, higiene e tarefas, registrando tudo em uma ficha de rotina diária.

entrevista k Ângela Lira

“Os agentes não são babás”

A engenheira Ângela Lira, 55 anos, não se limitou a buscar conhecimento para lidar com a filha autista. Criou uma associação (a Afeto) para auxiliar pais e professores e acabou largando o Concurso público emprego para se dedicar para agentes de à causa. Ela lembra que os agentes não devem apoio deve ser atuar como babás.

lançado no próximo mês

O número de agentes, reconhece o secretário, ainda é pouco, assim como a estrutura educacional tem muitas carências. “Estamos trabalhando para melhorar quantidade e qualidade. Os agentes são um grande avanço e nem todos os alunos com deficiência precisam deste acompanhamento diário”, salienta. Das 227 unidades de ensino fundamental do Recife, apenas 82 têm sala de recurso multifuncional, voltada para dar maior suporte aos alunos no contraturno. “Precisamos evoluir muito nesta área, em todo o País”, avalia.

JC – Qual sua opinião sobre o novo cargo de agentes de apoio educacional? ÂNGELA LIRA – A grande vantagem é ter um quadro fixo, que pode acompanhar sem quebra de continuidade. Mas é importante que esses profissionais tenham perfil para lidar com pessoas com deficiência. Eles devem ser capacitados para estimular a autonomia dos alunos, ter consciência de que eles não precisam de babás e sim de facilitadores. Uma inclusão malfeita pode ser um desastre. JC – De que forma esse desastre pode se dar? ÂNGELA – Meu medo é que eles não se envolvam com a causa. Que

estejam apenas em busca de um cargo público. Ou que queiram fazer tudo pelo aluno, na melhor das intenções. Aí, a criança não evolui. É fundamental que o agente (assim como o diretor e o professor) queira aprender e se aprofundar no tema. JC – Houve algum episódio com sua filha na escola que a prejudicou? ÂNGELA – Em uma das escolas em que estudou, Vitória protestou contra a retirada de uma mesa do lugar puxando a manga da camisa da diretora, que a arrastou pelo braço para a sala de aula. Ela ficou traumatizada, sem querer voltar à escola. Em outra, os alunos ficavam segregados em uma sala, sem estímulo para

melhorar. Muitas escolas particulares cobram uma taxa para manter alunos com deficiência, mas não lhes dão a devida atenção, não têm preparo para isso. JC – E quando a inclusão funciona? ÂNGELA – A inclusão é uma via de mão dupla. Todo mundo sai ganhando. A professora que lida com um aluno complexo tem mais facilidade com os outros. O aluno com deficiência evolui. Os colegas de sala ficam mais humanos, aprendem a lidar com diferenças, coisa bastante valorizada no mercado de trabalho. Quem descobre isso, vê que uma pessoa especial não é um peso. Inclusão também é coração.


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