Agradecimentos Pai, Ban, Gralak, Meio kilo, Eibe, Bk, Cadelis, Lbk, Guerrard, Cilho, Enigmatiko, CafĂŠ, SPK, Laudz, GNZ, Rapzodo, Tiaguinho, Yuri, Sonix.
Nota Parabéns. Você que recebeu esse exemplar está no meu seleto grupo de pessoas que tenho apreço e acredito que receberá esse trabalho com o mesmo carinho com que foi feito. Não fiz mais que trinta cópias, mas cada uma delas foi distribuída gratuitamente pensando no seu destinatário. Cada letra foi feita especialmente para o instrumental e cada um deles é um trabalho desenvolvido para mim. Há mais que vontade de se expressar, há sentimento na expressão e, especialmente, no preparo da expressão que esse projeto representa. Não é somente um projeto meu, mas também das pessoas que confiaram em mim e trabalharam comigo para que hoje você possa estar lendo esse texto e até escutando os sons. Esse projeto é, enfim, o sentimento das pessoas envolvidas nele que lhe é especialmente confiado, esse é o objetivo. Esse projeto não é gratuito. O preço?
Do final dos anos oitenta até a atualidade percebi que a importância dada às
Acredito que o ideal é compor de maneira que a pessoa desde a primeira vez
letras de músicas está cada vez mais desaparecendo. Esse fato pode ser notado
entenda o que se está sendo dito e não precise escutar repetidas vezes. Não se
pelos cds que não contém mais as letras, mas somente uma arte gráfica –
pode depender da boa vontade do ouvinte em ficar compenetrado, escutando
quando muito.
repetidas vezes a mesma música para então compreender o que está sendo
Seja por economia ou por estilo sinto falta de acompanhar a letra da música e compreendê-la melhor. Esse projeto tentou resgatar a importância da letra na música, dedicando não
dito. Nem me refiro a todas as nuances da música, pois talvez nem o próprio escritor as entenda, mas pelo menos ela em seu todo.
somente um mero livreto às letras, mas praticamente uma revista, sendo que
Por saber que possuo essa dificuldade, e na tentativa de saná-la, é que me
a menor parte no sentido material é o cd e o grande destaque é da revista.
propus a discorrer sobre cada rima feita a fim de que seja melhor aproveitada.
Conjugado a isso, grande problema que sempre enfrentei em todas as rimas
Bom proveito.
que escrevi, ou quase todas, foi a de não entenderem o que estava sendo dito. Esse fato retira grande parte da capacidade do conteúdo, tornando a mensagem da rima praticamente sem função.
Carlos Villalba.
Família de Olhos
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Nessa Mata
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Vai Minha Tristeza
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Sonho Ser Poeta
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Não Sou Ninguém
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fujo da vida nas revistas que eu olho sonho acordado me embriago, fico surdo porque só vivo olhando e vivo o que olho O mundo que não toco, mas que me toca fundo”
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ntes mesmo de dar início a esse projeto, eu estava lendo um texto de Charles Baudelaire, intitulado, “Os olhos dos Pobres”. Baudelaire descreve em primeira pessoa um rapaz que leva sua namorada para um café novo na esquina de um bulevar. Lá, já sentados, se deparam com uma família de pobres os olhando: “Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregado e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos
Precisava de um instrumental, falei com meu amigo Ban que de início relutou, pois eu já tinha outros instrumentais dele parados comigo, mas, após esforço, ele me cedeu. Foi aí que comecei a moldar o que já tinha feito e continuar a fazer encima do instrumental. “Dias frios ou quentes, olhos sempre ardentes Bicicletas ergométricas, passeiam alegremente Pelo parque, nas calçadas, onde não posso ir Mas desde que eu vi não saem da minha mente
em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis
Restaurante agitados, choop bem gelado, sorrisos
olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas
estampados
diversamente nuançada pela idade.”
petiscos de salmão
Até então minhas rimas eram autobiográficas, mas, vendo uma entrevista do Chico Buarque, ele afirmou que a música não precisa ser necessariamente autobiográfica, que isso representaria até uma falta de criatividade do artista,
música agradável, aqui de fora vários carros importados meus olhos molham sem razão
haja vista que ele mesmo fez músicas em primeira pessoa no feminino – com
na padaria eu não entro, de fora fico vendo
açúcar e com afeto, atrás da porta, olhos nos olhos, etc..
o cheiro de pão, que sai na fumaça do saco
Embora esteja longe de mim ser artista, resolvi enfrentar minha criatividade e escrever, em primeira pessoa, a vida da família de pobres que Baudelaire se
ganho uns trocados, compro solto um cigarro entendo o recado, do guardo me batendo”
referia. Escrevi, portanto, de início, já metade da rima que coloquei o nome
Nessas primeiras rimas até então eu somente situei o ouvinte, bem como
de “Família de Olhos”.
Baudelaire fez, descrevendo uma pessoa que vê pessoas acomodadas e vivendo vidas que embora sejam naturais, para ele é um sonho.
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Nesse início, como em todo o decorrer da rima, percebe-se que não existe
O refrão é a síntese da música, de um homem que esquece de sua vida miserável
outro sentido senão a visão, quando me refiro, por exemplo, “fico vendo o
olhando a vida dos outros, imaginando uma realidade, embora momentânea,
cheiro de pão”. Os olhos que sentem – imaginam - o cheiro do pão quente da
paralela, perdendo-se nesse mundo com sua imaginação:
padaria.
“fujo da vida nas revistas que eu olho
Essas primeiras rimas são simples de entender, porém, não acredito que sejam
sonho acordado me embriago, fico surdo
de igual facilidade as próximas:
Porque só vivo olhando e vivo o que olho
“meus olhos seguem o asfalto, sobem até as coberturas
O mundo que não toco, mas que me toca fundo”
andam com os carros nas ruas, e vestem trajes finos
O homem pobre, mesmo embriagado pela imaginação criada pelos seus olhos, sabe
de mãos dadas com a menina, linda e como é linda
da diferença do mundo em que vive e do que imagina viver. Sabe que entre esses dois
seguem até o horizonte, mas sempre voltam vazios”
há um abismo e que o que transporta de uma para o outro, servindo de ponte, são
O homem pobre não tem vida própria, não é ele que caminha, mas sim seus olhos que o guiam, o alimentam e o matam. Seus olhos que andam pelo
seus olhos, que o retiram da pobreza o levando para a vida que imagina ser linda e perfeita como de ele vê.
asfalto e quando vêem edifícios, percorrem as paredes até chegar no topo,
“entre meu mundo e o mundo deles existe um abismo
imaginando que linda cobertura que há lá encima, e como seria bom se ele
meu olhar serve de ponte pra chegar no inatingível
estivesse vivendo lá.
nível superior, que olho e imagino
Por óbvio que o homem também não tem carro, mas quando passa um carro
como é linda e perfeita a vida que eu não vivo”
caro seus olhos o acompanham, fazendo imaginar o homem pobre dentro
Como uma droga, fica dependente de que seus olhos vêem, os obedece como se
dele, guiando.
fosse um vício, tendo, inclusive, os efeitos colaterais da abstinência (arrepia a minha
De igual forma, quando passa uma menina bonita, seus olhos a vêem e fazem ele imaginar que está de mãos dadas com ela. Ela vai passando até que seus olhos a percam de vista no horizonte e voltem sozinhos, sem a companhia
pele). A propaganda, a mais forte instigadora dos olhos, convence o homem que usando o produto dele virá prazer e que existe o poder instantâneo de se sentir bem, que se pode retirar prazer do produto vendido.
dela. 17
Os sinais visuais de tráfego vieram com a modernidade. Claro que antes dos semáforos havia os carros que andavam nas ruas, mas os sinais de trânsito somente depois dos veículos automotores e posteriormente a pavimentação da rua, que servem tão somente para beneficiar os automóveis. Os semáforos são provas visíveis de favorecimento aos automóveis. Eles servem para controlar o tráfego de veículos e não para dar passagem aos pedestres,
as observo, eu sou o servo, meus olhos pedem meu coração aceita, arrepia minha pele propaganda diz: pegue! E sinta o prazer me convence a acreditar que existe esse poder ...mas não sinto raiva, só me mordo de inveja eu vejo todos eles, mas me olham e me negam sou como a pedra, o poste, o copo objeto que quer viver, leia nos meu olhos O sinal de trânsito me diz que sou pedestre Que atrapalho o tráfego que sou parte da plebe Eu sou o asfalto que os carros correm por cima faço parte desse mundo que reflete minhas retinas”
tanto é que raramente vemos sinais com três tempos, sendo um para cada via que cruza e o terceiro para os pedestres. Portanto, há separação entre as pessoas que andam em carros e as que andam a pé e, ao olhar para o semáforo o nosso homem pobre se vê desfavorecido por não estar motorizado. Tanto as pessoas que dirigem os carros quanto os demais pedestres olham o homem pobre, porém não o vêem, não se importa com ele, ele faz parte da cidade, é natural tanto quanto uma pedra no caminho, um poste, um copo numa mesa de bar. Faz parte do cenário. Mesmo que neguem, ele tem vida e quer viver. Exatamente como os olhos dele exprimem. Após o segundo refrão introduzo uma companheira na história, com a qual ele divide sua vida real e suas ambições, como a de que vai conseguir se sustentar catando papelão. Com um papel de pão ele enrola a maconha (se enrola na viagem) e, alucinado, imagina (miragens) viver melhor que a penúria que enfrenta.
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“Mas tenho uma amiga que divido a ilusão Que vou ganhar na vida, catando papelão Com papel de pão me enrolo na viagem Sem camelos e sem deserto, mas vivendo uma miragem” Por serem pobres e não empregados não têm compromisso, vivem soltos no mundo, largados ao ócio e se tranqüilizam com o que os olhos vêem. Ao verem a novela, admiram os seios da artista, que antes tão pequenos agora enchem o decote, feitos pelo melhor e mais caro cirurgião plástico, que deixou perfeito os seios e suas respectivas auréolas. Ao ver a novela imagina ser o galã dela e possuir aqueles seios e o que vem com eles. Ser o galã tanto da novela das seis, das sete e das oito nem sei se tem novela de hora em hora assim. “O mundo é todo nosso, bicho solto, somos ócio Temos a tranqüilidade que nos passa nossos olhos artista mostra decote, a perfeição de cada auréola Eu galã com várias delas, em todas as novelas” Uso na próxima rima os horários das novelas pra me referir à quantidade de filhos que o homem com sua companheira agora têm – total de oito. Enquanto ele vê novela os filhos choram pela falta de espaço que normalmente enfrentam famílias nessa qualidade econômica. O homem traz os filhos para
“Das seis, sete e oito, herdeiros choram no berço Pelo espaço pequeno, mas não vivo, me entorpeço Trago todos os pequenos, e todos ficam vendo Vivendo o que olham, aprendendo a viver morrendo” Como fiz no começo da rima acima, utilizei as últimas palavras da rima superior para fazer o encaixe na rima logo em seguida “aprendendo a viver morrendo de vontade não temos”. A família, agora unida, ao final da música não sente vontade, pois vivem já no mundo em que se imaginam, no mundo que mentem para si, que vivem e se tranqüilizam dessa maneira. Agora, o refrão, que antes era no singular, vai no plural, pois refere-se à família. O teor continua o mesmo, pois o sentimento que antes só o homem tinha foi passado para seus descendentes que assim passarão para seus consecutivos descendentes, perpetuando a espécie da família de olhos. “fugimos da vida nas revistas que olhamos sonhamos acordados, embriagados, somos surdos só vivemos vendo e vivemos o que olhamos mundo que não tocamos, mas que nos toca fundo”
verem novela com eles e imaginando, se entorpecerem da vida alheia, criando vontades logo cedo. 21
...Nessa mata, todo mundo Ê diferente, tratam gente como bicho mas que bicho Ê a gente?...�
endo um documentário sobre Chico Buarque em que ele musicou uma
trabalham em formigueiros mas vivem em galinheiros
peça de teatro chamada “Saltimbancos”, percebi nessa peça que os
poleiros amontoados “kit-net” do centro
animais faziam analogia a humanos. Lembrei também que George
diferente dos cavalos em haras com academia
Orwel escreveu “A Revolução do Bichos”, livro que li na minha época
coruja na portaria e piscina de creolina”
acadêmica.
As galinhas são as mulheres aproveitadoras, que querem viver de pensão do
Decidi então escrever em rimas as pessoas como se fossem animais – que em
homem e, quando não conseguem obriga-lo por amor, fazem um filho com ele
verdade são – como disse Fernando Pessoa, por seu “semi-heternônimo”
para obriga-lo legalmente a sustenta-las.
Bernardo Soares, no livro Desassossego:
“mas as galinhas, ah, essas não trabalham
“Muitos têm definido o homem, e em geral o têm definido em contraste com
procuram a vida fácil querem o melhor pavão
os animais.
com o melhor padrão. Assim elas casam
Então vivemos numa mata em que os gatos miam (de bêbados) retornando
senão botam ovo ralam e vivem só de pensão”
já de madrugada para casa, quando encontram os trabalhadores (formigas).
Importante observar que desta rima em diante, até o final da música, as rimas
Os trabalhadores são em geral pessoas de baixa renda, que moram em
foram feitas de maneira que a última palavra da primeira frase combinasse
apartamentos pequenos – COHAB – ou ainda vivem em quartos de pensões no
com uma das primeiras palavras da segunda frase.
centro, mas sempre amontoados.
O final da segunda frase, por sua vez combina com o começo da terceira frase,
No outro pólo estão os de alta renda, com residências extravagantes com
mas o final da terceira frase combina com o final da primeira frase, assim como
piscina (de creolina), academia, com portaria vinte e quatro horas, em que
o final da segunda frase combina com o final da quarta frase:
nela ficam homens-corujas acordados a madrugada inteira.
“letra letra A
“De madrugada, os gatos estão fora de casa miando de bêbados, uns desmaiam
letra A letra letra B
nas calçadas formigas vão apressadas dada a hora que passa
letra B letra letra A
ônibus cheios delas seguem pra dentro da mata...
letra A letra letra B” 25
Os moleques de rua que ficam no sinal sem calçados, jogando bolas, imundos, são os pombos – ambos vistos como pragas que usualmente se drogam com cola e raramente morrem sob tratamento médico, no hospital. “pombos pelo centro, com suas patas escuras pois descalças e sujas, jogam bolas no sinal suas penas são festival de piolhos e pulgas cheiram cola pela rua e morrem fora do hospital” O refrão faz a visão mais abrangente da “mata”, dizendo que todos querem ter seu pedaço de terra e sempre dominar e não somente não serem dominados.
essa mata, todo mundo é todo mundo quer um pedaço de relva ser o rei da selva nessa mata, todo mundo acha todo mundo trata gente como bicho bicho como praga
como se fossem bichos, alheios à sua natureza. Fala ainda que como se precisa
nessa mata, todo mundo espera todo mundo leva vida de cavalo
trabalhar para viver, parecemos cavalos que lutamos e amamos nossas éguas.
e ter a sua égua
Por fim concluo que todos somos diferentes, cada um é um determinado bicho,
e nessa mata todo mundo é diferente tratam gente como bicho,
Pensam que são superiores aos demais, por não fazerem parte de seu bem estar,
questionando, os ouvintes e a mim, que bicho somos, vez que só falo dos outros como se fossem bichos.
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mas que bicho é a gente?”
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Como já falei das galinhas, agora falo das piranhas que são as profissionais
Utilizo também a cultura popular quando me refiro aos policiais como porcos.
do sexo. Elas, diferentemente das galinhas, levam seu trabalho com
Narro uma batida policial em que eles vão prender esses drogados que de
seriedade, isto é, não ludibriam o “consumidor”, mas oferecem claramente
tão inconscientes não reagem, sendo presa fácil (peixe pequeno), mas não
o produto e dizem o preço.
prendem os que realmente fazem mal a sociedade (tubarões).
Na batalha que escolheram tem que trabalhar durante a noite toda em
“os porcos de oitão vem prender os bichos
boates enquanto os fregueses se embriagam com as bebidas servidas pelos
que de tão entorpecidos não esboçam reação
garçons (pingüins). E os fregueses, de tanto se embriagarem viram lobos e
não cumprem sua função, mas tem que mostrar serviço
começam a uivar pelo sexo, ainda que tenham que pagar por ele.
peixe pequeno é lixo perto do tubarão”
“piranha é diferente trabalha a noite toda
Continuando o assunto de policiais, falo a diante sobre os seguranças
com algumas poucas roupas e pingüins servem cerveja
que sem qualquer qualificação arriscam suas vidas por necessidade
precisa que os lobos vejam e babem nas suas coxas
vital.
uivem querendo suas bocas e abram suas carteiras” Volto ao tema de drogas, agora sob o enfoque exclusivo. Digo que os consumidores de cocaína são tamanduás que pelo efeito da droga não comem mais (formigas). Falo também dos consumidores de crack como se fossem vagalumes, pois à noite ficam acendendo os cachimbos, piscando com os isqueiros. “tamanduás já não comem mais formigas por causa da adrenalina, das carreiras de pó dignos de dó qual quer bicho vicia
“coitado do macaco nem sabe escrever o nome não bebe nem come, não consegue mais bananas trabalha pra bacanas que lucram com sua fome não pagam o que consome e trampa de segurança” Após o refrão falo dos políticos (ratos) eleitos para não fazerem nada (serem morcegos) por pessoas não politizadas (burros). Eles não fazem política, mas somente tiram fotos com seus respectivos números de eleição. A maioria dos candidatos, ou todos eles, conhecemos somente pelo nome, rosto e número, mas não a proposta a que se compromete.
vira vaga-lume e pisca sua lata no mocó”
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`“os ratos são eleitos para serem morcegos roubam o dinheiro de quem vota como burro faz a política o mundo de adesivos e folhetos candidatos são panfletos sorridentes e mudos” Abordo em seguida a homossexualidade entre homens e a entre mulheres “nessa mata ih, ta tudo virado peru casa com veado se dizem da nova era filho isso num gera, mas sinto pena do sapo coitado perdeu pra gata que lambe a perereca” Passo a falar sobre a heterossexualidade dos homens, em especial o momento em que o lado primitivo domina. Na procura de saciar sua lascívia, acham alguém que o faça de graça, pagam para alguém faze-lo ou se satisfazem sozinhos.
obres desses bichos que acham que são humanos raciocinam e fazem planos mas vivem como gado pensam que são o máximo que dominam há anos mas se a porca torce o rabo ninguém quer pagar o pato”
“mas a cobra não sossega, difícil de ficar quieta rasteja por toda selva atrás de uma vaca mas se ela num acha, improvisa e faz a festa ou paga uma merreca por qualquer barata” Enfim a conclusão que o homem é em verdade um bicho, embora pense que seja diferente. Pois vive como um, trata seus semelhantes como bichos, embora não queiram reconhecer e quando se vêm como um bicho, com erros idênticos, não assumem – não pagam o pato. 31
...sei que é difícil, por vezes estou sozinho entristecido, pois a estrada é maior que meu caminho”
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eu amigo Café me apresentou esse instrumental, sendo que
Esse fato salvou a vida daquela mulher. Pensando nessa situação que minha
gosto muito da música sampleada, pedi para ficar com ela, o
revolta não encontra palavras para descrever é que me inspirei para fazer
que de pronto foi concedido.
a rima. A segunda voz não foi utilizada para que se perceba as oscilações
A música sampleada é a “chega de saudade” e começa com a frase: “vai
da primeira voz e assim traduzir mais claramente o sentimento.
minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”. Decidi começar a rima
Ao mesmo tempo em que amo o mundo, o que vejo nele é revoltante e
por um pedaço dessa frase, qual seja: “vai minha tristeza” e fazer uma
me faz odiá-lo, confundindo-me entre o amor e ódio que sinto por ele e
carta ao mundo de como sinto.
como são os dois sentimentos que vão falar nessa “carta”, resolvi iniciar
Não ao mundo como uma coletividade de pessoas e coisas, mas o mundo
por eles. Vejamos:
como se fosse uma pessoa só. Como se o mundo fosse Deus e eu estivesse
“Vai minha tristeza e diga ao mundo que o amo e o odeio
falando com ele.
Que o desespero está nos peitos e bocas vazias
Quando comecei a escrever, eu tinha lido na revista Veja um texto no final da revista. Nele relatava de guerras na África e que chegou uma
escravos desolados rotulados em etnias com dias sem alma e almas sem dias”
correspondência de um jornalista de lá que certo dia estava dentro de um
Aquela mulher estava rotulada por sua cidadania, sendo que se não fosse
ônibus e esse foi parado por um guerrilheiro.
seu conhecimento teria sido executada (escravos desolados rotulados em
O guerrilheiro entrou no ônibus e mandou que todos mostrassem suas
etnias).
carteiras de identidade para que provassem onde nasceram e viviam,
Nessa “vida” que vivem, não só os africanos, mas também os sauditas, não
falando que quem não fosse da mesma cidade que ele estava guerrilhando
são pessoas, mas sim peões em tabuleiros de xadrez. Não possuem vidas,
iria morrer.
mas missões.
Uma mulher tinha a carteira de identidade de outra cidade e ia ser
Faço expressa menção aos líderes e seguidores de grupos como hamas e
executada quando falou que embora tivesse nascido na cidade que
hezbollah quando falo de “diabos que carregam bíblias”, que manipulam
constava no documento, morava na mesma cidade que ele – guerrilheiro –
o sentimento alheio para suas vontades políticas.
tanto é que sabia falar a língua de lá. 35 35
Agradeço, ironicamente, à democracia, pois ela não serve para organizar o poder nesses casos em que somente se lida com os Fatores Reais de Poder – Lei do mais forte. Agradeço aos tanques, balas e facas, demonstrando que são eles que regem o poder. A raiva dos párias (aqueles desprezados pela sociedade) e a bondade da polícia (que representa a força máxima da sociedade que exclui o párea) Questiono qual melhor representação de prepotência senão o atual presidente dos EUA
Nos quartos apertados. Nas salas frias. Embora o amor cresça em poesia ele e sua família são manobra política. Senão bombardeados, esfaqueados por diabos que carregam bíblias viva a democracia, aos tanques, as balas, as facas, a raiva dos párias e a bondade da polícia.”
- Bush. Ele dita quem é párea e quem é polícia. Pessoas como ele vivem enclausuradas em si (seus armários), e como é natural, isoladas do mundo externo. Em certo ponto, por acreditarem que é real o mundo que criaram, crêem em suas conclusões sobre ele, desprezando as demais, como se fossem sábios. Mas o mundo não precisa desses falsos sábios, com idéias que podem ser perfeitas para o mundo imaginário onde foram criadas (fracos para o mundo e forte dentro de seus armários), mas imprestáveis para o mundo real. Ao contrário, precisa de “homens” que o vejam em sua pura e natural realidade e a enfrentem. Em razão disso escrevi as próximas rimas.
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Como dito, essa é uma carta para o mundo. Como só tinha falado mal dele até então, resolvi falar que mesmo assim eu o amo e não o deixarei sozinho. Quando cito que a estrada é maior que meu caminho quero dizer que a estrada a trilhar até que o mundo esteja livre dos problemas apontados é maior que o caminho da minha vida. Que o trabalho é maior do que toda a minha própria repotência torna os homens solitários
vida pode comportar.
fracos para o mundo, fortes dentro de seus armários
Mesmo assim não desisto, pois eu sou o mundo, pois eu faço parte dele assim
crescem para dentro, isolados
como as células do meu corpo fazem parte de mim, que meu microcosmo
é mais necessário verdadeiros homens menos falsos sábios
reflete em seu macrocosmo.
Embora seus defeitos entristeçam o meu peito
“mas sigo, contigo, pode me chamar de amigo
eu te amo e resisto até o ultima rima que escrevo
a minha vida é minha e também dos que tão comigo
eu luto, eu juro, não quero viver de luto
pois faço parte daqui eu sou o próprio mundo
a vida é tão linda, mas como viver é duro
o universo é onde vivo o infinito é onde durmo”
não esmoreço nem fujo, sujo não é impuro eu falho mas eu faço tentando tapar o furo Quero te abraçar, oh mundo chorar de soluçar e rir de perder o ar pois pra ti eu quero tudo
Falo da minha família posto que ela é um grande pedaço do meu mundo, com defeitos, mas que as qualidades são ressaltadas e me dão força para continuar, a “alimentar” essa família e ela, percebendo isso, me dar forças para seguir. “olho pra minha família, porra como eu tenho orgulho as qualidades que eu amo e os defeitos que eu aturo
Sei que é difícil, por vezes estou sozinho
não finjo, sinto tudo. Carrego pelo braço sinto quem
entristecido, pois a estrada é maior que meu caminho”
ta comigo e quem só ta do meu lado”
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Nesse som, que é inteiro emoção, não poderia deixar de falar no alimento desse mundo, o amor. Esse que nos dá “alma”. Que nos dá essência. Que soma
Na segunda parte dessa rima, falo do chicote que maltratava os escravos
à nossa existência a qualidade de “ser”.
de antigamente, sendo que é a ignorância que maltrata os escravos atuais.
Não o amor dos terroristas que o usam justificando seu ódio pelos demais países. Que utilizam o dito amor que detém pela religião, e pelos seus, que chegam a odiar os outros. Sentimento esse que torna atualmente impossível o socialismo, transformando em utopia. “mas por favor perceba o motivo, reconheça a vida sem amor é sem sentido é existência socialismo é lindo tanto quanto é utópico pois usamos o amor pra justificar o ódio” Na próxima rima faço uma comparação clara de como esse sistema de egoísmo não mudou muito. Antigamente deixavam os escravos negros nas senzalas. Hoje não é preciso, pode-se deixá-los em seus próprios países, escravizados pela necessidade de sobreviver, de ganhar a miséria que não os enriquece, mas
Antigamente os escravos detinham ódio pelos seus “donos”, sendo que atualmente querem ser donos também, pois além do ódio possuem ganância. Não querem somente viver, mas querem vencer na vida, perpetuando o mal que condenam. “antes eram senzalas, hoje são países antes eram os negros, hoje é tudo que vive antes eram chicotes, hoje é a ignorância antes era o ódio, hoje é ódio e a ganância” Vendo essa loucura, digo que não posso chamar Deus para me ajudar, pois eles queimam as bruxas. Fazendo menção à Joana D’Arc, que foi canonizada, porém condenada à fogueira por heresia. Não que me sinta Joana D’Arc, longe disso, me refiro que nem sob a religião, que é totalmente diferente de Deus,
somente os mal alimenta.
posso me refugiar.
Da mesma forma a escravidão não parou nos negros, sendo estendida à quase
Quando falo que ladrões são crucificados e crianças dormem nas ruas, me
totalidade dos seres humanos, pois não são somente os negros são tratados como escravos, atualmente, aliás, nem precisa ser humano para ser tratado como escravo, vide bois, galinhas, cavalos, animais do zoológico, que mesmo toda a evolução do homem não conseguiu livrá-los de nossa arbitrariedade com suas vidas.
refiro ao ódio que alimenta a sociedade em punir sempre exemplarmente os criminosos, os crucificando para que todos possam ver, mas ao mesmo tempo são os maiores criminosos, pois, por exemplo, deixam crianças abandonadas nas ruas.
uem eu vou chamar? Deus? Eles queimam as bruxas! Ladrões são crucificados, crianças dormem nas ruas,
Ironizo quando falo em aviões, que conhecemos a lua, previdência, cartão de crédito, pois são invenções modernas e que aparentam evolução, mas não nos resolveram problemas concretos e antigos.
Mas temos aviões e conhecemos a lua
Por fim falo da minha morte como uma parte natural do mundo, pois não
temos mérito! Previdência e cartão de crédito
vou deixá-lo, além das minhas rimas que provavelmente fiquem para mostrar
A morte vence um dia, sei que não vou ficar, mas minhas rimas ficam pra ajudar a mostrar
meu amor por ele – mundo – continuaremos juntos para sempre, pois serei enterrado nele.
aí lembre de mim, e o que fiz pra que mudasse
Como comecei a rima com as primeiras palavras da letra da música sampleada,
me guarde pra eternidade e chega de saudade”
fiz questão de acabar com as palavras que levam o nome dessa música, “chega de saudade”.
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...minhas rimas são linhas...�
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empre gostei de ler poesia e desde que me recordo sempre li poesia.
A rima fala exatamente sobre essa minha visão sobre
Não costumo ler livros de historinhas, pois não gosto de novelas e
poeta e poesia, começando a descrever que uma vez
se gostasse as assistiria na televisão que é bem mais fácil.
sonhei que era poeta. Nesse sonho as palavras falavam
Por sempre ler poesia, rascunhava versos. Meu pai, vendo meu interesse pela escrita me comprou uma máquina de escrever Olivetti que guardo até hoje. Lembro-me que sempre escrevi versos, principalmente para as namoradinhas de época, na máquina de escrever. Mesmo assim, nunca me julguei poeta, hoje ainda penso assim, como será pelo resto da minha vida, pois poeta pra mim é como uma divindade, um dom que já se nasce - o de fazer poesia. Como dito, não me sinto artista. Não me sinto escritor e tampouco poeta. O próprio Drummond não se qualificava poeta e, por falar nele, certa vez escreveu “Procura da Poesia”, que cito trecho: “Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro são indiferentes. Não me reveles teus sentimentos, que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
por si, não precisando que depois que tivesse acabado de escrever, por exemplo, tivesse que escrever mais um texto as explicando – como esse. Pelo contrário, as pessoas que liam conseguiam sentir além do que eu transmiti na “poesia”. “Ontem eu sonhei que era poeta Que vivia de poesia e conversa com as idéias Que os amigos entendiam e iam além da minhas palavras que sentiam o que eu sentia e viviam as minhas falas pois, a poesia é como uma piada tem que ser sentida não pode ser explicada e ela nascia naturalmente dos meus versos que falavam por mim mesmo que eu ficasse quieto”
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.” Logo após eu acordo e percebo que foi um sonho, que o Contudo, por gostar tanto assim de poesia e conviver com ela praticamente toda
que escrevo é amador, texto cheio de erros de ortografia
minha vida é que eu sonho um dia ser poeta, mesmo sabendo que nunca serei.
– para falar o menos. Que não sou nem nunca serei um poeta, que tenho que voltar a vida mundana de trabalhador que toma seu café da manhã bem cedo e vai trabalhar. 47
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Com esse sentimento de negação, tento me concentrar nos afazeres da vida,
“Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam
sem pensar em tentar escrever poesia, contudo, quando me distraio, lá estou
ser escritos. (...) Espera que cada um se realize e consume com seu poder de
eu de novo escrevendo, tentando tornar, inutilmente, meu sonho realidade.
palavra e seu poder de silêncio.”
“Mas quando acordo a tristeza é infinita minhas rimas são linhas cheias de erros de ortografia enfio o café na boca, escovo os dentes e me prometo que as rimas não são minhas, e preciso ganhar dinheiro
Agora se pode passar à leitura do refrão: “e só sonho ser poeta mas acordo suado cansado e coberto de versos
mas eu tenho que lembrar que eu tenho que esquecer
escrevo pelos dias sonho com o texto
sonhos são pra sonhar e a vida é viver só que
poesia está na vida e não no que escrevo
quando me vejo eu já estou escrevendo vivendo o meu sonho, sonhando que estou vivendo”
e só sonho ser poeta
O refrão demonstra a minha ligação íntima com o que escrevo, vez que chego
mas acordo suado cansado e coberto de versos
a dormir e sonhar com meus textos. Mesmo assim isso não os torna poesia.
escrevo o que sinto sinto o que escrevo
Pelo contrário, quanto mais conheço a poesia percebo que ela está longe do
poesia está nas palavras não dentro do meu peito”
que escrevo. O que eu sinto é meu sentimento e tão só. O que eu escrevo é pura tradução do mundo que vejo. Poesia não está no que sinto, mas nas palavras, como bem explica Carlos Drummond, “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia...” “...A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças.”
Percebo claramente a distância enorme que me separa dos poetas. Não posso falar que sou um poeta. Talvez exista poetas que mais me agradam e outros que não tanto, mas se é ou não poeta, não existe meio termo. Como disse, poeta é como divindade, ou um dom que já se nasce e que somente se apura no decorrer do tempo. Charles Baudelaire fazia poemas que dizem ser candelabros, pois, a forma que desenham nas páginas, de tão simétricas, lembravam esse objeto.
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Mas o poema é, ao meu ver, além de tudo, a forma gráfica e ortográfica. A poesia está além daquilo que se lê, está naquilo que se sente quando se lê. Na alma das palavras. Está “entre” cada palavra. Não está no que se disse, mas no que se iria dizer. “não posso admitir que eu seja poeta não depende de mim, já se nasce, não é uma meta poemas são tão lindos com suas formas que não falham poesia está entre as palavras, aquelas que não se falam” Por diferenciar o poema de poesia, meu sonho é o de exatamente fazer poemas e, além disso, faze-los virar poesia. Isto é, dar alma à escrita Sinto, porém, que há poesia no instrumental em que rimo, mas não nas palavras que escrevo, pois são frutos de uma pretensa razão minha (pretenso pensador). Como disse no início, escrevo essas linhas para poder explicar o que quis dizer nas rimas. Isto é, não consigo ser claro o bastante para passar o que quero realmente dizer em simples rimas. Porém, poderia eu “largar essa minha rigidez” e pensar que sou poeta. Seria muito fácil, mas não sou inocente em acreditar em tamanha falsidade. Percebo a realidade e não vivo fora dela. Sou mortal que gostaria de ser imortal, mas não sou ingênuo em
Muitos acreditam que são poetas mesmo que ninguém, e até mesmo eles, consiga entender o que querem dizer. Poetas são tão perfeitos comunicadores que as palavras expressam por si um mundo inclusive além do que o poeta tentou mostrar quando as escreveu. “sonho fazer poemas dos problemas da minha vida e fazer esses poemas virarem poesia adoraria, mas não posso, isso está além de mim longe do que consigo com minhas rimas nesses beats eles sim são poesia, eu só escrevo o que penso pretenso pensador, jogo palavras ao vento e só espero ser entendido muitos dizem ser poetas, mas mal se comunicam porque hoje ta cheio, deixa o ego esvaziar abaixo o queixo, me ponho no meu lugar porque só escrevo palavras, frases poesia tem alma do tamanho da eternidade” Após o segundo refrão eu falo da variedade de poesias, e como me sinto perante uma poesia, o estado de torpor que elas me proporcionam, a paixão que possuo por elas e minha luta para atingir o inatingível mundo dos poetas.
acreditar que minhas palavras escrevem poesia.
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Nas últimas rimas faço analogia a uma poesia de Fernando Pessoa, chamada “Autopsicografia” em que ele descreve um poeta, cujo excerto descrevo: em uns que tocam poesia outros podem esculpi-la Fotografar, pintar e expor na galeriaa
“O poeta é um fingidor.
Ou nos muros que integram a poesia de concreto
Finge tão completamente
Erguidas por pedreiros com cimento escrevem versos
Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente”
invejo os poetas, tanto quanto admiro ao sentir a poesia eu sequer respiro
Assim, como o fingidor de Fernando Pessoa eu também gostaria de ser um. Ser
suspenso no ar, o tempo para um instante
o poeta que ele cita, mas não posso. O título é sonho ser poeta e como acordei
suspiro perdido no sentimento pulsante
de um sonho, ao final da rima não quero mais sonhar para não ter que sofrer. Por isso digo que preciso não dormir, mas adormeço, logicamente, por ser uma
constantemente eu escrevo madrugada a dentro
necessidade biológica, tão quanto, para mim sonhar – em ser poeta.
tento alcançar o infinito com os dedos mas eu só consigo o teclado frio
“mas preciso não dormir e esquecer dos sonhos
fico lento e desisto vou pra cama meu abrigo”
pra agüentar a realidade que carrego nos meus ombros eu não sou um fingidor, mas queria e não minto queria fingir que é dor a dor que deveras sinto”
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Relâmpago brilhou Me mostrou claro e perto Que toda a cidade na verdade É um deserto...
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e tanto ler Fernando Pessoa comecei a duvidar da minha própria existência –
Kant, por sua vez, contribuiu com seu livro a Crítica da Razão Pura, colocando
ou de como encaro ela. Antes mesmo de ler Fernando Pessoa já tinha ouvido
em questionamento a realidade das coisas que conhecemos pela experiência –
falar de Kant.
conhecimento a posteriori.
Em várias passagens tanto do livro “Desassossego” como “o eu profundo e
Conduzido por eles, concluí que tudo o que vejo, sinto e penso é ilusão,
os outros eus” de Fernando Pessoa ele trata da ilusão que é como pessoa,
inclusive eu. Sou qualquer coisa que desconheço, o mundo está aí, tão claro e
referindo-se como o nada em que todo o resto gira em volta:
nítido, porém vou morrer sem saber o que ele é. Sendo tudo uma ilusão, meu
“Eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só
próprio ser é algo que não sei – desconheço. Foi com esse pensamento que escrevi “não sou ninguém”.
para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem.
As primeiras rimas mostram o pensamento acima como um relâmpago que
Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos
brilha e me mostra a realidade da cidade. Que não existe cidade, mas somente
muros, o centro de tudo com o nada à roda.”
um deserto, que os prédios são montes de areia iguais entre si.
Antes mesmo de me debruçar sobre esse texto já tinha lido o heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, em seus poemas inconjuntos:
“Relâmpago brilhou me mostrou claro e perto Que toda a cidade na verdade é um deserto
“Não basta abrir a janela
Que tudo que eu via, que eu vivia não existe
Para ver os campos e o rio.
Ermos montes de areia, que entre si não se distinguem
Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma” Como visto, minha cabeça sempre foi atormentada por esses textos, colocando
Os meus pensamentos errada visão Os meus sentimentos são pura ilusão Falsa impressão desse lugar que chamo mundo “Civilização” chama o nada de tudo”
em constante questionamento a realidade. 57
Nós intitulamos as coisas, colocamos nomes, ditamos suas formas, mas tudo o que fizemos foi inventar, falsear o que já existia. Criamos outro mundo que explicitamente não é verdadeiro. A metafísica vai além, explica exatamente a falsa percepção que temos com nossos sentidos. Por exemplo, que as coisas que vemos como sólidas, na verdade são aglomerados de átomos que, embora tenham espaço entre si, são
Botei o nome de céu e disse que era azul Que ficava em cima e que eu moro mais ao sul Não vivo de verdade, vivo no consenso da mentira Nunca vou saber nem nunca saberia Metafísica me diga me de algum palpite Mas meus dedos não tocam E palavras não exprimem Na verdade elas existem Vivem pensam e falam Eu escuto de longe Os passos dos parágrafos”
impermeáveis. Logo, o que vemos como sólido não é. Na realidade que crio – criamos – tudo é perfeitamente real, sendo, ao meu ver, também real as palavras, que detém vida própria – inclusive escuto seus passos quando andam. O texto coloca a realidade que conhecemos em questionamento. A própria vida como vemos é fruto da nossa imaginação, um estado mental. Kant afirma que nossa mente é tão limitada que não conseguimos imaginar algo que não obedeça ao critério do tempo e do espaço. Assim, o concreto e o abstrato estão limitados ao nosso entendimento, pelo tempo e espaço cerebral. “fugir é estar parado não tem como definir Concreto e abstrato se vida é um estado mental com conceitos vagos presos no tempo e espaço do mundo cerebral”
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Não afirmo, pois não posso, que eu seja uma mentira, mas tenho convicção que a verdade que eu tenho de mim, essa sim, é uma ilusão. Somos uma verdade que não conhecemos e nunca conheceremos – pelo menos me sinto longe, mesmo que estejamos ao lado. Reforço a idéia que nossa realidade é tão inventada quanto os nomes e formas que criamos para as coisas, as quais nunca tiveram nome nem forma definida. O sentimento é uma clara ilusão. O sentimento que temos pela pessoa não está atrelado à pessoa em si, mas sim o que pensamos sobre ela. Logo não amamos a pessoa, amamos a impressão que temos sobre ela. Como não conhecemos sobre a vida, não podemos fazer afirmações sobre além – da morte. Concluo por fim que eu vivo num sonho, que pra mim é real, mas certamente não existe, pois é um sonho. Mas a realidade também é um sonho, são coisas que inventamos, uma percepção falseada pela imaginação. Eu faço parte desse mundo imaginário que vou permanecer ignorante quanto ao seu real
“Nada é verdadeiro também não é mentira É a falsa impressão verdade desconhecida Desde nossa imagem até a nossa voz nunca saberemos o que são fora de nós “As pedras não são pedras nunca tiveram nome Não sabe quem são elas pergunta não se responde Não nunca tiveram forma a não ser aquela que inventamos numa hora mas é falsa a idéia “Nos enganamos, pensamos que amamos, porém só amamos a impressão que fazemos de alguém não conheço ninguém nem sei o que se passa se eu não sei da vida de Deus nem se fala
conteúdo.
Então tudo o que vivo, vê se entende, é tudo um sonho real mas inexistente e nesse mundo de coisas inventadas
Tudo o que sou, inclusive o trabalho que realizei nesse projeto, é um sonho.
eu não sou ninguém e mais nada”
Uma realidade que existe somente dentro de cada um. Eu não sou o que penso de mim, tampouco o que pensam. Eu não sou nada disso. Não sou ninguém.
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FINAL