Jornal da ABI - Memória & Futuro

Page 1


ABI

COM O FUTURO NA MEMÓRIA

A Associação Brasileira de Imprensa, fundada em 7 de abril de 1908, é considerada organização de utilidade pública, nos termos dos decretos 3297, de 11/07/1917, da União, e 1897, de 10/11/1917, do Distrito Federal. Funciona em sede própria, no Edifício Herbert Moses, prédio tombado em 29/05/ 1984 pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, na rua Araújo Porto Alegre, 71(Castelo), Rio de Janeiro (RJ) - CEP 20030010, telefone (021) 282-1292 e fax (021) 2623893. Inscrição no CGC 34.058.917/0001-69. Mesa do conselho administrativo: presidente, Fernando Segismundo;1º secretário, Arthur Ferreira de Souza Filho; 2ª secretária, Maria Lúcia Amaral. Diretoria: presidente, Barbosa Lima Sobrinho, 1º vicepresidente, José Chamilete; 2º vice-presidente, José Gomes Talarico; secretário Conrado Ribeiro Pereira da Silva; 1º subsecretário, Ariosto da Silva Pinto; 2º subsecretário, Paulo Motta Lima; tesoureiro, José Teixeira Peroba; subtesoureiro, Oliveiros Litrento; diretor da biblioteca, Reinaldo Santos ; diretor da sede, Henrique Miranda; diretor de atividades culturais, Ary Vasconcelos. Representante em São Paulo: José Marques de Melo - tel: (011) 883-6591. Representante em Brasília: Carlos Chagas - tel: (061)248-0604.

Os 500 anos da chegada dos portugueses a essa terra, sem dúvida, marcaram a escolha do caráter histórico desta edição. Mas como limitar o ângulo da pauta, mesmo que arbitrariamente já restrita aos últimos 50 anos? Com ajuda "futurista" pudemos ampliar e democratizar a decisão. Os usuários do espaço da Associação Brasileira de Imprensa na Internet escolheram 10 entre os mais importantes veículos que ficaram, embora desaparecidos, na memória dos últimos 50 anos.

Mesmo assim há que se ter otimismo na previsão de que sempre existirá espaço para o bom e velho jornalismo, para a função social de informar, em todas as iniciativas que produzem os novos caminhos dos processos de comunicação. Na surpreendente Internet, que vem alterando métodos em todos os veículos sem deixar de ser, ela mesma, veículo concorrente e complementar, o caráter de serviço é sempre exaltado, até quando sobressai o sentido comercial. Longe de ser amplamente acessível num país de mais de cinco séculos de analfabetismo e desigualdades sociais, é inegável o processo de modificações que propiciou e vivenciamos, meio que sem saber o fim.

O resultado de "Você é o pauteiro!", com a respectiva votação, embute comuns constatações entre as várias possíveis versões, além das que publicamos, por deferência de seus autores. O sucesso e o fracasso mantêm relação direta com a boa e a má reportagem, com o atendimento ou o desprezo ao anseio do público. Já a sobrevivência e a morte, muitas vezes, não dependeu da vontade de quem fazia ou consumia, mas da força de quem detinha o poder político e econômico, não fossem eles sempre amalgamados pelos mesmos interesses.

JORNAL DA ABI EDIÇÃO ESPECIAL 2000 Concepção e coordenação geral de projeto, André Motta Lima; diretor responsável, Barbosa Lima Sobrinho; conselho editorial, Ana Arruda Callado, André Motta Lima, Carlos Chagas, José Augusto Ribeiro e José Marques de Melo; editor, André Motta Lima (Departamento de Intecâmbio e Divulgação da ABI); produção e reportagem, Rafael Porto; revisão, Adriana Matos Andrade Pires; projeto gráfico e editoração, Cecília Castro; digitação, Queli Cristina; apoio administrativo, Tharcisio Pires ; estagiários (Convênio ABI-Universidade), Antony Devalle (jornalismo-UERJ), César Guerra Chevrand (jornalismo-UERJ) , Leandro Figueira (relações públicas-UERJ); colaborador, Carlos Braga; suporte de informação, Biblioteca Bastos Tigre (ABI12º andar); comercialização, Casa do Vídeo - tel: (21) 262-3011 / 282-1292 r:217 e-mail: casadovideo@yahoo.com e Vilarde Comunicações - tel: (21) 567-0874 - e-mail: vilarde@uol.com.br. Esta edição especial anual é distribuída nos principais locais de trabalho em comunicação social de todo o país e é enviada, gratuitamente, em mala direta, a todos os sócios da ABI e a deputados, senadores, ministros de estado e à Presidência da República. Também é distribuída em escolas de Comunicação Social e enviada a bibliotecas, a sindicatos e associações de jornalistas e a embaixadas brasileiras. É, ainda, expedido a sindicatos e associações de jornalistas no exterior. Tiragem desta edição especial: 15.000 exemplares. Fotolitos e impressão: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro - Rua Marquês de Olinda, 29 - Niterói. CEP 24.030170. Tel: (021) 620-1122.

As novas tecnologias, que promovem e ditam mudanças, não podem prescindir da memória – RAM, ROM ou simplesmente histórica – para garantir futuro sólido. E é com a lembrança da nossa memória que podemos, pelo menos, melhor julgar o que se faz por este incerto futuro, onde o passado fica cada vez mais perto de ontem, como se fora aquele costume jornalístico de associar o fato ao ocorrido, atitude cada vez mais rara hoje em dia, quando tudo acaba de acontecer ou está acontecendo.

Irônica é a constatação de que, nem sempre, se faz óbvio o conceito que atribui às lições produzidas pela história, e preservadas na memória, a capacidade de melhor moldar o futuro. Reduz-se às nossas próprias opiniões o espaço do maniqueísmo para explicar os sucessos. Afinal, as grandes audiências cada vez mais são construídas a partir de planejados métodos de massificação.

André Motta Lima Departamento de Intercâmbio e Divulgação Associação Brasileira de Imprensa

. ELEITA A MELHOR TRANSPORTADORA DE CARGA AÉREA DAS AMÉRICAS . ELEITA PELA SEXTA VEZ CONSECUTIVA A MELHOR TRANSPORTADORA DE CARGA AÉREA DO BRASIL.

www.varigcargo.com.br

OS JORNALISTAS DE SÃO PAULO, BRASÍLIA, BELO HORIZONTE, RECIFE E PORTO ALEGRE RECEBEM ESTA EDIÇÃO ESPECIAL DO JORNAL DA ABI COM O APOIO DA VARIG CARGO. ○

2 ○

Jornal da ABI


"A MEMÓRIA DE ALGUNS PODE Barbosa SER FRACA, MAS A HISTÓRIA SE L i m a ENCARREGA DE NOS COLOCAR Sobrinho Crônicas de esperança TODOS DIANTE DOS FATOS" de 23/11/19 a 5/6/99 de uma enorme pobreza em todo o território brasileiro, existiam alguns focos de defesa da consciência nacional. Eram poucos. Mas o vigor de seu entusiasmo e o eco que alcançavam na opinião pública eram suficientes para levarem adiante essas manifestações cívicas nacionais. Uma dessas campanhas memoráveis foi a do "petróleo é nosso", que conseguiu mobilizar toda a opinião pública brasileira. Daí surgiu a Petrobras que, contrariando todos os derrotistas, veio a descobrir e extrair petróleo num país condenado pelos donos do ouro negro como incapaz de ter essa riqueza. Não menos expressivas foram as campanhas para a formação da Vale do Rio Doce e a da fundação em Volta Redonda da Companhia Siderúrgica Nacional, hoje duas das maiores empresas do mundo em seus setores. Empresas vitais, base indispensável para um país que se pretendia independente e que, na ocasião, se encontrava no prefácio da industrialização. A criação da CSN chegou a ser motivo de discórdia do Brasil com os Estados Unidos, levando Getúlio Vargas a ameaçar que o país poderia se alinhar com as forças da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. E se o Brasil pôde ir à guerra, tendo tantos de seus pracinhas perdido a

Numa iniciativa de Luiz Magalhães Melo, presidente da Academia Pernambucana de Letras, acaba de ser editado no Recife o livro"Crônicas da Juventude". São trabalhos literários de minha autoria, artigos publicados entre 1919 e 1920 no Jornal do Recife que, ao recordá-los em releitura, deixam-me uma espécie de sensação do tempo decorrido, lá se vão 80 anos, um espaço em que muita coisa mudou substancialmente no Brasil. A memória de alguns pode ser fraca, mas a história se encarrega de nos colocar todos diante dos fatos reais. E muitas campanhas se passaram nesse espaço de tempo, deixando modificações profundas na vida brasileira. Ainda tenho presentes na memória, por exemplo, as lutas cívicas que deram origem à fundação tanto da Petrobras como da Vale do Rio Doce e da Companhia Siderúrgica Nacional. Tempos difíceis em que o país era outro, muito incipiente não só economicamente, mas também em quase todos os setores da vida nacional. Não havia um parque industrial, nenhuma política traçada nesse sentido, nem centros de tecnologia expressivos, educação ampla e sequer estudos consistentes sobre desenvolvimento industrial. Mas ao lado de todas as carências, inclusive com o peso opressor

relativamente estável. Chega a doer saber que essa política, originária do Sr. Fernando Collor, servilmente seguida pelo Sr. Fernando Henrique, arma-se de um artificio injustificável e vende todo esse patrimônio como se descontasse um cheque na esquina. Tranqüila e descaradamente. Por preços aviltados e, pior, sem consultar o legítimo dono desse patrimônio, que é o povo brasileiro. Pergunto-me se bastaria um plebiscito para legitimar essas privatizações, sobretudo levando-se em conta que o Brasil foi à guerra, teve mortos os seus pracinhas, depois sofreu perseguições e prisões, tortura, tantos brasileiros desaparecidos, e tudo, em tantos anos, para se ter riquezas como essas como base industrial indispensável. Uma base que, mesmo subsistindo em mãos particulares, perde o sentido de brasilidade e de símbolos nacionais, o que lhes conferia a confiança de que o futuro de nossos filhos e netos se daria num país mais forte, independente e generoso. E tudo se vai num roldão de "apressados" (e onde há pressa, há desperdício), não se respeitando o povo brasileiro sequer com o direito de um plebiscito! O mínimo que merecemos ter! Às vezes penso se seria necessário ultrapassar os 100 anos para presenciar tais descalabros. Mas não quero ser pessimista. Ainda acredito que iremos conquistar uma verdadeira consciência nacional, um sentimento de dever na luta em defesa do interesse público. E conto com a esperança que me acompanha há tanto tempo. Vou encontrá-la, por exemplo, até num dos meus artigos publicados em 1919, incluído no livro citado. Leio na página 34: "Que força maior no mundo poderá haver que a da Esperança? Não é ela que tem criado os grandes dias, os grandes homens, as grandes épocas e os grandes povos? Esperança e Ideal são dois nomes da mesma força de elevação e luta. E por que não a ouviremos? É a voz suave das sereias lembrando os prazeres irresistíveis e a absoluta felicidade. Harpagão seria pessimista: eu acredito que o pessimismo explorador e céptico tem azinhavre nas mãos. A esperança radiosa é como a Mãe d’Água em cujo seio vale um gozo sem termos de entregar-lhe a vida."E pulo à última frase dessa crônica, de 23 de novembro de 1919: "Porque tenho observado que só há beleza, patriotismo, glória, elevação e entusiasmo no regaço da Esperança - mãe dos belos feitos e das belas coisas." (05/06/1999)

vida, muito contribuiu para concretizar essa possibilidade o fato de o país ter criado essas duas mega-empresas, num mundo conturbado em que se desejava para nós um futuro apenas agrícola, nunca industrial. Um futuro de dependência eterna. Também não posso deixar de citar que até os governos militares, excluindo sua ação nefasta contra direitos humanos e democracia, pelo menos souberam cuidar, praticamente criar e desenvolver setores também básicos, como a expansão da geração de energia, das telecomunicações, que, com poucas exceções, levaram o país ao rol das grandes nações nesses setores. Custa-me um certo desconforto pensar o quanto pagamos por todo esse esforço. Quantas lutas, dissabores, mortes e tragédias fomos obrigados a pagar para se ter a base indispensável de um crescimento real. Imagino o número de famílias de brasileiros que pagaram até com o próprio sangue para termos esse pais viável e apto para o desenvolvimento que todos almejamos. Mas, confesso, custa-me um desconforto muito maior, muito mais cruel, ver que hoje estamos jogando fora todas essas conquistas a troco, segundo o governo, de apenas manter uma moeda

O livro de consulta diária dos jornalistas Os sócios da Associação Brasileira de Imprensa e profissionais dos principais veículos e locais de trabalho do Brasil vão receber, além da edição especial do Jornal da ABI, uma publicação essencial para quem produz notícia todo dia. Datas e Fatos relaciona a cada um dos 365 dias do ano o fato relevante, o acontecimento com aquela pessoa famosa, a boa idéia para a reportagem da edição daquele dia. Inclui também as datas móveis, os santos do dia e as diárias homenagens a cada profissão. Um livro para o dia-a-dia dos jornalistas. PATROCÍNIO: APOIO:

REALIZAÇÃO:

ABI ○

MEMÓRIA E FUTURO

3 ○


A HISTÓRIA NARRADA POR QUEM FAZ A HISTÓRIA A Associação Brasileira de Imprensa, em convênio com a Fundação Museu da Imagem e do Som, realiza o Projeto Memória do Jornalismo, desde 1995. O objetivo desta iniciativa é resgatar e preservar, em áudio e vídeo, a história da imprensa do Brasil. Através de depoimentos orais de personagens de nosso jornalismo ou de mesas temáticas, ficam registradas também histórias dos veículos de comunicação brasileiros. Além de preservar o passado, os depoimentos do Projeto Memória do Jornalismo Brasileiro são excelente fonte para estudantes e pesquisadores. No sítio da Associação Brasileira de Imprensa na Internet (http:// www.abi.org.br), pode ser encontrada uma lista completa dos depoimentos do projeto, todos introduzidos por uma ementa, informando quais temas foram abordados pelos depoentes. Em alguns casos, está disponível um pequeno trecho sonoro em

que o depoente narra algum fato engraçado ou relevante. Também foram incorporados ao acervo gravações de eventos significativos e o material do Centro de Memória do Jornalismo da ABI, que, de 1977 a 1982, produziu depoimentos e pesquisas temáticas. Para ter acesso à íntegra dos depoimentos, basta entrar em contato com a Fundação Museu da Imagem e do Som e marcar hora para a audição. As gravações são sempre abertas ao público. Para receber boletins, contendo informações como a data dos novos depoimentos, cadastre-se no sítio da ABI. Veja a lista de depoimentos colhidos até abril de 2000.

munha ocular da história”. Chacrinha, Marlene, Mário Lago, Millôr Fernandes, Renato Murce, Francisco Borelli Filho, Pixinguinha e Donga são outros grandes nomes que já deixaram sua voz e parte de suas memórias gravadas no MIS. São mais de 700 depoimentos de personalidades da música, do rádio, da televisão, das artes plásticas, do teatro, etc. Desde o início dos anos 90, existe dentro do MIS um Núcleo de História Oral, inaugurado pelo Museu para sistematizar a coleta de novos depoimentos, responsabilizandose pela produção de áudio e vídeo. Utilizando métodos modernos de gravação e conservação de arquivo, o MIS assegura para as próximas gerações o direito de conhecer sua história, através do método mais antigo de transmissão de conhecimentos de que se tem notícia: a fala.

Nos arquivos, mais de 700 depoimentos O Projeto Memória do Jornalismo não é a única fonte de informações que o MIS possui na área de comunicação. O arquivo da Rádio Nacional, por exemplo, é uma prec i o s i d a d e p r eservada pelo Museu. Qualquer pessoa pode marcar uma hora para escutar alguns dos t r e c h o s d o famoso "Repórter Esso", com Heron Domingues, “teste-

ABI

O ACERVO DO PROJETO MEMÓRIA DO JORNALISMO Segismundo e José Gomes Talarico), em 30/08/99. -Armando Ferreira Peixoto, em 23/04/96. -Barbosa Lima Sobrinho, em 04/09/84, 07/02/92 e 09/10/92. -Breno Caldas, em data desconhecida. -Cobertura das Copas do Mundo - jornal (Achilles Chirol), em 23/03/98. -Cobertura das Copas do Mundo - rádio (Orlando Batista e Luiz Mendes), em 04/04/98. -Colunismo social (Ricardo Boechat, Ancelmo Gois e Maneco Müller), em 26/03/97. -Correspondentes estrangeiros (Armando Strozenberg e Paulo Totti), em 28/05/97. -Edmundo Moniz, em data desconhecida. -Elmano Cardim, em 08/01/74. -Fernando Barbosa Lima, em 14/12/98. -Fernando Gabeira, em 17/05/68. -História da ABI (Barbosa Lima Sobrinho, Henrique Miranda, Armando Peixoto e Fernando Segismundo), em 24/03/95. -História da Rádio JB AM (Carlos Lemos, Cléver Pereira e Mauritônio Meira), em 05/04/2000. -História do Diário de Notícias (Fernando Segismundo, Mário Barata, Maria Lúcia

Amaral, Tobias Pinheiro e Nilo Dante), em 23/07/96. -História dos Diários Associados após a morte de Assis Chateaubriand (Paulo Cabral, com a participação de José Chamilete, Nilo Dante e Cícero Sandroni), em 19/03/96. -História do rádiojornalismo (Augusto Villas-Boas e Laerte Rimoli), em 03/03/95. -História do semanário Movimento (Ricardo Bueno, Maurício Azêdo, Chico Caruso e Cássio Loredano), em 22/10/90. -História do semanário O Pasquim (Sergio Cabral, Jaguar e Ziraldo), em 27/11/96. -História do semanário Opinião (Fernando Gasparian, Eduardo Ulup e Helena Salem), em 26/07/96. -Jair Samuel Carlos, em 15/05/68. -Joel Silveira, em data desconhecida. -Luiz Bueno Filho, em 14/10/70. -M. F. Nascimento Brito, em 24/10/95. -Marcello Alencar, em 16/04/98. -Mário de Moraes, em 21/05/96. -Mauritônio Meira, em 27/07/98. -Osny Duarte Pereira, em 29/05/96. -Paulo Duarte, em 16/12/78.

-Paulo Motta Lima, em 15/09/93. -Pompeu de Souza, em 08/04/78 -Prudente de Moraes Neto, em 14/12/72 e em 1977. -Raimundo Magalhães Junior, em 23/01/79 -Raul Riff, em data desconhecida. -Reforma editorial e gráfica do Jornal do Brasil (Ana Arruda, Carlos Lemos; Derly Barreto, Ferreira Gullar, Jânio de Freitas, José Ramos Tinhorão, Nelson Lontra Costa e Odylo Costa, filho), entre janeiro e março de 1977. -Reportagem policial (Albeniza Garcia, José Cortes dos Santos, Luarlindo Ernesto da Silva e Bartolomeu Brito de Souza), em 30/04/97. -Reunião do Conselho Administrativo da ABI (Homenagem aos 20 anos da morte do jornalista Wladmir Herzog), em 25/10/96. -Reunião do Conselho Administrativo da ABI (Impedimento do Presidente Collor), em 25/08/92. -Samuel Wainer, em data desconhecida. -Seminário Internacional de Jornalismo e Comunicação, em 21/08/75. -Sílvio Terra Pereira, em 01/03/73. Criação: CASA DO VÍDEO

-I Seminário de Técnica de Jornalismo (Alberto Dines, Aloysio Biondi, Anderson Campos, Armando Nogueira, Armando Strozemberg, Evandro Carlos de Andrade, Flávio de Brito, Ivanir Yazbeck, José Itamar de Freitas, Justino Martins, Nelson Silva, Raimundo Rodrigues Pereira, Villas-Bôas Correa e Walter Firmo), em maio e junho de 1975. - IV Seminário de Jornalismo, em 12/04/77. -A imprensa nos anos 20 (Afonso Várzea, Amilcar de Castro, Armando Ferreira Peixoto, Alvarus, Barreto Leite Filho, Hélio Silva, José Maria dos Reis Perdigão, Luís Werneck de Castro, Manuel Gonçalves, Mário Magalhães, Miguel Costa Filho, Orígenes Lessa, Paulo Motta Lima e Paschoal Perrone) , entre 1977 e 1979. -A mulher no jornalismo (Maria Cláudia Bonfim, Ana Arruda Callado, Walda Menezes e Gilda Chatagnier), em 13/08/97. -A participação da ABI nas lutas por anistia (Iramaya Benjamin, Fernando

www.abi.org.br também tem

neste veículo

A Volkswagen patrocina o sítio da Associação Brasileira de Imprensa na Internet ○

4 ○

Jornal da ABI


Estrondoso sucesso editorial, até hoje é referência em vendagem e qualidade jornalística. Pela primeira vez, a reportagem como sucesso, criando estrelas e critérios eternos.

1

(83%) NOV.1928 JUL.1975

NA REPORTAGEM, RAZÃO DE ASCENSÃO E QUEDA Mário de Moraes A revista O Cruzeiro foi, possivelmente, o maior fenômeno editorial brasileiro. Para que se tenha uma idéia da sua importância, é bastante que se informe que, na década de 50 - quando ela atingiu o apogeu -, chegou a vender, em média, 700 mil exemplares semanais, para uma população de 50 milhões de habitantes. E num número especial, dedicado ao suicídio de Getúlio Vargas, alcançou 800 mil, obrigando a uma segunda rodada. Muitos apressadinhos hão de dizer que hoje em dia existem revistas que chegam a uma tiragem bem maior. Primeiro, é preciso comparar a população daqueles ontens com a de hoje; segundo, O Cruzeiro não tinha assinaturas. Era tudo venda em banca. Existem muitos exemplos do prestígio desfrutado por O Cruzeiro. Daremos apenas um. Em 1958, quando nosso país sagrou-se, pela primeira vez, campeão mundial de futebol, na Suécia, na volta ao Brasil, nosso selecionado foi recebido com uma festa nunca vista. O presidente Juscelino, num palanque montado na Avenida Rio Branco, aguardava a chegada da delegação vitoriosa. Mas esperou bastante, pois, antes, ela foi, direto do Galeão, para a sede de O Cruzeiro, na Rua do Livramento (Gamboa), onde se encontravam os familiares e amigos dos jogadores. O semanário possuía uma das melhores equipes de reportagem, que ganhava salários bem acima dos pagos pelos demais veículos de comunicação. Ela fora até batizada, por David Nasser, como “esquadrão de ouro”. Naquela época, raro o jornalista que não sonhava em trabalhar em O Cruzeiro. UM CASTELO NA FRANÇA Seus profissionais faziam por merecer o que recebiam, semanalmente dando furos nacionais - e até internacionais - no resto da imprensa. Pouco espaço era reservado aos assuntos de conhecimento geral, fartamente divulgados pelas rádios, jornais e TVs. Os repórteres de O Cruzeiro preferiam criar suas próprias reportagens, muitas vezes saindo na frente da própria televisão. Em 1955, quando lançaram o Prêmio Esso, foram dois profissionais de O Cruzeiro - este que vos escreve e o falecido Ubiratan de Lemos - que o ganharam, disputando com 199 outros concorrentes. Além dos correspondentes estrangeiros, seus repórteres viajavam por todo o mundo. De certa feita, havia mais de 20 no Exterior.

MEMÓRIA E FUTURO

Para não fugir ainda mais do objetivo deste trabalho, que é contar porque O Cruzeiro desapareceu, comecemos pelo ano de 1959, quando Assis Chateaubriand, o manda-chuva dos Diários e Emissoras Associados, resolveu enfrentar a revista norte-americana Life, através de uma edição internacional de O Cruzeiro, editada em espanhol. Tudo parecia estar a seu favor. Entre outras coisas, o fato dos jornalistas brasileiros se comunicarem melhor com os leitores dos outros países da América Latina. Tanto que, em pouco tempo, O Cruzeiro Internacional atingiu 300 mil exemplares. Só na Argentina, ela chegou a vender 150 mil, quando a revista de maior tiragem do país não alcançava 30 mil. Para que tivesse sucesso, no entanto, O Cruzeiro Internacional precisava conseguir anúncios das multinacionais que, além da venda em bancas, garantiriam a sua sobrevivência. Para isso, Chatô acreditava contar com o prometido apoio do Departamento de Estado norteamericano. Só que este, pressionado pela Life, tirou o corpo fora. Por essa época, os Diários Associados atravessavam péssima situação financeira. Imprevidente, o “grande capitão”, além de investir pesado no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MASP - já que os chantageados empresários que o sustentavam negavamse a colocar mais dinheiro nele -, comprara por 60 milhões de francos o Chateau D’Eu, castelo que pertencera à princesa Isabel, na cidade de Eu, na Normandia, lá instalando a Fundação D. Pedro II. Embora alertado pelos companheiros de direção principalmente por João Calmon, que lhe escreveu longa e dura carta a respeito -, Chatô praticamente esvaziou os cofres de suas empresas. O dinheiro que seu sócio maior, em O Cruzeiro, Leão Gondim de Oliveira, reservava para a modernização do envelhecido parque gráfico do semanário escoou pelo ralo das loucuras de Chateaubriand. Houve, é bem verdade, uma tentativa de trocar a máquina de impressão, mas a nova, adquirida por quem não entendia do riscado, nunca funcionou corretamente. E quem agüentou a carga até o fim foi uma idosa Hoe, alemã, que de tão grande que era, quando O Cruzeiro fechou as portas, teve que ser cortada em pedaços e vendida como ferro velho.

"As coisas começam a se complicar e Leão Gondim, que proibia a publicação de matérias-pagas em O Cruzeiro, entrega os pontos e elas entram aos borbotões. Pecado maior: ele oferece, àqueles que as trouxerem, 20% de comissão. Os leitores, porém, não eram tolos."

diretor de redação de O Cruzeiro, podemos garantir que a revista dos Bloch pouco ou nada influía na nossa vendagem. Isto porque elas se destinavam a públicos bem diversos. Para simplificar as coisas, podemos dizer que O Cruzeiro se destinava às classes B, C e um pouco da D. Por vezes, alguns de seus assuntos interessavam à classe A. Já a Manchete, bem mais sofisticada, atingia principalmente a classe A, e, normalmente, chegava à B. Uma importante causa para a derrota de O Cruzeiro foi o excesso de anúncios. Isto poderá parecer contraditório, mas nós explicamos. É sabido que, para uma revista, o ideal é que os anúncios ocupem, em média, um terço de suas páginas. Os outros dois terços devem ser reservados às matérias redacionais. No início da década de 50, as mais importantes agências de publicidade disputavam o espaço de três das quatro capas de O Cruzeiro, muitos anunciantes tendo que esperar meses até poder ocupá-las. Fora as páginas internas, por vezes inferiores à demanda. Isto fez

PRINCIPAIS CAUSAS Muitos apontam a concorrência da Manchete como um dos fatores da débâcle de O Cruzeiro. Nada disso. Nós, que fomos repórter, chefe de reportagem e

com que crescesse, além do normal, o número de anúncios. Algumas edições foram para as bancas com quase 50% de publicidade. Como o semanário vendia bem e o dinheiro jorrava, a direção ficava satisfeita. Década de 60. As coisas começam a se complicar e Leão Gondim, que proibia a publicação de matérias-pagas em O Cruzeiro, entrega os pontos e elas entram aos borbotões. Pecado maior: ele oferece, àqueles que as trouxerem, 20% de comissão. Boa parte dos repórteres do semanário larga pra lá seu costumeiro trabalho e passa a agenciar matérias-pagas. Com apenas duas páginas de O Cruzeiro, eles recebiam o equivalente a alguns meses de salário. Alguns chegaram, com isso, a fazer um ótimo pé-de-meia. Os leitores, porém, não eram tolos. Embora O Cruzeiro não colocasse, em suas matérias-pagas, o tradicional “Informe Publicitário”, eles não iam na conversa e compreendiam que aquelas reportagens, enaltecendo este ou aquele político, tinham um texto exagerado ou mentiroso. Isso, é óbvio, refletiu na tiragem, que passou a cair vertiginosamente. Boa parte dos repórteres, pertencentes ao ‘’esquadrão de ouro’’, vendo o barco afundar, tratou de abandoná-lo, procurando outros e mais seguros mares. Até David Nasser, que tinha força de venda, transferiu-se para a Manchete O final de O Cruzeiro, mergulhado em dívidas, era só questão de tempo. No início da década de 70, ele cerrou as portas. Hoje, os Diários e Emissoras Associados continuam nas mãos do Condomínio Acionário, criado por Chateaubriand. Felizmente, após uma desastrada administração comandada por João Calmon - na verdade, como senador, Calmon preocupava-se mais em divulgar seu (bom) projeto de educação -, o comando foi entregue a Paulo Cabral, que realmente entende do assunto. Atualmente, entre outros veículos pertencentes aos Associados, podem ser destacados alguns jornais, como o excelente Correio Braziliense (DF) dirigido pelo competente Ricardo Noblat , o Jornal do Commercio (RJ), o Diário de Pernambuco (PE) e o Estado de Minas (MG), além de umas poucas rádios, como a Tupi (RJ), que conseguiram se salvar do desastre total. E mais, estamos certos, Paulo Cabral fará, impedindo que o mercado de trabalho para nós, jornalistas, fique ainda menor.

5 ○

Mário de Moraes, jornalista, foi repórter premiado, chefe de reportagem e diretor de redação de O Cruzeiro.


NA LEMBRANÇA, UMA HISTÓRIA DE MUITOS NOMES

Ary Vasconcelos O jazz era meu mundo em 1945, isto é, quando eu tinha apenas 19 anos de idade. Freqüentava, então, o Colégio Zaccaria, onde terminava meu curso científico e pretendia, tal como meu colega de turma, Guido Vittorio Lusa, enveredar pela química industrial a dentro. Mas uma conversa com meu tio, Armando de Moura Carijó, atrapalhou todo esse plano. Durante uma viagem de trem para Angra dos Reis, deu-me o conselho de entrar para a Faculdade Nacional de Direito e, no momento certo, fazer exame para o Itamarati. Pensei, pensei, e... topei a parada. Tinha somente que dar uma guinada rápida e estudar mais português e as línguas exigidas: francês, inglês e latim. Conversei com o Prof. André Ceccarelli, meu professor de desenho, que me levara para ser ator no teatrinho organizado por ele no próprio colégio e que se ofereceu para me preparar em latim. Meti a cara nos livros e cadernos e... não é que passei? Nota: 5,61. Mas, como disse, eu vivia mais para Louis Armstrong do que para Cícero e Savigny. O jazz pulsava em meu sangue, tal como no de meu amigo Sylvio Tullio Cardoso, que morava também em um edifício da Esplanada do Castelo - eu no Beira Mar, ele no Aníveia. No início de 1943, começávamos a mandar notas jazzísticas

para Edmundo Lys, que as publicava em O Globo, sob o título de “Um Pouco de Jazz”. E, a partir de julho daquele ano, Celestino Silveira, que dirigia “A Cena Muda”, ofereceu-nos uma seção na revista Swing Fan. O sucesso foi tanto que passamos a organizar também o programa “Swing Cocktail”, transmitido em rede pela rádios Tupi e Educadora e apresentado pelo locutor Raul Brunini. Até abril de 1944 trabalhei com Sylvio, quando interrompi minha colaboração. Mas, já no início de 1946, a convite de Freddy Chateaubriand, sobrinho do Dr. Assis, retornava ao jornalismo com uma seção em A Cigarra. Título sugerido por Millôr Fernandes: “Aqui Jazz” . Na mesma revista, fui publicando outras matérias, até mesmo dois contos: “O Erro de Prometeu” e “Morrer...Dormir”. E ali com a “Ronda da Cinelândia” fiz minha estréia de crítico cinematográfico. Com Millôr Fernandes, Leon Eliachar, Hélio T. Fernandes, J. Rui, Péricles Maranhão e Carlos Estevão, criamos em O Jornal uma seção humorística: “Um Dia atrás do Outro”. Durante cinco meses, isto é, de outubro de 1946 a maio de 1947, substituí Fernando Lobo, redigindo a seção “Background” em O Cruzeiro. Em fins de 1947, Freddy Chateaubriand nomeou-me assistente de A Cigarra. Mas já em janeiro de 1948 eu substituía Luís Alípio de Barros,

"Guardo uma recordação inesquecível: a chegada de Assis Chateaubriand à redação. No prédio antigo, de chapéu Gelot, foi cumprimentando, com a mão direita estendida, todas as pessoas presentes, desde o porteiro e os contínuos ao diretor da revista, Accioly Netto."

como secretário-redator-chefe de A Cigarra. Dessa época, guardo uma recordação inesquecível: a chegada de Assis Chateaubriand à redação. No prédio antigo, de chapéu Gelot, foi cumprimentando, com a mão direita estendida, todas as pessoas presentes, desde o porteiro e os contínuos ao diretor da revista, Accioly Netto. Em maio de 1952, fui transferido de A Cigarra para O Cruzeiro, tornando-me assistente do Dr. Accioly. Uma de minhas atribuições iniciais era dar títulos e subtítulos, fazer as legendas das fotos das reportagens de David Nasser e Jean Manzon, Luciano Carneiro, João Martins, Renato Bittencourt, Ubiratan de Lemos. Entre 1952 e 1966, escrevi reportagens tornadas memoráveis, entre elas a do ballet “Quarto Centenário de São Paulo”, em 1954, “Disque J para Jardel (Filho)” e a do XXVI Congresso Eucarístico, entrevistando metade dos cardeais presentes (os demais ficaram por conta de Mário de Moraes). Com o velório de Carmen Miranda, em que entrevistei todas as personalidades presentes (Assis Valente, Almirante, César Ladeira, Ary Barroso, Pixinguinha, Mário Reis, etc.), liguei para sempre meu nome à música popular brasileira. Mas escrevi dezenas de outras reportagens como “Pancetti e Seis

ANÚNCIO PREFEITURA DO RIO

6 ○

Jornal da ABI


Vinténs”, “O Escândalo do Barroco” e procedi a dezenas de entrevistas com as mais diversas personalidades, muitas delas por mim mesmo fotografadas: Bené Nunes, Francisco Carlos, Leny Erversong, Maysa, Sylvinha Telles, Dolores Duran, Nana Caymmi, Sônia Delfino, Sônia Dutra, Tônia Carreiro, Teresa Rachel, Dizzy Gillespie, Mário Del Monaco, Hellen Merril, Aldous Huxley, Lena Horne, Dorothy Dandrige, Helô Amado, Julie London. Nessa época, convivi com os maiores nomes da reportagem da época, como Luís Carlos Barreto (tal como Indalécio

Wanderley, lançado por mim em A Cigarra) Carlos Gaspar, Jorge Ferreira, Mário de Moraes, João Martins, Luciano Carneiro, Neil Ferreira. Fotógrafos? Mil: Edgar Medina e Baratta (ambos em final de carreira), José Medeiros, Pierre Verger (com quem me relacionei mais em Salvador, onde ele morava), Henri Ballot, Flávio Dam, Indalécio Wanderley, Geraldo Viola, Keffel Filho, Eugênio Silva, Badaró Braga, Douglas Alexandre e seu irmão Rubens Américo (ambos cedo falecidos), Luís Alfredo, Antônio Rudge, Antônio Ronek, etc. E uma turma de grandes paginadores,

a começar por Milton D‘Ávila, Walter Teixeira, Belmiro Pires, Pedro Guimarães, Miguel Ângelo, Pedro da Rocha Lemos. Ilustradores fantásticos: Enrico Bianco, Appe, Péricles Maranhão (criador do “Amigo da Onça”) Ziraldo, Borjalo, etc. Redatores de primeira: José Cândido de Carvalho, Eurilo Duarte, Rocha Filho, Alvares da Silva, Jânio Freitas e Cipião Martins Pereira (que reencontrei mais tarde no JB). Os revisores, primeiro chefiados por Herberto Salles, depois por João Otávio Facundo, entre eles Ferreira Gullar. E os titulares das diversas seções: Millôr

Fernandes, Sylvio Alves (charadista; tinha fobia do elevador, portanto ficava sempre na portaria), Gilberto Trompowsky (society), Theóphilo de Andrade, Vargas Netto, João Condé, Armando Paiva, Carlos Estevão. De cada um deles, vários tornados grandes amigos meus, teria mil histórias para contar. Mas histórias que, a rigor, já constituem outra história. Ary Vasconcelos, conselheiro e diretor de atividades culturais da ABI, trabalhou durante 30 anos em O Cruzeiro, onde chegou a assistente de direção.

DE COMO TUDO COMEÇOU, SEGUNDO FERNANDO MORAIS A reportagem de mais de 700 páginas no livro "Chatô: o rei do Brasil" foi mais um sucesso editorial do jornalista e escritor Fernando Morais. E não é só o jornalista Assis Chateaubriand que surge, em todos os seus contornos, no livro. A própria história dos veículos por ele criados ganha um retrato vivo, como neste trecho sobre a origem das grandes reportagens, com "texto de David Nasser e fotos de Jean Manzon".

Ex-repórter fotográfico da revista Paris-Match e do Paris Soir, o maior vespertino que havia em Paris, quando estourou a guerra, Manzon foi convocado e virou membro do Serviço Fotográfico e Cinematográfico da Marinha francesa. Como fotógrafo, ele participou da campanha da Noruega, estava no Norte da França na invasão nazista da Holanda, acompanhou a retirada de Dunquerque. Quando os nazistas tomaram a França, mandaram-no para o porto de Brest - ali Manzon cobriu a evacuação da esquadra do Atlântico e saiu no último navio que deixou o porto francês. Desmobilizado, em Londres foi trabalhar no serviço cinematográfico de guerra inglês, cujo diretor de cinema e documentários era o brasileiro Alberto Cavalcanti, que já vivia na Inglaterra havia 25 anos, junto com a mãe. Foi ele quem sugeriu a Manzon, em 1942, a viagem para o Brasil, então um país neutro no conflito, de onde poderia voltar à França, que era o que ele desejava. A relação de Manzon com o Brasil, porém, foi de amor à primeira vista. Ele tinha vontade de beijar as pessoas na rua. Alberto Cavalcanti o havia recomendado à poetisa e jornalista Adalgisa Nery, que era casada com Lourival Fontes, homem forte de Getúlio e diretor do DIP. Convidado a montar o departamento de fotografia e cinema do DIP - e já amigo de gente como os jornalistas Antônio Callado e Egídio Squeff, e de escritores como Clarice Lispector e Lúcio Cardoso -, Manzon logo percebeu que não sairia mais do Brasil. E foi na boêmia carioca que ele conheceu o homem que ia mudar seu destino: Freddy, filho de Oswaldo e sobrinho de Chateaubriand. Como os dois filhos homens de Chateaubriand, Gilberto e Fernando, além de serem mais jovens, pareciam não se interessar pelo jornalismo, Freddy transformou-se na esperança do dono dos Associados. Ocupando agora a função de diretor de O Cruzeiro, o jovem jornalista iria dar os primeiros passos para que ela viesse em breve a se tornar a revista de maior vendagem do Brasil, em todos os tempos. Ao primeiro contato com aquele aventureiro francês, Freddy percebeu que estava diante de um repórter nato, e convidou-o a deixar o DIP e ir para O Cruzeiro, Manzon topava, mas o salário que ele pedia era tão alto que só o tio dono podia decidir. Chateaubriand quis conhecer o fotógrafo e, ao entrar naquela sala desarrumada, Manzon, que havia coberto

MEMÓRIA E FUTURO

tantas guerras, fica surpreendido pela inesperada visão do que está sobre a mesa do jornalista: um cinturão recheado de balas e com dois revólveres carregados. Chateaubriand repara no olhar dele e comenta: - Tenho muitos inimigos. Em certas horas só posso contar comigo mesmo para me defender. Sem rodeios, emenda com uma pergunta que o francês não esperava tão cedo: - Quanto é que o senhor ganha no DIP? - Dois contos de réis. - Meus Deus, é uma fortuna! Só o governo mesmo pode pagar um salário desses! Manzon não queria conversa fiada: - Muito bem. Então nosso encontro está encerrado. Passe bem. - Ora, não fique bravo. É que O Cruzeiro precisa de alguém com sua experiência, é uma revista muito feia, precisa vender mais... - Pois bem. Seu sobrinho Freddy me disse que o senhor quer que eu transforme e levante a revista. Isso vai lhe custar quatro contos de réis por mês. - O senhor deve estar louco, quer a minha ruína. Mas, como eu também não bato bem da cabeça, aceito experimentar, por amor a O Cruzeiro. Sabendo que estava pagando um salário milionário ao fotógrafo, assustouo com uma exagerada frase de efeito: - Trate de conseguir resultados rapidamente, senão é a falência, seu Manzon. Minutos depois, folheando ao lado de Freddy uma coleção de números antigos de O Cruzeiro, o sofisticado fotógrafo habituado à qualidade e ao requinte de Paris-Match se espanta: aquilo não é uma revista, mais parece um catálogo, uma galeria de retratos parados, idênticos. Além disso, provavelmente para parecer uma publicação rica, imagina ele, dezenas de fotos minúsculas são estampadas uma ao lado da outra, como se fossem uma coleção de selos. Tudo isso sobre um papel tão ruim que, mesmo com máquinas de boa qualidade, para aquele europeu habituado

dois jornalistas estão quase desistindo, quando Basílio põe a cabeça para fora da janela e grita forte para Manzon: - Viu? Lá está a aldeia. Manzon só conseguia ver uma mancha vermelha entre a folhagem densa das árvores. Faz sinal com o dedo para Basílio circular em vôos rasantes sobre o lugar. Na primeira passagem o coração do francês bate forte ao ver vinte ocas alinhadas em semicírculo. Basílio dá uma embicada para o chão e Manzon vê aparecer em seu visor a primeira figura de um índio nu. Em seguida mais outro e mais outro, e eles não parecem se assustar com o aparelho que faz vôos rasantes. Estiram seus arcos e uma nuvem de flechas passa a centímetros do rosto do fotógrafo, que está a ponto de perder o fôlego de tanta emoção. Nova embicada e a ponta de uma das asas bate no teto de uma das ocas, desmontando-a. A cada novo vôo rasante os índios começam a atirar mais flechas, e também tacapes, em direção ao avião. Manzon aperta o disparador de sua máquina desesperadamente, até sentir cãibra no indicador e no polegar. De repente, em plena embicada para baixo, o avião todo sacode: uma borduna “magistralmente lançada por um índio”, diria Manzon, atinge a cauda do bimotor, provocando um rombo de vinte centímetros no leme. Rindo do perigo e do pânico sob o qual o fotógrafo se encontrava, Basílio percebe que está na hora de ir embora. O impacto do material colhido pelos dois jornalistas foi tão grande que, em vez das dez páginas prometidas por Freddy, a reportagem “Enfrentando os chavantes” (assim mesmo, com ch, e não com o correto x) ganhou dezoito páginas inteiras de O Cruzeiro, com fotos jamais vistas de selvagens atacando a flechadas e golpes de borduna, a poucos metros de distância, um avião. A revista esgotou nas bancas e os exemplares eram disputados no câmbio negro. Para Antônio Callado, um dos pioneiros das viagens de brancos à Amazônia, “aquela reportagem significou, no sentido cabal do termo, a descoberta do índio brasileiro”. Para O Cruzeiro, ali estava a marca registrada que a acompanharia pelo resto de sua existência - a de uma revista de grandes reportagens. E, para os milhares e milhares de leitores, nascia quase um slogan que eles se habituariam a aguardar com ansiedade, todas as semanas, pelos quinze anos seguintes: “Texto de David Nasser, fotos de Jean Manzon”.

ao requintado papel cuchê de ParisMatch, a impressão sugeria que as fotos fossem manchas de tinta (o que levaria Millôr Fernandes a dizer debochadamente, anos depois, que aquela parecia “uma revista impressa com cocô”). O francês estava desanimando quando Freddy fezlhe um desafio: - Manzon, a partir de hoje a capa da revista e mais dez páginas internas são responsabilidade sua. Eu lhe dou carta branca para trabalhar, você faz o que quiser. O francês topou, mas queria introduzir no Brasil um hábito da imprensa de reportagens européia: a dobradinha repórter-fotógrafo. Um só escrevia, o outro só se preocupava em fotografar. E ele já tinha uma sugestão de nome para fazer dupla com ele: um repórter do jornal O Globo que Manzon, ainda no DIP, conhecera na Amazônia. O repórter já tinha tido uma passagem rápida pelos Associados, mas não saíra brigado: seu nome era David Nasser. Melhor negociador de salários que o perdulário Chateaubriand, Freddy se propôs a tirar David de O Globo, onde ele ganhava dois contos de réis, oferecendo-lhe apenas um conto e duzentos por mês. Mas com a promessa da capa, das dez páginas semanais e de algo que valia tanto quanto um bom salário: suas reportagens seriam assinadas com seu nome estampado bem grande, logo abaixo do título. David aceitou o convite. Semanas depois, Manzon está amarrado a uma espécie de gaiola improvisada, do lado de fora da fuselagem de um Fockwulfe 160 da FAB que voa a 180 quilômetros por hora sobre a serra do Roncador, na fronteira do Mato Grosso com o Pará, em plena selva amazônica. Seus olhos estão protegidos do vento por óculos de motociclista e o barulho dos dois motores do avião é amortecido por bolotas de algodão nos ouvidos. No comando da cabine está Antônio Basílio, piloto particular do presidente Vargas, e, a seu lado, de lápis e bloco de papel na mão, o repórter David Nasser. Os três estão há horas sobrevoando a região do rio das Mortes à procura de uma aldeia de índios selvagens que Basílio garantia ter visto de relance em um de seus vôos por ali. Os

7 ○


2

(80%) 26.06.1969 11.02.1991

Eles não eram mais os mesmos naquela manhã sem bebida, mas o papo rolou igual ao dos bons tempos do semanário que criou termos e inovou a linguagem do jornalismo em plena ditadura, com censura e uma prisão.

"PUTZ GRILA", QUE PAPO DOS AMIGOS ZIRALDO, JAGUAR E SÉRGIO CABRAL! Cláudia Mesquita (responsável pelo Núcleo de História Oral do MIS): Às 11 horas e 34 minutos do dia 27 de novembro de 1996, prestam depoimento à Fundação Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, no projeto Memória do Jornalismo Brasileiro, em convênio com a Associação Brasileira de Imprensa, Jaguar, Ziraldo e Sérgio Cabral, como depoentes da memória do semanário O Pasquim. E eu passo a palavra agora ao André Motta Lima, que vai coordenar essa mesa, pra iniciar o depoimento. André Motta Lima: Bem, vamos começar pelo início. Sérgio Cabral, como é que foi o surgimento e, antes mesmo do surgimento... Você quer começar, ô Ziraldo? Ziraldo: Essa parte quem tem que contar sou eu! Sérgio Cabral é depois. AML: Eu ia começar com ele... só porque estava da esquerda pra direita. Eu sempre começo pela esquerda, mas... Z: Mas eu vou te explicar porque que eu é que tenho que começar. AML: Então pode começar. Z: Porque eu vou contar a pré-história do Pasquim. Porque a história do Pasquim, a história do Pasquim lui-même, quem tem quem contar é o Jaguar e o Sérgio, que eles é que são fundadores do Pasquim. Eu não sou fundador do Pasquim. Então é o seguinte: em 64, o Millôr Fernandes, que era o nosso líder, achou que era bom fundar uma revista. E fundou o Pif-Paf. Logo depois da… AML: No O Cruzeiro, ainda. Z: Não, não tem nada a ver com O Cruzeiro. O primeiro jornal de protesto depois do golpe de 64 foi o Pif-Paf. O PifPaf era uma seção que o Millôr fazia no Cruzeiro, mas já tinha deixado de fazer há muito tempo. Sérgio Cabral: Ziraldo, deixa eu fazer uma pequena retificação. O primeiro jornal de protesto chamava-se Folha da Semana, que foi fechado por decreto do governo. Z: É, então, o primeiro jornal humorístico de protesto. Chamava Pif-Paf. E tinha o Millôr e a turma do Millôr, que era Jaguar, eu, Fortuna, Claudius… Aí, ele incorporou o baixinho, como é que chamava o baixinho?, William Kerr, que levou o Eugênio Hirsh, que era um artista gráfico argentino que vivia aqui no Brasil, que fez a revista Pif-Paf, cujo primeiro número era a cara do Millôr, porque a capa era “Eu sou o Pif-Paf”; o “Eu” do tamanho de um bonde. Durante oito números a gente fez o Pif-Paf, lançamos vários humoristas, entre eles o Redi, e a revistinha estava fazendo muito sucesso, quando o oitavo número foi apreendido aqui em Niterói, apreendido

em vários lugares do Brasil pela polícia da revolução, pelos generais, e o Millôr, que já estava desesperado, que o Millôr se desespera muito rapidamente, não queria mais fazer o Pif-Paf. Já tinha feito, já estava nervoso, resolveu fechar o Pif-Paf por causa dessa apreensão. Aí, nós ficamos meio órfãos durante todo esse tempo, procurando ver o que fazíamos contra a falta de liberdade de expressão, contra a revolução, porque o humor sempre se manifestou nesses momentos. E a gente já tinha exemplos históricos disso. O mais famoso deles, o Daumier, em La République e no La Caricature, na França. E a gente achava que isso era quase uma obrigação dos humoristas. E havia muitos jovens. O Fortuna tinha feito “O Manequinho” (era um suplemento de humor no Correio da Manhã), eu tinha feito um chamado

de jovens, eu não me lembro os jovens todos que estavam lá, e houve um racha, porque uma parte queria fazer uma cooperativa, em que nós cinco teríamos 50% e os jovens 50%. Aí o Henfil liderou um racha, porque ele queria que todos tivessem uma cota igual. Aí o Millôr disse: “não, meu filho, vocês têm que fazer a história de vocês primeiro pra ter uma cota igual à minha”. Aí isso foi considerado altamente reacionário e o Henfil rachou e não saiu a publicação. O Henfil fez o grupo dele na Urca e nós ficamos pensando o que íamos fazer da vida. Até que o Jaguar me procurou e disse: “olha, vamos fazer uma revista. Arranjamos um sócio, um editor, já arrumamos nome e vamos fazer”. Aí eu disse: “não é isso que eu quero fazer; eu quero fazer uma coisa pra arrebentar a boca do balão”. Eu e o Millôr ficamos de fora desse projeto do Jaguar. E o Jaguar eu não sei o que aconteceu. Enquanto eu estava pensando o que eu ia fazer da publicação, o Jaguar estava se movimentando como um louco e aí nasce O Pasquim. Jaguar: Bom, eu sou contra esse tipo de coisa, porque toda vez que escrevo ou falo sobre O Pasquim, aparecem pelo menos uns três caras pra desmentir tudo o que eu disse. Eu fico imaginando as coisas que aconteceram há 50 anos atrás, porque as coisas que acontecem há 5 minutos já muda tudo na mesma hora... Outro dia eu estava numa noite de autógrafos lá na Gávea, e veio um fã e me perguntou: “posso apertar a sua mão?”. Eu falei: “tudo bem, desde que não queira chupar o meu pau”. Cinco minutos depois eu encontro com o Zuenir (Ventura) às gargalhadas, dizendo: “pô, que coisa maravilhosa essa sua piada”. Eu falei: “que piada?”. “O cara chegou pra você e falou assim: ‘posso apertar a sua mão?’, aí você falou ‘só se chupar o meu pau’ ”. Isso tinha acontecido há dois minutos atrás! Imagina uma história de 20 anos atrás como O Pasquim... No que me concerne, a gente estava pensando em fazer uma revistinha. Tinha aquela revista do Sérgio Porto, que chamava A Carapuça, que ele não escrevia. Quem escrevia era um cara chamado Alberto Eça, que fazia o pastiche do estilo dele. Mas aí o Sérgio Porto morreu e não poderia continuar escrevendo do além. Se bem que poderia ficar mais uns três anos fazendo isso, quanto tempo quisesse. Mas aí a revista teve que fechar. E nessa época o Tarso estava fazendo muito sucesso com a coluna que imitava o Otto Buchwald, na Ultima Hora. SC: Ele foi procurado na Ultima Hora pelo

"Bom, eu sou contra esse tipo de coisa, porque toda vez que escrevo ou falo sobre O Pasquim, aparecem pelo menos uns três caras pra desmentir tudo o que eu disse." (Jaguar)

“Cartum JS”, no Jornal dos Sports, que depois virou “O Centavo”, no Cruzeiro, e aí apareceu uma porção de jovens humoristas. E aí, mais ou menos em 68-69, o Jaguar e eu estávamos muito inquietos com esse negócio de fazer uma publicação, e também o Millôr. Fizemos uma reunião lá em casa pra poder criar um jornal de humor, só contra a ditadura. E nessa reunião estavam os chamados velhos humoristas (Millôr e os quatro mosqueteiros: Claudius, Jaguar, Fortuna e eu) e do outro lado um bando de jovens humoristas que tinham começado no “Cartum”, no “Manequinho”. Eu me lembro que estava o Henfil, que estava começando aqui no Rio, no Jornal dos Sports, estava o Vágner, estava o Pimentel, estava o Redi..., tinha uma porção

8 ○

ABI

Murilo Pereira Reis, que era o cara que bancava A Carapuça do Sérgio. Como ele queria continuar fazendo A Carapuça, procurou o Tarso, que na época era um cronista de muito sucesso. Eu era editor de política da Ultima Hora; Jaguar era cartunista do jornal. Então ele procurou o Tarso, o Tarso veio conversar comigo, conversou com o Jaguar e aí nós concluímos que não seria bom fazer A Carapuça, que era muito ligada ao Sérgio Porto, e nós queríamos fazer um jornal novo. J: Exatamente. É que eu falei que o jornal não tinha nada a ver com o que a gente estava querendo fazer. Ele foi convidado pra fazer uma coluna, né? SC: Não, não. Ele queria que o Tarso fosse o Sérgio Porto. J: Aí a sugestão foi que fechasse e abrisse outro. Aí começaram as reuniões que eram feitas na casa do Magaldi, né? SC: Em várias casas. Na casa do Magaldi, foi... Até lá em casa vocês foram. J: Quando acabou a adega do Magaldi, a gente mudou pra outra casa. Quase que o jornal não sai, por falta de nome. Não tinha nome. Eu acho que foi uma sugestão minha, não sei. SC: Eu me lembro dessa história dos nomes. Nós três relacionamos vários nomes, botamos no papel, levamos pra uma reunião, se eu não me engano, na casa do Tarso, que morava na época na rua Visconde de Pirajá... Z: Nós três é você, o Jaguar e o Tarso. SC: Eu me lembro que eu levei uns 30 nomes, Jaguar levou, o Tarso levou, mas nenhum deles foi aprovado, não teve nenhum que chamasse a atenção. Até que o Jaguar chegou com uma história do Pasquim. Pô, foi..., Pasquim, é claro que é O Pasquim. Foi o Jaguar que deu a idéia. J: Foi em cima daquela coisa também da Tribuna da Imprensa que era chamada de lanterninha, pejorativamente, porque vendia menos. SC: A lanterninha da Tribuna não é porque

Jornal da ABI


vendia menos; era uma coisa ligada ao Clube da Lanterna que o Lacerda inventou. J: Vão chamar a gente de Pasquim. Então a gente corta o barato e assume. Outro dia comprei um livro do Voltolino, aquele humorista, e fiquei sabendo que teve uma imprensa muito ativa, em São Paulo, em italiano (jornais, tablóides...), e um dos jornais era Il Pasquino Coloniale, no começo do século. Voltolino, que era um tremendo desenhista, desenhava lá. Z: Pasquino é uma palavra italiana. Era um sujeito da Itália que fazia um jornal mural, botava debaixo da porta, com ataques ao poder, às famílias, chamava-se Pasquino. Tem até estátua dele; o Chico Buarque era correspondente do Pasquim em Roma e mandou uma matéria sobre Il Pasquino. Pasquino ficou conhecido como sinônimo de jornal atrevido, de protesto, fofoqueiro. Aqui pra nós, também de jornal vagabundo, mas na Itália, jornal de protesto. O Jaguar teve essa idéia: já que vão chamar a gente de Pasquim, bota logo esse nome. Aí chamaram vários sócios pra esse empreendimento, porque o Murilo Reis, na verdade, queria que o Tarso substituísse o Sérgio na Carapuça. Aí o Tarso disse: “não, essa Carapuça eu não faço; vamos fazer outra coisa”. Aí nasceu O Pasquim, com esses três no centro, e eles convidaram vários sócios. Menos eu e Millôr; ainda não entramos nesse momento na história do Pasquim. SC: Primeiro foi o Prósperi, que foi o diretor gráfico do jornal, e o Claudius. Z: Carlos Prósperi. SC: Que era publicitário, um sujeito muito..., um artista gráfico muito competente, e o Claudius, nosso grande cartunista. Os sócios éramos nós cinco e mais o Murilo Reis. Z: Mas como é que o Claudius entrou? SC: Não sei. Acho que foi o Jaguar que levou o Claudius. J: Ele cruzou com a gente. Estava lá. Estava passando. SC: Aliás, uma coisa muito curiosa em relação ao Pasquim é que depois que O Pasquim fez sucesso, nós começamos a dar entrevistas e vieram aquelas revistas sérias de São Paulo, tipo Exame, aquelas coisas, e uma das perguntas sistematicamente era essa: “como é que vocês planejaram O Pasquim?”. O Pasquim foi uma grande porra-louquice. Ninguém planejou nada. Aliás, a propósito do nome: depois do jornal começar, lá pelo sexto número, assim, a gente decidiu entrevistar o Roberto Campos. Uma entrevista que seria de provocação, né. Aí, liguei pra ele. Falei: “embaixador, aqui é um jornalista chamado Sérgio Cabral, nós queríamos fazer uma entrevista com o senhor para um jornal chamado O Pasquim”. Ele falou assim: “como é o nome?”. Eu falei: “O Pasquim”. Ele falou assim: “isso não é nome de jornal. Isso é uma ameaça”. Não quis dar. (risos) Mas, continuando a história. AML: É, continua a história. Nesse início, o que se queria fazer, quais foram os sócios então? SC: Nós precisávamos instalar o jornal. O Murilo Reis cuidou da instalação, falando com aquele que seria o nosso distribuidor, que era o Altair, dono da Distribuidora Imprensa, que distribuía todas as revistas da Bloch. Era na rua do Rezende. Então, antes inclusive do jornal começar, nossos ○

MEMÓRIA E FUTURO

primeiros trabalhos de preparação, de organização, foram feitos na rua do Rezende, onde tinha sede da Distribuidora Imprensa. E de lá saiu o primeiro número. Bom, aí, o jornal foi constituído por amigos de nós três. Eu me lembro que o Chico Buarque, por exemplo, eu fui a Roma, trabalhando como jornalista, fui visitar o Chico Buarque e o convidei para ser o correspondente do Pasquim. O Jaguar chamou os humoristas. Chamou Ziraldo, Millôr... Z: Deixa eu contar essa história pra dar continuidade. Nem eu nem Millôr estávamos na gênese do Pasquim. Então, o Jaguar precisava de material pro primeiro número, ele foi lá em casa. Eu não estava; eu estava viajando, estava em Belo Horizonte, eu estou sempre viajando. Aí, o Jaguar abriu a gaveta, tirou um monte de desenho meu, uma porrada de desenho, me ligou e disse que ia publicar no Pasquim e eu disse “tá bom”. E foi à casa do Millôr: “vamos fazer um jornal independente, me dá umas coisas pro Pasquim”. Aí o Millôr abriu a gaveta pra ele tirar as coisas e falou: “pera aí!”... e escreveu um artigo entitulado “Independente: pois sim”, esculhambando O Pasquim, dizendo que ele não passaria do segundo número e, se passasse do segundo número, não seria independente. É por essa razão que eu e o Millôr, que éramos super amigos do Jaguar (aliás, a história da minha vida é o Jaguar que abre as portas e eu entro), eu já era puta velha do humor no Brasil, já estava com quase dez anos publicando minhas coisas, fomos pro Pasquim desde o número 1. Henfil não estava no número 1. Mas aí o Jaguar, o Tarso e o Sérgio foram a todos os programas de televisão e fizeram uma festa de lançamento. Foi um acontecimento o lançamento do número 1 do Pasquim. AML: Qual foi a data? SC: O primeiro número foi 29 de junho de 1969. Desse número, nós tiramos 14 mil exemplares. J: Sob protesto meu, que não queria que saísse mais de dez. SC: Exatamente. 14 mil exemplares. A saída do jornal deu primeira página no Jornal do Brasil. Às 10 horas da manhã, o Altair ligou lá pra casa e disse: “estou recebendo notícia de todo o Brasil dizendo que o jornal está se esgotando. Podemos tirar mais?”. Eu disse: “pode”. “Quanto?”. “Tira mais 14 mil”. O primeiro número, então, na verdade, saiu com 28 mil exemplares. E foi um sucesso. AML: Por que o Jaguar queria só 10 mil? J: Nós já tínhamos participado de várias experiências e eu achava que era mais um Pif-Paf, que durou 8 números. Z: O espírito daquela reunião lá em casa não prevaleceu pra fundação do Pasquim. O Jaguar queria fazer uma publicação de humor e o grupo do Henfil queria uma publicação de protesto, uma coisa de humor violento mesmo, sem assinar, cada um entrava com dinheiro. Mas a gente estava meio perdido, sabendo que o humor tinha um espaço em meio à dificuldade de expressão. Então, quando o Jaguar e o Sérgio se juntam com o Murilo, Prósperi e Tarso, o primeiro número já é mais pra crítica de costumes, pra deboche, porque o Jaguar é muito debochado, Tarso era muito debochado e o Sérgio é carioca, era uma coisa carioca. Tanto que o primeiro entrevistado é o Ibrahim Sued. Não era ○

nada político. O jornal vai ficando político à medida que ele vai sendo posto contra a parede. De repente, ele virou, no sexto, sétimo número, o que o Nelson Rodrigues chamou de parede de banheiro. Ele virou o espaço de todas as pessoas que tinham algum brilho, alguma vontade de dizer as coisas, que queriam um espaço pra protestar. Com 10/15 números, ele era o único espaço pra ‘inteligência’ brasileira se manifestar contra a ditadura. SC: Aliás, a propósito da entrevista com o Ibrahim. Ele deu um dos maiores furos de sua vida de jornalista nessa entrevista. Na época, não sei se você se lembra, a sucessão presidencial era uma coisa misteriosa, era feita lá nos generais, era uma troca de guarda, só eles sabiam. Nós estávamos, nessa época, no período do triunvirato (Costa e Silva já tinha sido afastado), tinha aqueles três generais lá que comandavam. Nós perguntamos (fui até eu que perguntei): “com o seu faro de jornalista, quem será o próximo presidente?”. Ele falou assim: “general Garrastazu Médici”. Isso não tinha saído em lugar nenhum. O Pasquim já entrou com esse furo dado pelo Ibrahim Sued. AML: Essa estrutura inicial foi montada como? Como é que era a divisão econômica? Quem bancava? Porque vocês eram todos profissionais do dia-a-dia, ninguém era capitalista pra montar uma coisa dessas. SC: Nós dividimos as ações inicialmente entre nós quatro: Jaguar, Tarso, Murilo Reis e eu. Se eu não me engano, Murilo Reis

dos 100 mil exemplares. Foi um dos maiores porres coletivos que eu já vi na minha vida. E olha que bebida é uma coisa que eu conheço! Nunca vi tanto uísque, tanta gente bebendo tanto uísque. Z: Foi a maior festa da história da imprensa brasileira. A festa dos 100 mil. Pra você ter uma pequena idéia, a coluna do Zózimo (Barroso do Amaral, no Jornal do Brasil) toda foi sobre a festa. O Zózimo era uma coisa poderosíssima naquela época. O Pasquim virou moda. Aí começaram a surgir as canções. Duas famosíssimas: “O Coqueiro Verde”, do Erasmo Carlos, e “I don’t want to stay here, I want to go back to Bahia”, do pernambucano Paulo Diniz. Tinha o 200 milhas do Jorge Ben... Nenhum jornal do mundo ganhou canções. E a entrevista da Leila mudou a cabeça da mulher brasileira. O jornal teve importância. A gente foi agente de uma transformação, que ia acontecer de qualquer maneira, mas O Pasquim tem essas coisas fatalistas de chegar numa hora histórica. SC: Ziraldo, a entrevista da Leila teve dois efeitos. Um foi esse que você falou, que é verdade. Mas teve um outro. Da reação. Nós fomos acusados de aproveitadores da ingenuidade da Leila. Tem um jornalista, eu gostava muito dele, e gosto ainda, ele ficou me odiando tempos aí por causa dessa entrevista, achando que nós havíamos explorado a Leila. Esse jornalista era o Leandro Cavalcanti de Paiva. Z: Achando que a Leila era inocente. Imagina... SC: Eu me lembro das cartas (na época era eu que respondia às cartas)... Z: Exatamente. O Sérgio inventou também o negócio da carta. O inventor das cartas do Pasquim foi o Sérgio. SC: Eu me lembro de vários protestos. Lembro de uma professora da Tijuca - e essa eu me lembro, porque me acusava particularmente - que dizia assim: “Eu imagino o Sérgio Cabral, com aquela cara de cachorro pequinês (eu corrigi: não é pequinês; é buldogue)”. Houve esse tipo de reação. Mas a reação favorável foi muito maior. Z: E aí, 225 mil exemplares, anúncio pra burro, tem outra história. Nós inventamos uma loja em Paris, tinha uma loja lá que vendia coisa pra turista brasileiro, o cara ficou enlouquecido porque publicou um anúncio no Pasquim e triplicou a venda dele. Se você tivesse o cupom do Pasquim, ele dava desconto. Chegava em Paris, tinha fila de brasileiros na porta. A gente recomendava um restaurante, eu recomendei um restaurante em Florianópolis, até hoje eu chego lá, tem a dica do Pasquim pendurada. Quando foi o final do ano, o Millôr perguntou: “quanto já te pagaram pela colaboração no Pasquim?”. Eu falei: “sei lá”. “Mas eles estão ganhando muito dinheiro, Ziraldo, têm que pagar a gente”. Falei: “Millôr, é mesmo, nem me ocorreu isso”. Porque a essa altura, o Tarso e o Paulo Francis estavam literalmente dando 100 dólares de gorjeta no Flag. E o Tarso tinha mudado pra cobertura num hotel no Posto 6. E eles iam de avião pra Arraial do Cabo. E o Millôr, então, falou: “não, eu quero a minha parte”. Me lembro que o Tarso mandou um cheque de 5 mil dólares. Eu falei: “Millôr, recebi 5 mil dólares”. Era um dinheiro! Aí o Millôr resolveu virar a mesa. Aí brigou com o Tarso. Foi depois desse incidente que virou cooperativa.

"A gente foi agente de uma transformação, que ia acontecer de qualquer maneira, mas O Pasquim tem essas coisas fatalistas de chegar numa hora histórica. Viramos moda." (Ziraldo)

tinha mais um bocadinho do que nós. Depois, logo no terceiro, quarto número, a gente resolveu democratizar e fez uma divisão meio louca, em que uns ganhavam mais, outros menos, mas sem nenhuma razão clara. Ficamos com vários sócios: Ziraldo, Luís Carlos Maciel, Paulo Francis (este mau-caráter!)... Z: Isso foi bem depois. Foi bem depois. O jornal arrebentou a boca do balão, foi a 225 mil exemplares, o número do Paulo Mendes Campos. Ele foi logo depois do número da Leila. A Leila vendeu 200 mil e teria vendido 300 mil. AML: Que número era? Z: Acho que era o 20. SC: O jornal saiu em junho de 1969. Em novembro de 1969, nós fizemos uma festa ○

9 ○


SC: Bom, O Pasquim começou a vender muito, a fazer muito sucesso, e aí baixou lá a censura. Veio a mulher, dona Marina, que ia lá pra redação. Era uma senhora, que chegou muito dura, mas com o tempo foi amolecendo e meses depois estava apaixonada por nós. Ela adorava, ria, bebia uísque. Z: A gente ia na casa dela, em Botafogo, depois. J: Eu soube que ela morreu de cirrose. Z: Ah, é? Tadinha. Ela morava ali em frente ao Santo Inácio, numa vila. A gente ia pra copa da casa dela censurar O Pasquim. Essa história da censura do Pasquim... SC: Tem uma história que tem nós três. A polícia retirou a mulher e botou um general. O general Juarez Paes Pinto, pai da Helô Pinheiro, que foi garota de Ipanema. Fomos convocados à polícia pra conversar com o general. Fomos às 8 horas da manhã (uma coisa difícil de acontecer naquela época, a gente acordar nessa hora) Ziraldo, Jaguar e eu, morrendo de medo. Chegando lá, o general sentou, nós sentamos. A primeira coisa que o general falou foi: “há duas coisas que eu sei fazer muito bem: uma é montar a cavalo; eu praticamente nasci em cima de um cavalo. E a outra coisa é trepar”. E começou a contar: “ainda ontem...” Z: “Ela chorou, ela chorou”. A menina que ele tinha comido. “Eu tenho 53 anos, ela tem 20; ela chorou”. Ele era a cara do Steve Macqueen, bonitão assim. SC: Ele parecia até general de filme americano. AML: E a censura, em princípio, era mais pelos costumes e pelo palavrão ou era pela política mesmo? SC: Por tudo. J: Eu queria falar um negócio sobre a revolução da linguagem que O Pasquim fez e depois a propaganda aproveitou até mais. Hoje todo mundo escreve como se fala. Eu é que fui tirar a entrevista com o Ibrahim do gravador. AML: Já havia a idéia de fazer como pinguepongue mesmo? Z: Não havia idéia nenhuma. J: Gravamos, aí eu tirei do gravador. Muito bem. Mostrei pra eles e aí disseram pra mim: “sim, mas tem que fazer o copidesque”. Eu falei: “mas o que é o copidesque?”. “Botar em linguagem jornalística”. Eu era cartunista, nunca tinha mexido com esse troço e falei: “mas está ótimo do jeito que está”. E acabou que o cara chegou lá e falou: “olha, se não rodar agora, o jornal vai atrasar”. E aí, pra não atrasar o jornal, acabou ficando assim. Poderia ter dito que foi um planejamento, não foi porra nenhuma. Z: O negócio do (risos). J: (risos), é. Aí todo mundo achou ótimo. E aí a imprensa tirou o paletó e gravata. Z: A imprensa e a propaganda. J: Adotaram a linguagem coloquial. AML: A própria questão do palavrão já estava inserida nessa tirada de fita? SC: A primeira vez que a palavra bicha foi publicada na imprensa foi no Pasquim. Z: A segunda vez. Porque foi no Fair-Play que eu botei “Sherlock Holmes é bicha”. E encomendei um artigo ao Ruy Castro pra poder provar que, se de cada três ingleses, dois são viados, se tem o Sherlock Holmes e o Watson, um dos dois é viado. E o mais certo de ser viado era o Sherlock. Essa história é engraçada pra contar aqui porque

o Ruy Castro, como ele não achou documentação nenhuma, e ele é muito inteligente, ele inventou vários trechos do Conan Doyle, falsos, pra provar, e dizia a página e o livro. E anos depois, no JB, sai uma matéria sobre o Sherlock Holmes e cita os trechos do Ruy Castro. Então eu botei “Sherlock Holmes é bicha”. Porque o FairPlay tinha tipografia, tinha designer. Aí o Tarso cortou aquele “bicha” (O Pasquim era feito nas coxas mesmo) e botou aquele “bicha” em página dupla no Pasquim: “Quem é a bicha do Pasquim?”. SC: “Quem é a bicha do Pasquim?”. Agora, pra você ter uma idéia do que significava a palavra bicha na época, num jogo do Vasco, na década de 60, eu estava na tribuna de imprensa, e a torcida do Vasco, pela primeira vez, começou a chamar o Armando Marques de bicha: “bicha, bicha...”. E ele adorou! E eu estava ao lado do Armando Nogueira que ficou, como no soneto, pálido do espanto. Pálido, e olhava pra mim como se eu fosse culpado, porque era a torcida do Vasco que estava gritando. Porque era uma violência gritar “bicha” ali, perto das famílias, das crianças. Pra te dar uma idéia do valor da palavra bicha. Palavra essa que veio me salvar numa história que você conhece. Z: Do general? SC: Não, do juiz... Eu vou contar rápido. Nós vamos chegar à prisão. Mas, depois da prisão (isso foi Ziraldo que me contou; é que ele não se lembra mais), eu estava em Rio das Ostras com meus filhos, que na época tinham sete, oito anos. E aí eu estava no bar, bebendo, e as crianças chegaram e falaram assim: “você quer me dar dinheiro?”. Eu estava sem dinheiro. Eu estava com o Geraldo Carneiro, bebendo chope às custas do Tim, técnico de futebol, que falou assim: “vocês estão sem dinheiro? Bota na minha conta que eu pago depois”. E estávamos eu e Geraldo tomando chope lá. Z: Geraldo Carneiro, pai do Geraldinho Carneiro. SC: É. E aí vieram as crianças e me pediram dinheiro. Eu falei: “não tenho”. “Tem”. Aí, tem, não tem, e os três começaram a gritar pra mim: “bicha, bicha, bicha...”. Bom, estava nesse bar, e eu não sabia, o juiz, que depois virou amigo do Ziraldo, o juiz que iria nos julgar no Tribunal Militar, e achou aquilo uma maravilha: “pô, os filhos do Sérgio Cabral chamam ele de bicha, que maravilha”. E aí ficou simpático ao réu. Z: O juiz que arquivou nosso processo. Doutor Teófilo Miranda, que foi o juiz (registrar para sempre aqui) que firmou jurisprudência da anistia. Quer dizer, saiu no jornal que havia anistia, na mesma hora ele anistiou um cara em Recife, antes de todo mundo. Teófilo Miranda ficou amigo da gente no dia em que viu o nosso candidato a prefeito chamar o pai de bicha. SC: (risos). Mas vamos lá. Então, vamos voltando. Aí... AML: A questão da linguagem. Quer dizer, palavrões, o pingue-pongue... SC: Olha, palavrão foi entrando aos poucos. Por exemplo: era asteriscos que substituíam. Era idéia do Tarso isso. Aliás, na entrevista da Maria Bethânia, que está no quarto número mais ou menos, ela diz que tem uma coisa lá do mar, um fruto do mar, uma coisa lá da Bahia que, disse ela, dá um tesão danado. Nós colocamos tesão.

"Um dos mistérios d o Pasquim é o dinheiro. Porque eu era dono, Jaguar era dono. O pior ano da minha vida foi 71. Eu era presidente da empresa. Foi o ano em que eu fui despejado..." (Sérgio Cabral)

O juiz de menores, que era aquele Amílcar... Z: Alírio Cavalieri. SC: Alírio Cavalieri. Ele nos convocou e pediu pra, pelo amor de Deus, não fazer mais isso. Na segunda vez que nós botamos um outro palavrão, ele mandou botar no jornal assim “Impróprio para Menores de 16 Anos”. E pusemos. Você vê que tinha esse tipo de restrição. Mas houve outra dificuldade no início. Nós estávamos já crescendo, já estávamos com sucesso, quando entrevistamos o cantor e compositor Juca Chaves. Que, durante a entrevista, en passant, fez uma brincadeira. Porque só pode ser brincadeira, porque ele chamou o Adolpho Bloch, dono da Manchete, de anti-semita. Você imagina? Porque o Juca é judeu. Evidentemente era uma brincadeira. Só que o Adolpho Bloch não recebeu assim. E, naquele dia, o Altair nos comunicou que não iria mais distribuir O Pasquim. Naquele dia. Isto é: acabava o jornal! Não só não ia distribuir, como nos retirou, nos expulsou, nos despejou da sala onde nós trabalhávamos. Então ficamos sem sede... AML: Ele só distribuía ou também tinha participação econômica? SC: Ele era o cara... O Murilo era o testade-ferro dele. E aí nós ficamos de repente sem sede e sem distribuidor. Um jornal que já estava em 200 mil exemplares. Aí ligamos pro Roberto Civita, eu, Jaguar, Tarso..., e baixamos lá na Editora Abril. E aí a Editora Abril deu um show. Sentamos numa mesa, aí eles abriram relatórios e mais relatórios sobre O Pasquim. Sabiam tudo do Pasquim. Onde vendia, como vendia, por que vendia, que público comprava... sabiam tudo, eles tinham toda uma pesquisa. Foi um show. E aceitaram distribuir o jornal de uma semana pra outra. Foi o que nos salvou, inclusive, nessa época. AML: Mas, administrativamente, vocês rodavam num local, como é que funcionava esse controle da grana? Porque fica muito aquela fama de “todo mundo bebendo, fazendo a entrevista, era uma grande festa”, mas como é que ficava o lado sério? SC: Inicialmente, a gráfica era aquela

10

gráfica que fazia aquele jornal em inglês. Como é o nome do jornal? Z: Brazil Herald. SC: Brazil Herald. E depois foi no Correio da Manhã. Z: E tinha um administrador, que era José Grossi, que foi preso com a gente, era um publicitário já conhecido na praça, tinha sido diretor do próprio Jornal do Brasil. Ele é quem administrava. Porque essa turma não administrava nada. Tanto que a crise do Pasquim começa logo em 70 porque, com um sucesso muito grande, a fiscalização resolve ver o que que estava acontecendo com O Pasquim. E O Pasquim não tinha pago imposto nenhum, não tinha nada. Não existia juridicamente. Não pagava imposto de renda, não pagava salário... Não tinha nada organizado. E aí toda a vida do Pasquim (o Tarso se afastou do jornal) foi tentar dar uma arrumada nesse mal começo administrativo. Fora as apreensões, as explosões na banca, bomba na redação, perseguições, tudo, e uma administração que começou mal. Junto com a gente, alguns anos depois, em Buenos Aires, começou um jornal, chamado Humor, parecido com o nosso. Os caras vieram até aqui ver como é que a gente fazia. E o camarada hoje tem um prédio de 20 andares no centro de Buenos Aires... SC: Aliás, um dos mistérios do Pasquim é o dinheiro do Pasquim. Porque eu era dono, Jaguar era dono. O pior ano da minha vida foi 71. Eu era dono do Pasquim, presidente da empresa. Foi o ano em que eu fui despejado... Z: Foi pra São Paulo, coitadinho. SC: É, exatamente. Pois bem. Apesar de que o canalha, o crápula, o escroto do Paulo Francis, ele dizer que, na verdade, o dinheiro foi roubado pelo Tarso, com a minha cumplicidade e do Jaguar. Que o Tarso roubava pra cheirar cocaína e comprar uísque. Z: Cheirar cocaína com ele, naturalmente. SC: Com ele. Z: (risos). SC: Mas é um mistério. Realmente. Às vezes eu falo assim: “alguém levou esse dinheiro”. É verdade, porque se você pensar, é um jornal de custo operacional baixíssimo, vendendo pra burro, tinha publicidade... Cadê o dinheiro do Pasquim? Pra mim é um mistério. Z: Eu te digo uma coisa. O mistério fantástico é o seguinte: o nosso diretor administrativo tinha um Alfa Romeo italiano, naquela época, e só comia em restaurante. SC: Por coincidência. Z: Por coincidência. E eu achava fantástico. Eu ficava pensando: “que fantástico, esse rapaz, que padrão de vida lindo que esse sujeito tem! Tão gentil ele”. Só jantava em restaurante. Ele e uma mulher loira, assim, uma peruona, e tal. SC: Dava festas... Z: Só jantava em restaurante. E todo o pessoal da publicidade tinha carro. Eu lembro uma vez, logo que a gente saiu da prisão: “os meus rapazes, não”. Ele não podia pagar a gente, mas tinha pago todos os ‘meus rapazes’. Mas, vem cá, não vamos falar sobre esse... SC: Mas esse negócio do dinheiro vale a pena, porque como é que um jornal desses, que era pra botar a gente rico... Z: E depois, comigo e com o Jaguar. Nós

Jornal da ABI


vendemos 2 milhões de exemplares do Pasquim em 2 anos. E eu não recebi direitos autorais. Era só pra poder quebrar os galhos do Pasquim. Nós somos umas bestas mesmo. SC: (risos). Z: Três idiotas aqui. Impressionante! E todo mundo acha que a gente ganhou dinheiro. Não, a gente viveu. A gente se divertiu. Principalmente, o seguinte (isso é que eu acho bom pra deixar no depoimento): eu acho que foi um privilégio das nossas vidas, nós três, porque, pelo que eu conheço aqui, nós não sabíamos o que nós íamos fazer durante toda a ditadura se nós não tivéssemos um jornal pra poder..., porque a gente não guardou nada na gaveta, a gente pôde diariamente xingar o general, todo dia a gente xingava o general. Isso era um privilégio, era uma dádiva. SC: É. AML: Pra gente evoluir, pra algumas coisas ficarem marcadas pontualmente. Primeiro: falamos da censora, do general censor. Quando que começa a censura? A partir de que número? SC: Foi logo no início. Foi no quarto, quinto número, dona Marina já estava lá. Só em 1970 que esse general a substituiu. E ficou até a nossa prisão, quando foi destituído. Z: Mas eu vou contar rapidamente essa história da censura. O Jaguar confirma aqui. Foram várias formas de censura, várias pessoas exercendo a censura. Então, temos que botar nessa história, depois, a presença do Ivan Lessa, que seria um depoimento fantástico. Durante algum tempo o Ivan Lessa, com toda aquela tensão dele, é que era encarregado de levar o jornal pro censor. SC: Mas isso foi depois... Z: Não, com o general ainda, com o general! O Ivan ficou muito amigo do general. Pergunta ao... J: Posso contar aqui? A gente levava o número e o general tinha uma espécie de código. Ele lia o número e anotava a lápis as coisas que ele achava censuráveis. Depois eu ia com o Ivan na garçonière dele. SC: Tinha um retrato de mulher. J: Tinha um retrato da Brigitte Bardot com os peitos de fora, enorme. E a gente discutia com ele. “Isso aqui. Não! Mas o que que é isso, general?” Se a gente convencesse, ele apagava. Senão, ele riscava. AML: E ele fazia algum tipo de restrição, também, de ordem sexual e moral? SC: Fazia, claro. Ele era moralista! Era moralista em relação a nós. Como todo moralista, era um hipócrita. J: A gente torcia pra chegarem as garotas. Porque ele tinha uma porção de garotas que freqüentavam lá a garçonière. Então, chegava a menina, ele dizia: “estou aqui com os meus amigos, Ivan Lessa e Jaguar, mas não demoro. Já vou aí. Vai tirando a roupa”. Aí, ele aprovava muito mais, na pressa de se livrar da gente. E tinha um outro lance também. Às vezes tinha uns problemas pra resolver, umas matérias que chegavam fora da hora. E ele jogava, com os companheiros dele de reserva, jogava, sei lá, um jogo da carta... Z: Na praia. Lá na praia, de calção, jogando com os amigos dele. Nós íamos lá na praia levar o jornal pra ele. J: Nós contratamos uma loira muito bonita

MEMÓRIA E FUTURO

SC: Pois é. Então deixa eu contar isso. O general vetou o número. Vetou o número um dia antes de rodar. E aí nós ficamos sem condições de fazer outro jornal. Ele tinha que aprovar aquilo. Fomos lá e pedimos: “general, pô, é pra Jesus Cristo...”. “Não, isso aqui, a Igreja não vai aprovar. Só se o cardeal aprovar”. Aí partimos pro cardeal. Z: Dom Helder, primeiro. SC: Não, dom Eugênio. Esse que está aí. Dom Eugênio. Aí, dom Eugênio leu o jornal e falou: “não, pode sair”. Eu falei: “o senhor autoriza?”. Ele falou assim: “Eu não proíbo. Mas autorizar, eu não vou autorizar, não”. Foi a grande sacada política dele. Aí entrou o Ziraldo, que conhecia o bispo auxiliar, dom Castro. Foi você que conseguiu... Z: É, fui lá. A Cúria Metropolitana, autorizando. Mas o número era bonito... SC: O número é lindo. Eu tenho guardado. Z: A gente fez com um carinho danado. E tinha essa foto lindíssima. Porque, no verão, em Rio das Ostras, onde o Sérgio passava o verão, na casa do Geraldo Carneiro, pai do Geraldinho Carneiro, esse poeta contemporâneo nosso . Juntaram todos os bêbados da região, inclusive o Cristo era um bêbado da cidade. Eu lembro que aquele ator, Joel Barcelos, fazia o Judas, o Sérgio Ricardo era outro, você, uma porção de gente... Montaram igualzinho à ceia do Leonardo da Vinci e, por um mistério qualquer, a luz ficou perfeita! A foto é deslumbrante, parece uma fotos de atores, mesmo. A foto é linda! SC: Se eu me lembro, quem fez a foto foi — —— do Alberto Reis. Z: Mas, as histórias da censura são fantásticas. Esse general, nós fizemos um número em que na capa está escrito ‘Todo paulista é Bicha’. SC: Ah, esse número é... Mas aí já foi depois do general. Z: Essa história... SC: Ô, Ziraldo. Foi depois. Z: Mas foi com o general. Eu vou te contar toda a história, Sérgio. SC: Não. ‘Todo paulista é bicha’ foi depois da nossa prisão. Z: Olha a memória, olha a memória como falha. Olha a memória da gente como falha. Eu tenho lá em casa um livro de músicas de carnaval do Edgar de Andrade... SC: Edgar de Alencar. Z: Está vendo como a memória falha? Mas tenho o livro organizar a minha memória. Porque aí eu tenho um fato, aí eu lembro a música que cantava naquele ano, eu vou lá no Edgar de Alencar ver a data da música e sei quando é que aconteceu. Então a gente tem que ver, né? O que interessa é que botamos ‘Todo paulista é bicha’. Todo paulista (pequenininho: ‘que não gosta de mulher’) é bicha’. E o general aprovou. SC: Deixa eu explicar a razão dessa manchete. É que O Pasquim, no início, não vendia bem em São Paulo. Até que o Tarso escreveu uma crônica esculhambando São Paulo e os paulistas. Aí começou a vender bem em São Paulo. E nós concluímos que paulista gosta de apanhar. Z: (risos). SC: Foi uma fase difícil do Pasquim. Estava difícil já, em 71, e aí falamos o negócio de São Paulo, onde caía muito. E aí foi o Ziraldo que teve essa idéia de manchete. Essa manchete é do Ziraldo. Z: Pois é. Aí, o general aprovou, sem consultar. E ele estava lá porque o general

- como é que é o nome dela? - e ela ia de biquíni levar... SC: É verdade. Como é que era o nome dela? Não era Suzana? J: Não, não era Suzana, não. Era uma loira. Aliás, essa loira, foi muito engraçado. Nós estávamos precisando de um boy. Eu botei um anúncio: “Precisa-se de um boy”. Z: Apareceu uma girl. J: Chega uma loiraça num carro, com motorista, dizendo “eu quero esse emprego”. Eu falei: “nós pedimos um boy. É pra comprar cigarro na esquina”. Ela falou: “eu vou. Meu psiquiatra disse que eu estou precisando fazer alguma coisa”. Z: E ela é que levava... E o general ficava com os amigos lá na praia. Aí ele lia as anedotas pros amigos e dizia: “olha, vou aprovar. Mas está uma merda. Semana que vem, vocês me falem, que eu vou dar umas anedotas pra vocês, porque vocês não sabem contar anedotas, não”. E ele dava anedota pra mim. E achava as minhas uma merda. Muito sem graça. J: Mas a menina de biquíni ajudou... Dava bola pra ele na frente dos colegas e ele ficava com a bola cheia (risos). SC: Agora, uma vez, teve um número dramático. Nós resolvemos fazer uma edição inteira em homenagem a Jesus Cristo. Jesus Cristo estava na moda. Era a época do ‘Jesus Cristo Superstar’... Enfim, estava na moda. Z: Fizemos um número lindo, a propósito. SC: Hippie andava com a cara de Jesus Cristo na camisa. E aí fizemos um número realmente fantástico. Tinha até o pôster central, um desenho do Millôr, que era uma reprodução da ceia, em que Jesus Cristo acabou de contar uma anedota e os apóstolos estão todos às gargalhadas. A graça divina. Z: Não, o pôster central era uma foto na casa do Alberto Reis, em Rio das Ostras... SC: Ah, não! É verdade. Teve as duas coisas. Z: Uma ceia lindíssima. E teve esse do Millôr. ‘Jesus Cristo Superstar’ na capa. Nós tivemos que pedir autorização à Cúria Metropolitana.

A censura, na garçonière do general, segundo Jaguar: "a gente torcia para chegarem as garotas. Ele aprovava muito mais, na pressa de se livrar da gente. Contratamos uma loira muito bonita e ela ia de biquíni levar..."

11 ○

chefe da seção tinha pedido a ele. “Eu estou aqui pra servir a um amigo”, ele falava isso sem parar. Um general que era o chefe dele. E aí, com o negócio de ‘ todo paulista é bicha’ , não deu tempo de apreender, porque o jornal vendeu muito, em um minuto ele acabou em São Paulo. E teve protesto na Câmara, aquele negócio todo. SC: Ou Assembléia Legislativa. Deputado esculhambando a gente. As rádios de São Paulo: “seus cariocas, canalhas!”. Mas vendeu tudo. O que interessava pra gente era vender tudo. Z: Aí, o Buzaid manda chamar o general e pergunta: “como é que o senhor aprova isso?!”. Ele falou: “mas, ô, ministro, no Maracanã todo mundo xinga todo mundo de bicha. E, além do mais, todo paulista é bicha, mesmo!”. (risos) Isso é ele contando pra gente. Aí, nos chama pra uma reunião e diz: “olha, não confio mais em vocês”. Eu falei: “mas, general, o senhor aprovou”. “Não! Vocês não falaram”. “Mas, general, o senhor aprovou”. “Mas agora eu não aprovo mais nada. Não aprovo mais nada. Porque, por causa de vocês, eu tive esse momento terrível da minha vida, porque eu odeio bicha! Eu odeio bicha! E vocês me obrigaram a conversar com aquela bichona do Buzaid. Eu tive vontade de vomitar na cara daquela bichona! E eu tive que enfrentar isso. Nunca mais! Eu vou pedir demissão.” Entregou o cargo. E outra coisa: logo depois teve uma coisa contra a gente e ele entregou o cargo e nos comunicou ah, ele saiu no dia em que nós botamos as fardas na capa: ‘Toda polícia é violenta’. E fomos alugar várias fardas no Mundo Teatral e botamos na capa a polícia de cada país. E, por acaso, um dólmã, era um dólmã da infantaria dos anos 29 e tal. E o generalchefe reclamou que era uma desmoralização da infantaria. Aí ele brigou, porque ele disse para o chefe: “a infantaria só tem viado, mesmo, só tem babaca”, uma briga boba. E eu lembro que foi aí que o cara quis fechar a gente. E ele não deixou fechar o jornal, porque ele disse: “ninguém tasca os meus meninos”. A gente já era os meninos dele. Isso é que é a coisa mais engraçada. A censura é uma coisa impossível de ser exercida por isso. A não ser que você proíba. Quer dizer, se você se imiscui, a palavra é essa?... SC: A censura é impossível de ser exercida dessa maneira, porque da maneira que eles inventaram depois... Z: Depois sim, claro. Mas o Jaguar vai contar a versão dele da saída do general maravilhoso. Como é que é? J: Uma vez eu entrevistei, acho que fui eu sozinho que entrevistei, uma preta americana, antropóloga... Z: Eu e você. J: Nós dois, então. Angela Davis. E aí, ela disse que fez umas pesquisas aí e disse que chegou à conclusão de que o Brasil é um país tremendamente racista. E o general aprovou totalmente. Aí é que deu a briga com o general lá de cima. Ele falou: “Não, mas eu acho que tem racismo no Brasil; o Brasil é um país racista, mesmo”. E aí é que pegou. Foi talvez a gota d’água. Z: É verdade. Aí tem fenômeno interessante. A partir daí, ficou proibido no Pasquim pelo censor... Exatamente. O general saiu e nós passamos a ser censurados em Brasília. E não víamos o censor. Não sabíamos nem com quem íamos


falar. A gene falava com uma figura misteriosa lá, que informava que o jornal tinha chegado e que ia devolver pra gente. Às vezes a gente mandava matéria pra fazer 50 edições, sobrava... Teve uma vez que não sobrou nada. AML: Deixa eu aproveitar aqui. Não sei se é por trauma ou por evitar um momento chato, a gente está sempre dando uma pulada de cerca em cima da prisão. SC: No meio disso tem a prisão. Z: Deixa eu contar rápido o último caso do censor. Censura dava só essa entrevista. Antes da gente ir pra Brasília, fomos censurados por umas moças. O Jaguar, inclusive, estava numa boate na Barra da Tijuca e tinha um cara sentado na mesa respirando profundo. Jaguar ficou olhando pro cara assim. Aí, de repente, levanta da cadeira do lado uma mulher limpando a boca; era a nossa censora. (risos) Se lembra disso, Jaguar? (risos) Chupando o policial. Nós fomos falar com ela e ela falou assim: “meu filho, eu não perco o meu emprego. Comigo não vai passar nada, pois não tenho quem me sustente”. Essas pobres dessas moças eram as nossas censoras. Era uma loucura. Eu fui pra Roma, mandei pra elas, na censura, um cartão do Davi, do Miguelângelo, mandei de costas e disse: “eu estou mandando o Davi de costas porque se eu mandar de frente vocês cortam o pau dele”. E peguei e mandei pro Departamento de Censura. Quando eu cheguei lá, elas tinham sido removidas e proibidas do contato com a gente. Aí é que a gente foi pra Brasília. Agora, ficou proibido a palavra preto ou negro ou fotografia de preto no Pasquim a partir da

entrevista da Angela Davis. Então, nós temos... Eu não sei se você tem guardado. Você tem guardado alguma coisa de censura? SC: Eu não tenho nada guardado do Pasquim. Z: Nós temos. Eu tenho um pouco negócio de censura, Jaguar tem. Ele disse que ia fazer até um livro sobre as coisas censuradas. Retrato do Pixinguinha riscado, assim, riscado 40 vezes com pilot, e furado. Pelé... Preto não podia mais entrar no Pasquim. Uma foto do Pixinguinha riscada em xis. Pra te mostrar como é que a censura era exercida. Acho que dá pra gente encerrar o capítulo censura. SC: Bom, então vamos à prisão. AML: Quando é que foi? SC: Tem três versões. Porque fomos presos em momentos diferentes. Não, eu e Jaguar fomos juntos mas... Z: Mas são várias prisões. Você só tem uma? SC: Não, eu estou falando essa do Pasquim. A chamada “gripe do Pasquim”. Era uma coisa curiosa: a gente estava preso mas ninguém podia saber que nós estávamos presos, porque a censura não deixava, porque, segundo a ditadura, não tinha ninguém preso no país. Então, O Pasquim teve que inventar que nós ficamos com gripe. Foi uma gripe. A minha versão é a seguinte... AML: Foi quando, Sérgio? SC: Foi em novembro de 1970. As prisões começaram no dia 1º de novembro de 1970. Z: Quarenta e cinco mil prisões no Brasil. A história também não sabe disso: 45 mil prisões. Deixa eu contar a história. Isso é

"Era uma coisa curiosa: a gente estava preso mas ninguém podia saber que nós estávamos presos, porque a censura não deixava." (Sérgio Cabral)

coisa importante. O Médici tinha preparado um discurso em que ele ia falar em anistia. Um discurso de Natal. Eles tiraram o discurso da mão do Médici e enquadraram o Médici. E, como tinha várias correntes dentro, quer dizer, começaram uma série de prisões. Qualquer coronel que tinha um poderzinho começou a prender gente. Então, do dia 1º de novembro até o dia 10, foram 45 mil seqüestros no Brasil. Inclusive, onde tinha quartel de polícia, Juiz de Fora, Governador Valadares, Goiânia..., onde havia um coronel, dez, quinze, vinte sujeitos foram presos. SC: Eu fui, com o Fortuna, nós dois fomos fazer uma palestra em Campos, numa

12

faculdade, sobre O Pasquim. Chegamos lá, fomos muito bem recebidos, acabou a palestra, aí nos levaram pra uma cidadezinha que tem lá, né, para um clube, aí passamos a noite dançando, as meninas..., foi ótimo, a noite agradabilíssima, e tal, a festa acabou com o dia amanhecendo, aí me arranjaram um calção, fui tomar banho na piscina, ninguém dormiu, e estamos lá no sol, tomando gin tônica, aí chegou uma pessoa e falou assim: “Sérgio, o seu primo, que é médico, telefonou da sua casa e pediu pra você ligar urgente”. E só podia ligar lá de Campos, porque onde estava não tinha telefone. Aí eu fui pra Campos pra telefonar, numa redação de jornal, lá de Campos. Monitor Campista, um daqueles jornais. Aí, saí e fui andando. E fiquei pensando: “meu Deus, meu primo que é médico, na minha casa. Que que houve? Alguma coisa com meus filhos”. Aí começou a me baixar pânico. Estava sol, eu morava no Leblon, perto da praia, e fiquei imaginando: “meu Deus, será que alguém se afogou?”. Na época, o Serginho tinha 7, Cláudia 6 e Maurício 5. Eu digo: “meu Deus, será que se afogou?”. E só pensava nisso. E eram mais ou menos quarenta minutos de viagem. Aí, cheguei no jornal, peguei o telefone, naquela época à manivela, falar com telefonista, e tal, aí tocou e Magali atendeu. Eu falei: “Magali, é o Sérgio. O que houve?”. Ela falou assim: “o Exército invadiu O Pasquim, prendeu todo mundo e estão atrás de você”. Eu falei: “que alívio, meu Deus! Pô, que boa notícia!”. (risos) Z: (risos) Que bela notícia: sua mãe morreu. (risos)

Jornal da ABI


AML: Mas você fugiu ou...? SC: Eu estou falando agora a minha parte porque, realmente, aí, foi uma coisa individual. Eles estavam, o Ziraldo já estava preso no primeiro dia. E aí eu fugi. Mas não como fugir. Eu vou fugir como? Aí, de 1º pra 2, dormi no estúdio do Millôr. Eu era, na época, o presidente da empresa, aliás. Aí fui pra casa da Leila Diniz. Leila, Leila é maravilhosa. Aliás, tem uma história da Leila... O Chico, ai meu Deus, aquele jornalista, Chico... ai! J: Qual deles? Qual Chico? SC: O jornalista, que participou do seqüestro do... Chico Nelson, pois é. Porque a Leila também escondeu o Chico Nelson. Só que a Leila tinha um caso com o César Tedim. Aí, quando o César Tedim chegou lá, ele falou assim: “estou sentindo cheiro de homem aqui”. Aí ela falou assim: “é, um cara que está assim...”. “Nada disso! Manda pra rua. Com você eu não vou deixar homem aqui não”. Aí, mandou pra rua. Mas não foi pra rua. Levou pra casa da mãe dele. “Você vai ficar com a minha mãe. Com ela você não vai ficar não. Por mais perseguido que seja”. Z: “Fica com mamãe. Com a minha mulherzinha, não”. (risos) SC: Mas aí ficamos... A Leila foi maravilhosa. Fizemos reuniões na casa de Luís Carlos Vinhas... Aí, fui ao Pasquim. Eu quero dizer que eu sou um pouco culpado dessa prisão também, porque eu fui à gráfica onde O Pasquim estava sendo rodado e tinha uma foto-potoca, do Jaguar, que era a Independência do Brasil, uma reprodução do famoso quadro da Independência, Dom Pedro com a espada, dizendo assim: “eu quero mocotó”, que era a frase da época, por causa do festival; era a música “eu quero mocotó”. O Grossi, que foi comigo lá na gráfica, falou assim: “é melhor tirar isso”. Eu falei: “não, ué, tirar coisa nenhuma. Deixa aí, pô”. E esse troço aí é que rendeu pra gente... Z: Deu uma mão-de-obra muito grande descobrir quem tinha mandado prender a gente. Porque era uma coisa, assim, arbitrária. Cada desafeto... Por exemplo, nessa ocasião, o Carlos Imperial tinha mandado um cartão-postal pra todo mundo, ele sentado no vaso igual o Frank Zappa. Aí, nessa onda de prisão, chegou na casa da filha de um coronel. O coronel mandou prender o Carlos Imperial. E mandou o Carlos Imperial pra Ilha Grande. E o Carlos Imperial dizia assim: “eu não sou subversivo”. SC: Pelo contrário, ele era puxa-saco do golpe. Z: De direita, puxa-saco. Ele ainda falava com aquele jeitão de cafajeste dele: “a única vantagem é que eu comi esquerdista até cansar”. Ele contando pra gente. Bem brasileira essa história do Carlos Imperial. Então nós ficamos 90 dias presos porque ninguém sabia quem tinha prendido a gente. SC: A nossa prisão eu gosto da versão do Jaguar. Que é verdadeira mas que ele conta com o toque jaguarista. Conta aí como é que foi que a gente chega lá na prisão. J: Como é que a gente se encontrou... SC: A gente se encontrou na redação do Pasquim, aí falaram pra gente: “não fica aqui não, que vão pegar vocês aqui”. Aí saímos, fomos para aquele bar Giotto que tinha ali na praia, quando combinamos nos

MEMÓRIA E FUTURO

apresentar, porque chegou... Bom, você vê que Paulo Francis tem história! Chegou um telefonema (Paulo Francis já estava preso) e veio do Pasquim a seguinte notícia: Paulo Francis telefonou pedindo pra nós nos apresentarmos, porque só queriam nos ouvir e iam nos soltar em seguida. Nós acreditamos. J: Nesse interim eu estava em Arraial do Cabo, eu tinha uma casa de pescador lá, alugada, eu cheguei no meu bugue amarelo (como era o nome dele?, tinha um nome, aquele cavalo do Brancaleone...). Eles, pelo menos, foram presos, nós não tivemos nem esse gosto. Pagamos o taxi até a Vila Militar... SC: O próprio Flávio Rangel, que era apenas um colaborador do jornal, um grande diretor teatral, resolveu ir conosco. J: O Flávio Rangel falou: “eu vou também”. Eu falei: “mas eles não estão atrás de você”. “Eu vou”. Aí veio com uma mala. Eu falei: “que mala é essa, porra”. Ele falou: “ué, não vamos ser presos?”. Eu falei: “não, nós vamos lá pra ser ouvidos e depois vão soltar a gente como o Paulo Francis prometeu”. Aí fomos de taxi, chegamos lá, quando chegamos perto, eu falei: “vamos voltar” Aí tomei um copo de cachaça, o último copo de cachaça, aí chegamos lá, nos apresentamos, ficamos presos um tempão. SC: No quartel dos pára-quedistas. Aí fomos presos na hora. Chegamos lá, nem discutiu-se: “vum bora, pra prisão”. Eu me lembro da minha chegada à prisão, da nossa chegada. Z: Eu lembro direitinho. SC: Pois é, eu lembro de você, da tua cara. Porque estavam todos juntos. Z: Estávamos eu e Francis presos. SC: Eu me lembro quando você nos viu: “ahh aaaaahhh há há há”. Z: Estávamos eu, Tarso e Paulinho Garcez. Não, eu, Francis, Paulo Garcez e o Tarso. SC: Fortuna não estava não? Z: Não, Fortuna chegou com vocês. SC: Não, não. Fortuna foi preso antes de mim, foi preso antes da gente. Z: Mas ele também chegou. Eu lembro dele chegando no corredor, lívido, a cara branca. Quando ele olhou pra gente voltou o sangue na cabeça dele. A gente era sequestrado, a gente não era preso. Me lembro que o cara foi me pegar e eu disse assim: “tem mandado de prisão?”. Ele disse: “Estás brincando!”. SC: Mas aí ficamos dez, mais ou menos, lá. É verdade que alguns foram soltos logo. Por exemplo, o fotógrafo, Paulo Garcez, coitado, foi preso, não tinha nada a ver com isso, era um fotógrafo. Casou, aí era o primeiro dia dele de casamento, casou com uma moça muito bonita, acho que era modelo, a Paula, e ele tinha descido do apartamento pra comprar goiabada e pão, manteiga, sei lá, na padaria. Aí comprou e a polícia levou o pobre Paulo. Z: Não, foi o exército, os pára-quedistas, todos constrangidos de fazer aquilo. SC: Eu sei que nós ficamos os dez lá e pra mim foi uma tragédia. Uma tragédia pelo seguinte: o cocô, que era feito numa privada... Z: Ahh, isso foi triste... SC: Numa privada que era aberta, quer dizer, todo mundo via as pessoas fazendo cocô, e aquela privada que era um buraco no chão, aquela coisa horrorosa...

Z: A privada era dentro da cela. SC: E eu não faço cocô com gente olhando pra mim. Não adianta, eu não faço. E aí? Aí os dias iam passando e eu não fazia. Aí, quando o coronel apareceu lá, o coronelcomandante, foi até o Ziraldo que falou com ele: “Olha, o Sérgio Cabral tem um problema aí, o negócio do cocô...”. Daí em diante, todo dia de manhã, iam lá na cela e diziam: “hora do cocô”. Aí eu ia fazer lá. Ah que era uma maravilha, me trancava e tchaaaa. Z: O Brasil é patético. Nós tínhamos ficado presos nos pára-quedistas. Aí teve um dia em que disseram: “Olha, todo mundo vai embora pra casa”. Aí nós pegamos nossos uniformes, nossos remédios, nossos biscoitos e demos tudo pra todos os meninos presos. Porque nós estávamos presos junto com uma porção de insubmissos. Garotos, soldadinho raso, presos. Presos por indisciplina militar. A gente deu tudo que tinha pra eles e saímos

SC: Tem várias. Z: Aí ficamos nós quatro lá. Deu crise de choro: “eu odeio esse país!”, não sei o quê e tal. E o Fortuna quietinho. Daqui a pouco chega um cara e diz assim: “Reginaldo Fortuna!”. O Fortuna disse “eu”. “Venha conosco”. Aí nós todos nos despedimos do Fortuna para sempre. Saiu o Fortuna assim. Mas o Fortuna saiu morto! Aí ficamos nós três nos olhando, eu, Sérgio e Maciel, aquele silêncio assim, parados, e ficamos naquela ansiedade. Daqui a pouco voltam os guardas com o Fortuna. O Fortuna com a cara séria. Fecha tudo, saem os guardas. O Fortuna “quá quá quá quá quá”, aquela gargalhada. E a gente: “o que que foi?” “É que o general conhece a minha sogra e me chamou pra me esculhambar, dizendo que eu sou um péssimo marido”. O general conhecia a sogra do Fortuna. SC: É porque o cunhado dele era oficial do exército e servia por ali. Z: “Você é um péssimo marido. Aliás eu falei que era pra não casar com artista.” SC: Já nos pára-quedistas houve alguns fatos que nos chamaram a atenção. Um dia chegou um tenente, tenente Carreteiro, e falou assim: “vocês conhecem alguém na embaixada americana?”. “Por quê?”. “Porque eu estou a fim de sair do exército, quero fazer um curso nos Estados Unidos, turismo, e eu tenho que ter um aval”. Z: Não, um green card. SC: Aí, por acaso nós conhecíamos. Conhecia um adido cultural, parece, mas que todo mundo dizia que era do CIA, porque ele era muito simpático. Papo ótimo. Inclusive mandou cigarro pra nós, americano, quando estávamos presos. Z: Mandou tudo pra gente, era uma maravilha. A gente era sustentado pela embaixada americana, pô. SC: E diziam que era do CIA. E aí deu essa coisa maluca que é o seguinte: nós, acusados, entre outras coisas, de comunistas, né - uma das perguntas que me fizeram foi se o dinheiro vinha da Alemanha Oriental, pro Pasquim - nós, acusados de comunistas, estarmos arranjando para um dos nossos carcereiros um green card da embaixada americana, do imperialismo, que era o nosso inimigo. Quer dizer, era uma loucura. Nós éramos pistolões dele. Z: E ele foi para os Estados Unidos e montou um restaurante lá... SC: Mandou pra mim, há seis meses, fotografias dele gerenciando um hotel em Miami, que é uma cidade, é um hotel assim de cinco mil apartamentos, uma loucura, daquelas loucuras de americano. E ele é o gerente, está muito bem, vive lá até hoje. Z: Pois é, contando de longe é divertido. Mas era muito dramático. SC: Era desagradável. Quando nós estivemos lá no BMA, houve interrupção, eu saí, fui ficar solitário no Batalhão de Saúde. Um dia que me tiraram e me botaram numa prisão solitária. Olha, eu não recomendo a ninguém. Primeiro, que eu não sabia. Eu não podia comer de garfo, porque o garfo é uma arma. Então só podia comer de colher. Carne, qualquer coisa, só podia ser de colher. Aquelas humilhações... era uma coisa... E só podia ter meia hora de banho de sol. É uma coisa tão traumatizante que quando eu saía pra tomar esse banho de sol, eu passava na prisão ao lado, e um

"Paulo Francis telefonou pedindo pra nós nos apresentarmos, porque só queriam nos ouvir e iam nos soltar em seguida. Nós acreditamos. Ficamos dois meses presos." (Sérgio Cabral)

só com a roupa do corpo pra ir pra casa. Cada um foi num carro e por acaso eu, Sérgio, Maciel e Fortuna ficamos num jipe. Foi uma coisa aleatória. E aí rodaram, rodaram, rodaram com a gente e não saiam da Vila Militar. Aí entraram num lugar chamado Batalhão de Manutenção de Armamentos. Todos os soldados sujos de graxa, todo mundo bebendo cachaça, um zona. E tinha um posto de gasolina. Nós paramos. Atrás do posto de gasolina eles estavam lavando uma cela que não era usada há anos. E aquele cheiro de creolina. Nós ficamos no carro esperando eles lavarem. E aquele bando de soldado vestido tudo de graxa na cara, igual pintado pra filme, era uma coisa assim de comédia pastelão. Olhando pra nós quatro dentro daquele jipe. Aí enfiaram a gente lá dentro. Tiraram cinto da gente, tudo. Fecharam aquela coisa e aí é que nós vimos a tal privada do Sérgio Cabral lá. SC: Aliás, a gente definiu esse quartel assim: “esse quartel ficava no cu da Vila Militar”. E a prisão ficava no cu do quartel. Z: Era uma coisa fantástica. Mas aí tem uma história do ridículo brasileiro.

13 ○


cara, cujo nome eu não sei - eu só sei que era um cara da PUC, estava preso por subversão ali - esse cara, que é um cara que eu gostaria de encontrar, pra agradecer a ele, ele mandava pra mim uma bola de basquete, que eu levava pra quadra, onde eu tomava banho de sol naquela meia hora. E durante uma semana que eu fiquei lá (eu já joguei basquete), eu dali do garrafão, dali onde se cobra a falta, eu jogava a bola, ficava meia hora jogando a bola na cesta, durante uma semana, meia hora por dia... não acertei uma bola. Porque eu olhava, eu ficava assim no meio da quadra, sozinho, ao lado daqueles soldados apontando arma pra mim. Eu falei: “é claro que eu estou nervoso, por causa desses babacas aqui e tal, mas, ora, bobagem, tira isso, eles não vão me atirar, bobagem e tal”. Aí pegava a bola, pluft, não entrava. Não entrou nenhuma. Outra coisa dessa prisão, dessa solitária, era o tempo passar. Porque eu não podia ler, não podia nada. Mas eu levei pra lá, felizmente, que a Magali levou pra mim, uma coisa de Neocide Floral. Sabor não sei o quê. Aí levei o Neocide Floral e ficamos eu e as baratas. Aí o que eles faziam conosco eu fazia com as baratas. Pra passar o tempo. A barata vinha e eu tchic; ela ficava tontinha. Aí subia, e eu tchic. Passava o dia, tadinhas, até que elas morriam, tadinhas. Tem outra da barata no BMA. Z: Um dia teve uma tempestade daquelas de verão, nós estávamos os quatro num beliche e começou a entrar água dentro da cela. Era uma cela, tinha um corredorzinho. Começou a entrar no nosso quartinho. Aí, de repente, eu vi uma barata boiando. Depois vi outra barata boiando. Aí levantei, estiquei a cara pra fora e no corredor tinha duas mil baratas boiando e subindo barata molhada pela parede. SC: Não, não, duas mil não. Dois milhões. Z: Dois milhões. A parede estava preta de barata. Tinha entupido o esgoto e elas saíram todas e estavam aquelas baratas molhadas subindo pela parede. E aí nós tínhamos mil negócios de ‘Neocide’, aquela coisa toda, e nós levantamos os quatro, botamos o pé na água e fomos matar as baratas. E aí o Maciel pegou um negócio de ‘Neocide’ e chegou e fez assim tchá, e era creme de barba. SC: Creme de barba. O creme saiu todo. Z: Prrrrr na parede e foi aquelas baratas dançando assim, aquelas baratas. SC: Outra figura desse quartel, o BMA, era o comandante, que era o coronel Orlando, que era uma bela figura. J: Não era o Sarmento, não? SC: Não, Sarmento era o pára-quedista. Z: Coronel Orlando era maravilhoso, né. SC: O coronel Orlando era o coronel bonachão. Z: Quem esculhambou o Fortuna foi ele. SC: Quando ele passava lá pela prisão, ele falava assim: “Cabral, o nosso Vasco, hein, pô...”. Eu dizia: “é, e tal”. AML: Quanto tempo vocês ficaram detidos lá? SC: Dois meses. AML: E qual foi a justificativa pra depois soltar? SC: Não teve. Nem pra prender nem pra soltar. Não teve. Z: Deixa o Jaguar contar a versão dele. SC: Mas deixa eu falar do coronel Orlando. Um dia, o coronel Orlando falou assim: “as

mulheres de vocês vieram visitar vocês, mas vocês estão incomunicáveis”. Porque tinha havido seqüestro do embaixador e achavam que nós seríamos trocados pelo embaixador suíço. Z: Aliás, fomos trocados. SC: “Ora, como a palavra está dizendo, vocês estão incomunicáveis”. Aí, daí em diante, ficou sendo uma gíria nossa. Fortuna, aliás, usava muito isso assim: “você quer passar a colher, como a palavra está dizendo, a colher?”. Era o Millôr: “me dá um cigarro, como a palavra está dizendo, um cigarro”. Vai lá Jaguar. J: Eu fiquei com o Flávio Rangel, que era uma ótima companhia, bem educado, ao contrário do Tarso, por exemplo, que seria horrível ficar com o Tarso. E aí o coronel mandou abrir a mala e eu tava com o livro ‘Guerra e Paz’, o tipo do livro que a gente só lê na cadeia mesmo, né.

que estava assim num bivaque, aí cai uma daquelas bombas antigas, com aquele pavio, né, e ele se jogou em cima da bomba, a bomba explodiu, ele morreu, e todos bradaram em uníssono: “morreu o Prego”; era o nome do cara. Aí eu cácácácácácácácácácácá. E os caras não entendiam como é que um cara que estava preso ria às gargalhadas. E o Francis, também. Tem um lance do Francis. Como comia o Francis! SC: Comia arroz com macarrão, inclusive. Arroz, feijão e macarrão. Dois pratos. J: E sempre tinha uma banana. Cada um tinha direito a uma banana. Ele sempre perguntava assim: “Jaguar, vai querer a sua banana?”. Eu falava: “não, pode ficar com ela”. AML: Bem, vamos caminhar pra encerrar o episódio da prisão... SC: Mas deixa eu contar uma da prisão, porque eu acho que vale a pena. A prisão foi um horror, foi um horror. Eu não quero passar aqui que foram dois meses de férias, não. Foi um horror, ameaça, e nós tivemos depressão... Z: Mas o Jaguar morre de saudade. J: Foi a única vez que eu não fiz nada na minha vida. Acordava, dizia assim: “quê que tem que fazer hoje? Porra nenhuma”. E outra coisa: eu bebia o tempo todo, que eu subornava uns guardinhas lá... SC: É, é, eles iam comprar cachaça. J: E o coronel vinha falar comigo, e eu falava com ele assim meio de lado. E ele assim: “quê que é, tá com algum...”. Eu falava assim: “Dor de dente”. Porque se eu falasse de frente com o coronel a gente podia cair duro, né. E outra coisa: eu detestava visita. Ao contrário deles, que são muito família, né. Eu só faltava dizer que eu não estava. Porque perturbava. Eu estava lendo, aí vinham, ficavam olhando pra gente assim com aquela cara de pena, entendeu, e eu detesto isso. E eu às vezes não ia atender. SC: Aliás, você e Fortuna... Fortuna, inclusive, de vez em quando, lá no BMA, vinha um sargento ou um oficial conversar comigo e com o Ziraldo. E o Fortuna ficava chateado. Falava assim: “preso não conversa. Eu quero ter o direito de preso, preso não conversa com ninguém, eu quero ser preso!”. Z: A coisa mais engraçada, mais patética dessa prisão, é que no domingo tinha visita das famílias aos presos. E nós ficávamos nas grades pras famílias nos verem igualzinho no zoológico. A gente fazia assim “aaaaaarrrrrrrrr”, pulava, “não joga amendoim”, as crianças olhando pra gente, os quatro comunistas. AML: E os militares faziam perguntas? SC: De vez em quando, de vez em quando, eles perguntavam. Aliás, uma vez eu fui interrogado junto com o Paulo Francis. E aí tem uma coisa engraçada do Paulo Francis, que ele perguntou assim: “vocês dois assinaram uma ‘monção’ de solidariedade ao editor Ênio Silveira?”. Eu falei: “eu assinei”. Aí, o Paulo Francis assim: “eu não assinei”. “Ué, mas seu nome está aqui. O senhor assinou esta ‘monção’ ”. Aí ele: “eu não assinei”. “Assinou!”. “Não assinei, capitão, porque ‘monção’ não se assina, ‘monção’ é um fenômeno pluviométrico. O senhor quer dizer moção”. Z: Melhor história é com esse próprio capitãozinho. Era um capitão do sul de

Jaguar e a prisão: "Foi a única vez que não fiz nada na minha vida. Bebia o tempo todo, que eu subornava uns guardinhas lá..." Ziraldo: "ele morre de saudade..."

Z: O Jaguar leu “Ulisses” e ‘Guerra e Paz’. J: Aí ele falou: “isso aí não pode. É russo esse cara aí, né, Tolstói, é russo”. Aí o Flávio Rangel falou assim: “Mas, coronel, é Tolstói”. “E daí; comunista!”. Aí ele falou assim: “tá bom, vamos fazer um acordo: você pode levar o livro, mas não come”. Eu falei: “Pode levar o livro agora”. O Flávio Rangel indignado. Eu falei: “não, eu prefiro mil vezes comer”. E a greve de fome que eu furei? Eu falei: “ah, não, eu vou comer”. Todo mundo indignado, mas quando eu comi e furei a greve, todo mundo ficou satisfeito. Me esculhambaram, disseram que eu era frouxo, covarde... Z: E quando você ficou sozinho, tinha umas coisas pra você ler que eram complicadíssimas, você tinha que ler bula, deram livros da Biblioteca do Exército pra você ler? J: Aí ele falou: “quer ler?”. Então mandou o jornal, a Revista do Exército. E eu ficava com o Flávio Rangel, lendo a revista; eu lia alto pra ele. Então eu me lembro assim que tinha um episódio, por exemplo - só episódios heróicos, né - um cara que foi tomar um bastião do inimigo lá e disse assim: “amanhã eu vou tomar à machadada”. Aí tinha assim: “fracassouse-lhe o intento”. E depois um outro herói

14

Minas, de óculos, e ele gostava de conversar, de testar a gente. Aí, o Flávio Rangel virou pra ele e disse: “ô, capitão, o senhor já leu ‘Guerra e Paz’? , como é que chama o herói do ‘Guerra e Paz’? ”. SC: Era Ana Karenina, pronto, vai ficar Ana Karenina que é uma heroína. Z: Ah, era ‘Ivan Ilitch’, não era ‘Guerra e Paz’. “Como é que chamava o algoz do ‘Ivan Ilitch’? ”. Aí ele: “Como é que eu vou lembrar?”. Eu disse: “Pois é, ninguém vai lembrar do seu nome daqui a cem anos, mas do meu vão lembrar”. SC: Mas uma vez, isso no BMA, que como disse muito bem o Ziraldo, era uma espécie de M.A.S.H., era uma esculhambação aquele quartel. Um sábado à noite, nós fomos lá, verão, um calor danado, aí chega o oficial de dia do quartel, que era o capitão do M.A.S.H. . Foi lá conversar comigo e com o Ziraldo. E ficamos lá conversando com ele. Aí, conversa vai, conversa vem, a conversa tá animada... “eu vou tirar vocês aí de dentro; eu aqui fora, vocês aí dentro”. Abriu a porta da prisão. Saímos, eu e Ziraldo, e sentamos com ele numa escadaria que tinha em frente à prisão, de onde as baratas saíram, inclusive. Aí, estamos conversando e, daqui a pouco, ele, o capitão, disse assim: “ô, cabo, pede ao coronel pra trazer duas cervejas aí”. Aí, estamos lá, batendo papo, sábado à noite, tomando cerveja... Z: Uma lua linda... SC: Lua linda e tudo. E ele falou: “ô, soldado, pede ao sargento pra mandar o violão”. Aí o sargento mandou o violão e ele falou assim: “Cabral, toca”. Eu falei: “eu não toco, eu não sei tocar”. Ele disse: “Você não sabe tocar?!”. Falei: “não”. “Mas como você não sabe tocar? Você não escreve sobre música?”. Eu disse: “É, eu até aprendi a tocar, mas eu não sei mais, enfim, não sei manipular”. Ele ficou triste. Aí o soldado que estava em frente, com uma metralhadora INA, falou assim: “eu sei tocar”. Aí o capitão falou assim: “Sabe mesmo?”. Falou: “sei”. “Então toca”. Aí, deu o violão pra ele, ele pegou a metralhadora e me entregou. Ficamos sentados e ele começou a cantar: “Boemia, aqui me tens de regresso”. Aí, no meio da música, o capitão falou: “caceta, é esculhambação demais. Me dá essa metralhadora aqui!”. Eu é que estava com a metralhadora... Z: Nós poderíamos ter tomado o quartel aquele dia. Mas essa coisa tem que ficar registrada, Sérgio. A única chance que a gente tem é essa. Inventávamos coisas pra poder fazer. Um dia nós quatro resolvemos fazer um soneto a quatro mãos que ficou uma merda. E foi negado pelo Fortuna. SC: Os desenhos também, que eu até pendurei lá em casa, mas muito feios também. Z: E aí fizemos um samba. Eu, Sérgio Cabral, Maciel e o Fortuna, que negaram o samba. SC: Porque na verdade fomos nós dois que fizemos. Z: E eu vou cantar o samba aqui, senão ele não vai passar pra história. O samba é considerado da melhor qualidade. SC: A Elis Regina quis gravar; nós é que ‘bobiamos’. Z: Você sabe todo, Sérgio? SC: Sei todo. Z: Cantamos juntos?

Jornal da ABI


SC: Cantamos juntos. Dá o tom aí. Z: A Vila já não é mais aquela / Já não é mais tão bela / Como Noel cantou./ A Vila , não é a vila da princesa, não / É a vila da tristeza, sim / Lá perdi meu violão, ai, ai. / Lá, os dias não têm fim, não, não..., não, não / Não tem samba, nem batuque / A batida é diferente... / Mas tem um quê?/ Tem um QG que prende a gente, prende a gente... (áudio disponível no sítio da ABI na Internet: http://www.abi.org.br, na seção Fala Memória) SC: Está aí, à disposição dos cantores que quiserem pro seu repertório, esse samba. Z: Que maravilha! Esse samba é bonito! Sérgio Cabral e Ziraldo! E não tocamos violão ! SC: E teve um dia, eu e Ziraldo, um dia de fossa, quando nós soubemos que íamos ser trocados pelo embaixador. Pensando em ir pra Argélia, ser banido, aquele horror, eu e Ziraldo não dormimos. E ficamos jogando buraco. A noite inteira jogando buraco e ouvindo Adelzón Alves. Eu me lembro até, nunca mais esqueci, que eu fingi que estava com o jogo ruim, e o Ziraldo soltou uma carta lá qualquer e eu bati. Aí, o Ziraldo falou assim: “isso lá no Mississipi dá tiro na cara”. Não é que, de repente, entra o Adelzon e fala assim: “alô, alô, pessoal da Vila, pessoal da Vila, Sérgio Cabral, Ziraldo...”. Porra, isso no meio da madrugada! Z: Agora, engraçado. A gente nunca vai fazer isso, mas daria um filme. O país era patético, ridículo. Não havia nenhuma sinceridade de projeto. Tanto, que eles estão aí até hoje, são as mesmas pessoas. Aquele sujeito que ia explodir o gasômetro, está mandando por aí do mesmo jeito com a mulher dele. E se a mulher dele estivesse lá na hora, ele diria: “Ah, quem manda aquelas putas ficarem andando pela rua nessa hora”. Então, era esse Brasil desconcertante que a gente retrataria nessa história. Talvez um dia a gente faça um filme. SC: Aliás, eu pensei que a ditadura realmente não ia durar muitos anos, na prisão, por causa do ridículo que ela era. Primeiro, que eu vi que o negócio do oficial, do sargento, o militar era uma pessoa igual à gente, não tinha nenhuma diferença; muitos deles até pensavam parecido conosco. O que havia era uma repressão muito forte de um grupo das Forças Armadas. Era bem nítido que era um grupo. Z: Pois é, mas eu fiquei, nessa noite dos seqüestros, que eles chegavam, pra você ter uma pequena idéia do ridículo, eles estavam seqüestrando a gente, porque cada coronel queria ficar com um de nós preso. Então o meu coronel Orlando... AML: Não permitia a entrega... Z: Sei lá como é que era. O coronel, ninguém sabe por quê. Eu sei que eu acabei ficando sozinho. O Sérgio Cabral foi embora, eu fiquei sozinho na cela. O coronel veio e me fechou e disse: “olha, vão querer, eu vou te fechar...” (porque a gente não ficava fechado, pra ter acesso ao banheiro), “eu vou te fechar na cela porque esses filhos da puta vão querer pegar você, o pessoal da segunda seção, eu não gosto daqueles caras”, e tal, “você não sai; eu vou levar a chave pra casa”. Ele morava em Copacabana. Aí eu falei assim: “Mas coronel, e se pegar fogo essa porra aqui,

MEMÓRIA E FUTURO

eu morro aqui, eu não tenho como sair daqui”. Ele disse: “como é que eu faço?”. Aí é essa história: deixou a chave comigo. Então deixou a chave da cadeia comigo que eu podia precisar da chave. Agora, se chegasse alguém, teria de dizer “olha, o coronel levou a chave pra Copacabana”. Então não podiam me levar. E realmente chegaram. Às duas da manhã: “vamos levar você”. Eu disse: “olha, não dá pra levar, porque o coronel levou a chave pra Copacabana”. Aí não me levaram e me deram um papel pra assinar, dizendo que eu não queria, um abaixo-assinado que vocês tinham feito dizendo que não queriam ser banidos. SC: Aliás, eu fui o primeiro a assinar isso. Eu dizia assim: “se eu for banido, vou voltar ao Brasil no primeiro dia. Não vou ficar lá fora não”. Porque o Ziraldo, o Jaguar, o Fortuna, esses viveriam em qualquer país do mundo, porque eles são desenhistas de nível internacional. Eles teriam sucesso em qualquer país do mundo. Eu não sou, eu só sei escrever em português, não falo porra nenhuma de línguas, imagina. Aliás, eu e Maciel, que tinha esse problema também, embora Maciel soubesse falar muito bem inglês, eu e Maciel bolamos abrir em Paris - fugir da Argélia pra Paris - e abrir em Paris um restaurante chamado ‘Le Pasquin’. E era, quer dizer, a gente ficava especulando, pra passar o tempo na prisão, ficava especulando sobre esse restaurante. Z: Eu escrevi 28 cartas essa noite. Inclusive pro Milton Gleiser, escrevi pra todos os cartunistas que eu conhecia na França, pra poder mandar, dizendo “já vou fundar a república brasileira em Paris”, com todos os artistas gráficos que eu conhecia, eu já conhecia todo mundo, escrevi pra todo mundo o que eu ia fazer da minha vida. Quando foi de manhã, o cara disse assim: “olha, você não vai mais ser trocado...”. Eu disse: “ah, não, agora eu quero. Já armei toda a minha vida lá fora, vocês agora vão me roubar essa aventura?!”. AML: Pra encerrar o episódio da ... Z: Não, deixa eu contar, isso é importante. Na noite anterior, abrem a minha cela, eu não sei se o Sérgio Cabral estava lá, e jogam um sujeito dentro da cela. Dois E aí eu cheguei e fui falar “não faça isso, guarda”, o outro era um sujeito de cara larga, disse assim: “não fale com a repressão, não fale, companheiro, com a repressão, não fale com esta bosta aí”. Eu falei: “ô, caramba, isso é um pobre de um soldado”. “É um repressor. Não fale, não fale”. Aí deu uma porrada nele, ele caiu na cama, ficaram os dois sujeitos comigo, e um deles era aquele marinheiro da Vila Kosmos, aquele que tinha feito um seqüestro e pegou uma criança pra poder se proteger e acabou entregando a criança. Eu fiquei com um par de sapatos dele. Os rapazes estavam todos torturados, mas todos machucados; estavam sem unha, disse que tinham enfiado coisa dentro da unha deles, estavam sem os dois mamilos, estavam todos feridos, mas, assim, com uma moral, que eu fiquei com uma vergonha de ter chorado, de ter sofrido, porque eram dois caras machos pra burro. E eles, no dia seguinte, quando eu acordei de manhã, eles estavam tirando os dois da cela, e esses dois foram trocados pelo embaixador. Um deles depois morreu. Aliás, morreram os dois já. Um eu sabia o nome dele. Deu

AML: Millôr ficou fora, né. Não chegou a ser preso. SC: Millôr ficou no jornal durante todo o ano de 71. AML: Henfil também… SC: Até que, no final de 71, eu saí da diretoria e eles assumiram. Assumiram, o Jaguar, a direção do jornal, o Ziraldo, o Millôr, Fernando Gasparian veio também ajudar, e trocaram o nome da empresa, enfim, tentaram uma saída para o jornal. Mas eu já estava fora. E como eu já estava fora, daí em diante, eles que falam, eu quero dizer que foi um prazer o nosso programa… AML: Antes de você…, que você daqui a pouco vai ter que sair. Ainda temos um restinho aqui… SC: Que horas são? AML: São uma e dezenove. SC: É, já está ficando tarde pra mim. AML: Só um restinho. Só nesse sentido mesmo do porquê da sua saída, quer dizer, mais esse depoimento pessoal… SC: Não, foi por dinheiro. Foi por dinheiro. Porque eu vivia do Pasquim e O Pasquim não tinha mais condição de me pagar. Quer dizer, há muito eu vivia de pedir dinheiro emprestado a um banco, aí pegava com outro pra pagar àquele outro… Você não pode imaginar. O negócio da dureza tem aspectos terríveis. Cortar a luz, o telefone, isso é uma coisa humilhante, deprimente, mas cortar o gás… Vem a empregada, a quem eu não pagava há dois meses, e diz assim: “cortaram o gás”. Quer dizer… Porque o gás já é o final, não tem mais como, né. Eu estava numa situação muito difícil. Eu me lembro de uma vez que eu cheguei naquele botequim perto que tinha na rua Clarice Índio do Brasil, eu estava contando a minha dureza, né, porque tinha ido lá em casa o Alfredo Brito com os filhos pequenos, e estamos lá conversando e tal, e aí me pediram: “tem biscoito?”. Não tinha. Aí eu falei: “não” e tal. Eu vi que eles fizeram cara feia e tal. Daqui a pouco vem Claudinha, minha filha, correndo, foi na geladeira, pegou um tomate, cortou, botou sal, e saiu comendo o tomate com sal. Aí eu fui e perguntei aos meninos: “vocês gostam de tomate com sal?”. “Gostamos”. Aí distribuí tomate com sal. Z: Foi aí que você foi pra São Paulo, foi? SC: Foi, foi logo depois disso. Aí o Paulo Garcez, fotógrafo, falou assim: “é, rapaz, comigo aconteceu uma coisa parecida: eu estava em casa, com a Paula ainda, casado com a Paula, e chegou uma amiga da Paula, que estava custando a sair de casa”. Aí que ele pensou assim: “essa mulher vai comer a minha carne assada”. Aí foi lá, tirou a carne assada e escondeu no armário. Tirou da geladeira e escondeu no armário. Pra ver a dureza em que ele estava. AML: E por que essa dureza? Se O Pasquim vendia 120 mil? SC: A economia do Pasquim deteriorou e aí eu não sei. O negócio do dinheiro do Pasquim eu continuo achando um mistério. Z: Depois da prisão, acabaram os anúncios, ninguém mais anunciava no Pasquim, não tinha mais nenhum anúncio. Só a Shell continuou anunciando, que é uma história fantástica, a Shell anunciava no Pasquim e não dava… SC: Shell e Pan American. Duas expressões do imperialismo. Z: Anunciavam no Pasquim e não davam

"O país era patético, ridículo. Não havia nenhuma sinceridade de projeto. Tanto, que eles estão aí até hoje, são as mesmas pessoas." (Ziraldo)

branco agora. Então, eles não estavam brincando. Eles não estavam brincando. A gente, que era jornalista, era conhecido, mas… SC: E nós fizemos também exame, quando veio a notícia de que nós seríamos trocados pelo embaixador, fizemos aquele exame pra provar que nós não fomos torturados. Não sei se vocês fizeram. Z: Fiz também. SC: Inclusive fui fotografado nu, e aí é uma coisa humilhante, porque você fica lá e “porra, pau pequeno, hein”, sabe aquele negócio, né, é sacana, é escrotidão, uma coisa, assim, bem escrota. AML: Como é que soltaram vocês? SC: Como prenderam. Chegaram um dia, dia 31 de dezembro de 1970, abriram a prisão e mandaram a gente embora. Não, avisaram antes. Avisaram antes, tanto que nós tivemos tempo de ligar pra casa. Eu me lembro que eu liguei, porque quem foi me buscar, de carro, junto com a Magali, foi João Araújo, pai do Cazuza, que é um querido amigo, que só aparece nas horas em que eu preciso. Aliás, é um amigo que raramente eu vejo, mas ele é fantástico. E ele foi lá me buscar. Aliás, quando eu vi que já não era mais suburbano foi pelo seguinte: eu morava já na Zona Sul, né, foi quando viemos aquele caminho todo, pegamos o túnel, e aí quando chegou na Lagoa eu falei: “estou livre!”. A sensação de liberdade pra mim foi a saída do túnel, assim, a Lagoa. AML: Mas durante esse período da ‘gripe’, da prolongada ‘gripe’, de praticamente dois meses, dois meses inteiros, O Pasquim continuou. É bom contar um pouco dessa história, como é que… Z: Pois é, ele vendia 120 mil exemplares; quando a gente saiu, ele estava vendendo 30 mil. Quer dizer, a população perdeu o interesse por ele. Quer dizer, a gente teve que batalhar muito, esse negócio de “todo paulista é bicha”, da Dercy Gonçalves… A gente só voltou a 100 mil com a entrevista da Dercy Gonçalves. Mas aí o jornal, depois, ele foi se mantendo nessa tiragem e tal, até que chegou o momento da anistia. AML: Mas, antes, quem que sustentou o jornal? Houve um mutirão pra sustentar, né? SC: Não, o jornal foi…

15 ○


confiança à ditadura. Os outros morriam de medo de anunciar. Mas depois teve bomba no Pasquim, explosão das bancas… SC: Bom, mas teve o seguinte: a Volkswagen assinou um contrato conosco de dois anos, de página inteira. Isso nos foi comunicado pelo cara da agência: “olha, o comandante do 2º Exército mandou dizer que considera anunciar no Pasquim um ato de hostilidade à revolução”. E a Volkswagen não queria brigar com “a revolução”. E perdemos. Antarctica, outro que era nosso anunciante, adorava a gente. Eu me lembro até de uma experiência fracassada que eu tive de publicitário, porque a gente às vezes é que fazia os anúncios, principalmente eles, cartunistas, né, faziam os anúncios. Aí eu tive uma idéia fantástica pra guaraná Antarctica, que era a seguinte: “Não beba uísque com guaraná. Beba guaraná Antarctica puro”. Eu achei que isso era um achado, né? Aí mostrei pra eles; eles falaram assim: “ não pode”. Eu falei: “por quê?”. “Porque tem a palavra não. Em publicidade não se usa a palavra não”. Agora se usa, mas… Bom, aí eu saí e fui pra São Paulo trabalhar na Editora Abril, e eles ficaram e têm mil histórias pra contar, eu tenho um compromisso, até o próximo programa, nesse mesmo horário. Muito obrigado. AML: Agradecendo a presença do Sérgio Cabral, vamos dar continuidade. Como é que foi essa experiência? Você diz que caiu a circulação para 30 mil, né, mas quem foram as pessoas que ajudaram a (é bom registrar isso, né?), quem foram as pessoas que ajudaram a manter, como é que a coisa continuou rolando, já que estavam todos em cana, no xilindró? Z: O negócio é o seguinte: aí, a partir daí, o jornal, como já desde o começo, passa a viver em função da vontade do Jaguar. Mas aí tem tanta história pra contar que não dá numa entrevista. Porque a gente sai da Clarice Índio do Brasil, vai pra Lagoa, da Lagoa vai pra Copacabana, com o Henfil tomando conta do jornal, de Copacabana vai pra Saint-Romain, e tem a luta pra sobreviver administrativamente, as confusões que foram feitas, quer dizer, tudo isso é história que eu não sei se é o caso de contar aqui porque não interessa muito, porque não serão relevantes historicamente. A verdade é que durante todo os anos 70, O Pasquim foi muito importante na imprensa brasileira; as grandes denúncias, por exemplo da Lilian Celiberti, aquele menino, o Cury, o Flávio Tavares, toda essa coisa da luta pela anistia, todas as grandes entrevistas, a volta do pessoal na anistia, a invenção do Fernando Gabeira (quer dizer, o Fernando Gabeira é uma invenção do Pasquim, uma invenção nítida do Pasquim, né, Jaguar?, nós é que inventamos Fernando Gabeira), quer dizer, toda essa história, eu não sei se a gente vai contar isso cronologicamente. E depois, até que chega a abertura, né, os coronéis voltam pros quartéis, e tudo aquilo que O Pasquim fazia, a grande imprensa começou a fazer, com recursos que nós não tínhamos. Então, ia atrás da Lilian Celiberti, da verdade da Lilian Celiberti lá no Sul do Brasil, aquela moça que foi seqüestrada pelo exército uruguaio e o nosso, nós denunciamos, mas quem foi cobrir, porque tinha passagem, foi o Jornal do Brasil. Mas ele não podia falar antes da gente falar.

motivava isso? A forte censura, as explosões em bancas…, qual era o problema? J: Bom, o negócio das explosões, na verdade, pegaram duas bancas, botaram fogo, e os jornaleiros pararam, com medo de atentados. E o jornal não tinha mais razão de ser, porque esse tipo de jornal só funciona mesmo na repressão. Por exemplo, eu sempre cito o exemplo de um jornal chamado Hermano Lobo, que durou anos e anos durante o Franco. Depois que o Franco caiu, ele durou pouco tempo. Então eu, na verdade, fiquei que nem aquele japonês que a guerra acabou e ele continuou guerreando lá numa ilha, né. Eu fiquei que nem um maluco, lá, fazendo o jornal de graça, fui despejado de tudo quanto é lugar, fiquei morando na redação, e quando o negócio já estava mesmo…, a última sede foi lá na Rua da Carioca (eu era praticamente o único morador da Rua da Carioca, porque lá não mora ninguém, né. Aos domingos, lá, era um deserto total. Só fica aberto o China da Praça Tiradentes e o Angu do Gomes). Mas, quando o negócio já estava pra acabar, entrou uma espécie de ajuda da parte de um João Carlos Rabelo, que assumiu… AML: Isso já que ano? J: Agora, nos 80 e tantos. Aí ele assumiu e disse: “olha, você não se preocupe mais com os problemas, que eu vou assumir o ativo e o passivo, ele era dono de uma gráfica, ele é dono de um jornal lá em Angra dos Reis. AML: Foi até candidato a prefeito. J: Foi candidato. Até dois dias antes ele era o favorito. Depois houve uma virada lá do PT. Então, ele disse para eu não me preocupar e eu continuei como funcionário, né, como editor. Ele ficou administrando tudo, tirou a Codecri, botou outra editora. Aí, um belo dia, ele chegou e falou: “acabou, agora acabou, não dá mais, vamos fechar O Pasquim”. Eu tinha feito até um número com… Eu me lembro até que a página central era do Carlos Zéfiro. E aí O Pasquim acabou, eu fui cuidar da minha vida e tal… AML: A data do último número você lembra? J: Foi em 89. Uma loucura. Eu fiquei anos e anos lá naquele troço. Z: O Jaguar ficou o guerrilheiro japonês, mesmo. Porque todo mundo foi embora e só ficou ele. Quer dizer, da turma original ninguém mais. De vez em quando a gente colaborava, mas ele ficou. Mas O Pasquim significativo mesmo, ele cobre exatamente, quer dizer, o jornal que mudou a história do jornalismo no Brasil, na minha opinião, o único jornal, tipo O Malho, tipo O Governador, tipo esses jornais de protesto, realmente ‘remarcable’, né, (hoje vi na televisão uma moça falando um texto traduzido e disse “foi uma atuação remarcável”. Quer dizer, achei muito bom o tradutor. “Foi uma atuação remarcável”), foram os dez anos da década de 70, né, Jaguar? J: Pois é, devia ter fechado, né? Z: Até a anistia. Porque na anistia, a gente entrevista todos os políticos importantes do Brasil, que vão à redação. Já tínhamos passado por todas as decadências, todas as explosões... Porque, a explosão da banca matou o jornal economicamente. Porque aí, no interior, ele era vendido clan-

"Depois da prisão, acabaram os anúncios, só Shell e Pan American anunciavam e não davam confiança à ditadura. E teve bomba no Pasquim e em bancas..." (Ziraldo)

O Flávio Tavares, que estava preso no Uruguai, que a Anistia Internacional se comunicava diretamente com a gente, a gente ia denunciando através da Anistia, com Gerald Thomas, lá em Londres, coisas que ninguém aqui na imprensa sabia. Então, tudo isso é a história da importância do Pasquim, que precisa ficar registrada aqui no Museu da Imagem e do Som, mas eu acho que há muita publicação, já tem dois ou três livros sobre a tragetória do Pasquim, a gente um dia talvez faça essa história da censura e tal, eu não sei, a não ser que tenha alguma pergunta específica, eu não sei como é que o Jaguar, quer dizer, o que eu teria pra contar do Pasquim é isso, até que eu saí em 72 e o Jaguar continuou lá. Tem a história do Pasquim com o PMDB, eu com o PMDB. Jaguar com o Brizola…, quer dizer, tem muita coisa, assim, pra contar, que você teria que fazer perguntas cronológicas e tal. AML: Vamos em frente. Quer dizer, primeiro houve essa recuperação, né, depois do episódio da cadeia, que mobilizou um grupo grande, né, Millôr, Henfil…, vários outros, que se dedicaram a botar, a continuar tocando o jornal enquanto vocês estavam presos. Z: Eles já estavam no Pasquim. Ah, sim, ah, aí você está voltando ainda à prisão. AML: Não, eu estou querendo pegar aquele episódio da prisão em que o jornal se sustenta apesar da ausência de vocês, quer dizer, em nenhum momento ele deixou de circular. Z: É, aí tem a história da participação heróica da Marta, né, da mulher do Hugo Carvana, a Marta Alencar. A Marta é que fica tomando conta do jornal, o Henfil e o Millôr não foram presos e continuam tomando conta do jornal… Agora, o primeiro número feito depois da nossa prisão, o primeiro número sem a gente, foi uma coisa apoteótica, porque aí todo mundo se comprometeu; inclusive, quem não se comprometeu, ficou…, quer dizer, foi uma briga pra poder entrar, né. Qualquer pessoa que escrevia, que desenhava, quer dizer, fez uma matéria pra nós nesse número da solidariedade. Foi uma coisa belíssima, assim, de participação e tal. AML: Vocês acham que os percalços posteriores (você diz que levantaram ainda o jornal, e começou a haver então uma série de crises administrativas…), o que

16

destinamente. Onde ele vendia 300, 400 exemplares, passava a vender 5, 6 por um jornaleiro corajoso... Eu quando vou ao interior agora, fico vendo os heróis da cidade: “eu comprava O Pasquim”)... AML: Olha, nós já fizemos aqui alguns depoimentos sobre Opinião, Movimento, e, praticamente nos dois casos, se creditava ao fim da ditadura, no aspecto de que os outros jornais passavam a publicar o que antes exclusivamente era da imprensa alternativa, e à explosão de bancas, os dois motivos principais de decadência. Vocês também acham a mesma coisa? Z: Pois é, exatamente. Mas principalmente, quando vem a anistia, logo que os jornais passaram ... O caso da Lilian Celiberti é típico: nós é que denunciamos isso..., e o do Flávio Tavares, também, que era um rapaz que estava morrendo, estava com as pernas podres, preso em Buenos Aires... AML: Era em Montevidéu. É que ele, banido, trabalhava como jornalista em Buenos Aires. Z: O Flávio Tavares, a Anistia Internacional mandou pra nós a denúncia de que ele estava preso e nós denunciamos isso, falamos durante um tempo, e também cobrando o negócio da Lilian Celiberti. Quando vêm o Jornal do Brasil e a Veja, e começam a falar deles, foi por causa da denúncia do Pasquim. E nós não tínhamos como cobrir no mesmo nível. E aí, quando os jornais passaram a falar do que só nós falávamos, a gente foi perdendo a importância. E aí era pra ter acabado a história do jornal. AML: Mais a questão da banca... Z: Exatamente. J: Bom, aí eu fui tocando o jornal, acabou o jornal, eu fui cuidar da minha vida e tal. E agora começaram a aparecer oficiais de justiça na minha casa penhorando... E aí eu fui ver que o João Carlos Rabelo, ele não passou a firma. Ele disse que ia passar mas não passou. AML: Continuou tudo em seu nome. J: Então, tudo... Ele disse que teve problemas, porque os outros era difícil de..., uns morreram, outros estão em Londres, como o Ivan Lessa, e tal, né. E agora eu descobri que, depois de ser herói durante a resistência, durante o neoliberalismo eu sou estelionatário. Z: Tem que pagar. O Jaguar tem que pagar tudo. AML: Que dívidas são essas que ficaram? J: São dívidas trabalhistas, são dívidas..., é negócio de INSS, essas coisas, que vão aumentando e se tornam impagáveis. Eu não ligava a mínima porque eu não tinha coisa nenhuma, eu não tinha nenhum bem. Aí minha mãe morreu, eu herdei um apartamento e começou a complicação. Eu só tinha uma geladeira, que era a única coisa que eu tinha, dei pro porteiro, porque estava me incomodando, aquele troço. Agora não. Agora sou o feliz proprietário de uma cobertura ... penhorada. Z: O Jaguar teve um carro. Aí um dia perguntamos, “Jaguar, cadê seu carro?”. Ele disse assim: “Ahn, esqueci na cidade”. Tinha uns três ou quatro dias que ele tinha esquecido o carro. Foi uma dificuldade pra procurar o carro; custamos a achar, ele tinha esquecido. Então, você vê que O Pasquim não podia dar certo. J: Os gerentes iam se sucedendo, entendeu? E eu nunca tomei conhecimento.

Jornal da ABI


De vez em quando, eles vinham e “assina aqui”. Eu pá!, assinava. Z: Tem uma história típica do Pasquim que eu vou te contar. J: É nesse tipo de coisa que eu me ferrei, porque “assina aqui”, eu assinava. Z: Um dia, o diretor-administrativo e o chefe de publicidade, os dois sujeitos que assinavam os cheques, chegaram pra mim e disseram: “olha, Ziraldo, eu quero falar com você” (eles eram até meus amigos, simpáticos...) “O negócio é o seguinte: A coisa está preta, a coisa está muito preta, O Pasquim está devendo demais, isso vai dar mil complicações pra você, entendeu? Sério, então vai ser uma merda e eu queria dizer pra você o seguinte: comigo e com o Júlio, vocês não precisam se preocupar; não precisam, porque nós estamos pagos”. O sujeito veio falar conosco “porque nós não vamos dar trabalho nenhum a vocês, porque nós...”. Então, eles pegaram tudo que O Pasquim devia a eles e disseram “nós não seremos problema pra vocês”. AML: Há o episódio inclusive da briga com o Tarso, também... Z: Ah, mas isso é tão antigo! Isso é no começo do jornal; o Tarso saiu logo. Porque, aí, tem um livro bom do Pasquim, tem a fase dionisíaca, depois tem a fase heróica, depois tem a fase de decadência... Esse livro é bem feito. Isso aí é da fase dionisíaca, com o Flávio, ainda, a época em que o Tarso morava numa cobertura, num hotel, tinha todo o andar pra ele, quer dizer, e aí tem a briga com o Millôr, muito complicado isso, eu acho que não interessa isso historicamente. AML: Não, é só registrar que havia esse tipo de coisa. Não precisa esmiuçar. Z: É, o jornal foi muito mal administrado. Tem uma história muita engraçada, que eu acho que é do próprio Tarso, também, e da qual eu fiz uma frase muito engraçada. O negócio é o seguinte: só tinha megalomaníaco dentro do jornal. Então, o próprio Tarso dizia assim: “o negócio é o seguinte: o cara chegou lá e disse: quem é o culpado dessa confusão do Pasquim é Deus. Aí todos levantaram e falaram assim: quem, eu?”. Eram uns dez que levantaram. Então, eu tenho uma tese de que é assim, quer dizer, por que que vai haver justiça final? Se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, porque que o homem fracassou? Porque Deus não se testou em grupo antes. Se ele tivesse feito uma porção de Deus antes, ele teria visto: não dá pra fazer. Então, O Pasquim era uma briga de egos muito grande, muito grande mesmo. Ao mesmo tempo, era um momento muito difícil de viver no Brasil, muito difícil. Eu acho que o golpe militar interferiu profundamente nas vidas pessoais de cada um de nós, nas relações de afeto, nas relações com os filhos, nas relações com o trabalho...; foi uma interferência muito grande. Quer dizer, o destino de cada um de nós seria muito diferente se não tivesse havido o golpe militar. Então, a gente foi a maneira pela qual nós, e cada um de nós, individualmente, sobreviveu ao regime militar. O Pasquim demonstrava essas dificuldades todas de sobrevivência mas o produto final dessas incoerências nossas é que é importante. Então, eu acho que o importante é falar do produto final, é falar do Pasquim, da influência dele, do que ele significou..., essa coisa, por exemplo,

MEMÓRIA E FUTURO

maravilhosa, o Gregório Bezerra chega no aeroporto e aí eu boto ele no carro e digo: “que que você quer ver? Copacabana? Ipanema? Quer subir no Corcovado e ver o Rio?”. Ele disse: “não, eu quero ir pra redação do Pasquim”. Ele saiu do aeroporto pra redação do Pasquim. Por quê? Durante toda a ditadura, O Pasquim foi isso. O Morena, a coisa mais importante que o Morena tinha lá na Europa, era a coleção do Pasquim). AML: Roberto Morena, líder sindical. Z: Era a coleção do Pasquim. Que está numa Fundação, marcada com o braço dele, assim. Eu vi lá na Fundação toda a coleção do Pasquim. O Pasquim era mandado pelas mães, pelas tias, pra todos os exilados. Era o jornal dos exilados. O Luís Carlos Prestes, teve um jantar na casa do Oscar Niemeyer, um almoço que ele deu pro Luís Carlos Prestes, e eu fui. Quando me apresentaram pro Luís Carlos Prestes, ele disse: “companheiro, eu queria te agradecer”, porque ele fez, durante todo o tempo em que esteve na Rússia, uma publicação do Brasil no exterior, e ele usava as ilustrações do Pasquim e as charges do Jornal do Brasil. E ele estava absolutamente convencido de que eu era do Comitê Central. Eu nunca fui do Partido na minha vida e eu tinha uma cabeça ‘Partidão’, conforme você testemunha aqui. Até o Jaguar achava que eu era do Partidão. Então, essa importância é que O Pasquim teve na vida brasileira. O que interessa pra mim, nesse depoimento, é falar do produto das nossas dificuldades, e não ficar falando das nossas dificuldades. AML: Bem, um outro aspecto, nós vimos a linguagem do pingue-pongue e a questão das terminologias. O ‘putzgrila’, uma série de termos, o ‘mifu’, o ‘sifu’..., por que vocês acham que isso pegava? Quer dizer, como analisar essa moda do Pasquim? J: A gente tinha muito..., influenciava as pessoas. Hoje em dia, o gordo lá da televisão, como é que é? Z: O Faustão. J: O Faustão. O programa de maior audiência também, ‘magoei’, não sei o quê, ‘Sai de baixo’... Z: Esses bordões, quer dizer... J: Esses bordões sempre... Z: Agora, o que é engraçado, eu sentia que a gente não falava pra..., eles falam pra 40 milhões de pessoas. Então, 40 milhões de pessoas vêem uma coisa iluminada, aquele cara dizendo “magoei”. Então, quando você está magoado, chateado, você pega e diz “magoei”. E todo mundo ri porque você está falando uma referência luminosa. Nós vendíamos 200 mil exemplares. Nós éramos lidos por oito pessoas, segundo a pesquisa da Shell, as publicações eram lidas em média por quatro, nós éramos lidos em média por oito pessoas. Então, são 200 por 8, quanto é que dá? 1 milhão e 600 mil pessoas liam O Pasquim. Mas acontece que a gente não tinha a possibilidade de atingir todo mundo, como a televisão. Mas a gente era lido por pessoas formadoras de opinião. Quer dizer, então, esse 1 milhão de pessoas que pensam o Brasil, que sofrem o Brasil, que influenciam. O Pasquim tinha, eu faço uma imagem, que pra poder fazer chover, você vai com o avião lá em cima e joga não sei o quê, não sei mais que substância, na nuvem, e aí a nuvem chove. Mas alguém

tem que jogar cloreto de sódio na nuvem. Então, a gente jogava cloreto de sódio na nuvem e a nuvem chovia. Então, as duas únicas publicações do Brasil que chegaram a mexer no comportamento do brasileiro foram a revista O Cruzeiro, com “O Amigo da Onça”, que era uma coisa poderosíssima, com “As Garotas do Alceu” (o Alceu Pena é uma pessoa esquecida injustamente no Brasil, porque as moças do meu tempo se vestiam, se sentavam, se comportavam exatamente como o Alceu determinava no Cruzeiro), e depois só O Pasquim foi um jornal que mexeu com a alma do brasileiro. A televisão se justifica, a canção de carnaval se justifica, mas um jornal, uma publicação de imprensa é muito difícil. AML: Ô, Jaguar, você citou no início que o jornalismo tirou o terno e a gravata. Como é que você analisaria essas influências de linguagem do Pasquim no resto da imprensa? J: Nós éramos pessoas assim, por exemplo, O Pasquim era de uma certa maneira filho da Banda de Ipanema, que o Albino sempre lembra isso. Então, quer dizer, nós éramos boêmios, éramos gozadores, moleques, diferente do jornalismo de paletó e gravata, como eu digo. E esse negócio mudou o

de jornal, quer dizer, O Pasquim só não conseguiu mudar a linguagem da aeromoça, que ainda chama avião de aeronave. Mas o resto, a imprensa mudou, mudou toda. Então, é o seguinte: eu acho, quer dizer, eu atribuir isso ao Pasquim parece um pouco de puxar a sardinha; mas que outro fenômeno acontece nessa mudança? Então, é um bom material de pesquisa, é um bom material pra ser considerado aqui, quer dizer, a função desse depoimento é deixar mais ou menos marcado o que significou a experiência do Pasquim ainda no seu tempo. Então, eu estou dizendo essas coisas porque eu acho que isso é que as pessoas, quando vierem fazer pesquisa aqui, vão até discordar de mim, mas vão ter esse dado, essa visão nossa. AML: Um outro aspecto. O que se originou de especial a partir do Pasquim? O Sig é um exemplo? Quer dizer, o que que surgiu como criação e ficou, fora essa influência da linguagem no jornalismo? No caso, o seu personagem foi do Pasquim, foi… J: Não, ele já existia antes do Pasquim. Numa história em quadrinhos. E depois o que que ficou do Pasquim? O Sig já se aposentou, a Super Mãe já era antes também… Z: É, eu acho que não fica nada, não. Quer dizer, a memória nossa é muito… aqui no Brasil, as coisas são repostas. O que ficou do Pasquim, por exemplo, são os meninos do Casseta e Planeta, que são os filhos da gente. Quer dizer, foram todos formados no Pasquim. AML: Reinaldo trabalhava lá, eu me lembro. Z: O pessoal do Planeta todo trabalhava lá. O da Casseta não. O da Casseta era na Universidade. Mas na verdade, eles são todos filhos do Ivan Lessa. Quer dizer, a turma do Casseta e Planeta, o ídolo deles, o herói deles, a linguagem deles, o humor que eles aprenderam, aprenderam com o Ivan Lessa, que foi uma figura importantíssima como formador de estilo até, de texto. Hoje, você tem o Veríssimo, você tem o Millôr. Mas o texto do Ivan é um primor. A postura do Ivan Lessa diante da vida, quer dizer, as duas posturas humorísticas mais fortes, na minha opinião, do Pasquim, são o anarquismo do Jaguar, eu acho o Jaguar o maior humorista que eu conheci na minha vida, e depois o Ivan. Assim, humor destrutivo, humor impiedoso, onde o Jaguar é muito coerente, que o desenho é muito parecido com a piada, né, uma coisa de um poder fantástico. E o Ivan. E esses meninos do Casseta são filhos diretos desse Pasquim. Quer dizer, toda essa geração que está aí, Chico Caruso, Paulo Caruso, Angeli, todo esse pessoal, durante 20 anos, durante quase mais de 20 anos, a imprensa brasileira tinha o Millôr, o Carlos Estêvão, o Péricles, depois Jaguar, eu, Fortuna e Claudius. Ficamos isso dos anos 50 até O Pasquim, até 70, não tinha mais ninguém, não tinha mais ninguém, não tinha um humorista no Brasil, não tinha um cartunista; tinha o Lan, fazendo charge no Jornal do Brasil, tinha a Hilde Weber fazendo lá em São Paulo, não tinha mais nada. A partir do Pasquim, hoje não tem mais um jornal brasileiro que não tenha pelo menos dois chargistas. Você faz salões de humor no Brasil, aparecem 300 desenhistas da maior qualidade; são todos filhos do Pasquim. São todos filhos do Pasquim, isso não tem

Jaguar e a influência d o Pasquim: "é a linguagem coloquial, escrever como se fala. Foi uma coisa que aconteceu por acaso e depois seguimos em frente."

comportamento de todo o pessoal que trabalhava com jornal. Agora, o mais engraçado é que a publicidade foi a primeira a ser afetada. O Ziraldo concorda. AML: Como assim? J: É, a linguagem coloquial, a maneira de escrever como se fala. Em suma era isso. Não teve nenhuma revolução. Foi uma coisa que aconteceu por acaso, com a entrevista do Ibrahim, e depois nós seguimos em frente. Z: Se você pegar, fizer uma pesquisa, André, isso já deve ter sido feito, de pegar um ano de manchetes, lides, terminologias de jornais e revistas em 69 e depois você pegar a partir de 70, frases de anúncio, “você”, a intimidade com o consumidor, essa coisa de passar a mão na bunda do consumidor, que a publicidade hoje faz, você vai ver que alguma coisa acontece nos anos 70 que muda toda a linguagem da imprensa. Ninguém fala mais o hebdomadário dessa praça, chama jornal

17 ○


discussão. Então, o que fica é isso: surge uma profissão com O Pasquim. Entendeu? Agora, não é o Sig que ficou, não é o pôster dos pobres, são algumas terminologias que foram incorporadas pra sempre à língua, né, como essas coisas, o ‘putzgrila’ do Henfil, como ‘mifu’, que a gente inventou, o cara ‘sifu’, né, essa coisa foi brincadeira lá do jornal, mas eu acho que quem vai determinar a importância do Pasquim realmente vai ser a história, não é a gente agora. J: Ziraldo, eu acho que está na hora de ir embora. AML: Só rapidinho. Vocês foram referência de crítica, referência de denúncia. E tinha algumas partes que ficaram bem marcadas, como as dicas do Pasquim e as entrevistas. Você falou agora que o Jaguar tinha um humor impiedoso. E o humor não é nunca a favor, né. Vocês tiveram algum problema pessoal, quer dizer, de alguém assim se sentir muito ofendido (inclusive, a época era propícia pra esse tipo de perseguição, já que era época de ditadura), algum problema, assim, de um leitor que se sentiu prejudicado e foi em cima de vocês, ou alguma ação judicial, alguma coisa assim nesse sentido? Z: Um fato muito engraçado é que como O Pasquim era “parede de banheiro”, como dizia o Nelson Rodrigues. Nós, o Ivan também era muito impiedoso, e ele inventou a famosa “máfia de branco”. Começou a denunciar a medicina sórdida do Brasil. E um sujeito de Maceió aproveitou e esculhambou um médico, arrebentou com um médico, e O Pasquim publicou a matéria desse cara entregando esse médico. E aí esse médico moveu uma ação contra O Pasquim e nosso advogado disse assim: “não, não é contra O Pasquim;

você tem que mover essa ação contra esse rapaz que fez a denúncia”. E a ação foi feita contra a denúncia e esse rapaz teve que retratar-se. E ele então se retratou, disse que era um imprudente, que o médico era maravilhoso..., e O Pasquim teve que publicar essa retratação sórdida do rapaz, mas O Pasquim disse: “olha, não tenho nada com isso. Ele perdeu a questão, está se retratando aqui”. AML: Era o porta-voz do Collor? Aquele que foi pra Lisboa depois? Como é que é o nome, hein? Z: Era o porta-voz do Collor. Aquele mulato, aquele mulato sórdido. Aliás, como diz meu tio, mulato sórdido é pleonasmo. Porque ele dizia: “me chama de crioulo mas não me chama de mulato”. Mas então é aquele rapaz, coitado. AML: Carlos Humberto, né? Z: Carlos Humberto. Que coisa terrível, né, eu dar essa de racista. Eu sou mulato, falando mal de mulato. Mas enfim. O Brasil é um país racista, né. AML: Bem, ô, Jaguar. Vamos, o que que você acha que faltaria pra gente encerrar...? J: Nada. AML: Tudo dito. Mais alguma coisa? Ziraldo, alguma coisa também? Z: Falta dizer é isso, quer dizer, eu falei sem parar e o Jaguar não falando nada... Essa diferença de temperamento dos dois, né. Mas falta falar o quê? Que a gente... J: Falta falar que a gente vai fazer outra revista. Z: Ah, é. Falta falar que o Punch, agora, os velhos cartunistas do Punch, que o Punch perdeu o punch, né, mudou, e eles se juntaram todos, os românticos, e fizeram uma revista chamada Old. É Old a revista, né? J: O Punch voltou também. Z: Mas voltou sem eles. Ou voltou com

eles? Não tenho visto. É Old que chama a revista? J: Old. É. AML: Old? Z: Old. Velho. J: É que eu estou meio escaldado com esse negócio de revista. Depois de 20 anos de Pasquim... Mas eu acho que está na hora de fazer uma publicação..., não é O Pasquim, é uma outra coisa, com outro formato, mas nesse coro de vaquinhas de presépio em que se transformou a imprensa brasileira, todo mundo achando tudo bacana, no melhor dos mundos... AML: Neoliberalismo, é isso aí, né? J: E um terço da população desempregada. Então, poxa, a gente está na hora de fazer uma válvula de escape. Como O Pasquim foi na ditadura, agora é contra a ditadura do neoliberalismo. AML: Como é que é essa revista? J: Não sei. Z: Mas é bom avisar pros pósteros que nesse momento, 1996, em que um dos nossos chegou ao poder, nos enchendo de esperança, porque era um dos nossos, ele vai começar a batalha pela reeleição com o fisiologismo dos velhos tempos. Então, quer dizer, dá uma certa tristeza na nossa luta, mas é bom dizer que nesse momento a imprensa brasileira está vivendo um dos piores momentos da sua história, porque é um diário oficial. A Veja, então, a revista Veja, chega a ser até ridícula. Como ela analisa, por exemplo, a postura do Sarney e do Itamar com relação à reeleição, a Veja ridiculariza... AML: Ontem, os jornais noturnos já falavam do “manifesto dos dinossauros”, do

manifesto contra a privatização da Vale. Já é uma adjetivação que seria condenável... Z: É uma coisa espantosa. É um momento realmente desalentador da nossa geração, que batalhou, batalhou, batalhou, batalhou, batalhou, e está morrendo na praia, no final do século. AML: Fala um pouquinho mais da nova revista. Como é que está o projeto? Z: É um sonho só. Um dia a gente faz. J: É outra coisa que a gente não sabe... Como a gente não sabia como é que ia ser O Pasquim... Na hora a gente vê. Cláudia Mesquita: Além desse depoimento vocês não poderiam doar para o Museu o acervo do Pasquim, uma coleção. Z: Que acervo!? Só eu que tenho uma coleção. O Jaguar não tem nem um original. J: O último dono, o João Carlos, levou tudo. AML: É? Z: Você tem o material do tempo da censura? J: Alguma coisa. Z: Eu também tenho. Nós vamos fazer uma publicação dos originais destruídos, que é fantástico. Obrigado. AML: E a revista que vem aí, né? Espera-se. Z: É outra coisa. AML: Mas vem aí. Z: Um jornal anti-neoliberal. (depois de encerrada a gravação, Ziraldo revela o nome que já pensava para a nova revista: Bundas) AML: Certo. Cláudia, encerrando? Z: Ah, vamos fazer um jornal conservador. (risos) Cláudia: O depoimento sobre a história do Pasquim: encerra-se às 13 horas e 55 minutos do dia 27 de novembro de 1996.

IMPRESSÕES DE QUEM OUVE COM ATENÇÃO Antony Devalle

Assuntos para os quais O Pasquim foi um dos únicos a abrir suas páginas nos tempos da censura institucionalizada, como o da uruguaia Lilian Celiberti, seqüestrada em Porto Alegre e torturada pelos agentes da Operação Condor – articulação das ditaduras do Cone Sul para perseguir seus opositores – no início da década de 1980, e o do jornalista Flávio Tavares, outra vítima da repressão no Brasil e no Uruguai, voltam à tona quase 20 anos depois. Flávio Tavares publicou o livro “Memórias do Esquecimento”, contando o que lhe aconteceu nos anos subseqüentes ao golpe de 64. Lilian Celiberti está empenhada na luta política e jurídica contra a impunidade dos repressores das ditaduras militares latinoamericanas e, especialmente, daqueles que atuaram no âmbito da Operação Condor. Ouvir a gravação desse depoimento foi reconhecer, nas próprias falas dos depoentes, uma das características mais marcantes do Pasquim: a irreverência. Esse aspecto lúdico desse jornal combativo faz do Pasquim um circo da liberdade, onde podemos buscar inspiração para lutar contra os diferentes esquemas “pão e circo” que nos oprimem.

“Toda vez que morre um velho africano, é uma biblioteca que se queima”. Esta frase, de um sábio da África, se refere à tradição oral de transmissão do conhecimento entre as gerações. Ela não desvaloriza, de forma nenhuma, a oralidade. Mas indica a importância do registro impresso do conhecimento para sua preservação. A transcrição que fiz do depoimento de Ziraldo, Jaguar e Sérgio Cabral, ao “Projeto Memória do Jornalismo Brasileiro”, a respeito da história do Pasquim, revitalizou em mim a idéia e o sentimento da importância do oral, e do escrito, como elo de diálogo entre as gerações. Já conhecia um pouco a história do Pasquim, por meio de conversas e leituras e de folhear alguns de seus números num sebo do Catete. Acompanho as obras de Millôr e Ziraldo, que fizeram parte desse jornal. Também já conhecia um pouco a história da ditadura militar e da resistência à opressão que ela praticou e representou, inclusive alguns episódios envolvendo uma certa comicidade. Mas experiências como a transcrição desse depoimento ampliam nosso conhecimento, principalmente em relação ao cotidiano e aos bastidores da história. ○

ANÚNCIO ELETRONUCLEAR

Antony Devalle, estudante de jornalismo da UERJ, é estagiário do Departamento de Intercâmbio e Divulgação da ABI. ○

18

Jornal da ABI


Impossível contar a história política do Brasil sem citar momentos em que a marca da atuação do jornal era o próprio desencadear de fatos, reflexo da opinião e paixão dos proprietários.

3

(71%) 15.06.1901 09.06.1974

COMBATIVO, POLÊMICO, UM JORNAL DE MUITOS ADJETIVOS E CAMPANHAS Arthur José Poerner

de Estado”. E foi assim que ele sempre se comportou, corajoso e intransigente na defesa das posições que assumia, para o bem ou para o mal: pela Campanha Civilista de Rui Barbosa, pelas rebeliões tenentistas de 22 e 24, pela Revolução de 30 e pela entrada do Brasil na guerra contra o Eixo, mas contra a criação da Petrobrás e contra

Em 9 de junho de 1974, deixava de circular o Correio da Manhã, que surgira, praticamente, com a República, em 15 de junho de 1901, depois de O Estado de São Paulo (1890) e do Jornal do Brasil (1891). Como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade neste último, após ter sido por mais de 20 anos colaborador do primeiro, “nada mais melancólico do que o fim de um grande jornal”. Um jornal, no caso, que se acostumara, ao longo de sete décadas, a ser a voz ativa e importante nos grandes debates nacionais, ouvido e respeitado por governantes, que não hesitava, se julgasse necessário, em combater como inimigos públicos, como ocorreu, por exemplo, com Joaquim Murtinho, o Ministro da Fazenda - contrário à industrialização - de Campos Salles; com o poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado, com quem o fundador do Correio da Manhã, Edmundo Bittencourt, chegou a duelar a pistola em 1906, no então distante e deserto bairro de Ipanema; e com o presidente Arthur Bernardes, em cujo governo o jornal foi fechado e Edmundo, depois de preso, conseguiu fugir do quartel da PM, na Evaristo da Veiga, para asilar-se na Embaixada do Chile. Ao saudar o surgimento do Correio, o jornalista e político Quintino Bocaiúva havia declarado que ele “ já nascia com autoridade e prestígio de um quarto poder

de substituir Jânio de Freitas na chefia da redação), para trabalhar, chefiado pelo Salvyano Cavalcanti de Paiva, no copidesque, do qual faziam parte, entre outros, Sérgio Augusto e José Louzeiro. Paulo, o filho do fundador, havia morrido pouco antes, depois de comandar o diário desde 1929, e fora sucedido pela viúva, Niomar Moniz Sodré Bittencourt. O Salvyano me passou, logo no primeiro dia, uma cópia do índex, a relação dos inimigos que o jornal acumulara em sua destemida trajetória oposicionista, nomes que não podiam ser mencionados em suas páginas. Além dos já citados, lá estavam, entre muitos outros, Rui Barbosa, Carlos Lacerda e Juraci Magalhães. Ao lado de um ou outro inimigo não propriamente político, mas da empresa modernizada por Paulo Bittencourt, como o escritor Lima Barreto (por causa do seu primeiro romance, “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de 1909), que mereceu, não obstante, uma nota de três ou quatro linhas quando morreu. Mas, o grande inimigo, o mortal, o definitivo, o Correio enfrentaria após o golpe militar de 64, movimento cuja eclosão apoiara com três sucessivos editoriais de primeira página - intitulados “Chega!”, “Basta!” e “Fora!” , embora tivesse, antes, engrossado as campanhas pela posse de Jango e pela volta ao regime presidencialista. Em 2 de abril, dia seguinte à deposição do presidente, outro editorial advertia: “a reação já comete crimes piores

O fundador, Edmundo Bittencourt, chegou a duelar a pistola com o senador gaúcho Pinheiro Machado.

João Goulart, desde os tempos em que este era Ministro do Trabalho de Vargas. Nos casos de Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, apoiou as campanhas, inclusive a contestada posse do primeiro, mas se opôs, em várias ocasiões, aos respectivos governos. Cheguei lá em outubro de 63, a convite do Osvaldo Peralva (que acabara

que os cometidos: depõe governadores, prende ministros e deputados, incendeia prédios, persegue sob o pretexto tolo de anticomunismo a tudo e a todos. Não admitiremos. A estes fanáticos e reacionários opomos a mesma atitude firme de ontem. A eles também diremos: basta! e fora!” Foi a última batalha travada heroicamente, nunca será demais acentuar - pelo jornal. Decretos presidenciais suspenderam por 10 anos os direitos políticos de vários dos seus redatores (dentre os quais, os meus) e o falecido Peralva e eu fomos presos nas suas dependências, invadidas por forças policiais e militares na noite de 13 de dezembro de 1968, enquanto o país tomava conhecimento da edição do Ato Institucional n.º 5. Ao mesmo tempo, o Correio da Manhã sofria um processo gradativo, mas implacável, de asfixia econômica, com o corte da publicidade oficial e as pressões do regime sobre os anunciantes privados. Para salvar o diário, a valente Niomar o arrendou, em 1969, a um grupo de empreiteiros, mas recusou-se a recebê-lo de volta, ao final do contrato, ainda mais endividado e reduzido a quatro páginas e menos de três mil assinaturas. Preferiu vê-lo morrer. Arthur José Poerner, escritor e jornalista, faz parte do Conselho Administrativo da ABI.

IMPREVISÍVEL, ERA PROGRESSISTA E RETRÓGRADO progressistas, no sentido positivo da palavra, não apenas no sentido políticoideológico, mas também tinha posições retrógradas. Como na questão das vacinas, quando tomou posição contrária à obrigatoriedade da vacinação, uma postura absurda, e puramente caprichosa, do dono do jornal. Havia nos jornais da época uma influência excessiva dos proprietários. Se o dono estava de mau humor, isso se refletia nos comentários do jornal. Nós já tivemos, a partir de 1930, o Correio da Manhã menos reflexo de sua direção e com um comportamento mais profissional, mais objetivo, menos caprichoso. O Correio, entretanto, manteve durante muito tempo posturas de antagonismo, como com Juraci Magalhães. O jornal não falava no nome do Juraci, o que era uma posição

Luiz Bahia Vou, em primeiro lugar, nos situar no tempo. O Correio da Manhã foi criado em 1901. Em um período em que a chamada República Velha tinha, até certo ponto, se consolidado em um processo que depois reverteria em uma revolução. Naquela época, o Rio de Janeiro era a capital da República e os jornais daqui tinham realmente uma importância singular, pelo fato de estarem na capital e refletirem sua atmosfera. É claro que os jornais paulistas também tinham importância, mas por outra razão, por estarem situados em um centro produtivo nacional. O Correio teve uma importância muito grande porque se caracterizou como um jornal de combate. Um jornal até certo ponto imprevisível. Tinha posições ○

MEMÓRIA E FUTURO

completamente amadorística. Um jornal não pode omitir o nome de uma pessoa. A importância do Correio da Manhã foi também resultado de sua independência, que, por sua vez, decorria do fato de ele ser reflexo de seus leitores de um lado e dos pequenos anunciantes do outro. Não havia grandes interesses de bancos, grandes indústrias e grandes corporações nacionais ou internacionais. Ainda não havia ocorrido a industrialização, que veio na década de 40/50. O Correio da Manhã refletia em seus editoriais e noticiário o interesse do funcionalismo, para ter uma maior tiragem e influência, o liberalismo, o livre cambismo, a vontade e a opinião do dono. Estava atento, também, aos interesses da cafeicultura, que era o tronco da economia brasileira. Os jornais daquela época tinham sua base prin-

19 ○

cipalmente comercial e não industrial. Com a industrialização, a base econômica dos jornais começa a se alterar, tanto do Correio da Manhã, quanto da imprensa em geral. Porque no faturamento do jornal o valor relativo do pequeno anunciante começa a ser dominado pelo peso dos grandes interesses industriais e comerciais, que operavam com maior eficiência através das agências de publicidade. Então o jornal começa a se modernizar, no bom sentido, fica mais impessoal, profissional, mas fica também mais receptivo aos interesses organizados da economia. Reflexo dessas mudanças é o tratamento dispensado ao funcionalismo. Até a década de 50, raramente o Correio deixava de dar um editorial defendendo o funcionalismo, que era seu leitor e que fazia, em última análise, a política nacional. Hoje, ○


o funcionalismo é execrado por toda a imprensa. É o resultado da mudança da estrutura social do país e também da mudança da capital da República. Para os jornais do Rio em geral, a mudança da capital para Brasília foi muito ruim. Hoje persiste um jornal forte e influente como O Globo, que pretende ser, e é ate certo ponto, nacional, mas que não tem influência comparável, na formação de opinião pública, à de jornais como o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, o O Jornal ou o Jornal do Commercio, que estavam no núcleo do processo de decisão. Esses jornais influíam decisivamente na derrubada de ministros, na formação de ministérios e na orientação política em geral. Com a industrialização, o Correio se altera, passa a pensar paulista, pensa no interesse do empresário paulista. Isso tem pelo menos uma conseqüência positiva, ele fica mais profissional, mais impessoal, com menos reações caprichosas e mais previsível. Na década de 40, aumenta o poder das agências de publicidade, porque até então a grande massa de anúncios, classificados ou não, vinha através dos próprios agentes do jornal. Os jornais tinham um departamento de agentes de publicidade, que iam às fábricas obter os anúncios. A partir desse momento em que o processo da economia brasileira avança, as grande agências estrangeiras e as primeiras nacionais começam a pressionar fortemente a orientação do jornal. Diminui o peso da vontade do dono e aumenta o peso da circulação: quanto ele está circulando; qual é o efeito da circulação; qual o efeito sobre a tiragem, etc. Esse foi o jornalismo que eu acompanhei até meu afastamento. Eu estive por 20 anos no Correio da Manhã, depois em O Globo e no Jornal do Brasil. Vivi todo esse período de evolução da imprensa pessoal, imprensa do Rio prestigiada, para o que é hoje, governada mais pela circulação e pela publicidade do que propriamente pelos acontecimentos. Os jornais tiveram que aprender a funcionar na sociedade industrial, dominada por valores que não eram os da sociedade comercial-mercantilista, mas sim os da burguês-capitalista. Hoje, vemos os donos de jornais, que eram como príncipes ou barões, de enorme influência na formação de opinião pública, muito menos poderosos. A razão principal dessa perda de poder foi o aparecimento do rádio e da televisão. O papel do jornal como formador de opinião pública continua relevante, mas nem de longe se parece com o que era antigamente. Um artigo do Correio da Manhã abalava a República. Hoje, um artigo de um jornal qualquer não abala coisa nenhuma, apenas merece atenção. A industrialização mudou a imprensa, o caráter da imprensa é outro. Com o advento da televisão, você vê o esforço que a imprensa faz hoje para manter o interesse de seu leitor. Como a TV dá tudo na véspera, os jornais têm que gritar demais para alguém escutar. Daí episódios de importância relativa em um contexto maior da visão humana, brasileira, sendo transformados apenas pelo esforço de vender mais os jornais, fazer a circulação

funcionar melhor. Os abusos nas manchetes são das coisas que mais me irritam. O título que tenta levar à leitura do fato. O uso, por exemplo, de “deve” no título. Eu aprendi que título deve ser um fato, jamais um “deve”. “Deve” se usa no editorial.

Então, arranjei um emprego no Correio, onde fiz toda a primeira parte da minha carreira profissional como jornalista. Fui de repórter de rua a diretor-redator-chefe do jornal. Minha primeira reportagem foi a queda de Getúlio, em 1945. Com 36 anos fui um dos mais novos, se não o mais novo redator-chefe do Brasil. Tive a felicidade de pegar o Correio em uma fase extremamente rica de talentos individuais. O jornal na minha época brilhou muito, menos em função da minha presença e mais pela equipe de jornalistas de primeira qualidade: Álvaro Lins; José César Borba; Antônio Callado; Otto Maria Carpeaux; Franklin de Oliveira. Estes homens escreviam muito bem e eram excelentes comentaristas. A primazia que o jornal tinha era decorrente da equipe, que tinha, por exemplo, como revisor de comentários, Aurélio Buarque de Holanda. O Graciliano Ramos era revisor de texto. Você escrevia um editorial, passava para a mão do Graciliano e o texto ficava uma beleza de simplicidade, de valorização verbal. O Aurélio fazia o mesmo trabalho. O Correio na página de editoriais tinha uma linguagem primorosa, caprichada. Para isto ele tinha um revisor de linguagem, não era um revisor de português, era um revisor de estilo. Esta qualidade dos textos valorizava muito a opinião do jornal. Com esta equipe, quem fosse o redator-chefe, Costa Rego, em seguida Callado e depois eu, o menos qualificado dos três, não precisava fazer qualquer esforço para que o jornal brilhasse. Bastava dar o assunto, a orientação, e o que saia era sempre uma coisa de primeira qualidade. Não me refiro especificamente a repórteres porque o jornal não era dado a

“O Correio da Manhã era um jornal que tinha paixão, não cultivava o jornalismo à la americaine, falsamente neutro, pretensamente sem partido. To d o jornal tem partido.”

O CORREIO QUE VIVI Eu fui ser jornalista por acaso. Eu precisava casar e consegui arranjar uma carta de apresentação para o Correio da Manhã. Minha idéia não era ser jornalista, era ser filósofo. Meu pai tinha se negado a pagar meus estudos de filosofia, porque era uma profissão sem futuro, ele dizia.

grandes reportagens, era um jornal de notícias e reportagens do dia, do cotidiano. Mas os comentários do jornal eram seu brilhante, eles fulgiam na famosa quarta página, que depois passou a ser a sexta. Nessa página havia o editorial, o reboque, que era o segundo editorial, e depois os sueltos, pequenos tópicos que tinham grande poder, eram fortes, críticos e às vezes até ferozes, no sentido de cortantes. O Correio era um jornal de campanhas, sempre engajado. Algumas vezes com bom senso, outras sem nenhum bom senso, quando ficava preso em sua própria armadilha, jogava a rede e depois não podia mais apanhar. Isto ainda acontece muito. Um jornal entra errado em um assunto e depois não consegue sair direito. O Correio da Manhã era um jornal que tinha paixão, não cultivava o jornalismo à la americaine, falsamente neutro, pretensamente sem partido. Todo jornal tem partido. Ele não cultivava isso, ao contrário, cultivava a postura, a posição, uma posição de oposição. Era costume do jornal conferir aos governos um período de graça. Uma vez empossado, o novo governo era bem tratado, mas após três meses de atuação, passava por um crivo crítico, começava a ser tratado como se já existisse há muitos anos e fosse responsável por todos os males do país. É muito curioso um episódio envolvendo o Juscelino. Sua posse foi muito defendida, o Correio teve uma posição contrária a qualquer tentativa de golpe contra sua candidatura e manteve aqueles três primeiros meses de estado de graça, mas depois atacou muito o presidente: “detestado autor de Brasília”,

OS ÚLTIMOS DIAS DE EUFORIA, COM OS SUBVERSIVOS Marcello Alencar

do PSD, depois da queda de Jango. Ela ficou surpresa quando prevaleceu o sistema militar. E mais surpresa ainda quando os militares fizeram Ministro do Exterior o Juraci Magalhães. Ele tinha sido um dos inimigos públicos de Paulo Bittencourt, inclusive com troca de bofetões. Niomar, leal nesse incidente a seu companheiro, criou uma desafeição muito grande pelo Juraci. Quando a ditadura o fez ministro, ela mudou a posição do jornal. No período do Castello, ela ainda foi condescendente. Mas, depois, o jornal chegou a ter uma página escrita por um grupo que, quase todo, acabou no exílio. O jornal, antes conservador, tornou-se procurado pelas esquerdas e pelos democratas. Niomar começou, então, a perder o controle administrativo do veículo. Os administradores, que fizeram a riqueza do jornal, começaram a se incompatibilizar com ela, que, habituada a mandar, não respeitou nada disso. O jornal passou a atrasar salários e perdeu publicidade, os empresários ficaram com medo de utilizar suas linhas. Niomar só se salvava de uma repressão mais rigorosa porque tinha ajudado a revolução e, por isso, os

Em seu depoimento para o projeto Memória do Jornalismo Brasileiro, o goverandor Marcello Alencar falou, entre outras coisas, de sua experiência como diretor do Correio da Manhã. Segue um apanhado de seu relato sobre esse período. “Pelos idos de 69, quando já era considerado indesejado pela ditadura, fui clandestino. Quando a coisa apertava muito, tinha que dar uma sumida. Voltando de uma dessas escapadas, encontrei meu irmão, um empresário muito vitorioso, que arrendara o Correio da Manhã, então em concordata. A primeira prestação da concordata estava por vencer, o que significaria o fim do jornal. Meu irmão foi procurado para tentar salvá-lo. A Niomar (Moniz Sodré, viúva de Paulo Bittencourt e na época diretora do jornal) combateu o governo João Goulart. O jornal brindou com champanhe no dia da queda de Jango. Mas houve um fato que determinou uma virada na posição de Niomar, e conseqüentemente do Correio da Manhã, quanto à “revolução”. Sua idéia era apoiar a volta de Juscelino Kubitschek, que era candidato escolhido na convenção

20

ABI militares faziam concessões a ela. No meio dessa crise, meu irmão foi convidado para tentar recuperar o jornal, através do arrendamento. Quando voltei de minha clandestinidade, encontrei Maurício Alencar com o Correio da Manhã arrendado. Ele pagou a primeira prestação da concordata e o jornal passou por um período de euforia. Quando vi aquilo, peguei tudo quanto era subversivo e botei para trabalhar no Correio. No departamento de pesquisa, que incentivei meu irmão a criar, só tinha perseguido. Eu fui dirigir o conselho editorial do jornal. Foi uma escola maravilhosa.” Marcello Alencar foi governador do Estado do Rio de Janeiro e participou da direção do Correio da Manhã.

Jornal da ABI


etc. Terminado seu mandato, Juscelino entrou na posição de líder natural da oposição ao governo Jânio Quadros. A essa altura, eu estava sozinho na direção do jornal. O Paulo Bittencourt, então dono do Correio, que estava em Paris já há algum tempo, me escreveu pedindo que eu comunicasse ao Juscelino que ele agora seria tratado como o líder da oposição, teria um tratamento distinto daquele que lhe era dado durante seu mandato. Eu fui à casa de Juscelino e comuniquei o fato. Ele se queixou muito do Correio da Manhã. O jornal que agora vinha oferecer a ele o reconhecimento de ser o líder da oposição o tinha maltratado durante todo o período do mandato, reclamou. Eu disse a ele: “mas Presidente, agora o senhor, como líder da oposição, tem que ter outro tratamento”. Ele não ficou muito impressionado com esse fato e insistiu nas lamentações. Ele disse que eu o tinha tratado muito mal e afirmava ter sido sempre um democrata. Eu confirmava. Pessoalmente, ele era um democrata, não tenho dúvida nenhuma. Um democrata, entretanto, não teria feito uma capital da República em três anos. Em um regime democrático, isso não seria possível. Eu disse a ele: “Só mesmo Nabucodonosor teria feito isso”. Ele deu um salto na cadeira.

Eu fiquei preocupado com uma reação mais violenta, mas ele manteve a compostura, disse que isso ainda não lhe tinha ocorrido. Parecer com um Nabucodonosor, construindo Babilônia em três anos. A conversa acabou agradavelmente. Há também o episódio da posse do Jango, quando o Correio da Manhã exerceu realmente uma função muito importante. Não que fosse janguista, ao contrário, nunca foi getulista nem janguista, posturas que não estavam dentro de sua linguagem liberal, de sua ortodoxia liberal, mas era o direito da posse. O Correio teve um papel muito importante e eu, como redator-chefe, fui levado a ter esse papel de resistência. Foi quando o jornal foi praticamente ocupado, no início do movimento, e depois desocupado, censurado, apreendido, etc. Esse episódio foi marcante na vida do jornal, porque ele depois manteve essa mesma linha em relação ao AI-5. A posição do jornal foi sempre de legalismo, de defesa da constituição, a despeito de cometer o erro de levar, às vezes, as oposições liberais a soluções autoritárias. Algumas vezes, por exacerbar sua oposição aos governantes, o Correio era um gerador de crises institucionais. Não

porque desejasse, mas porque sua postura de oposição radical facilitava isso. Esse é um erro que se comete muito na imprensa. O exagero de determinadas radicalizações oposicionistas pode levar a uma reação maior e inversa a que se deseja. Por exemplo, os jornais do Rio, Correio, Diário, etc. tiveram, na minha opinião, muita influência negativa no suicídio de Getúlio Vargas. Exacerbaram de tal forma a importância da crise Lacerda-Getúlio, que levaram ao suicídio do então presidente, o que foi uma interrupção da continuidade constitucional e legal e facilitou outras interrupções posteriores. A partir desse fato, eu aprendi que é mais importante aceitar as insuficiências de um governo e deixar que ele seja punido eleitoralmente que precipitar a queda desse governo e sofrer os males decorrentes da interrupção do regime. Vimos o mesmo problema com João Goulart, o mesmo erro que levou ao suicídio de Getúlio, a crise radicalizada contra o Jango levou à interrupção da legalidade que posteriormente foi interrompida militarmente. Na verdade, Jango seria provavelmente batido nas eleições e a teoria de que Jânio estava armando um golpe jamais foi comprovada. No entanto, a

imprensa - o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, o Diário Carioca e O Estado de S. Paulo - fez uma campanha tremenda contra o Jango, que estava se desmoralizando, se desfazendo. A imprensa do Rio acertou muito e errou muito. Nesses dois episódios, eu considero ter havido grande erro, no suicídio de Getúlio e na precipitação do golpe contra o Jango. No caso do Collor, entretanto, felizmente, a radicalização não levou à interrupção da legalidade, não houve intervenção militar, mas poderia ter havido. Não se destitui um Presidente da República, eleito pelo voto popular, sem conseqüências. Essa foi minha experiência política, que hoje me faz ser muito mais moderado que quando mais moço. Tudo isso que eu disse não significa que eu não tenha cometido esses erros. Hoje em dia é que reconheço que havia erro naquela postura radical contra os governantes, teria sido mais sábio esperar que a punição eleitoral viesse depois. (Depoimento a Rafael Porto) Luiz Bahia, jornalista aposentado e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo, foi diretor-editor-chefe do Correio da Manhã entre 1958 e 1962.

GRANDES NOMES E UMA ESCOLA DO BOM TEXTO Cícero Sandroni

grantes”, dos JJ&J, criada pelo José Guimarães, o Guima, e escrita por ele, José Álvaro e Jorge Leão Teixeira. Os Jotas brilhavam. Guima também escrevia a coluna “Aconteceu”, aos domingos, quando fazia uma resenha completa dos fatos da semana, com muito humor e crítica. Em 1956, participei de uma passeata de estudantes pacifistas contra a invasão soviética em Budapeste e a ação imperialista dos ingleses e franceses no Canal de Suez. Depois da manifestação, percorremos as redações dos jornais e, ao entrar no Correio da Manhã, eu senti que eu queria trabalhar ali. Tomei coragem e abordei o Guima. - “‘Seu’ Guima, eu sou seu admirador, e gostaria de ser jornalista. Posso vir trabalhar com o senhor?” Ele me olhou de alto a baixo e perguntou: “quem é você?” Aí eu disse. Eu já fizera um estágio na Tribuna da Imprensa, e, enquanto contava a minha história, percebi que o Guima teria talvez tomado umas duas ou três doses a mais. Então ele me disse, com a voz meio rouca: “volte amanhã, gostei de você, vem aqui amanhã, você vai trabalhar comigo.” Se eu dissesse que fiquei entusiasmado estaria mentindo. Eu quase dei dois pulos de alegria. E no dia seguinte estava cedo na redação à procura do Guima, mas infelizmente não o encontrei. Alguém me avisou que ele estava, como fazia freqüentemente, no restaurante Marialva, em frente à redação do Correio e fui até lá. Quando cheguei, vi o Guima numa mesa com o Jorge Leão Teixeira e o José Álvaro. Aproximei-me e me apresentei de novo. Para meu desapontamento, o Guima não me

Aprendi a ler na escola, mas descobri o prazer da leitura nas páginas do Correio da Manhã, no início da adolescência. O velho Correio tinha qualidades admiráveis, não só no estilo seco e direto - que, na época eu não sabia, devia-se às lições de Graciliano Ramos, Álvaro Lins e Costa Rego - e na maneira de abordar os assuntos, mas também na paginação, que embora ainda da escola antiga, dos fios e retrancas, me parecia leve, agradável e simpática. E havia também a verve, a ironia, a capacidade de demolir o adversário com dois ou três artigos, e a punch line ao fim do editorial, aquela frase plena de vitríolo e uma pitada de humor sarcástico com capacidade de arrasar qualquer um. Os tópicos, que muitos ainda chamavam sueltos, a crônica política do “All Right” (Aderson Magalhães), os artigos do Costa Rego e do Antônio Callado, o “telefonema” do Oswald de Andrade, de São Paulo, a crônica do Rubem Braga, os “Pingos e respingos” do Bastos Tigre, os artigos do Augusto Frederico Schmidt e do Eugênio Gudin. Na parte cultural, tive as primeiras lições de cinema nas colunas do Moniz Vianna. Lia ávido a crítica de música do Eurico Nogueira França, a de teatro do Paschoal Carlos Magno, a de artes plásticas do Jaime Maurício. Aos sábados vinha o “Suplemento Literário”, dirigido pelo Álvaro Lins e, mais tarde, pelo José Condé, páginas onde a literatura brasileira encontrou terreno fértil para medrar e cultivar as grandes árvores de obras imorredouras. E certo dia, apareceu a coluna “Fla-

MEMÓRIA E FUTURO

reconheceu. Não se lembrava de nada, tal e qual o milionário do filme de Carlitos. Fiquei decepcionado. Mas o Jorge me salvou, ele esteve aqui ontem, eu o conheço, é amigo da minha irmã. Só então Guima se lembrou: “Ah, o húngaro!”. Assim, com o codinome de “húngaro”, comecei minha vida profissional no Correio, pelas mãos desse engenheiro que se tornou jornalista, uma das pessoas mais inteligentes, educadas e sensíveis que conheci nas redações que freqüentei. Com uma simpatia irradiante, parecedíssimo com Vittorio De Sica, amestrador de tantos focas que passaram por suas mãos, inclusive este escriba, que apesar de todas as lições recebidas continua um eterno foca, perturbado com o desconcerto do mundo. Durante os anos de 56 e 57 vivi, na redação do Correio, um tempo de aprendizado. Na parede havia um grande relógio onde eu via o tempo passar depressa demais, ao lado de grandes como Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Antônio Callado, Luís Alberto Bahia, Edmundo Moniz, Olympio Souza Filho, Nélson Costa, Maurício Caminha de Lacerda, Hoche Ponte, o também iniciante Márcio Moreira Alves e tantos outros dos quais não me esqueci, mas não me lembro agora. Foi um tempo bom e, embora a política fervesse, nós éramos um pouco inocentes, não sabíamos o que nos esperava nas quebradas dos anos 60. Voltei à Rua Gomes Freire em 1965. A redação mudara um pouco, com o teto rebaixado, mas as mesas de ferro continuavam as mesmas. E naquele mesmo ano comecei a escrever uma coluna, “Quatro cantos”, que

21 ○

“O velho Correio tinha qualidades admiráveis, no estilo seco e direto que se devia às lições de Graciliano Ramos, Álvaro Lins e Costa Rego e na maneira de abordar os assuntos.”

em pouco tempo atacava violentamente os governos militares. Durou pouco. Veio o AI-5, a invasão do jornal, a prisão de dona Niomar Moniz Sodré, a censura, e o horror dos anos de chumbo. Saí do Correio em 1970, e assim fui poupado de ver o seu inglório fim. Esta crônica, que gostaria fosse uma homenagem ao Guima, é também um barbante enrolado no meu dedo, para não me esquecer. Está na hora de começar a escrever a história do Correio da Manhã. Cícero Sandroni, conselheiro da ABI, é diretor adjunto de redação do Jornal do Commercio.


Textos criativos, com aspectos novos de um Brasil ainda pouco conhecido pelos brasileiros. Ousadia nos enfoques. Uma referência para a boa reportagem.

4

(70%) ABR 1966 MAR 1976

UMA DOSE DE VERDADE NO TEMPO DOS SONHOS Paulo Patarra Tão bem-falada, e nasceu de um “aborto”. Tida como “intelectual”, e dos que a faziam só um tinha terminado faculdade. Considerada primor de planejamento, foi lançada às escuras, no “seja o que Deus quiser”, contra a vontade dos executivos da área comercial da Editora Abril. “Vão quebrar a cara, é melhor não fazer nada”, ouvia-se nos corredores. Ah, o aborto. Foi assim: a Abril bolou um tablóide, a 4 cores, para ser encartado, aos domingos, nos maiores jornais brasileiros. Coisa de 1 milhão de exemplares, se tudo desse certinho. Mas não deu, leia-se a seguir. Antes, a apresentação do autor destas digitadas linhas. Em 1965, era diretor de redação da revista Quatro Rodas, que muitos consideravam a mais bem feita do país. Tanto que a publicação sobre automóveis e turismo havia levado, um ano depois do outro, dois Prêmios Esso, então do maior respeito. Mesmo porque só tinha ele na área do jornalismo. Aí, ouvi falar do tablóide da Abril e fui ao Roberto Civita, pedindo para participar da novidade. Sabia que com um produto de interesse geral, Quatro Rodas não ia mais poder roubar carro, comprar carteiras de motorista ou pôr repórter - por 4 meses - para levantar a situação do índio no Brasil. E isso como matéria de turismo, com nota assinada por mim, onde se dizia que não era para ninguém ir chatear os índios. Então, os donos dos jornalões desconfiaram de um truque: o tablóide colorido da Abril roubaria deles os grandes anunciantes, deixando o filé nas mãos de um senhor de nome Victor Civita. Ele tinha mostrado - pela primeira vez - que estava a serviço. Nada de passeios. E, convite pronto para o lançamento do tablóide, puxaram a escada do maior e melhor editor que conheci. Victor Civita, dependurado na brocha, segurou a equipe que eu tinha chamado para o tablóide e - como sempre não entregou o jogo. Me chamou e disse: “Vamos sair dessa...”. Fazer o que no lugar do tablóide? Fazer o que depois de um “aborto”? Os mais sem-vergonhas - para melar a jogada - provocavam propondo uma revista semanal, tipo Time, como saída. Sabiam que a Abril ainda não tinha fôlego para tanto, sabiam que a hora de Veja estava longe. O que queriam? Mostrar à editora o beco sem volta onde tinha se metido com o projeto do tablóide. Solução? Esquecer tudo, pôr na rua a equipe que faria o abortado semanário. Mas não conheciam Victor Civita... ○

MEMÓRIA E FUTURO

4. Pauta - Realidade se dizia revista mensal de interesse geral. Até aí, novidade alguma. Seleções (lançada no Brasil em 1942) podia ter adotado o mesmo slogan. Ainda mais que, na área dela, era a mais vendida revista do mundo. A diferença: Seleções publicava artigos, Realidade se apoiava em reportagens. Nossas reuniões de pauta tinham vários estágios. As “oficiais”, com o Roberto Civita no comando, duravam 3, 4, 5 horas. Estou falando dos primeiros meses. Quando Roberto Civita saiu da revista, para dirigir, como verdadeiro diretor editorial, todas as publicações da Abril, nunca mais se fez a cerimônia. Mas nossa pauta informal, defendida aos berros, acontecia todo santo dia. Com destaque para as maluquices propostas, fora da redação, depois de alguns uísques, que precisávamos rever depois, para baixar a bola. Pauta foi fundamental. Qualquer coisa dava reportagem. O truque não passava de combinar os ingredientes da receita e ir trabalhá-los sob ângulo instigante. Seca no Nordeste? Escreva-se sobre um matador fruto dela. E no nosso leque de assuntos cabia tudo: de futebol a perfil de alguém (conhecido ou não), de depoimentos a pesquisas, de economia a religião. Detalhe: cada repórter escrevia do jeito dele, do jeito que achasse melhor. Na primeira ou terceira pessoa. À turma do texto (Sérgio de Sousa e Mylton Severiano da Silva) cabia pôr ou tirar crases e encurtar os calhamaços. Roberto Freire escrevia 40 laudas para onde cabiam 20. Sérgio e Myltinho cortavam a metade do texto. 5. Visual - A paginação de Realidade, a começar pelas capas, seguiu sempre (no meu período, de 1966 a 68) o que eu chamava de estilo “grego clássico”. Impertinência minha. Folheador de revista americana, fui passando para a arte, em total compadrismo com Eduardo Barreto, tudo de limpo, impactante e atraente - pois chamava à leitura - que os “irmãos” do Norte mostravam em duas obras-primas do jornalismo popular: Life e Look. É coisa clássica! Como Realidade que somava a simplicidade à ousadia. Nada de textinhos tortos ou fotos com legendas em cima delas. Realidade, porém, tinha suas regras de paginação: toda página leva título na continuação das matérias; toda foto tem legenda; nenhuma matéria terminava lá para o fim da revista; nossas letras carregavam a nossa cara, em Times ou Gothic. Enfim: quem cruzasse com uma página de Realidade, no lixo ou fosse onde fosse, sabia que aquilo era página da Realidade. 6. Texto - Muitas dezenas de teses acadêmicas se inspiraram em Realidade. Coisa comum a quase todas: a revista foi

revista: uma enfiando agulha na veia, quando fez reportagem sobre drogas; outra quando se fantasiou de diabo, em matéria sobre o dito cujo. 3. Ideologia - Revista sem lugar fica à beira dos abismos. Veja-se, é só exemplo, a Manchete, que nunca decolou. Nós tínhamos posição, no campo das idéias: éramos de esquerda, bombardeávamos “bons costumes”, ditaduras, igrejas e falcatruas, sem dar bandeira, sem dar nome ao gado. Difícil? Nada! Eu tinha feito o CPOR (que ainda forma oficiais do nosso exército) e convivido, por dois anos, com oficiais. A formação intelectual deles parecia mentira. Assisti, uma vez, no curso de artilharia, um garoto da Politécnica da USP dar um baile num tenente, garantindo

De minha parte fiz o inesperado: defendi o lançamento de uma revista mensal de reportagens, velha idéia que tinha. E assim foi feito. Por que Realidade superou todas as expectativas? Segue-se a minha avaliação, sem que a ordem das razões que imagino signifique uma ordem de importância das questões: 1. Direção geral - Depois do número zero, que saiu bem fraquinho, assume o cargo de diretor de redação - fui eu que sugeri o nome dele - o filho mais velho de Victor Civita, Roberto. Jovem, liberal à americana e incansável trabalhador, Roberto Civita deu à equipe meios para agir com velocidade, já que decisões polêmicas (em especial na área de gastos) passam a ser tomadas na hora. Mais: Roberto Civita é competente último leitor de matérias e funciona como editor internacional, sugerindo (e sempre acertando) o que Realidade podia e devia comprar das publicações estrangeiras, principalmente americanas e italianas. Afinal, além do nosso chefe de arte, Eduardo Barreto, era o único a dominar, como língua materna, o inglês. Como diretor, a postura de Roberto Civita pode ganhar o adjetivo excepcional. Nunca mais tive chefe como ele. 2. Equipe - A maioria dos profissionais que convoquei era de repórteres, com idade média abaixo dos 30 anos, tirados de Quatro Rodas e de outras publicações da Abril. Quando dei por mim, Realidade tinha formado um timaço, do qual eu não passava de mero capitão. Nem chegava a técnico. Foi essa equipe que legitimou Sérgio de Souza como editor de texto da revista. Convidei Sérgio para a função porque conhecia sua capacidade de bem-escrever, desde Quatro Rodas. E ele nem tinha completado o 2º grau. Mas, para a equipe tinha um apelido - “capitão” -, pelo qual era chamado por todos os “soldados”. Inclusive por mim, a quem nunca deram o tratamento de, digamos, coronel. Sérgio de Souza foi o meu melhor achado naquele esquema, sem esquemas, de Realidade. Ganhávamos bem. Bem mais do que qualquer outro na imprensa brasileira de então. E os salários se equilibravam. Do meu ao último dos assistentes de arte, os pestapeiros. O comando da redação era democrático. Isso fez a diferença. Todos torciam por todos. Um se metia na matéria do outro. A escolha de fotos parecia sessão da tarde: no mínimo meia dúzia palpitando, durante a projeção dos slides, às vezes só para prolongar o “cineminha”. Ninguém “aborrecia” mais do que Narciso Kalili, que considero o melhor dos nossos repórteres. Não cito Kalili só porque ele já morreu. Falo dele por ter sido - até! - duas vezes capa da

“Por 33 meses, de abril de 1966 a dezembro de 1968, Realidade se inseriu no mundo dos sonhos em que estava a parte pensante da sociedade brasileira.”

que ângulo reto era o de 180 graus. O tenentinho acabou concordando... O exemplo é meio pelo extremo, mas os generais e subalternos - apoiados por empresários aproveitadores - vinham do mesmo berço: ingênuos, despreparados e com uma só vantagem: a força. Fizemos (Luís Fernando Mercadante fez) várias matérias sobre milicos. E bastava ler direito para perceber quanta ironia estava nas entrelinhas. Realidade nunca recebeu(até dezembro de 1968, quando deixei a revista) qualquer puxão de orelha pelas sutis provocações. Em tempo: os perfis dos generais-presidentes não eram coisas da Abril - saíam das reuniões de pauta como “amortecedores” da possível reação “cívico-militar” às demais matérias. E isso, tamanha era a coesão da equipe, sequer entrava em debate.

23 ○


chupada - no texto - do new journalism norte-americano, de Gay Talese, Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote & cia. Não foi não! Nenhum de nós conhecia esse povo. Pessoalmente, só li “A Sangue Frio”, do Capote, em meados dos anos 70. E o mesmo vale para “Aos Olhos da Multidão”, do Gay Talese. E o nosso texto era diferente do deles: os americanos do

“novo jornalismo” saíram da leitura literária, com cinismo e beletrismo; nós no máximo - ficávamos num Jorge Amado. E com menos adjetivos. E antes de “Gabriela”. Os textos de Realidade carregavam no geral - uma marca que nunca vi mencionada: eram cinematográficos. Cada reportagem valia um roteiro de filme.

Os sonhos e a realidade Por 33 meses, de abril de 1966 a dezembro de 1968, Realidade se inseriu no mundo dos sonhos em que estava a parte pensante da sociedade brasileira; um país justo e democrático. Havia até os que escolhiam a luta armada contra os generais e seus aliados como saída para o país. Mas a força estava do outro lado: a 13 de dezembro

de 68, o AI-5 da ditadura nos fez cair na real, pondo fim ao pouco de legalidade que ainda tínhamos. Foi um deus-nos-acuda! E Realidade começava uma longa agonia, de 7 anos, proibida de usar sua maior arma: a audácia! Paulo Patarra, jornalista, dá aulas na Universidade São Marcos, em SP, onde é doutor em jornalismo por notório saber.

O EXERCÍCIO DE TEXTO QUE MUDOU A IMPRENSA José Hamilton Ribeiro

nalismo de longo curso”, como define Gabeira esse jornalismo de textos longos, de “peças acabadas” - quase literárias - em que se transformavam quase todas as reportagens da revista. Realidade fez no texto de revista - ou no texto das “reportagens especiais” dos diários ou das semanais - o que a “reforma gráfica” dos jornais cariocas entre 45 e 50 (ou 55?) fez no jornalismo diário. As “proezas” de Pompeu de Souza, Odylo Costa,filho, Dines, para citar só os que conheci pessoalmente nos jornais do Rio, logo depois da 2ª guerra, nas reformas de jornais que influenciaram para sempre o jornalismo de papel de pão (diário) do Brasil, tiveram sua contra-parte na “cozinha” de Realidade, pelas mãos compridas e finas de Sérgio de Souza, principalmente, e por outros “editores de texto” que a redação de Realidade teve, durante a “Era Sérgio”, mas também, um pouco de-

Realidade, a revista, é uma coisa única na imprensa brasileira, porque ela reunia em si circunstância históricas únicas. Na política, na sociologia, na sóciopolítica, na psicologia - no homo brasilicus daquele dado momento, principalmente entre 66 e 69. Dá para falar de Realidade sob vários ângulos e aspectos – e haverá gente melhor do que eu nessa Brasilândia para isso. Como repórter de Realidade - e, nessa condição, ainda hoje repórter, o que talvez seja uma raridade ( “Alô Mercadante, cadê você? Alô Azevedinho! Alô Maurício Azedo...”) - gosto de ver Realidade no que ela significa para mim – e quem sabe, para toda a redação, ou para toda minha geração - como exercício de texto. Realidade deu maturidade, densidade, humor e graça ao texto de “jor-

permanente de uma pretensa objetividade, da redação simples e na ordem direta, com o verbo sobretudo no presente - foi boa, bonita e progressista, mas era uma fórmula importada, era a cópia do modelo americano de imprensa, um modelo de valor, sem dúvida - bem melhor do que o modelo europeu, cheio de pó e pose; melhor do que o modelo do 3º mundo, subdesenvolvido e coronelista; e muito melhor que o modelo soviético, de censura explícita – mas ainda assim um modelo que prega a “livre imprensa”, mas que só dá a “livre empresa”. O american way da imprensa americana, trazido aos jornais brasileiros pela “reforma gráfica” dos cariocas, se nos deu inegáveis ganhos de forma, ficou devendo no conteúdo até hoje! O sistema da “livre imprensa”, na verdade da “livre empresa” - traz consigo impregnado e sub-reptício o germe da censura, a censura absoluta, essa que as

“Fez no texto de revista - ou reportagens especiais - o que a reforma gráfica dos jornais cariocas fez no jornalismo diário.”

pois dela como resultado da boa herança. Há uma diferença básica entre a “reforma dos jornais” do Rio, no imediato pós-guerra, e o ganho do texto com Realidade. A reforma dos jornais - com a fórmula do lide, da pirâmide invertida, da busca

ANÚNCIO SCANIA

24

Jornal da ABI


empresas - os donos dos jornais, das rádios e das tevês - exercem no dia-a-dia contra cidadãos, partidos políticos, nações, instituições. Há um grande jornal de São Paulo, paradigma da imprensa brasileira, que passou anos sem dar o nome do governador do Estado, de quem era inimigo. Como nos piores momentos da ditadura soviética, em que se alteravam fotos da história, esse jornal ignora a existência de um determinado número de anos de sua história - porque estava sob intervenção. Existe censura maior, mais absoluta? (Não vou dar o nome desse jornal de São Paulo só as iniciais: Estadão...). Há, então, que se discutir, esse problema (filosófico) sobre o modelo de imprensa importado dos EUA, e que vige tão bem entre nós, por enquanto, entre outras razões, porque não encontra competidores à altura. O modelo soviético estuporou, o modelo europeu é borocochô e dos “cucarachas” e vizinhanças quase

não dá mesmo para esperar nada. É há muito a discutir na busca de fôrma melhor. Mas deixemos os jornais em paz. Voltemos à Realidade e o que ela mexeu no texto jornalístico entre nós mormente no segmento revistas. Quando surgiu Realidade, havia O Cruzeiro e Manchete. Esta era apelidada de “revista arara”: muita cor, mas não fala. O texto nunca foi o forte da Manchete. O Cruzeiro, sem embargo do sucesso popular em certo momento, era “popular” demais, e não tinha muita credibilidade na “tribo” jornalística - entre outras coisas porque fazia montagens para “fotografar” disco-voador em Copacabana. Realidade criou a figura do “editor de texto” que preparava ou lapidava o material dos repórteres (autores), sem desfigurar o estilo de cada um. Era um exercício exaustivo, penoso, mas eficiente - de grande eficácia mesmo - em busca da palavra apropriada, do ritmo, da medida, dos passos e do compasso da história que se queria contar. Não se tratava de

“reescrever”, em linguagem asséptica e certinha dos bons copy desk dos jornais; não, ninguém reescrevia o texto de ninguém. O texto era “mexido” - esta era a palavra. Mas mexido para cima e para o brilho, nunca para redução. Se coubesse reescrever - e isso às vezes cabia - quem reescrevia era o autor, não nenhum copy ou almofadinha da redação. Daí aquela coisa bonita dos textos de Realidade que se pareciam - e eram todos diferentes. Um jornalismo de autor. Uma das coisas em que a “propriedade” de texto de Realidade influiu no Brasil creio que se vê ainda hoje no chamado “jornalismo científico”, a peça jornalística sobre assuntos que antes eram considerados inabordáveis. Realidade não só fez (como antes não se fazia) reportagens sobre medicina, história, psicologia, matemática e física quântica, em textos sem erro técnico ou impropriedades, mas fez com emoção e sentimento.

Realidade ensinou uma coisa. Um jornalista pode fazer uma boa reportagem sobre física, sem saber física. Basta pesquisar, entrevistar, trabalhar direito, assumir a sua ignorância específica e ir atrás: perguntar, perguntar, perguntar, até entender. Não é importante o jornalista saber física para fazer uma reportagem sobre física. O problema é se o físico que ele for entrevistar não souber física – aí a “parada” fica mesmo muito indigesta. Infelizmente, muitas vezes, o jornalista busca “apoio técnico” numa fonte furada – então, o que fazer?! Como saber?! Enfim, também no jornalismo não tem moleza. Não tinha no tempo de Realidade, não tem agora. Quem quiser fazer bom jornalismo tem que arranhar a pedra com a unha... José Hamilton Ribeiro, repórter da revista Globo Rural, foi repórter e redator-chefe da Realidade entre 1966 e 1972.

JORNALISMO INVESTIGATIVO QUE DEIXOU MARCA Recentemente, ao final de um debate com estudantes de pós-graduação de São Paulo, fui abordado por um aluno que me anunciou todo eufórico ter descoberto no centro velho da cidade um sebo que tinha à venda uma coleção completa da revista Realidade. Completinha: 10 anos consecutivos de bons textos e boas fotos. Devo ter decepcionado o estudante, porque logo expliquei a ele que coleções inteiras da publicação, que esteve nas bancas do país entre 1966 e 1976, é coisa fácil de ser encontrada, e não apenas em sebos: muitos quarentões e cinquentões, homens e mulheres, quaisquer que sejam suas profissões, costumam ter em casa os números amarelados da revista, eventualmente encadernados. E não é difícil saber de um jornaleiro o preço de toda a coleção, na hipótese de que o interessado esteja mesmo disposto a comprá-la. É só aguardar uns dias que a encomenda chega. Não é à toa que, recentemente, quando a Editora Abril colocou nas bancas um exemplar antológico da revista, reproduzindo a capa de seu primeiro número (aquela em que Pelé aparece com o busby dos guardas britânicos), o traço de interesse dos compradores não chegou a ser a “novidade” que aquilo representava diante da mesmice que toma conta da nossa imprensa; em muitos casos o que motivou sua compra foi uma certa nostalgia: “Isso sim é que era revista...”, deve ter sido o suspiro de muita gente. A que se deve tudo isso? Penso que não é possível encontrar uma única resposta para a explicação desse sucesso, mas também acredito que não é preciso exagerar. Basicamente, duas ou três coisas podem ser ditas sobre as causas que motivaram esse verdadeiro marco do jornalismo brasileiro que Realidade significou. E peço licença aos profissionais que trabalharam na revista para tratar rapidamente delas, já que meu interesse por ela é acadêmico, embora a publicação ○

MEMÓRIA E FUTURO

tenha marcado parte da minha experiência cognitiva de tudo quanto acontecia em meados dos anos 60. A primeira observação refere-se à esmerada sincronia entre texto e imagem com que a revista chegava às bancas todos os meses. A imprensa brasileira ainda não conhecia, da forma como veio a conhecer depois da experiência de Realidade, uma integração tão forte entre essas duas linguagens: fotografias arremessadas de forma oblíqua, mas absolutamente pertinente, sobre todo o significado do tema das matérias e do estilo com que eram produzidas por seus repórteres. Levandose em conta que o país moderno, dessa modernização prussiana do pós-guerra, dos militares e das elites, estava se definindo e tomando uma forma cada vez mais nítida - inclusive com a ajuda da televisão - Realidade superava as limitações de sua natureza impressa e introduzia o leitor numa simultaneidade de entendimentos, eventualmente reproduzindo imagens que apontavam direto para uma certa crueza naturalista, como que retirando o leitor daquele envolvimento que uma certa licença literária, sempre presente nas reportagens, acabava provocando. Evidentemente nem sempre era assim, e mesmo muitos números da revista acabavam cedendo ao lugar comum da imprensa de massa, mas como tendência predominante durante boa parte de sua existência, Realidade deu mostras de que a execução de sua pauta passava por uma extraordinária sensibilidade da sua redação nessa dupla abordagem, apenas ensaiada nas experiências de Jean Manzon e de David Nasser em O Cruzeiro. A segunda observação vem de uma constatação subjacente à anterior: além desse sentido integrador permitido pela operação texto/imagem, havia uma sintonia muito forte com os temas que contextualizavam a primeira época de existência da revista (certamente os três primeiros anos - 1966/1968), período que marcou todas as suas características. Vistas as coisas de agora, quando os padrões

J.S.Faro

Através da grande reportagem - e evidentemente no âmbito das relações de poder que os profissionais da revista estabeleceram no seu trabalho - os temas abordados por Realidade ganhavam uma dimensão sociológica, ainda que fossem tratados - e isso era parte da riqueza da revista - com intenso recurso aos códigos ficcionais ou propriamente literários. Essas três observações estão longe de explicar todos os motivos pelos quais Realidade se transformou nessa referência do jornalismo brasileiro. Vistas de forma integrada, no entanto, elas oferecem uma pista que ajuda a entender porque se mantém esse cuidado arqueológico com a revista, cuidado manifestado sempre pelos próprios profissionais da imprensa, de alguma forma pelos estudiosos acadêmicos, mas de maneira geral pelo público que fruiu a revista e que tem nela quando há oportunidade para isso - uma referência de um jornalismo legitimado por seu vínculo com o social, no seu sentido mais amplo. Talvez se aplique para a revista da Abril um axioma que demonstra as razões mais profundas de seu sucesso: a matéria-prima que articula o processo de comunicação, que dá a ela todo o seu sentido transformador, é um universo construído de forma permanente e organizada com o cotidiano de uma época. Nessas condições, o resultado do trabalho jornalístico ganha as dimensões da permanência, vive na sua e em outras épocas; transforma-se em registro, mas também em experiência que pode ser sempre retomada. Não fosse assim e Realidade teria caído no esquecimento, desaparecido das estantes, dos sebos, das teses acadêmicas. Dificilmente alguém diria: “isso sim é que era revista”.

“Referência de um jornalismo legitimado por seu vínculo com o social, no seu sentido mais amplo.”

culturais da modernidade já derrubaram quase todo o conservadorismo e quando o país vive na plenitude da democracia, parece coisa simples. Mas quem investiga o que foi a construção do Estado autoritário no Brasil de 1966 e o que representavam todos os enunciados em “defesa da família, da ordem, da moral e dos bons costumes” vai perceber que a revista Realidade esteve naquele início de sua vida permanentemente afinada com o espírito geral de transgressão que a época permitia. Nesse sentido, os jornalistas entenderam aquele seu momento de forma brilhante, dando conteúdo quase pedagógico aos conflitos que testemunhavam. Nas palavras de um dos protagonistas da experiência, Woile Guimarães, “a redação soube entender sua época, percebeu que em 66, 67 e até fins de 68 era possível fazer jornalismo. Era possível ousar”. O resultado disso é que a informação ganhou nas páginas da revista uma perspectiva abrangente, tornando-se para o seu público uma categoria de análise do cotidiano. No fundo, Realidade partilhava com quem a teve nas mãos os significados daquela conjuntura. A última observação aparentemente pode ser mais técnica, mas não é. O estilo da produção jornalística da revista, por seu caráter verticalizado, investigativo, deixava longe os códigos do gênero informativo, pretensamente objetivo, que fere de morte a própria razão de ser da imprensa em qualquer sociedade.

25 ○

J.S.Faro é professor dos cursos de graduação e de pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo e autor do livro “Revista Realidade, 19661968. Tempo da Reportagem na Imprensa”. ○


O repórter, amigo do presidente, cria um jornal. A marca do criador aparece até no título, sem acento, impregnando de paixão texto, forma, colunistas e a política da época.

5

(67%) 12.06.1951 23.07.1991

À IMAGEM E SEMELHANÇA DE SAMUEL WAINER Moacir Werneck de Castro

novidade na UH, desde o aspecto gráfico a introdução de cor no título, a valorização da fotografia, a diagramação moderna - até a audaciosa concepção de jornalismo propriamente dito, com a formação de uma brilhante equipe de colunistas, a maior atenção às reivindicações populares e trabalhistas, e a prioridade dada à grande reportagem. Materialmente e politicamente, o jornal se beneficiou das simpatias de Getúlio Vargas, sob o charme de Samuel, a quem chamava de profeta. O jornalista, uma ex-vítima do Estado Novo, lançara a candidatura de Getúlio, a quem foi entrevistar no seu retiro gaúcho de Itu. Obteve do presidente, agora constitucional, os recursos necessários, fornecidos pelo Banco do Brasil, para a sustentação da Ultima Hora. Um favorecimento, sem dúvida, mas que, em comparação com os escândalos e a negociatas que viriam depois, inclusive proporcionando vantagens a empresas jornalísticas em matéria cambial, era uma transação corriqueira. Desabou a tempestade sobre a cabeça do “judeu bessarabiano”, exposto à execração pública, com o seu jornal, como peça na campanha golpista contra Vargas, em que teve papel de destaque o também jornalista Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa. No fim dos anos 50 a dívida ao Banco do Brasil foi totalmente paga, com cheque que a Ultima Hora exibiu orgulhosamente. Com dinheiro na mão, Samuel Wainer teve como uma de suas preocupações constantes a de assegurar aos jornalistas de sua empresa um nível condigno de remuneração, o que aumentou a ira dos

Na história do jornalismo brasileiro, uma constelação de famílias ocupou lugar de destaque até pelo menos a metade do século XX. Com a sua Ultima Hora, Samuel Wainer quebrou esse tabu de ranço feudal, com tal impacto que nenhuma avaliação sobre o papel desse jornal no quadro da vida política e cultural do Brasil é possível sem ter em conta a extraordinária personalidade do jornalista que o fundou. Ele foi um estranho no ninho confortável dos grandes da nossa imprensa. E o seu jornal foi um meteoro que passou num rastro fulgurante, a que se seguiria uma morte anunciada. Não tenho a pretensão de explicar, nestas poucas linhas, o “fenômeno” Ultima Hora. Já dei a respeito alguns depoimentos, dentre os quais o que está contido na coletânea “A Ultima Hora de Samuel - Nos tempos de Wainer”, publicada pela ABI em 1993. É fundamental a leitura do livro autobiográfico de Samuel, “Minha razão de viver” ( Record, 1988), redigido por Augusto Nunes com base em gravações feitas pelo próprio Wainer cerca de 1.200 páginas datilografadas. Esse material bruto foi utilizado numa pesquisa de Joelle Rouchou, da Fundação Casa Rui Barbosa, ainda inédita em livro, que constitui uma contribuição importante para a compreensão da complexa personalidade do Samuel Wainer. Quando se fala em Ultima Hora, não há como deixar de destacar o caráter revolucionário desse vespertino que apareceu no Rio de Janeiro, em 1951, no segundo governo Getúlio Vargas. Tudo era

americana. O AI-5 representou o golpe final, a cujas seqüelas o jornal resistiria por pouco tempo. Samuel Wainer morreu há quase 20 anos, em setembro de 1980. Já não representava um perigo e os mesmos jornais que o haviam difamado lhe dedicaram páginas e páginas, a ele e à Ultima Hora, que fora a sua razão de viver. Morreu pobre, como empregado da Folha de São Paulo, onde fazia uma coluna diária de análise política. O jornalista das reportagens torrenciais, descuidado na forma, mas já com projeção internacional como na cobertura do Tribunal de Nuremberg, onde foi o único jornalista brasileiro - aparecia agora, na sua fase final, como um redator de estilo conciso, preso a um rigoroso limite de espaço, e ali se afirmava com a maior segurança. Foi um jornalista no pleno sentido sentido da palavra. Um artigo de Paulo Francis na Folha, intitulado “Samuca sempre de pé, como um gato”, termina com esta reflexão expressiva, que merece ser citada: “Detestada ou bíblia, a Ultima Hora de Samuel Wainer era um jornal que ninguém podia deixar de ler. É o melhor epitáfio que posso pensar para ele, que o aceitaria a meu ver com o sorriso cínico e bem humorado de sempre, a armadura que ergueu contra ataques de todo tipo ao longo de uma vida produtiva.

“Nenhuma avaliação sobre o papel desse jornal no quadro da vida política e cultural do Brasil é possível sem ter em conta a extraordinária personalidade do jornalista que o fundou.”

concorrentes. Mas a mácula da vinculação ao Catete iria custar caro a Samuel Wainer. Apesar dos seus esforços de equilibrista num permanente trapézio de concessões e conciliações, ele ficou marcado pela reação de direita, enquanto a esquerda o criticava como oportunista sem princípio. De fato, o jornal servia ao poder: apoiou Juscelino Kubitschek e João Goulart, defendendo, no governo deste, as “reformas de base” a serem realizadas por uma via não revolucionária. O golpe de 1964 não fechou logo a UH, mas trouxe implícita e sua sentença de morte. Era um alvo prioritário no “combate ao comunismo e à corrupção”, tema da chamada “Redentora”. Houve um intenso boicote à publicidade comercial com a ativa participação da embaixada

Moacir Werneck de Castro, jornalista e conselheiro da ABI, foi redatorchefe da Ultima Hora entre 57 e 72 e, atualmente, é colaborador do Jornal do Brasil e membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.

A EMOÇÃO, PARA ELE, ERA UMA RAZÃO DE VIVER Genílson Gonzaga

estar curando o porre de ontem. Chama o Moacir (não o Moacir Werneck de Castro, que só chegaria à tarde, mas o Moacir chefe da Circulação). Vamos vender jornal pra caralho amanhã. Liga pro Lima (Norival Lima, diretor-superintendente). Temos que ter papel pra arrebentar as bancas. Eles vão dizer que a Ultima Hora é um jornal sensacionalista. Fodam-se. “Ultima Hora é um jornal sensacional”. Assim era o Samuel Wainer, óculos oscilando da testa ao nariz, nervoso, agitado, orquestrador de fuzuês, descobridor de talentos, vibrante nos seus atos e gestos como seu jornal, que a

Puta que pariu, bota emoção neste texto. Você mesmo vai escrever, não transfere pra ninguém. Emoção, muita emoção, porra. Mobiliza a reportagem, os melhores. Chama o Pinheiro Júnior em casa. Vai ser manchete. Chama o Estrela (chefe de Departamento Fotográfico). Quero dois fotógrafos em cima disso. Cadê o repórter que fez esta merda? Traz ele aqui. Zé Miguel, ô Zé Miguel, me dá café. Vai, vai trabalhar! Quero emoção, muita emoção. Entendeu? Chama o Pinheiro Júnior. Onde se meteu o Paulo Silveira? (Risos) - Deve

MEMÓRIA E FUTURO

“redentora” de 1964 matou aos pouquinhos, a conta-gotas. Samuel resolvia tudo no emocional e botava mesmo a mão na massa. A emoção, para ele, era uma razão de viver. Ele mesmo me disse, um dia, que cada um tem as emoções que merece. Descobri, mais tarde, nas minhas leituras, que a frase era de André Suarês, que viveu de 1868 a 1948, referindo-se a Goethe. A “matéria de merda” em questão fora produzida por um jovem repórter, Roberto Carlos Alves, que viera da Revista do Rádio. Descobrira, por acaso, que estava faltando sangue no Hospital Souza Aguiar

27 ○

e fizera uma pequena, porém decente matéria, ouvindo médicos e enfermeiros de plantão. Uma notícia dessas teria acolhida discreta, bem comportada, sem merecer chamada de primeira página, em qualquer outro jornal da época. Mas a UH teria de ser entronizada com tapete vermelho e honras de tonitruantes clarins. Tinha que ser manchete. “Manda ouvir todo mundo. Médicos, enfermeiros, sindicatos, donos de hospitais, para ver como é que eles estão se virando. Quero uma entrevista com o Dr. Armando Amaral (dono da Casa de


Saúde Santa Therezinha, em sociedade com Luthero Vargas). Manda ouvir donas de casa, motorneiros, estudantes, políticos, empresários. Prostitutas! Manda alguém ao Mangue. Quantas pessoas estão morrendo por falta de sangue? Quantas vão morrer? Mobiliza todo mundo. Manda ouvir o Ministro da Guerra. Chama o Baptista de Paula para consultar se ele coloca o Exército para doar sangue e salvar a população. Não, agora não. Deixa pra amanhã. Guarda para a suíte. Tem que ter suíte. Vamos sustentar tudo isto durante uma semana na manchete.” Tudo isso sem que eu conseguisse sair de perto dele, no “aquário” que era seu gabinete envidraçado dentro da redação. Estou tentando sair para tomar as providências cabíveis quando chega o Paulo Silveira: - Porra, Paulo, prepara um editorial. Senta na máquina agora. Paulo nem sabia do que se tratava, mas disse que sim. Samuel nem permitiu que ele respirasse: - Dá uma porrada no Negrão (de Lima, prefeito do Distrito Federal). Ele está me devendo essa. Porrada nele. Liga pra Adalgisa Nery e encomenda um artigo sobre isso. Pega o interno e liga para o Raymundo Rezende, o gerente: - Raymundo, preciso de uns trocados. Fale com o Lima. Traz aqui pra mim. E sai do “aquário” para dar uma volta pelo jornal. Sai tomando o café do Zé Miguel, que já esfriara. Deve ter ido buscar o dinheiro do vale com o Raymundo, raciocino eu, me organizando para selecionar o pessoal que vai elaborar a matéria, quando reaparece o Samuel, que tinha horror a hierarquia.

- Que confusão é essa que o Samuel está armando? Volta o Samuel: - Ô Paulo, acabei de falar com a Adalgisa. Ela me garante que você não encomendou artigo nenhum. E o Paulo, sem deixar cair a peteca: - A Adalgisa está maluca. Vai ver que ainda nem acordou. E virando-se para o Almeidinha, um boy engraçadíssimo que tínhamos na redação: - Liga outra vez pra essa filha da puta. Só jogo de cena. Paulo Silveira e Adalgisa Nery se amavam como irmãos. Eram unha e carne. Samuel ainda deu meia dúzia de telefonemas e foi para casa dormir. Em termos. De hora em hora telefonava para saber se estava tomando mesmo todas as providências, incluir novos nomes na lista dos entrevistados e acrescentar novas perguntas que sacava enquanto ressonava. Samuel Wainer vivia a Ultima Hora até quando dormia. A emoção enriquecia seus sonhos e ilusões. Se ele ainda fosse vivo e seu jornal ainda existisse, duvido que este país chegasse ao ponto de descalabro, caos, desamor e pouca vergonha que nos humilha. Não estariam faltando sangue, esparadrapo, gaze, material cirúrgico nos hospitais. Nem leitos. Nem máfia de branco. Médicos e enfermeiros nunca chegariam à greve. Inexistiriam filas de aposentados à porta dos bancos para receber seu minguado dinheirinho que, talvez, fosse até mais decente. Seriam raros os meninos de rua. Deputados não recorreriam ao Dnocs para perfurar poços em suas terras às custas do

Atropelava todo mundo, arrancava o repórter da mão do chefe para dar instruções pessoais. Me chama: - Escolhe gente bem arrumada. Não acredito em repórter mal vestido. Paulo! Prepara uma pauta. E o Paulo Silveira, ainda sem saber do que se tratava: - De que, Samuel? - Um questionário. Todo mundo vai pra rua com um questionário na mão. Não podemos falhar. Já falou com a Adalgisa? - Já. Mentira. Mal o Samuel se distancia, Paulo Silveira me pergunta:

“Se ele ainda fosse vivo e seu jornal ainda existisse, duvido que este país chegasse ao ponto de descalabro, caos, desamor e pouca vergonha que nos humilha.”

dinheiro público. Usineiros não receberiam mais US$ 1,1 bilhão subsidiados sem pagar os US$ 2,5 bilhões que ainda devem. Collor e PC Farias não teriam roubado tanto, e, aliás, jamais chegariam ao poder. Não teríamos 17 milhões de crianças e adolescentes vivendo em famílias cuja renda mensal não ultrapassa meio saláriomínimo. E 32 milhões de brasileiros não estariam vivendo na linha de pobreza absoluta. E juros e inflação não chegariam ao atual patamar de indecência. E o assalariado estaria vivendo melhor, sem ter que se engalfinhar por perdas salariais, mas por melhor remuneração e dignas condições de vida. Quando mataram a Ultima Hora, fria e premeditadamente, a Ultima Hora de Samuel Wainer, os humildes e os oprimidos perderam seu porta-voz. A revolução de 64 fez de Samuel Wainer e da Ultima Hora, que ele fundara com Octavio Malta, João Etcheverry e Paulo Silveira, suas primeiras vítimas. Naquele 1º de abril previ, melancólico, que dificilmente resgataríamos o social. As elites, que encaram a pobreza como uma anomalia, operaram para silenciar Samuel Wainer e suas emoções. No jornalismo brasileiro está faltando muita gente boa, que foi convocada para assessorar o todo-poderoso na inglória liça contra as desigualdades e injustiças sociais. Mas falta, sobretudo, Samuel Wainer. Genílson Gonzaga, que trabalhou por 12 anos em Ultima Hora, é diretor do Jornal do Commercio. Este texto foi publicado no livro “Nos Tempos de Weiner: A Última Hora de Samuel” editado, em conjunto, pela ABI e pela Copim.

“COM ELE APRENDI TUDO EM MATÉRIA DE JORNAL” Jorge de Miranda Jordão

Dois anos se passam e, em l960, Samuel me manda fazer um estágio de dois meses em Londres para me aprofundar na técnica dos tablóides. E na volta, me despacha para dirigir a Ultima Hora de Porto Alegre, um tablóide. E manda Ary Carvalho dirigir a Ultima Hora do Paraná. Fiquei dois anos enfrentando o minuano, aquele vento gelado contra o qual não há roupa de lã que proteja o corpo.

Tudo começou em maio de 1953, quando comecei a trabalhar na Ultima Hora de Samuel Wainer, com o qual aprendi tudo - ou quase tudo - em matéria de jornal. Estranha coincidência: eu acabava de voltar de Paris, para onde tinha ido acompanhando meu tio, embaixador Luiz de Souza Dantas, e lá deixei um grande amor chamado Erika. Quando entrei no prédio do jornal, na Praça Onze, me deparei com um quadro na entrada que dizia: jornal Ultima Hora, editado pela empresa Erica Editora e Gráfica. Pensei na mesma hora: aqui vai ser minha vida. E foi. Cinco anos depois, em 58, Samuel manda Josemar Moreira para São Paulo com a missão de reformular a Ultima Hora paulista. E Josemar me convida para ir com ele. Queria sangue novo. Fui chefe de reportagem, secretário de redação, continuando meu aprendizado. E foi em São Paulo que conheci um dos melhores quadros da redação: Ary Carvalho.

Samuel mais uma vez me desloca, desta vez para dirigir a Ultima Hora de São Paulo. E quem me sucede na UH gaúcha é Ary Carvalho. Mais dois anos em São Paulo e sou transferido para a sede, no Rio, como diretor da UH carioca, onde fiquei até l967. Foram l4 anos de UH com Samuel, em meio a turbulências que incluíram os escândalos da era Vargas e o golpe de l964, com reflexos negativos para a vida do jornal.

Em Porto Alegre, Ary Carvalho transforma a Ultima Hora em Zero Hora, iniciando sua trajetória de empresário. Mais tarde compra de Maurício Alencar, à época dono do Correio da Manhã, o que restou da cadeia de jornais. No Rio, instala-se em um prédio da rua Equador, ao lado da Rodoviária e se propõe a recuperar tudo aquilo que havia sido perdido por força de uma perseguição política odiosa que minou com pletamente as forças do jornal. E consegue. Mas não bastava para ele. Surge em sua vida a chance de comprar O Dia. Fica com os dois jornais. Um, na rua do Riachuelo, outro na Equador. Ele lá e eu cá. Mas foi feita a opção e Ary Carvalho passa UH para terceiros. Foi o início do fim que veio mais rápido do que se pensava, por incompetência. E Ultima Hora morreu.

“Foram l4 anos de UH com Samuel, em meio a turbulências que incluíram os escândalos da era Vargas e o golpe de l964, com reflexos negativos para a vida do jornal.”

Jorge de Miranda Jordão, jornalista, é diretor de projetos jornalísticos do jornal O Dia

28

Jornal da ABI


6 9 (60%) 18.09.1950 18.07.1980

(35%) 09.07.1960 30.09.1970

TV EXCELSIOR Um aspecto define a importância: sua data que também esteve presente na concorrente de fundação, há 50 anos, é a data de fundação que ganhou, além da liderança de audiência, da TV no Brasil. Tudo começou no improviso, a própria fama de inventora de programação.

DE COMO REINVENTAMOS O MODO DE FAZER TV Maurício Sherman Coisas curiosas aconteceram na trajetória da TV Tupi. Quando Chateaubriand trouxe os equipamentos da emissora para o Brasil, vieram também os americanos para instalá-los. Eram dois engenheiros. Um enlouqueceu com as improvisações que nós fazíamos. Acho até que ele se suicidou. O outro conheceu a cachaça, as mulatas e ficou por aqui mesmo. Parece que foi visto pela última vez no interior da Bahia. Começou por aí a nossa história. Os técnicos ficavam malucos com o que a gente fazia. Estranhavam muito a nossa produção, nossa programação, que era muito ambiciosa. Mas o que impulsionou muito a Tupi e, conseqüentemente a televisão brasileira, foi o fato de ela ter iniciado com objetivos comerciais. Naquela época, esse tipo de televisão só existia nos EUA. Na Inglaterra, por exemplo, havia apenas a BBC. Isso causou muita diferença. Por isso temos hoje uma televisão compatível com as do primeiro mundo, rica de recursos e sem a chancela estatal, que aqui é de uma infelicidade bárbara. Não fosse assim, tornaria-se logo instrumento de corrupção e roubo, com a desculpa de transformar a programação, segundo a teoria deles, num instrumento educativo. Essa origem peculiar também se manifestou na linguagem. O que tínhamos de bom naquela época? Havia o rádio, que também começou comercialmente, e um bom teatro. O cinema nunca foi grande coisa. A Tupi, então, nos seus primórdios, baseou-se nesse dualismo: a síntese do rádio e do teatro. Nossos programas eram pequenas peças de um ato. Claro que havia adaptações. Por exemplo: no teatro, o sujeito dizia – “Olha lá fora! Está chovendo!”. Mas não havia o “lá fora”. No estúdio nós colocávamos a chuva lá fora, para ficar parecido com o cinema. Em sua maioria, os programas da Tupi eram humorísticos e musicais. Fazíamos novelas, pequenos teatros radiofônicos e, no meio disso tudo, introduzimos o teatro de revista: um esquete cômico, um musical, um número de dança, um cenariozinho bem

MEMÓRIA E FUTURO

buscar a linguagem cinematográfica. E nisso éramos ajudados pelo espectador, que pertencia à classe média. Não era preciso apelar para programas popularescos e o nível era muito bom: programas de perguntas e respostas, debates esportivos e música. No início, principalmente, a Tupi não tinha concorrência. À medida que a TV foi se popularizando, com os aparelhos se tornando mais baratos, a programação foi seguindo essa tendência. A Tupi sempre foi uma estação formadora de técnicos, artistas e diretores. Considero-a a academia da televisão brasileira. Até hoje são os remanescentes da Tupi que fazem os maiores sucessos na TV: Benedito Ruy Barbosa, Gilberto Braga, Janete Clair, Dias Gomes, Lauro César Muniz, Cassiano Gabus Mendes. O Chateaubriand tinha mania de grandeza. Gostava de trazer orquestras de fora, artistas estrangeiros. A gente avisava: ‘’isso não é popular’’. Ele não queria nem saber. Apesar disso, o Chateaubriand não era muito presente na Tupi. No tempo em que trabalhei lá, só o vi três vezes. Duas para pegar dinheiro e outra para dar uma mijada. Sempre tivemos problemas de dinheiro por causa da má administração, das loucuras dele, e também de outros que não souberam conduzir a Tupi. Muitos administradores vinham de jornais: tinham uma certa defasagem em relação à TV e um pouco de ciúme também, porque na época previa-se que ela acabaria com a mídia impressa. Eu gostava muito da programação ao vivo. A gente tinha que prestar muita atenção aos detalhes, prevê-los. Por exemplo, vamos imaginar um time de futebol. Na TV ao vivo, o jogo é para valer, às três da tarde. Com o vídeo-tape nós podemos ensaiar o jogo. Ou seja, a jogada foi errada, faz de novo. Repete tudo. Corre novamente, pára; errou de novo, vamos outra vez. Não, o gol tinha que ser do lado direito. Volta o ataque! Chuta! Dessa forma sairia um programa perfeito, mas seria uma partida cujo resultado se saberia anteriormente. Na TV ao vivo há todo o risco. A gente não sabia inclusive se o programa iria acabar. Mas não havia muita

feito. Havia também o jornalismo e algum esporte, com transmissão de jogos. Esse tipo de programação foi criado pela Tupi, e, mais tarde, consolidado, misturado e envolvido na linha que existe hoje, em que é clara essa influência. A TV americana, não. Baseava-se em Hollywood e seus programas eram todos sitcoms. Os americanos tinham um aparelho que gravava os programas em película, que possibilitou aquele arquivo maravilhoso que eles têm. Nós também tínhamos essa máquina, que veio no pacote quando a Tupi foi comprada. Podíamos ter registros daquele tempo. Não os temos por que diziam: ‘’Não vamos perder tempo com isso. Para que gastar dinheiro gravando essas coisas?’’. Então deixaram para lá. A Tupi e a televisão brasileira sempre estiveram muito presas ao rádio, assim como a TV americana ficou umbilicada no

O VT na TV: “cortávamos a fita no escuro, guiados apenas pelo som, como se fosse fita de áudio. Os americanos achavam que éramos loucos.”

cinema. Os diretores, os técnicos, a direção comercial eram desse meio. Eu, por exemplo, vim do teatro, mas já trabalhara em rádio. Isso foi muito útil, porque conhecia a programação desse veículo, mas também tinha noção de como arrumar cenas, da movimentação de atores e sabia muita dramaturgia. Mas como se tratava de câmera – e tínhamos grande admiração por Hollywood – queríamos fazer cinema. Havia uma veleidade artística que nos fazia

29 ○

improvisação, como se pode imaginar. Apenas quando algo dava errado. E a programação ao vivo era muito bem feita. Nós caprichávamos muito. A Tupi tinha muitos estúdios, câmeras, e os programas eram bem estudados e ensaiados. Dependia também, é claro, de cada diretor. Havia os que ensaiavam muito e os displicentes. Nossa produção de novelas ou de peças de teatro é igual à de hoje, só que ao vivo. Também não havia externas, nem essa pletora de cenários. Tudo era um pouco mais simples. Mas, vendo-se as fotografias da época, nota-se que a diferença é que hoje há mais dinheiro, mais recursos, mas já era o embrião. “Beto Rockfeler” foi uma novela feita praticamente ao vivo - e é um marco até hoje. Para se ter idéia, as cenas externas de “Beto Rockfeler” foram feitas num quintal. Hoje em dia, com mais recursos, apenas se capricharia um pouco mais. A programação das outras emissoras, contudo, era deplorável. A TV Rio, que foi a grande rival da Tupi no Rio de Janeiro, começou de outra maneira. Tratava-se de uma estação caça-níqueis dirigida por um aventureiro. A TV Rio foi ao ar uns quatro ou cinco anos depois da Tupi, encontrando um mercado mais ou menos estabelecido e mais telespectadores. Essa emissora já começou com uma programação mais popular, baseada em programas de humor, feitos com auditório - idéia que ela trouxe para a TV brasileira. O Péricles do Amaral, que era da Rádio Tupi, pegou os programas de rádio mais populares e os colocou na TV Rio quase sem nenhuma modificação, com auditório e três câmeras fixas - e a Tupi não trabalhava com câmeras fixas e nem tinha auditório. Nós fazíamos movimento, zoom, jogo de lentes, tudo muito mais sofisticado. Mas o Péricles, não. Fixou as câmeras e disse: registra o que está acontecendo no palco. Com isso, a TV Rio conseguiu muita popularidade, como era de se esperar. Só tempos depois, acho que em 1958, começamos a fazer alguns programas de humor com platéia. Mas isso já na Urca, com um auditório pequeno. O da TV Rio era em Copacabana, ali no posto 6, e vivia cheio. Lotava apenas com os moradores do bairro. Lá na Urca, não.


Tínhamos que trazer gente de ônibus. Era quase um auditório induzido. A Tupi foi a primeira a fazer um link entre Rio de Janeiro e São Paulo. Para se fazer a ligação entre as duas cidades precisava-se de uma meia dúzia de links grandes - e havia o problema das montanhas. Era uma aventura. Na primeira vez que o utilizamos, botei o maestro Severino Araújo regendo sua orquestra, que estava em São Paulo, aqui do Rio. Depois foi com uma dupla famosa, Joel e Gaúcho, que tinham brigado. Cada um morava numa cidade. O Joel topou a apresentação desde que não encontrasse o parceiro. Quando disse que ele cantaria em São Paulo e o Gaúcho, no Rio, ele disse: “Não vendo a cara dele, tudo bem”. Então conseguimos reunir, pelo menos dessa vez, a dupla. Antes não era dessa forma. O “Repórter Esso”, por exemplo, que era o jornal mais importante, tinha duas versões, com dois apresentadores diferentes. Assim como o “Céu é o Limite’’, que era com o J. Silvestre no Rio e com o Homero Sales, em São Paulo. Às vezes um programa fazia sucesso numa cidade e na outra, não. Já na época do vídeo-tape, enviava-se a fita por avião, nós a entregávamos na mão do piloto. As novelas feitas em São Paulo começaram a vir para o Rio. Vez em quando eles repetiam um capítulo lá, já que o novo não havia ficado pronto, e nós, no Rio, também tínhamos que reprisar. Quando a fita não

chegava, isso também acontecia. O vídeotape criou uma rede, mas de avião. Quando surgiu o vídeo-tape, a Tupi comprou as melhores máquinas e todos nós nos apaixonamos por ele. Podia-se, afinal, corrigir todos os erros. Começamos inclusive a trabalhar de madrugada. Porque, como no exemplo da partida de futebol, um jogo que tinha apenas 90 minutos passou a durar muito mais. Para se ter idéia, esse programa especial de humor (homenagem da Rede Globo aos 50

os americanos, seus inventores. Eles não precisavam das fitas: gravavam tudo em película. O vídeo-tape foi criado nos EUA para corrigir a diferença de fusos-horários que eles têm. Nunca passou pela cabeça deles usá-lo da nossa maneira. E teoricamente nem daria, porque a fita é opaca, não é como a película. No início, cortávamos a fita no escuro, guiados apenas pelo som, como se fosse fita de áudio. Os americanos achavam que éramos loucos. Volta e meia a gente decepava um ator, emendava de cabeça para baixo. Havia um aparelho para cortar, uma guilhotinazinha. E o Brasil era grande consumidor desse aparelho. Os americanos estranhavam muito, pois, como ele servia apenas para cortar as pontas, bastava uma. Mas nós pedíamos essas lâminas o tempo inteiro - e só então eles descobriram o porquê. A televisão brasileira foi feita com o sacrifício desse pessoal, seus atores, diretores, escritores e técnicos. Com o amor pelo tipo de trabalho que faziam. Muitas vezes a gente dormia na emissora finalizando programas. Estamos nessa profissão porque gostamos e a televisão foi feita em cima desse sacrifício. Não foi de outra maneira. (Depoimento a Carlos Braga)

anos da televisão brasileira), que teve pouco mais de uma hora, levou quase três semanas sendo gravado. Noutra época, a gente ensaiaria à tarde, poria no ar à noite e acabou. Não tinha edição, correção, nada. O programa ao vivo deixava a emoção em alta, na epiderme. Mas para as outras emissoras, que tinham basicamente programas de auditório, o vídeo-tape pouco fez diferença. Uma coisa curiosa é que o vídeo-tape tinha para nós uma utilidade completamente diferente que para

NOVIDADE PARA QUEM SÓ VIU A AGONIA DO FIM coisa era ao vivo, na raça, irrigada por corredeiras de adrenalina. Não tinha essa de take 2. A linguagem também teve que ser criada - a televisão era novidade no mundo inteiro e ninguém sabia ao certo como rechear aquilo. Ou seja, anos de muito trabalho, criatividade e tesão, mas que também devem ter sido muito divertidos.

Carlos Braga Cheguei a assistir a alguns desenhos na TV Tupi, numa Telefunken a cores, mas ela já agonizava (a emissora, não o aparelho). O depoimento de Maurício Sherman, porém, revive uma época bem anterior, dos desbravadores da telinha liderados pelo louco empreendedor Assis Chateaubriand. Tempos heróicos. Hoje não se imagina a vida sem o computador, mas naquela época nem vídeo-tape existia. A

Maurício Sherman, começou a dirigir programas na TV Tupi em 1954 e atualmente dirige o programa ‘Zorra Total” na TV Globo.

Carlos Braga, jornalista, é editor do sítio da ABI na Internet.

ANÚNCIO EDITORA ABRIL

30

Jornal da ABI


HISTÓRIA DA TESTEMUNHA OCULAR DA HISTÓRIA equipes locais que não conversavam entre si. O “Repórter Esso” de São Paulo, que durante muitos anos fora transmitido pela TV Tupi, tinha saído do ar no meio do tiroteio dos Associados com a Esso, provocado pela ciumeira de Chateaubriand, João Calmon e Edmundo Monteiro, que não enguliram o acordo fechado entre o Time-Life e Roberto Marinho para montar a TV Globo. Naquele tempo, a logomarca do capital estrangeiro era o oval da Esso. Alguém estava irritado com a atuação das empresas de fora no Brasil e queria manifestar seu desagrado? Muito simples, era só dirigir suas baterias contra a Esso.

Ismar Cardona “Alô, alô ‘Repórter Esso’, alô” ou então “Aqui fala o ‘Repórter Esso’, testemunha ocular da história”. Durante décadas essas duas apresentações eram acompanhadas com uma atenção quase religiosa por todo o país. Quando sua famosa fanfarra entrava no ar, milhões de pessoas ficavam com o ouvido colado no rádio ou com os olhos fixos nos aparelhos de TV das principais capitais. Quando a fanfarra tocava fora de seu horário normal, era sinal de que alguma coisa muito grave tinha acabado de acontecer. “Acaba de morrer o presidente Getúlio Vargas”, informava com sua voz inconfundível Heron Domingues. O velho “Repórter Esso” de rádio e televisão, mais no rádio do que na TV, era sinônimo de noticiário. Havia o Repórter da Globo, o Repórter da Tupi. Para os ouvintes, cada emissora tinha o seu “Repórter Esso”. Para a Esso, essa confusão tinha suas vantagens e desvantagens. Era sinal de prestígio do programa, mas ao mesmo, tempo tinha virado uma marca tão forte que a empresa começava a desconfiar que as pessoas não mais identificavam as fanfarras do “Repórter Esso” com os produtos vendidos pela empresa. A coordenação nacional do “Repórter Esso” foi uma das minhas primeiras, e mais ricas experiências profissionais. Fui dar com os costados na Esso por indicação do jornalista Nelson Lemos, que durante vários anos tinha trabalhado na assessoria de imprensa da empresa. Como o chefe da assessoria, Alcione Pereira, estava saindo de lá e o sub-chefe, Lydio Mafra de Souza, não queria assumir o cargo, eles estavam atrás de alguém para ocupar o lugar. Entre as atribuições da assessoria de imprensa figurava a coordenação do Prêmio Esso de Jornalismo. A assessoria de imprensa estava subordinada ao gerente de relações públicas, Sérgio Pinheiro, que acabou me convidando a tomar conta também do “Repórter Esso”, que desde sua criação estava aos cuidados da McCann-Erickson. Aliás, para quem não sabe, McCann e Erickson eram os sobrenomes dos dois sujeitos que foram durante muito tempo responsáveis pelo departamento de propaganda da Esso e que acabaram criando uma agência fora da companhia para cuidar fundamentalmente da conta da Esso. Para uma companhia permanentemente preocupada com a redução de custos, era um excelente negócio tomar conta diretamente do “Repórter Esso”, pois assim se via livre do pagamento da comissão de agência. Quando assumi a coordenação do “Esso”, no início de 1967, minha primeira atenção foi com o programa transmitido pela TV Tupi do Rio, competentemente dirigido pelo jornalista Marcos Reis e apresentado por Gontijo Teodoro. Não havia ainda sido criada a Embratel e o Esso em Salvador e Recife era produzido por

MEMÓRIA E FUTURO

paulistas. Não foi das tarefas mais fáceis, pois era a fase áurea dos festivais da Record e dos shows da Excelsior. As duas não demonstraram o menor interesse em ter o “Esso” em sua programação. Na Tupi,a negociação foi bastante dura. Voltar à emissora, tudo bem, mas no mesmo horário anterior - oito horas da noite - nem pensar, pois já estava ocupado pelo “Ultra Notícias”, patrocinado pelo Grupo Ultra. Na conversa que tivemos com o principal diretor da Excelsior, Edson Leite, fomos enfaticamente desencorajados a relançar o “Repórter Esso”. O argumento que ouvimos dele para desistir de São Paulo era uma pérola de insensatez e de arrogância: “Desistam, os paulistas não gostam de noticiário”, disse ele no tom professoral de quem sabe bem do que está falando. Isso foi em 1967! Numa fase como a vivida hoje pelas empresas jornalísticas, que não dão um passo sem antes se cercar de todo tipo de pesquisa de leitores possível, não deixa de ser interessante lembrar como se tocavam as decisões nos altos escalões da mídia brasileira. Eram os heróicos tempos do “achismo”, fina flor do autoritarismo. Os dirigentes se arvoravam em “interpretar” o gosto das pessoas e, se porventura erravam nos palpites, o público que se lixasse. Ou mudasse de canal ou de jornal. Sinal dos tempos. Do “achismo”, evoluímos para a ditadura das pesquisas de opinião com leitores/ouvintes/ telespectadores. Não se pode deixar de admitir que, apesar dos pesares, foi uma evolução, embora elas tendam quase sempre a nivelar por baixo o conteúdo dos veículos. Aliás, graças ao boom das pesquisas, os nossos grandes jornais dão a impressão de serem todos pautados pelo mesmo pauteiro. Bem, mas isso é tema para outra conversa. Voltemos a São Paulo. Depois de pesadas negociações, conseguimos fechar um contrato de transmissão do “Repórter Esso” com a TV Tupi. O horário - 23 horas - não poderia ser pior para um programa que pautara sua história como sendo o primeiro a dar as últimas notícias e que, agora, por ironia do destino, passara a ser, em São Paulo, o último a dar as primeiras notícias. O novo horário, no entanto, iria nos permitir pôr em prática a idéia de mudar o formato tradicional do “Repórter Esso”. Em vez do locutor com voz tonitroante, declamando as notícias, queríamos testar um novo tipo de apresentador que fosse também jornalista, seguindo o modelo dos telejornais norte-americanos. Para apresentar o novo programa, encontramos a pessoa ideal no jornalista Nemércio Nogueira, que tinha acabado de voltar de Londres, onde estagiara durante três anos no programa de TV da BBC. Nemércio ficava completamente à vontade no papel. Era um excelente improvisador e conseguia a façanha, que um apresentador clássico jamais ousaria tentar, de levantarse da mesa e ir até um mapa pendurado na parede do cenário, onde mostrava aos telespectadores os cenários das batalhas do dia no Vietnã.

Quando ouviam a fanfarra musical do “Repórter Esso”, milhões de pessoas das principais capitais ficavam atentas, coladas nos aparelhos de rádio e TV.

Depois da Esso, mas muito atrás, vinha a Light, “o polvo canadense”, seguida da mineradora Hanna. Mas nenhuma dessas duas possuía uma logomarca tão poderosa quanto à da Esso. Contribuía para a má vontade contra a Esso, especialmente nos partidos de oposição, sua ativíssima participação no lobby contra a criação da Petrobrás. Seguindo a tradição, os Associados canalizaram toda sua ira contra a embaixada americana e contra a Esso, sucursal da mais poderosa das “sete irmãs” do petróleo, a Standard Oil, desencadeando uma furiosa campanha contra o governo e o capital americanos. Um dos diretores da Esso, Nabuco de Araújo, contou-me depois que, cessado o tiroteio, os Associados trataram de voltar às boas com a embaixada americana e com a Esso. O jornalista João Calmon, que foi o mais agressivo articulista enquanto durou a campanha, foi até o gabinete de Nabuco para apresentar desculpas pelas ofensas dirigidas à empresa e seus diretores. Nabuco disse que só aceitaria pôr uma pedra em cima de tudo se Calmon também apresentasse desculpas à Esso, via rede de jornais e emissoras associadas. Calmon encabulou, disse que não seria possível politicamente atender ao pedido e a conversa acabou por ali mesmo. Um ano depois, Nabuco de Araújo incumbiu a mim e Sérgio Pinheiro e eu de negociarmos a volta do programa a São Paulo junto às emissoras de televisão

31 ○

Até aí, tudo ótimo, o problema era que o programa jamais ia ao ar na hora combinada. Às vezes entrava à meia-noite, outras à meia-noite e meia, chegando a começar à uma hora da madrugada. Não podia dar certo, como de fato não deu, e pouco tempo depois o “Repórter Esso” paulista saía do ar definitivamente. A McCann-Ericsson era extremamente cautelosa em sua orientação editorial, seguindo estrita orientação da Esso, que, por ser uma empresa estrangeira, sabia bem o chão pantanoso e escorregadio por onde pisava. Depois que assumi a coordenação, a pauta do “Repórter Esso” passou a se tornar um pouco mais, para usar a palavra tão em voga hoje, flexível. A sisudez do programa apresentado em tom bombástico passou a incluir em sua pauta entrevistas bem variadas. Para irritação dos telespectadores mais ortodoxos, entrevistamos Nelson Rodrigues defendendo o uso do palavrão no teatro. Minha nossa, como eram inocentes aqueles tempos! Mário Lago, que tinha sido cassado três anos antes e que ainda era visto com olhos desconfiados por parte do respeitável público, falou no programa sobre seu show com Edu da Gaita. Temíamos então que o patrocinador reclamasse e, como não reclamou, fomos em frente. No Teatro Casa Grande, o programa entrevistou um jovem compositor mineiro que dali a pouco iria estourar no mercado. Tímido, como poucos, Milton Nascimento, um total desconhecido, era apresentado como uma das maiores revelações da música popular brasileira. Chico Buarque foi outro. Como entrevistador, o apresentador Gontijo Teodoro, que suava frio em seu novo papel. Quando Roberto Carlos venceu o Festival de San Remo, encomendamos à UPI uma sonora com a música vencedora, que foi apresentada no “Repórter Esso” dois dias depois. Pequenas e inocentes mudanças de pauta com que testávamos o público para futuras alterações que ainda não sabíamos bem quais seriam. Diante da parafernália tecnológica com que contam atualmente as emissoras de TV, essas matérias soam como inocentes tentativas de fazer telejornalismo. Mas é bom não esquecer que estávamos em 1967/68 e num programa que não fazia entrevista. A audiência do programa era fantástica. Nos dias normais chegava a 25% no Grande Rio, o que queria dizer que era visto por aproximadamente um milhão e setecentas mil pessoas. Um belo dia apareceu na minha sala, na Esso, um funcionário da embaixada americana, que vinha solicitar filmes que mostrassem treinos e jogos dos clubes de futebol cariocas. A embaixada tinha recebido um pedido do Departamento de Estado para montar vários compactos a fim de estimular o gosto dos universitários americanos pelo futebol. Segundo o funcionário, o governo dos Estados Unidos elegera como uma de suas prioridades políticas tornar o país uma potência futebolística. Nas Olimpíadas, os feitos dos atletas americanos eram


acompanhados por quase todo o mundo, mas nada se comparava com o público que acompanhava os campeonatos mundiais de futebol. Além disso, o futebol era o único esporte de massa aplaudido com paixão pelos primeiro, segundo e terceiro mundos. E os americanos não podiam ficar de fora desse esporte. A fase mais interessante do “Repórter Esso” no Rio, nos dois anos em que permaneci como seu coordenador, foi a que antecedeu à Passeata dos 100 mil. Corria o ano de 1968 e diariamente a cidade era sacudida por confrontos envolvendo estudantes e a polícia. Na França, os estudantes faziam barricadas e enfrentavam os policiais nas ruas do Quartier Latin, com paus, pedras e paralelepípedos. Pedimos à UPI que nos abastecesse diariamente com reportagens sonoras dessas mani-festações. O ponto alto da cobertura das manifestações no Rio aconteceu no dia em que os estudantes realizaram um protesto contra a demolição do restaurante Calabouço, no Aterro do Flamengo. A polícia interveio

opinião de Sizeno, o programa estava excessivamente simpático aos estudantes. O general, segundo a minha fonte, chegara a falar até na hipótese de abrir um IPM ( Inquérito Policial Militar, para quem é mais jovem) para investigar as causas da mudança editorial do “Esso”. Pouco depois veio o AI-5 e, por concordar com a música de Vandré, senti que meu tempo de coordenador do “Repórter Esso” tinha acabado e que tinha chegado a minha hora de pedir as contas. Em março de 1969 eu voltava a trabalhar na sucursal carioca da Folha de S. Paulo, sob o comando de Washington Novaes e do careca e flamenguista Zezé Cordeiro. Mas aí já é outra história. Anos depois, o “Repórter Esso” deixava de ir ao ar, porque a direção da empresa achava preferível jogar o dinheiro gasto com o programa em propaganda.

creditado à cobertura do “Repórter Esso”. Na Esso, entretanto, as coisas estavam mudando para pior. Sérgio Pinheiro, que sempre me dera total apoio, fora afastado, assumindo seu lugar Petiz Fernandes, que não estava interessado nas ousadias de pauta do “Esso”. Pouco depois, um grupo de empresários americanos reclamou de Petiz e da “excessiva cobertura dada pelo programa à agitação estudantil”. Petiz pediu-me que fizesse um pacote de reportagens apresentadas pelo “Repórter Esso” e trouxesse para ele analisar. O que ele viu não foi de seu agrado. E sua ordem foi para baixar de vez com o tom favorável aos estudantes, que tinha sido a característica principal do programa nos últimos meses. A partir de então, o “Repórter Esso”, pelo menos para mim, perderia sua graça. Naquela mesma época, um jornalista que trabalhava na TV Tupi, e que era muito ligado aos militares, me informou que o general Sizeno Sarmento, comandante do I Exército, tinha lhe indagado sobre o que estava acontecendo com o “Repórter Esso”. Na

violentamente matando o estudante Edson Luiz. Nesse dia, Marcos Reis e sua equipe fizeram uma edição fora do comum. O “Repórter Esso” dedicou vinte minutos do programa aos acontecimentos que culminaram na morte de Edson Luiz. O filme mostrava o quebrapau com a polícia, o corpo do estudante chegando à Câmara de Vereadores carregado pelos colegas, a camisa ensangüentada mostrada por jovens irados. Foi certamente uma edição histórica. Dias antes, recebi um bilhete assinado pelo diretor Nabuco de Araújo ordenando que se determinasse à produção do “Repórter Esso” que deixasse de apresentar as reportagens sonoras dos incidentes estudantis em Paris por considerá-las inconvenientes. A cobertura do “Repórter Esso” à movimentação dos estudantes acabou contribuindo para engrossar o caldo da cultura social de protesto contra o arbítrio, e que terminaria desembocando na Passeata dos 100 mil. Na época, alguns colegas chegaram a dizer que, no mínimo, 80% do sucesso da passeata deveria ser

Ismar Cardona, coordenador nacional do “Repórter Esso” entre 1967 e 1969, dirige a sucursal de Brasília do novo jornal de economia e política do Diário Popular.

UM MEA CULPA QUE EXPLICA O FIM DA REDE TUPI Paulo Cabral de Araújo

formidável que é o mercado de TV no Brasil. Ao menos dividindo com a Rede Globo essa fábula de faturamento que hoje têm as organizações do Dr. Roberto Marinho, por capacidade administrativa e técnica e pela profissionalização de seu negócio. Eu fiz um relatório respondendo a um questionário do João Calmon, em 1970, onde dizia que nós estávamos nos enganando, pois não podíamos sustentar aquele número de veículos. Então, frente ao decreto-lei 236, nós deveríamos reduzir o número de estações de TV. Para ter uma rede de TV não precisávamos de nove emissoras geradoras. Uma é pouco, mas nós tínhamos nove. Se tivéssemos eliminado quatro, que era o excesso, já que a lei falava em 5, teríamos apurado um bom dinheiro, pois elas dominavam sozinhas os mercados. Teríamos injetado os recursos obtidos nas cinco remanescentes e poderíamos enfrentar a concorrência que estava surgindo. Esse era meu ponto de vista, que, infelizmente, não saiu vitorioso. E eu disse mais: “Nós vamos perder tudo, porque há de chegar um governo que irá nos obrigar a nos enquadrarmos na legislação que está em vigor no país”. E perdemos! No governo do presidente Figueiredo. Nossas concessões de televisão, em sua grande maioria, se esgotaram em 1977. Como nós não abríramos mão das emissoras excedentes, não conseguimos renovar as cinco concessões que podíamos ter. Um dos requisitos da lei para renovar as concessões era que o requerente estivesse regular diante das normas do decreto-lei 236. Se tivéssemos agido corretamente, teríamos regularizado nossa situação e o presidente Figueiredo não teria cometido o ato arbitrário de decretar a perempção, em uma penada só, de sete das nossas concessões de TV. Venceríamos qualquer tipo de crise, se estivéssemos enquadrados

Ainda com o Dr. Assis Chateaubriand vivo, nós fechamos algumas empresas dos Diários Associados e vendemos outras. Fechamos o Diário de Santos e mais dois ou três jornais do Norte, vendemos o jornal e a emissora de televisão do Paraná, etc. Mas foi pouco; na verdade, nós tínhamos crescido demais. O Dr. Assis Chateaubriand era um grande empreendedor, um idealista, mas não um grande empresário. Não passavam por sua cabeça os problemas que surgiriam com o agigantamento do grupo, que cresceu com duas carências fundamentais: falta de capital próprio e de estrutura administrativa. Desta forma, as empresas dos Diários Associados foram se multiplicando, muitas delas deficitárias, sobrecarregando as demais com obrigações fora de sua operação normal. Perdemos uma oportunidade para solucionar esse problema no governo do Marechal Castello Branco, em 1967, quando ele editou o decreto-lei 236, reduzindo o número de concessões de canais de TV e freqüências de rádio para grupos privados. O meu ponto de vista se chocava com o de outros companheiros, inclusive de advogados nossos; eles achavam que com esse decreto-lei nos obrigando a reduzir o grupo violentamente, nós iríamos nos acabar: os Diários Associados deixariam de existir. Eu defendia um ponto de vista completamente diferente. Achava que a redução do grupo iria revitalizá-lo economicamente. Devíamos ter diminuído o grupo por imposição da lei; não seria por incompetência, mas por força da lei. Era uma ótima oportunidade. Nós teríamos feito um saneamento grande nas empresas e hoje estaríamos ainda com nossa rede de TV no ar. A Rede Tupi estaria participando de um mercado

ABI

ANÚNCIO PREFEITURA DE ILHÉUS

34

na lei. Mas ocorreu que, como nós não renovamos a tempo as concessões, passamos a operar em caráter precário. Este foi um dos motivos pelos quais perdemos a rede de televisão. Nós não fomos ouvidos no processo

Jornal da ABI


de cassação, tanto que estamos em juízo movendo processo de perdas e danos contra a União Federal e já ganhamos duas dessas ações. A morte de um líder em qualquer organização abala sua estrutura. Seja uma organização jornalística, seja estritamente industrial ou comercial. Mas eu sempre disse aos companheiros, depois de um certo tempo da doença do Dr. Chateaubriand, que nós não podíamos mais responsabilizar sua ausência pela falta de providências na empresa. A culpa já era nossa. Temos que bater no peito e reconhecer que a culpa foi nossa. E por que a culpa foi nossa? Porque havia, mesmo com o Dr. Chateaubriand em vida, e principalmente durante sua doença, uma grave disputa interna de poder nos Diários Associados. A coisa mais estapafúrdia da nossa rede de TV é que havia duas cabeças. Existia um centro de produção no Rio e outro em São Paulo. Não havia entendimento entre as administrações das duas grandes praças comerciais do país. Isso contribuiu tremendamente para agravar nossa situação. Eu chegaria a dizer que o ato do governo resultou de nossa própria fragilidade. Se não estivéssemos irregulares e enfraquecidos por disputas internas, nós não teríamos sofrido essa agressão política do governo Figueiredo, que justificou sua atitude afirmando estar apenas protegendo o mercado de trabalho na área, procurando incentivar a concorrência. Na verdade isso não ocorreu. A Rede Tupi de televisão foi substituída por duas outras: Manchete e SBT. Em termos de mercado de trabalho, o nosso, em SP, era muito maior do que o que surgiu com as duas novas redes e a Rede Globo. Esta, já com sua estrutura de audiência consolidada, não sofreu praticamente nada e mantém até hoje, essa que é a verdade, a hegemonia da audiência de televisão. Então, os objetivos do governo foram frustrados. Se o governo tivesse dado o apoio que nós pedíamos

eu disse a ele na época e tenho repetido, falei também com o Dr. Chateaubriand: “Ninguém vai acreditar nesse nosso patriotismo, nessa nossa patriotada de dizer que estamos defendendo a independência do Brasil, a opinião pública nacional, que vai ser invadida por grupos americanos e não sei mais o quê. O grande público vai ter a seguinte interpretação: um determinado grupo econômico conseguiu uma sociedade com os americanos; o outro grupo não conseguiu e brigou”. Brigou

naquela época, teríamos recuperado a Rede Tupi e estabelecido um processo de concorrência forte. Porque, afinal, nós éramos os pioneiros, conhecíamos o negócio, sabíamos o que seria possível fazer. Mas houve, também, de nossa parte, um erro político grave: rompemos com o governo Castello Branco, em virtude do contrato do grupo americano Time-Life com as organizações Globo. Meu querido amigo João Calmon cometeu um erro grave,

“Se tivéssemos agido corretamente, teríamos regularizado nossa situação e o presidente Figueiredo não teria cometido o ato arbitrário.”

A ADMISSÃO DO CAPITAL DE FORA Edmundo Monteiro

Ele tentou contemporizar, dizendo que quis impedir, mas que o Calmon era muito vaidoso. Eu insisti: - Acontece que o senhor é o dono. Então ao senhor compete decidir. Se o senhor quiser, basta chamar o Calmon e fechar a língua dele dentro da boca. Aí sai O Cruzeiro daquela semana e o David Nasser manda mais um pau. Fui ao Chatô e disse: - Não vamos brincar mais. A ABC que fique com o dinheiro dela, o Roberto Marinho que fique com o do Time-Life. Mas saiba que essa gente vai acabar com os Diários Associados. (...) Minha tese era um pouco pragmática, um tanto ou quanto velhaca, mas não tinha saída, nós tínhamos que tomar dinheiro estrangeiro. (...) Mas eu nao podia querer me associar ao capital estrangeiro e ao mesmo tempo agredir o capital estrangeiro. Enquanto eu estava lá, tentando amarrar alguma associação, o Calmon estava indo para a tribuna e para a televisão soltar os cachorros - contra, naturalmente, o meu ponto de vista.

Eu defendi a tese, com a aprovação de Chateaubriand, de nos ligarmos a uma organização americana, que seria a ABC, a American Broadcasting Corporation. Tanto que fui aos Estados Unidos tratar disso. Porque eu sabia que o segredo do sucesso da Globo era técnica e dinheiro. Como nós não tínhamos dinheiro nenhum, não poderíamos ter a técnica, que era uma decorrência do primeiro. Foi o que fez o Roberto Marinho. O Chateaubriand aceitou a tese e me disse: - Edmundo, isso fica entre nós. Você vai aos Estados Unidos fazer contatos com a ABC. (...)O Chatô tinha me pedido reserva. Claro, você não vai confessar o crime. Se nós íamos burlar a Constituição, não era para bater caixa sobre isso. Então eu fui, mas, quando eu chego de volta ao Brasil, sou obrigado a quebrar um pau desgraçado, porque o “seu” João Calmon já tinha ido à televisão fazer uma agressão ao Roberto Marinho. (...) Cheguei e disse ao Chatô: - Assim não pode! Isso é velhacaria! Amanhã vão dizer que eu estou querendo burlar as leis do país e que o “seu” Calmon é contra. Isso está sendo feito dentro da sua casa, assim não dá, né, Chatô?

inclusive com o governo. Essa foi a interpretação primária do povo, a interpretação mais lógica. Por isso eu era contra a briga. Se a Rede Globo, o Dr. Roberto Marinho, como grande empresário que é, descobriu o caminho, respeitando a Constituição brasileira e as leis de telecomunicações, para trazer recursos do exterior, quando estava montando sua primeira estação, a TV Globo do Rio de Janeiro, conseguindo 15, 20 ou 25 milhões de dólares, nós tínhamos a possibilidade de levantar muito mais, pois já operávamos em nove mercados no Brasil. Mas, infelizmente, minha pregação não funcionou e ali começaram algumas de nossas grandes dificuldades. Aliada a esses problemas tivemos a falta de sorte de enfrentar essa crise, que levou ao fim a Rede Tupi de televisão, com o Dr. Chateaubriand já acometido pela trombose. Ele adoeceu em fevereiro de 1960 e foi em 1965 que começou o aparecimento vitorioso da Globo. (Depoimento ao Projeto Memória do Jornalismo, em 19/03/96)

Depoimento de Edmundo Monteiro, que foi comandante dos Associados em São Paulo, publicado no livro “Chatô, O Rei do Brasil”, de Fernando Morais.

Paulo Cabral de Araújo é diretor presidente dos Associados e presidente da Associação Nacional dos Jornais.

UM RESGATE HISTÓRICO PARA TUPI E EXCELSIOR acontecendo ali. Mas todos deram seu suor para manter heroicamente uma programação no ar, a maioria trabalhando simultaneamente no rádio e na TV. Já a TV Excelsior tentou imprimir maior profissionalismo ao veículo, mas infelizmente também foi mal gerenciada. Retrato dos contrastes do nosso país, ainda hoje temos na TV brasileira um pouquinho de Tupi e Excelsior: um cabo-deguerra entre o talento e a dificuldade, a qualidade e a apelação. Vamos zapear no tempo...

Rixa

Tenho 35 anos, não vivenciei a evolução da Tupi e muito menos da Excelsior. Minha lembrança da Tupi se restringe principalmente ao programa do Capitão Asa, único capaz de me arrancar do playground da casa da minha avó. Ao Flávio Cavalcanti com suas reportagens sensacionalistas. Às novelas que já mostravam sinais de cansaço diante do poderio da Globo. Mas a “babá eletrônica” cuidou tão bem de mim, que acabei me tornando um telespectador profissional. Estendi essa paixão ao meu trabalho: há 16 anos resgato a memória da TV no programa “Video Show”. Estudando o tema, entendi que a implantação de uma emissora de televisão no Brasil em 1950 era uma aventura, ironicamente...cega! Ninguém tinha a menor noção do que estava ○

MEMÓRIA E FUTURO

no ar no canal 3 de São Paulo. Assis Chateaubriand, dos “Diários Associados”, era o dono desta que foi a 1ª televisão do Brasil e da América do Sul. Sua antena foi instalada no alto da torre do Banco do Estado de São Paulo. Sendo raríssimos os proprietários de aparelhos domésticos na época, Chateaubriand instalou televisores na Praça da República, no Jockey Club e outros pontos estratégicos da cidade de São Paulo para o povo assistir à façanha. É difícil reproduzir fielmente o que aconteceu naquele dia no estúdio montado na “Cidade do Rádio”, prédio da Rádio Tupi no Sumaré. As testemunhas se contradizem, reportagens da época narram histórias diferentes. O roteiro previsto foi modificado na hora e não existem registros em vídeo. Cruzando informações, chega-se a esta provável descrição do dia histórico: Às 16h, o bispo auxiliar de São Paulo, Dom Paulo Rolim Loureiro abençoou os estúdios e benzeu as câmeras. Chateaubriand fez seu discurso. Na

“Vamos saudar a inauguração do mais subversivo instrumento de comunicação deste século!” (Assis Chateaubriand, enquanto assistia ao show inaugural da tv brasileira num aparelho instalado no Jóquei Clube em São Paulo) Inaugurada em 18/09/1950, com o prefixo PRF-3, a TV Tupy-Difusora entrou ○

35 ○

qualidade de madrinha da televisão, a poetisa Rosalina Coelho Lisboa Larragoiti foi a primeira de uma série de convidados a exaltar aquele momento histórico. A solenidade terminou às 18h, com a promessa de um grande show inaugural às 21h, chamado “TV na Taba”. Uma das 3 câmeras quebrou e o técnico norteamericano Walter Obermiller quis adiar, mas a equipe optou por improvisar. Tendo Dermival Costa Lima na direção artística e Cassiano Gabus Mendes como seu assistente, o espetáculo começou com cerca de uma hora de atraso. A seguir, as atrações que estavam previstas no roteiro de estréia. A atriz Yara Lins foi a primeira a aparecer na telinha, anunciando o prefixo da emissora: PRF-3-TV Difusora. Na seqüência, o anfitrião Homero Silva apresentou uma espécie de trailer do que o espectador poderia ver na TV: 3 visitantes foram conduzidas pelo estúdio neste passeio pelo mundo encantado da ○


televisão. Apontando para um cartaz com o letreiro “Dança Ritual do Fogo”, eles introduziram a orquestra de George Henry, com a participação do exótico assoviador William Fourneaut. O humor estreou com a “Escolinha do Ciccillo”, do autor Paulo Leblon, com Xisto Guzzi, Simplício, Walter Avancini, Geni Prado, João Monteiro, Aldaísa de Oliveira, Nelson Guedes e Lulu Benencase. O maestro Rafael Puglieli tocou piano. Sentado num banquinho, o comediante caipira Mazzaropi deu uma idéia do que seria o programa “Rancho Alegre”, tendo como cenário de fundo uma casa de caboclo. No “Vídeo Esportivo”, o apresentador Aurélio Campos se colocou diante de uma miniatura de campo de futebol, e então o craque Baltazar, que estava de costas, revelou-se sorrindo, enquanto eram ouvidos gritos de gol. A câmera mostrou os pés de um negrinho chutando uma laranja e, em seguida, ouviuse a voz de uma mulher repreendendo-o. Wilma Bentivegna e os Garotos Vocalistas interpretaram um bolero. A bailarina Lia Marques dançou o “Romance Espanhol”, junto com o cantor Marcos Ayala. Os atores Walter Forster, Lia de Aguiar e Vitória de Almeida encenaram o esquete curto “Ministério das Relações Domésticas” - uma comédia conjugal. O locutor Maurício Loureiro Gama deu um flash de seu “Em Dia com a Política”. O tradicional programa infantil “Club Papai Noel” foi transportado da Rádio Difusora para o vídeo, com crianças exibindo seus dotes artísticos. O número “Pé de Manacá”, com Vadeco, foi cancelado devido à ausência de sua parceira Hebe Camargo. Lolita Rodrigues também substituiu Hebe para cantar o “Hino da TV”. Às 23h30, sem qualquer anúncio comercial, terminava o espetáculo “TV na Taba”. Nos primeiros dias a Tupi trabalhou heroicamente com uma programação das 18 às 23h. Em 20/01/51, dia do aniversário da cidade do Rio de Janeiro, estreou a Tupi carioca (PRG-3 TV canal 6). A antena foi colocada no alto do Pão de Açúcar (o clero se opôs à instalação no Corcovado). Ali mesmo, uma comitiva celebrou a estréia às 12h49, com a presença de Chateaubriand. Padrinhos da estação, o presidente da República Eurico Gaspar Dutra - que ligou o transmissor, o general Mendes de Morais e sua esposa Sra. Deborah ligaram os receptores, derramando champanhe sobre eles. Dezenove indiozinhos bugres encenaram um número de “macumba branca”. O apresentador do programa inaugural, o compositor e jornalista Antônio Maria, anunciou entre outras atrações o conjunto Garotos da Lua, do qual João Gilberto era integrante. A emissora, então dirigida por José Mauro e tendo Carlos Rizzini como superintendente, situava-se junto à praça Mauá, na Av. Venezuela 43/5° andar, operando em estúdios improvisados na Rádio Tamoio. Dali eram transmitidos programas como “Personagens Célebres”, de Haroldo Barbosa, com o comediante Colé. Em 1955 a Tupi do Rio mudou-se para para o Cassino da Urca (desativado desde 1946), na Av. João Luiz Alves, 13/14. Almeida Castro tornou-se o diretor do canal carioca em agosto de 1956. Em 1958, as Associadas compraram a Rádio Cultura de São Paulo, de onde ○

MEMÓRIA E FUTURO

passaram a transmitir programas populares. Em 1959, Chateaubriand doou 49% de seu império de comunicações a 22 empregados, que se tornaram condôminos. Morreu em 1968. A emissora paulista mudou-se de prefixo em 01/08/60 - saiu do canal 3 e passou a ser sintonizada no 4. No ano seguinte, a Tupi adquiriu o Cine RitzConsolação, reformado para a temporada da cantora americana Eartha Kitt, também atriz que viveria uma das Mulheres-Gato da série ‘Batman’. Tendo formado sua rede nacional em abril 1974, a Tupi viveu muitos anos de glória, mesmo em seus últimos momentos. Um dos êxitos dos primeiros anos foi o “Clube dos Artistas”, que teria longa vida com Airton Rodrigues e Lolita

16/07/80, prestes a completar 30 anos, a TV Tupi-SP foi declarada extinta pelo governo, junto com mais 6 das 9 emissoras da rede. Salvaram-se apenas a TV Brasília do Distrito Federal e a TV Itapoan de Salvador. As últimas imagens da rede Tupi foram ao ar em 18/07/80: a TV Ceará de Fortaleza já estava desativada; a TV Marajoara de Belém nem chegou a funcionar naquele dia; as tevês Tupi de São Paulo, Rádio Clube de Recife e Itacolomi de Belo Horizonte foram fechadas às 11h30; a TV Piratini de Porto Alegre interrompeu um episódio da série “Bonanza” às 11h50; e após uma vigília comandada por Jorge Perlingeiro, que varou a madrugada, a Tupi carioca saiu

contou com colaboração de Manoel Carlos e Abelardo Figueiredo na realização deste especial. Tamanho foi o sucesso, que Bibi passou a comandar por muitos anos um programa neste molde, falando da cultura brasileira, mudando apenas o título a cada edição: “Brasil 61”, “Brasil 62” e assim por diante. Instalada na rua Nestor Pestana, 196, São Paulo, e utilizando equipamentos da Marconi, a Excelsior transmitia e gravava seus shows no Teatro Cultura Artística. Um destaque dos primeiros meses foi o programa humorístico-musical “Simonetti Show”, com o maestro Enrico Simonetti. A programação procurava ser nacionalista: nos teleteatros, nas músicas, nas entrevistas e até nos filmes (pelo menos uma vez por semana tentava-se exibir um longa-metragem brasileiro). Simonsen entregaria ao seu filho Wallace Cochrane Simonsen Netto, o Wallinho, a direção da emissora, que foi considerada por muitos como a 1ª administrada com razoável visão empresarial, menos romântica. Os funcionários recebiam um salário mais justo. Nas eleições presidenciais de 1960, José Luiz Moura era simpatizante de Jânio Quadros, enquanto Mário Wallace Simonsen preferia o Marechal Lott. Para evitar conflitos internos, Simonsen comprou as ações dos demais sócios, tornando-se o único dono da emissora e nomeando Paulo Uchôa de Oliveira para a presidência. Com uma publicidade maciça, a Excelsior contratou dezenas de artistas consagrados em outras emissoras e os expôs em out-doors espalhados por São Paulo: “Eu também estou no 9”, dizia o slogan criado por Mario Regis Vita. Em dezembro de 1962, Edson Leite e Alberto Saad implantaram com eficiência a chamada grade vertical e horizontal: uma seqüência com programa infantil, novela, telejornal, show e filme - a cada dia da semana. Nesta época surgiu o mascote do canal: um casal de bonequinhos animados. Habituando o telespectador a uma programação bem definida em horários determinados, em 6 meses a Excelsior alcançou o 1° lugar de audiência. Neste esquema, Edson programou em 1963 a 1ª telenovela diária da TV brasileira, “2-5499 Ocupado”, dando início a uma mania nacional. O pioneirismo coincidiu com a formação do mais famoso par romântico dos anos seguintes: Tarcísio Meira e Glória Menezes. Sob o slogan “Novela é com o 9”, logo viriam outros títulos, em produções cada vez mais caras e ousadas: “A Moça que Veio de Longe” (que foi o 1º sucesso significativo do gênero, revelando Rosamaria Murtinho e alçando Hélio Souto ao posto de maior galã da TV em 1964), “A Deusa Vencida” (que lançou Regina Duarte, em 1965), “Redenção” (a mais longa das telenovelas brasileiras, iniciada em 1966), “As Minas de Prata” (1967), “A Pequena Órfã” (onde Glória Pires fez sua 1ª aparição, em 1968) e “Sangue do Meu Sangue” (1969). Vinda do rádio e da TV Tupi, Ivani Ribeiro se firmou como uma autora especialista em telenovelas. O 1° importante Festival de MPB da tv, que consagrou Elis Regina em 1965, inspirou as demais emissoras a copiarem a fórmula. Em 1966, foi lançado o musical jovem “Excelsior A Go-Go”, apresentado por Luiz Aguiar e Jerry

“Retrato dos contrastes do nosso país, ainda hoje temos na TV brasileira um pouquinho de Tupi e Excelsior: um cabo-de-guerra entre o talento e a dificuldade, a qualidade e a apelação.”

Rodrigues. Entre outros programas de destaque: os teleteatros “TV de Vanguarda” (1952) e “Grande Teatro Tupi” (1951 - e nova fase em 1956 com Sérgio Britto); o telejornal “Repórter Esso” (1952); as entrevistas políticas de Arnaldo Nogueira em “Falando Francamente” (1953), a série “Alô Doçura”, com Eva Wilma e John Herbert (1955); o teatro “Câmera Um”, do diretor Jacy Campos (1956); shows de variedades como “Espetáculos Tonelux” (1952), “Almoço com as Estrelas” (1956 - com o casal Airton e Lolita Rodrigues em São Paulo e com Aérton Perlingeiro dentro do “A.P. Show”, no Rio), “Esta é a Sua Vida” (1956), “Um Instante Maestro” (1957) e “A-E-I-O-Urca” (1963), o game show “O Céu é o Limite” (1956); os seriados de aventura “Falcão Negro” (1954) e “Jerônimo – o Herói do Sertão” (1972); os infantis “Clube do Guri” (1955) e “Capitão Aza” (1968); os debates políticos do “Pinga Fogo” (1963); o programa experimental “Móbile” (1964); o jornalístico “Abertura” (1979); o apelativo “Aqui e Agora” (1979), os concursos de Miss Brasil, que tiveram seu auge nos anos 50 e 60; e as novelas “O Direito de Nascer” (1964), “Antônio Maria” (1968), “Beto Rockfeller” (1968), “Nino - o Italianinho” (1969), “Meu Pé de Laranja Lima” (1970), “Mulheres de Areia” (1973) “A Viagem” (1975), “Éramos Seis” (1977), “O Profeta” (1977) e “Aritana” (1978). Em 28/09/60, foi inaugurado em São Paulo um novo e majestoso edifício-sede no Sumaré. Devido ao atraso no pagamento dos salários, os funcionários da Tupi-SP iniciaram uma greve histórica em 24/01/80, tirando do ar os programas da emissora. No mês seguinte o elenco de atores foi demitido. Em 02/05/80, às 16h21, o jornalista Saulo Gomes, com o programa “Isto É São Paulo”, encerrou as produções da central paulista da TV Tupi. A estação carioca passou a gerar as imagens para os demais estados. A rede faliu em meio a uma dívida monumental junto à Previdência Social. Em ○

dramaticamente do ar, às 12h36, em meio ao choro dos funcionários e o VT da visita do papa João Paulo II ao Brasil. “A geração que foi criada sem a televisão não tinha um referencial, nem imaginava o poder deste meio de comunicação.” (Wallinho Simonsen) Victor Costa, dono da TV Paulista, detinha a concessão, mas, endividado, repassou a estação ao grupo empresarial composto por Mário Wallace Simonsen, o deputado federal Ortiz Monteiro, o exportador de café José Luiz Moura e os donos do Correio Paulistano: João Scantimburgo e Paulo Uchôa de Oliveira. Começou a funcionar em caráter experimental no dia 11/06/60, com filmes e reportagens externas. A data escolhida para a inauguração foi o 28° aniversário da Revolução Constitucionalista, que também coincidia com o número do canal, dia 9, em julho de 1960. A Banda da Força Pública do Estado de São Paulo abriu a programação às 18h. No Teatro Paulo Eiró, em Santo Amaro, discursaram Scantimburgo, diretor-presidente da Excelsior, e o Governador de São Paulo, Carvalho Pinto. Seguiram-se um filme com a saudação do Presidente Juscelino Kubitschek e um documentário sobre 9 de julho. Às 19h30, nos estúdios da avenida Adolfo Pinheiro, iniciou o grande show inaugural intitulado “Bossa Nove”, produzido por Abelardo Figueiredo e dirigido por Álvaro de Moya e Vicente Dias Vieira, que contou com a participação de artistas como Dorival Caymmi, Agildo Ribeiro, Mazzaropi, Elizabeth Gasper, Waldir Maia, Carminha Mascarenhas, Elizeth Cardoso, Trio Irakitã, Lúcio Alves, João Gilberto, Silvinha Telles, Tito Madi e Ribamar. Em 31/07/60 promoveu-se uma espécie de segunda inauguração, que ganhou o nome de “Brasil 60”, com apresentação de Bibi Ferreira. Álvaro de Moya, 1° diretor artístico da emissora,

37 ○


Adriani. E, diariamente, a sessão “Cinema em Casa” priorizava filmes europeus. No Rio de Janeiro, em maio de 1963, Ricardo Amaral se encarregou de atrair quase todo o elenco da TV Rio com ótimos salários, o que deu início a uma séria crise na emissora concorrente. Em 01/09/63 entrou no ar a estação carioca, através do canal 2 (comprado dos Associados de Chateaubriand, que pretendia lançar a TV Mayrink Veiga), com sede na Av. Venezuela, 23, no Centro. A programação de abertura incluiu musicais, humor, entrevistas e reportagens. J. Silvestre foi o mestre de cerimônias deste show que durou 3 horas. O elenco foi apresentado ao público: Chico Anysio, Ivon Curi, Walter D’ávila e Ema D’Ávila cumpriram seus números, e Jacy Campos apresentou “Um Beijo nas Trevas”, episódio de grande sucesso do programa “Câmera Um” da Tupi, revivido por Lourdes Mayer e Ribeiro Fortes. O antigo cine-teatro Astória, em Ipanema, à Rua Visconde de Pirajá, 595, foi transformado em estúdio, aberto ao público com uma apresentação de “A Cidade se Diverte”. No dia seguinte, a Excelsior

começou a imprimir um toque original no telejornalismo com o lançamento do “Jornal Excelsior” do Rio (futuro “Jornal de Vanguarda”), idealizado por Fernando Barbosa Lima, com comentaristas especializados e muita irreverência. Ainda em 1963, ali nasceria o programa humorístico “Viva o Vovô-Deville”, além do mais grandioso show semanal da TV brasileira naquela década: “Times Square”, dirigido inicialmente por Mário Wilson. Os programas “Chico Anysio Show” e “Moacyr Franco Show” se transferiram da TV Rio, o mesmo acontecendo com “Discoteca do Chacrinha” e “A Hora da Buzina” no ano seguinte. “My Fair Show” foi outro espetáculo marcante de 1964. Basicamente, a Excelsior produzia suas novelas em São Paulo e os principais shows no Rio. O destaque de 1966 foi Renato Aragão com o humorístico “Os Adoráveis Trapalhões”, ainda sem seus futuros companheiros do grupo “Os Trapalhões”. Seu diretor, Wilton Franco, lançou novo sucesso em 1967: “Essa Gente Inocente”, para a criançada exibir seu talento.

Dono de uma das maiores fortunas do país, Mário Wallace Simonsen começou a perder força pouco antes do golpe militar de 1964. Numa época em que não era bem visto por manifestar-se favorável à democracia e à liberdade de expressão, viu seus negócios com café serem boicotados e investigados por uma CPI. A Panair, empresa de aviação de sua propriedade, fechou as portas. Perseguida pelo governo militar e em crise, a TV Excelsior recebeu um empréstimo do Banco do Estado de São Paulo. Simonsen, que morreria em 1965, passou suas ações para o grupo Saad e Leite. Estes por sua vez as transferiram para o grupo Frical (Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, donos da Folha de SP). Quando já estava com pouca força e devendo muito às distribuidoras de filmes, em 10/08/67, a emissora inaugurou novos estúdios na rua Dona Santa Veloso, na Vila Guilherme, em São Paulo. Wallinho compraria a TV de volta em 1968, formando um grupo na própria televisão para gerir os negócios. Já sem fôlego para superar a crise, o canal 9 foi novamente vendido. Às 15h30 do dia 27/01/70, o canal 2 do Rio

saiu do ar, com o pedido de demissão de 70 dos 71 técnicos, por causa dos 3 meses de salários atrasados. Às 18h40 do dia 30/09/ 70, em São Paulo, Ferreira Neto interrompeu a transmissão ao vivo de “Adélia e suas Trapalhadas”, com o casal Adélia e Átila Iório, para avisar que naquele exato momento o CONTEL estava desligando os equipamentos da Excelsior para sempre. Os canais 9 (SP) e 2 (RJ) foram os primeiros do país a terem suas concessões cassadas pelo governo. A rede, que indenizou os funcionários e também chegou a formar parcerias com Belo Horizonte (TV Vila Rica, canal 7) e Porto Alegre (TV Gaúcha, canal 12), saía do ar definitivamente. Rixa (pseudônimo de Ricardo Xavier), é autor-roteirista da TV Globo, onde está à frente da equipe de criação do “Vídeo Show” há mais de 10 anos. Com a colaboração de Rogério Sacchi, lança, neste ano, pela editora Objetiva, o livro “Almanaque da TV”, contendo o histórico de todas as emissoras e a completa evolução da televisão no país nesses 50 anos.

O INÍCIO DA PROGRAMAÇÃO DOS TEMPOS DE HOJE Fernando Barbosa Lima

Foi a primeira televisão a realizar a novela diária. No seu elenco, grandes artistas como Bibi Ferreira, Tarcísio Meira, Glória Menezes, Regina Duarte, Francisco Cuoco, Lima Duarte, Armando Bogus, etc... A Excelsior era show. A Excelsior do Rio tinha um grande teatro em Ipanema. Toda noite apresentava um grande show ao vivo. Era a nossa Broadway. Nesse teatro você encontrava o Chacrinha, Flávio Cavalcanti, Elis Regina, Chico Buarque, Gil, Edu Lobo, Jô Soares, Chico Anísio, Miéle e Boscoli, Os Trapalhões, Dorinha Duval, Moacir Franco, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, Marília Pêra, Marcos Nanini, Tom Jobim, Geraldo Casé, Carlos Manga, Daniel Filho, Wilton Franco, Maurício Sherman, etc. A Excelsior era uma televisão com emoção. Cada profissional ia para o seu trabalho com a certeza de que, naquele dia, faria algo de novo, diferente. E o público também esperava isso. O importante era saber voar no limite da imaginação. De repente, o golpe militar de 64. Mário Simonsen, dono da Excelsior e da Panair, por ser grande amigo de João Goulart, morreu em Paris, exilado. Em São

Hoje pouco se fala na Excelsior. Muitos jovens nem sabem que ela já existiu. Poucos conhecem a importância que ela teve na história da nossa televisão. Entretanto, quase tudo que se faz hoje na televisão brasileira começou na Excelsior. A Excelsior começou a existir no início dos anos 60. Era de propriedade de Mário Simonsen, um paulista que era o maior vendedor do café brasileiro na Europa. Além disso, tinha mais de 40 grandes empresas, entre elas a Panair do Brasil. A Rede Excelsior começou com o canal 9, em São Paulo e, logo depois, em 1963, inaugurava a TV Excelsior do Rio, canal 2. Ela era dirigida por dois profissionais que vinham de um grande sucesso na Rádio Bandeirantes: Alberto Saad e Edson Leite. No Rio, seus diretores eram o compositor Miguel Gustavo e o empresário Felício Maluy. O filho de Mário Simonsen, Wallinho Simonsen, representava o pai na direção da Excelsior. Acredito que com essas pessoas, e com a equipe de profissionais que se juntou a elas, se criou o estilo moderno, livre e avançado de fazer televisão no Brasil. Em muito pouco tempo, contratando os melhores talentos, ela passou a ser líder absoluta de audiência. Logo depois ela comprou a TV Gaúcha em Porto Alegre e a TV Jornal do Comércio em Recife. É importante lembrar que nesse tempo não existia a Embratel nem os satélites. A TV ainda era em preto e branco. Os programas produzidos pela Excelsior, tanto no Rio como em São Paulo, eram distribuídos para as emissoras afiliadas, que já eram mais de 20, por fitas de vídeo, através dos aviões de carreira. Mas onde os seus programas chegavam, as emissoras regionais afiliadas passavam imediatamente para o primeiro lugar. A Excelsior, além de representar uma TV inovadora, era líder absoluta tanto nas novelas como nos shows e no jornalismo. Na verdade, a Excelsior inovava em tudo.

“JORNAL DE VANGUARDA” O jornal de quem sabe compreender o mundo de hoje e ver o mundo de amanhã. Um jornal livre para brasileiros livres. Um show de notícias. Junto com a inauguração da TV Excelsior do Rio, em setembro de 63, o “Jornal de Vanguarda” estava entrando no ar. Até então, os telejornais eram apresentados por um locutor, vindo do rádio, sentado diante de uma mesa com uma cortina de veludo atrás. Na mesa, uma cartela com o nome do anunciante. Tudo em preto e branco, ao vivo. De vez em quanto entrava um filme produzido no dia anterior, geralmente mostrando um coquetel ou a posse de uma autoridade. Uma ou outra notícia internacional era ilustrada com uma radiofoto de péssima qualidade. Na verdade era um jornal de rádio com uma câmera dentro do estúdio. O “Jornal de Vanguarda”, quando eu assumi a direção de jornalismo da Rede Excelsior, foi uma grande revolução na linguagem e no espírito do telejornalismo. Era um jornal que entrava no ar na faixa das dez e meia da noite, também ao vivo, e com muitos apresentadores. Em vez de buscar gente de rádio, a sua base era formada por jornalistas que vinham da imprensa escrita. O “Jornal de Vanguarda” tinha desenhistas como o Borjalo, o Appe e o Millôr Fernandes. Humoristas como o Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) e o Don José Cavacas. Grandes comentaristas políticos como o Villas-Bôas Corrêa, o Tarcísio Hollanda e o Darwin Brandão. Um comentarista internacional como o Newton Carlos. A parte feminina era de Gilda Muller.

“A Excelsior, além de representar uma TV inovadora, era líder absoluta tanto nas novelas como nos shows e no jornalismo.”

38

Cronistas como o Ricardo Amaral, Maneco Muller, Ibrahim Sued e Reynaldo Jardim. Além de incríveis locutores como Luiz Jatobá, Cid Moreira, Célio Moreira, Fernando Garcia, Jorge Sampaio e Moacyr Lopes. Por trás das câmeras eu tive a oportunidade de trabalhar com o Hélio Políto, Carlos Alberto Vizeu, Ana Arruda, José Ramos Tinhorão, Orion Neves e muitos outros. O jornal tinha como slogan “Um Show de Notícias” e era, na verdade, um grande show . Tudo acontecia, ao vivo, no estúdio. Cada um fazia a sua parte. O Cid Moreira apresentava um rápido resumo das principais notícias do dia. Sérgio comentava sempre uma notícia diferente. Millôr chegava a fazer um coro cantado por todos os apresentadores, até o Villas. O sombra, que era o Célio Moreira, dava notícias misteriosas dos políticos. Appe fazia a caricatura de alguém, enquanto a notícia era dada pela incrível voz do Jatobá. Gilda fazia 1 minuto de mulher. Fernando Garcia dizia: - “e com o texto de Newton Carlos você está de olho no mundo”. Reynaldo Jardim, o nosso Barrabás, dava a notícia em forma de poesia. E assim por diante, um verdadeiro show de inteligência e criatividade. Acredito que nenhum programa brasileiro tenha sido tão premiado como o “Jornal de Vanguarda”. O jornal começou na TV Excelsior, passou pela Tupi e Globo e foi morrer na TV Rio, com o Ato Institucional nº 5. Nesse dia toda a equipe se reuniu. Um programa como o “Jornal de Vanguarda”, com tanta criatividade , com tanta dignidade, com tantos prêmios, não poderia ser submetido à censura total que chegava com o Ato nº 5. Todos nós decidimos tirar o jornal do ar. A última frase da última edição foi: “Um cavalo de raça a gente mata com um tiro na cabeça.”

Paulo, Assis Chateaubriand, vítima de um derrame cerebral, morria numa cadeira de rodas após um longo sofrimento. Nascia a Rede Globo. Minha experiência mais gratificante na Excelsior foi, sem a menor dúvida, o “Jornal de Vanguarda” - um show de notícias.

Fernando Barbosa Lima, jornalista e publicitário, continua dirigindo programas jornalísticos na TV Educativa do Rio de Janeiro.

Jornal da ABI


Se antes das reformas o jornal era dos classificados, a rádio tinha como marca o turfe. Com notícia e música, um estilo conquista a audiência e marca época, até a crise que obriga a venda.

7

(40%) 10.08.1935 16.04.1993

ABI

MÚSICA E NOTÍCIA, ALÉM DE UM TOM ESPECIAL QUE REVELOU LOCUTORES Reunidos para a gravação de um depoimento sobre a extinta Rádio JB AM ao Projeto Memória do Jornalismo, Mauritônio Meira, Carlos Lemos e Clever Pereira começaram a contar histórias antes mesmo de rodar a fita. Os jornalistas trabalharam em diferentes momentos na JB AM que, segundo Lemos, foi a responsável pela profissionalização do radiojornalismo brasileiro. A instalação do departamento de jornalismo da rádio, nos anos 50, com Mauritônio Meira, o projeto all news, com Carlos Lemos, a expansão do grupo JB, nos anos 70, com Clever Pereira, e muitas outras curiosidades estão agora gravadas para sempre em áudio e vídeo no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. O jornalismo chegou à Rádio JB AM em 1955. Logo após o falecimento do dono do grupo JB, Conde Pereira Carneiro, sua mulher, a Condessa, decidiu dinamizar os negócios da família reformulando o Jornal do Brasil e a Rádio JB AM. Para conduzir as mudanças na rádio, a Condessa convidou o jornalista Reinaldo Jardim para a direção de broadcasting. Reinaldo aceitou a proposta e, para criar o departamento de jornalismo, chamou, por sua vez, Mauritônio Meira. “Nos anos 50, a Rádio JB AM detinha o monopólio das corridas de cavalo do Rio de Janeiro. Era uma estação de turfe e música clássica. Eu, Reinaldo Jardim e Ivan Meira, como diretor comercial, assumimos o desafio de montar um departamento inteiro, capaz de concorrer com o ‘Repórter Esso’, da Rádio Nacional”, explica Mauritônio. A tarefa não era nada fácil. A primeira tentativa de montar a equipe na rádio foi rejeitada. Reinaldo Jardim pedira 30 informantes em delegacias, hospitais e agências de notícias, além de salários considerados acima dos padrões da época. “Acharam o custo muito alto. No começo a gente só dispunha de 10 mil cruzeiros, o que inviabilizava o primeiro projeto do Reinaldo”, conta Mauritônio. Contornando essas dificuldades, o jornalismo na Rádio JB começou com quatro edições diárias, a primeira às 7h55, depois às12h30, 18h55 até a última às 22h. Somente depois de três meses, Ivan Meira conseguiu um patrocínio capaz de organizar uma equipe de setoristas em hospitais, camâras e delegacias do Rio de Janeiro. A Rádio JB AM estava organizada e pronta para enfrentar a Nacional. “A grande questão para a gente era como

MEMÓRIA E FUTURO

enfrentar a credibilidade do ‘Repórter Esso’, o até então imbatível Heron Domingues”, comenta, em seu depoimento, Mauritônio Meira. A direção da JB AM decidiu usar duas armas nessa concorrência. A primeira foi intensificar as intervenções jornalísticas durante sua programação. As edições do “Repórter Esso” estavam presas à grade de programação da Rádio Nacional. A segunda, e principal, foi uma inédita parceria com a United Press Internacional (UPI), uma das principais agências de notícias em todo o mundo. As novidades chegavam à United, que traduzia, mimeografava e as repassava para todas as redações de jornais e rádios. Como a United funcionava no mesmo prédio que a JB AM, Reinaldo Jardim e Mauritônio Meira pensaram em uma parceria que garantisse à sua rádio privilégios na distribuição dessas notícias. “Nós queríamos colocar um teletipo ligado direto na United, para recebermos as notícias em primeira mão. A United não aceitou de primeira e, para pressioná-la, nós ameaçamos fazer um contrato com a Associated Press, sua concorrente. Com medo de perder a rádio e o jornal para a rival, a United repensou sua primeira decisão e nós conseguimos o teletipo”, revela Mauritônio, que deixou a JB AM em 1961, já com um importante quadro de redatores e uma equipe com mais de 45 pessoas. Carlos Lemos esteve no sistema Jornal do Brasil por 27 anos, entre rádio e jornal. Como repórter, Lemos já desfrutava da parceria com a United Press. Em meio ao turbilhão que sacudiu o mundo em 1968, Carlos Lemos esteve nos EUA entrevistando Martin Luther King e Malcom X, numa viagem organizada pela UPI. Mas a vida de um jornalista está sempre sujeita a furos, e Lemos, no Jornal do Brasil, junto com seu colega Mauritônio, da Rádio JB, tem uma história curiosa pra contar. “Eu fui co-autor de uma das mais famosas barrigas do jornalismo brasileiro”, lembra Lemos. “Eu era chefe de redação do Jornal do Brasil na época e estava preparando, no sábado, a edição do domingo. Um amigo meu ligou e disse que o Chatô, que estava internado, não continuaria vivo por mais uma hora. A gente não podia deixar de colocar essa notícia na edição de domingo. Eu saí correndo e mandei segurar o jornal. Nessa época, o radiojornalismo funcionava ao

lado do copidesque do jornal. O Mauritônio, que trabalhava na rádio nessa época, ouviu a notícia e logo em seguida anunciou a morte do Chatô no rádio. Acontece que ele só morreu dois ou três dias depois”, completa Lemos, em meio a risos. O rádio, segundo Lemos em seu depoimento, reagiu muito mais rapidamente ao aparecimento da televisão do que o jornal: “O rádio percebeu que a saída era procurar dar as notícias na frente da televisão. Foi nessa mesma época que se investiu muito no jornalismo de serviço, uma espécie de atendimento ao consumidor. Na Rádio JB AM, por exemplo, o Reinaldo Jardim criou o programa ‘Pergunte ao João’”. Durante muito tempo,

rádios FM, distribuídas por interesses políticos, com uma qualidade técnica muito melhor. As rádios AM ficaram sem saber para onde ir”. Além da JB AM 940 khz, o grupo JB decidiu comprar uma rádio FM. Em uma reunião interna para a definição de rumos da nova rádio, a direção perguntou aos jornalistas responsáveis qual era o público que a rádio desejava atingir. Lemos respondeu que a proposta inicial era de uma rádio que tocasse sucessos e atingisse o público em geral. “Eu disse que nós íamos atingir todos os públicos. Disseram pra mim, ‘você é maluco?’. Eu respondi que não só era possível, como nós seríamos, em três meses, o primeiro lugar de audiência em rádio FM. Eu cometi um erro terrível. Eu acho que nós assumimos a audiência em três dias”, gabase Lemos. Surgia assim em 1977, a Rádio Cidade, inspirada, segundo Clever Pereira, no modelo de rádio comercial estadunidense. Conquistado o primeiro lugar em audiência, a Rádio Cidade só o perdeu sete anos depois para a 98 FM, do Sistema Globo de Rádio. A criação de emissoras como a Cidade, no fim dos anos 70, já apontava, segundo Clever Pereira, para o caminho da segmentação. “Com o estouro das FMs, o nosso modelo de rádio passou do estatal europeu para o comercial dos EUA. O futuro da rádio era a segmentação. Toda rádio tinha que se assumir com um formato e nome próprio. Nós já pensávamos na época que a JB AM tinha que se assumir como uma rádio all news. A informação tinha que ser o seu diferencial”, lembra. Lemos concorda que a vocação da Rádio JB AM era o jornalismo. Em seu depoimento, ele frisou que o rádio moderno tem que se segmentar, tocando só um tipo de música ou especializando-se em notícias. “Tem que existir uma rádio que só toca música romântica. Eu não tenho que ficar romântico apenas na hora do programa romântico da emissora. Eu posso ficar romântico às 5 horas da manhã”, divertese Lemos, que continua falando sobre a implantação do sistema all news. “Eu já tinha conhecido rádios com 24 horas de notícias por dia nos EUA. Nós queríamos a JB exatamente assim, a primeira rádio do Brasil só com notícias. Infelizmente nosso projeto não prosperou”, lamenta ele, sem querer mencionar os motivos do naufrágio da idéia.

"Os locutores, como o Eliakim e o Chapelin, marcavam um estilo... nossos locutores tinham que identificar a rádio e evitar o tom excessivamente manchetado, por exemplo.”

o pesquisador João Evangelista de Souza respondia a perguntas e curiosidades de toda sorte enviadas pelos leitores. “Era um sucesso fantástico”, recorda-se Lemos. A reação à concorrência da televisão e a posterior crise das rádios AM com o surgimento das FM também foram lembradas, por Clever Pereira em seu depoimento. Entrando na JB AM em 1971, Clever participou junto com Carlos Lemos da entrada do grupo JB nas emissoras FM. Lemos resume como o sucesso das FM abalou mais uma vez os alicerces das AM: “A rádio reagiu bem à televisão, mas não evoluiu, ficou se repetindo. Apareceram as

39 ○


ao seu trabalho. “O Odylo estava comandando a redação do Jornal do Brasil na época, mas não dispunha de uma boa estrutura de captação de notícias. Ele me pediu e nós, da rádio, concordamos em passar todo o noticiário para o jornal, além de ceder temporariamente parte de nossa equipe. Pelo menos até ele estruturar sua redação. Acontece que um dia um de nossos repórteres me passou, por telefone, as informações sobre um contrato entre os EUA e o Brasil. Eu coloquei na edição normal. Porém, uma cópia da íntegra do contrato foi parar nas mãos do Odylo, que, lendo atentamente, encontrou um erro numa cláusula menor. Imediatamente ele

O projeto all news foi abortado, mas a JB ainda sobreviveu por mais de dez anos. Apenas em 1993 a rádio foi vendida a um grupo religioso. Apesar de algumas incertezas, os jornalistas creditam a venda da rádio à crise dos negócios do grupo JB. Muitos profissionais da JB AM trabalham hoje na CBN, a emissora all news do Sistema Globo de Rádio. “A CBN é uma filha meio torta do nosso projeto de rádio só com notícias”, ironiza Lemos. Muitas outras histórias pouco conhecidas foram recuperadas na gravação deste depoimento. Mauritônio, por exemplo, lembrou-se da perseguição implacável do jornalista Odylo Costa Filho

nos ligou, exigindo uma edição extraordinária do ‘JB Informa’ corrigindo o erro. Eu argumentei com ele que o mais indicado era retificar em uma edição normal, mas ele não aceitou. Eu disse que quem mandava no jornal era o Nascimento Britto, não era ele. A conversa azedou e nós desligamos o telefone. Algum tempo depois, como repórter de O Cruzeiro, eu fui indicado ao Prêmio Esso por uma série de reportagens que eu fiz no Nordeste. Naquele tempo, era necessário unanimidade para receber o prêmio. Todos votaram a favor do prêmio para mim, mas o Odylo fazia parte do conselho e votou contra. Por causa dele, eu perdi o Prêmio Esso, fiquei só com a menção honrosa.” Grandes nomes do rádio brasileiro foram lembrados por Mauritônio, Clever e Lemos. Os diretores de jornalismo Mauri Torres, Clóvis Paiva, Ana Maria Machado, Celso Iberê e os locutores Alberto Curi, Sérgio Chapelin e Eliakim Araújo marcaram, segundo todos os presentes, os tempos áureos da JB AM. “Os locutores, como o Eliakim e o Chapelin, marcavam um estilo que caracterizava a Rádio JB. Quem orientava essa linha era o Fernando Veiga. Nossos locutores tinham que identificar a rádio e evitar o tom excessivamente manchetado, por exemplo”, conta Lemos. O rigor na seleção das vozes da JB intimidava até nomes já consagrados nos meios radiofônicos. Mauritônio lembra do fracasso de Macedo Soares nos testes para a rádio. “Nós propusemos a ele um

CONHECENDO O QUE A FACULDADE NÃO ENSINA, EM OPORTUNIDADE RARA César Guerra Chevrand

positiva e/ou negativa – para as novas gerações. A Rádio JB AM é parte importante da história do jornalismo, da história do Brasil, por lá passaram nomes inesquecíveis do nosso ofício. É importante, para todos, saber que uma parte significativa de sua história está gravada agora e para sempre.

A gravação dos depoimentos sobre a extinta Rádio JB AM me colocou, pela primeira vez, diante da história do radiojornalismo brasileiro. Tenho certeza de que essa foi uma oportunidade rara. Nas faculdades de comunicação pouco se fala sobre a história do jornalismo nacional e mundial. Os estudantes dependem assim de esforços individuais de professores interessados na questão. A memória dos velhos jornalistas tem de ser referência –

César Guerra Chevrand, estudante de jornalismo da UERJ, é estagiário do Departamento de Intercâmbio e Divulgação da ABI.

teste e ele errou quatro ou cinco vezes em apenas duas linhas. Macedo Soares, coitadinho, não tinha a categoria de um Heron Domingues, que trabalhava sem teleprompter, decorando tuda na mesma hora”. A preocupação principal dos diretores da rádio era criar a sua marca e não copiar os estilos das concorrentes. “Quando eu trouxe o Alberto Curi, que era o segundo da Rádio Nacional, para a JB AM, nós tínhamos o cuidado de vigiá-lo para ele não lesse o noticiário no estilo da Nacional”, explicou Mauritônio. O depoimento encerrou-se com uma avaliação do atual mercado de radiojornalismo. Clever Pereira criticou a multiplicação das rádios FM no cenário brasileiro. Hoje em dia, segundo ele, nenhuma rádio consegue ter lucro devido ao excesso de emissoras. Mauritônio endossou imediatamente as palavras do Clever. “Mais de 80% da publicidade é destinada à televisão. Apenas 4% do bolo publicitário é das rádios. Mesmo uma rádio de qualidade como a JB tinha problemas de faturamento”. Lemos, em sua avaliação, lamentou as dificuldades para o investimento na rádio. “A indústria mais cara do mundo é a da informação. Sem investimento não se faz um jornalismo de qualidade. As rádios hoje não experimentam e, por isso, vemos essa mesmice”, disse, resumindo o descontentamento dos velhos profissionais com o radiojornalismo dos dias de hoje.

ANÚNCIO ASSOCIADOS

40

Jornal da ABI


Modelo de qualidade, tratada como obra de arte por seus quatro criadores, a revista tinha como objetivo impressionar estrangeiros para garantir a publicação de uma enciclopédia. O sucesso foi tanto que a venda por assinaturas garantiu a seqüência de ousadias de Naum Sirotsky, Carlos Scliar, Paulo Francis e Luiz Lobo.

8

(36%) SET 1963 MAR 1995

ORGULHO DE PAI: A MORTE E A MORTE DA SENHOR Minhas senhoras, Como por muito tempo desejei fazer uma revista e sempre ouvi dizer que as mulheres é que compram ou condenam um revista à morte, dirijo-me a vocês (se me permitem o tratamento). Em primeiro lugar, para pedir desculpas. Em segundo lugar, para pedir compreensão. Em terceiro lugar, para explicar-me. E em último lugar, para dar-lhes uma garantia. Em primeiro lugar, devo dizer que não fiz uma revista feminina por três motivos: 1) Porque já há muitas. 2) Porque as mulheres não gostam de revistas femininas. 3) Porque as mulheres estão querendo, cada vez mais, saber exatamente o que é que os homens andam querendo saber. Em segundo lugar, eu digo que a compreensão de vocês é necessária porque de outro modo esta revista não dará certo e outras do gênero aparecerão, nem todas com a preocupação que temos (muito disfarçada) de servir à mulher, fingindo que estamos servindo ao homem. Em terceiro lugar, uma explicação: esta revista lhes permitirá o mais completo conhecimento sobre o homem, suas manias, seus cacoetes, sua tática, seus pensamentos, seu ponto de vista, suas idiossincrasias, seu humor, sua maneira de vestir, de caçar, de comprar, falar, gostar, mentir, viver e morrer. Em último lugar, a garantia:esse conhecimento que a maioria das mulheres só adquire pelo casamento, com muito sacrifício pessoal, fará com que cada uma de vocês tenha sobre o homem (seu marido, noivo ou namorado, em particular, e os admiradores em geral) uma ascendência e um domínio cada vez maiores, o que é – afinal de contas – o supremo interesse da mulher. As mulheres casadas, por outro lado, encontrarão aqui uma espécie de curso que no Exército é chamado de “Curso de Estado Maior”. Assim, fazendo uma revista exclusivamente para homens, estamos – mais do que nunca – trabalhando para que você tenha uma vida melhor. E nós também. Assim, com a assinatura de “O Editor”, era lançada, em março de 1959, a revista Senhor, de doce memória, uma aventura gráfica e editorial a começar pela capa, com a assinatura de Carlos Scliar. Hoje, com 40 anos completos, mas morta na infância, tornou-se cult e é motivo de pelo menos cinco teses de mestrado em artes gráficas e design e uma de doutorado em comunicação. Foi um dos maiores sucessos editoriais brasileiros de todos os tempos, mas vendeu pouco. Hoje, as colocações vão a leilão e são arrematadas a preços inacreditáveis, mas naquele tempo ○

MEMÓRIA E FUTURO

Não queria saber das modernidades sem qualidade, nada de rotogravura, queria uma gráfica com máquinas planas e artistas gráficos. A primeira que visitamos imprimia bilhetes de loteria. A segunda, listas telefônicas. Mas, do que ele viu e ouviu, velhos e experimentados gráficos teriam uma enorme satisfação participando do projeto. Um deles disse mesmo que era um sonho de anos mostrar o que sabia fazer com suas máquinas. A escolha do nome também foi difícil e trabalhamos mais de 200, até nos fixarmos em Senhor. Mostrou-se o primeiro número, rodou, e havia Otto Maria Carpeaux escrevendo

as agências de publicidade praticamente recusavam-se a entender e apoiar o fenômeno. Na verdade, a sensação que dá é de que a revista apareceu cedo demais para ser entendida por todos, inclusive pelo grande público. Nós éramos quatro: Nahum Sirotsky, Carlos Scliar, Paulo Francis e eu. E, se tomarem os depoimentos dos sobreviventes ou recorrerem aos arquivos, verão que há exatamente quatro diferentes histórias a contar sobre a revista Senhor. Conto a minha, e quem quiser que conte a sua. Foi o Nahum quem me fez o convite para participar. Eu estava no Jornal do Brasil, razoavelmente bem, e não pretendia sair. Mas, revisteiro, fui almoçar (“com vinho”, anunciara Nahum) para ouvir a proposta. Ele informou que tinha dinheiro e carta branca dos editores para fazer um boa revista durante um ano. E que não importava a natureza da revista, mas sua qualidade gráfica. Informava ainda que desta parte cuidaria Scliar ( que eu não conhecia pessoalmente). O objetivo seria mostrar ao mercado europeu nosso bom gosto e qualidade gráfica. Quando perguntei por que, Nahum explicou: a Guanabara/Koogan quer editar o “Larousse” no Brasil, mas os franceses não acreditam na nossa capacidade de editar com qualidade. E por que não editar livro de qualidade, em lugar de uma revista? Porque, disse ele, revistas de qualidade são mais difíceis de fazer e manter. Não me pareceu muito lógico, mas o vinho estava ótimo. Quando quis saber que revista faríamos, ele perguntou se eu tinha algum projeto, porque estava pensando em uma revista basicamente política e econômica, “mas bem humorada”. O aposto não desentortou meu nariz. Quem quer uma revista político-econômica ou de economia política? Não, eu. Na verdade eu tinha um projeto na gaveta (sempre tenho, até hoje). O projeto do Scliar era de uma revista de cultura, eminentemente brasileira, muito visual, com base na arquitetura, na pintura, na escultura, no paisagismo, nas artes plásticas (que viviam um bom momento). Era um bom projeto, dentro dos objetivos da editora. Paulo Francis também imaginava uma revista de cultura, mas não via por que deveria ser eminentemente brasileira. E tinha uma visão mais literária do que plástica. Meu projeto era menos intelectual, mais aberto, mais de mercado. As primeiras reuniões foram desgastantes, cada um puxando a brasa para sua sardinha. Finalmente, chegamos (mais ou menos) à idéia da revista. Scliar começou a pesquisar a praça para escolher a gráfica.

Luis Lobo

Serviços de Miguel de Carvalho (“Nunca beba água”), moda, calendário turístico internacional. Humor com Jaguar, e com Reynaldo Jardim ensinando “Como matar um escritor”. E o chamado “especial”, a “Ira do Senhor”, fotos que Salomão Scliar fez de Ira Etz (na verdade, Iracema), vestidíssima, sugerindo um novo tipo de sensualidade e um novo modo de olhar as moças, sem despi-las. E pronto. Como dizia meu compadre Nonó, a sopa acabou. Ao que minha comadre sempre respondia com um dito do falecido pai (que Deus o guarde na sua santa paz): “Sopa grossa, mulher bonita e conversa inteligente, quando não queima a língua, não dá em morte ou não termina em briga, acaba cedo”. Um tropeiro que encontrei em Goiás me dizia: “Quando eu não gosto, reclamo; que comer menos acaba viciando”. Um motorista na Rio-Bahia já dizia mais ou menos a mesma coisa no pará-choque de seu caminhão: “Se não gostou, diz logo”. E numa cantina do Brás, alguém escreveu no vidro: “Pagando direito, qualquer um pode reclamar, mesmo errado”. Então, é como eu lhe digo. O que mais faltou nessa revista foi palpite e uma seção de carta de leitor. Quanto mais não seja, para vingar os pobres editores que, às vezes, são voto vencido. Assim, mais de uma vez com a assinatura “O Editor”, terminava o primeiro número e começava a tempestade. Porque a verdade verdadeira é que nenhum de nós gostou da revista, não pelo conteúdo, mas porque estava sem cara de revista, massuda. Além disso, a logomarca era Sr. E embora na perna do R estivesse escrito Senhor, por extenso, os jornaleiros referiamse à revista como “esse erre”. Uma tragédia, já que a pasta de dente de sucesso à época era uma tal de Lever SR. (Quanto a isso, no entanto, foram precisos muitos números, até que na quarta edição do segundo ano surgisse a logomarca por extenso : Senhor). Scliar decidiu que, a partir do segundo número, não ouviria palpites nem sugestões e que a montagem seria exclusivamente sua, com o direito de pedir aos editores (Paulo Francis e eu) matérias com tamanhos e peso específicos, para conseguir o melhor equilíbrio gráfico. Outro problema era o preço: CR$ 70,00. Caro, muito caro, tendo em vista o preço das revistas semanais – a Manchete custava CR$ 40,00. Mas a repercussão era ótima, e os oferecimentos de textos provavam isso. A tal ponto que Jaguar e eu criamos um anúncio: “Se você quer escrever nesta revista, nós aceitamos com prazer sua colaboração. Escreva aqui”. E aqui era um formulário para assinatura anual (CR$ 600,00).

"Nenhum de nós gostou da revista, não pelo conteúdo, mas porque estava sem cara de revista, massuda. Mas a repercussão era ótima..."

sobre “os prazeres do crime” (isto é, da literatura policial); Carlos Lacerda falando de rosas; Anísio Teixeira batendo na velha tecla (“Deitado em berço esplêndido e mal educado”); Odylo Costa, filho, ensinando a fazer o arroz de cuxá maranhense; um anônimo revelando “A arte de seduzir”. Havia reportagens sobre a Operação Pan-americana (OPA!), sobre artes plásticas (Mário de La Parra, editor de arte e de cartões em silk screen de artistas antiacadêmicos, para substituir os horríveis cartões de Natal com sinos bimbalhando, augúrios e luzes de Natal que iluminem o vosso lar); cinema, iatismo, medicina. E artigo sobre Jorge Andrade, assinado por Flávio Rangel; “Um certo senhor K” (Kruschev), de Jean Bogoty (pseudônimo do Nahum) e “A lua conquista a Igreja”, do cônego Jorge O’Grady. Contos de Clarice Lispector (“A Menor Mulher do Mundo”), Fernando Sabino (“Passeio”) e Ray Bradbury (“En la Noche”). Além de uma novela de Hemingway (“As Neves do Kilimanjaro”, tradução de Ivo Barroso e paginação especial, em caderno de tamanho reduzido). E poemas. Sim, poemas de W.H Auden (tradução de Ivo Barroso, se não me engano), Cláudio Mello e Souza e PauloMendes Campos.

41 ○


MEMÓRIA E FUTURO

Aquele domingo não pode ir, uma gripe danada. No outro também, fecho de balanço, o gerente apelou para um extraordinário, não podia negar. Terça-feira recebeu carta. Começava assim: Quando olho para o pasto e não te vejo...” Clarice Lispector assinava (só com as iniciais) a crítica de livros ( e o editor fez questão de escrever que só ousava comparar o seu trabalho ao dos homens que jogam futebol na posição de goleiro). Antônio Houaiss fez a delícia dos linotipistas com o artigo “Nacionalismo”, um dos mais importantes que publicamos, matéria capaz mesmo de deleitar o mais requintado revisor, com seus tipos diferenciados, recorridos, números e composições especiais.

era assistente do Scliar o Ivan Meira, o diretor de propaganda. Anunciava-se a Vemaguete (DKV– Vemag), “sóbria, distinta e elegante, com motor 100, conforto excepcional, segurança extraordinária, capacidade de carga de um furgão e economia surpreende”. Voava-se de São Paulo até Bogotá, México e Los Angeles, duas vezes por semana, “sem troca de avião!”. A Real oferecida “o máximo em luxo e serviço que passageiros exigentes poderiam desejar numa viagem internacional”. O avião? Um super H Constellation, “equipado com radar” e com a cozinha do Barão Stukart (da badaladíssima boate Vogue, no Rio). Anunciavam Brisete, leve, compacto, silencioso, um ventilador para uso individual cujo potente motor deslocava 10 metros cúbicos de ar por minuto, “mais do que suficiente para lhe assegurar um brisa refrescante e agradável durante o tempo que você. desejar”. Anunciava-se, “finalmente, o grande carro brasileiro”, Aero Willys, “um automóvel inspirado nas modernas conquistas de espaço e conforto”. Mas o “novo ponto de atração na moderna paisagem brasileira” (a Brasília de Oscar Niemeyer e duas moças de saia balão) era o Simca – Chambord. A “essência legítima de alta classe”: English Lavander Atkinsons. Michel Burton ilustrava um anúncio informando que “em cada uma das cozinhas que a Varig instalou e mantém ao longo de suas linhas” havia um chef de cuisine, “um perito que viaja com você, transformando o tempo de viagem em verdadeiros momentos de prazer”. Kirongozi (Jorge Alves de Lima Filho, que tinha uma linda cunhada) anunciava um safari na África para caçar elefantes, búfalos, leões, rinocerontes e antílopes, e expedições fotográficas “com o máximo conforto e segurança!”. (Usava-se muito ponto de exclamação na publicidade daquele tempo!). A TV Itacolomi afirmava em anúncio que 110 cidades mineiras viam diariamente o Canal 4 e que tinha a programação comercial “dos grandes anunciantes do Brasil”. Guimarães Rosa escreveu, especialmente para Senhor, “A simples e exata estória do burrinho do comandante” (depois de meses de o importunarmos à procura de um original que ele, diplomática e mineiramente, nunca recusava ou prometia); Celso furtado escreveu sobre o “Subdesenvolvimento”; Darcy Ribeiro mandou, de Brasília, a “Segunda parte da carta de Pero Vaz de Caminha” (durante o carnaval, quando pretendia descansar); o conto era de Antônio de Alcântara Machado (“Guerra civil”); o irmão de Rubem Braga, Newton, nos dava umas “minicrônica” intituladas “Fatias finas de fato”. Eram jóias, como se dizia. Por exemplo: “Se aparecer um gato cantado por aí, toca fogo, que foi ele que comeu o meu canário belga.”Ou: “Um dia brigou. Tudo o que falava ou fazia era aquela chateação: o Nascimento é de morte”. E esta pérola: “O namoro começou na domingueira do clube da cidadezinha. A moça, filha de um fazendeiro da vizinhança; ele, funcionário do banco. Mais uns tempos e ia visitá-la na fazenda, no trem da manhã de domingo, que voltava à noitinha; descia na parada de um minuto, que nem estação era, ela estava na janela, descia a escada enquanto ele caminhava pelo campo, em direção à casa, uns setecentos metros de distância.

Com a informação: “Se V.Sª. (sic) adquirir CR$ 2.000,00 em livros durante o ano, o desconto que irá obter (30% na Companhia Editora Nacional e na Editora Civilização Brasileira) corresponde exatamente ao preço que pagou pela assinatura de Senhor”. O segundo número saiu como o Scliar queria, inclusive com “Três poemas de Mao Tse Tung” (escritos nos moldes clássicos, em versos de cinco caracteres, que Ivo Barroso traduzia do francês, ou melhor, da francesa Janine Mitaud). Entre outras coisas, informava que Bob Fleming, um enorme sucesso fonográfico com “Sax Spetacular”, era mesmo americano de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais - o pouco comprado Moacir Silva (provando que santo de casa não toca saxofone). E entre outros colaboradores, Alberto Deodato, Jânio Quatros, Ênio Silveira, Albino Pereira de Almeida, Vinicius de Moraes, Fúlvio Roiter, Marques Rabelo. A novela de Tolstoi (“A morte de Ivan Ilitch”) tinha tradução assinada por Carlos Lacerda. Lançamos Sergio Jockyman, um senhor humorista. Conseguimos muitos assinantes (quase 30 mil), mas as agências de publicidade só levaram em conta a venda avulsa, nas bancas, e tinham preconceito contra assinaturas, “porque nunca se sabe como foram arrancadas...”. Com esse segundo número aprendi muito, acompanhando o trabalho do Scliar. Editor-assistente executivo significa que, além de ser editor, eu secretariava a revista. O que fazia com que acompanhasse a diagramação, a impressão e a montagem. Ele usava uma diagramação em miniatura das páginas, que prendia na parede para poder “observar o ritmo da revista”, as massas, os pontos e contrapontos, os claros e os escuros. Depois é que fazia a diagramação definitiva e não raro pedia matérias, porque em determinado lugar era preciso “uma página leve, arejada” ou, ao contrário, “alguma coisa de peso, com densidade”. A diagramação do artigo sobre a África (Preto no branco: os negros tomam de volta suas terras) ganhou menção na Graphis da Suíça e ninguém soube como. Daí para frente, a revista engrenou. Logo nos mudamos, todos, das apertadas instalações na Travessa do Ouvidor, no centro do Rio (onde funcionava a editora), para a famosa Casa de Pedra da Rua Santa Clara, 344, em Copacabana. Um local que virou ponto de encontro e até de romaria. Glauco limpava pincéis pintando e nós aproveitávamos para colocar legenda, criando cartuns. Jaguar e eu tentamos a publicidade e não fomos compreendidos. Para a Varig, fizemos um cartum com os indefectíveis turistas americanos (ela de chapéu e ele de camisa havaiana e máquina fotográfica ao pescoço), olhando espantados para um muro onde estava pichada: “American, go home, fly Varig”. A companhia aérea não quis e, anos depois, a Japan Air Lines fez o mesmo anúncio, premiadíssimo no mundo todo. Outro foi para o cinqüentenário da Shell. Jaguar desenhou a Vênus de Boticcelli saindo das águas dentro da concha marca, segurando uma fita com a inscrição: “Shell, 50 anos de progresso feito nas conchas”. Em abril de 60, finalmente, a revista era Senhor, por extenso, tinha 45 mil assinantes e custava CR$ 100,00. Além do Glauco Rodrigues, Caio Mourão, Bia Feitler e Jaguar,

general Travassos morreu. Lauro Sodré, senador, e Alfredo Varela , deputado, foram presos. Assim, além das vítimas que ordinariamente causa, a varíola produziu essas...”. Apolon Fânzeres era engenheiro eletrônico, especialista em comunicações. Na “Gloriosa”, foi preso, torturado, interrogado pessoalmente pelo coronel Ibiapina, que queria saber dele “tudo”: - “Tudo? - Tudo, tudinho. - Mas é muita coisa. Tudo sobre o quê? - Não se faça de bobo.” Fânzeres acabara de montar um sistema de comunicação para as coletorias do Estado de Pernambuco, por encomenda do governador Miguel Arraes, e os militares tinham certeza de que aquilo era a “rede de subversão”. A prova? Todo o material era da CGT. - “Por que o senhor só usou material da CGT? - Porque é o melhor e o mais barato. - E desde quando a CGT produz esse material? - Há muitos anos.” Foi duro e doloroso esclarecer que CGT não era a confederação Geral dos Trabalhadores, como imaginava Ibiapina, mas a Compagnie Général du Téléphone. Esse mesmo Fânzeres escreveu, na Senhor de abril de 60, um delicioso artigo criticando os anunciados “grandes avanços tecnológicos em matéria de reprodução de som”, afirmando que o melhor de todos os receptores era o “compensador tonal subjetivo”. Receptores tecnologicamente avançados, reproduzindo música ruim, apresentavam um resultado ruim. Mas um aparelho pobre, reproduzindo um disco com chiado, mas de uma música maravilhosa, apresentava um resultado bom, graças ao tal compensador tonal subjetivo que cada um de nós tem dentro de si. Em agosto de 60, Scliar considerou cumprida sua tarefa: a revista existia, era sucesso, havia conquistado vários prêmios de qualidade gráfica no exterior (inclusive dos editores britânicos) e o reconhecimento da revista Graphis ( a suíça, a edição mais importante). O “Larousse”, mais uma vez, curvou-se ante o Brasil. Na minha opinião, muita gente boa, ótima mesmo, passou pela revista, mas nunca mais ela foi a mesma. Scliar saiu, voltou a dedicar-se exclusivamente à pintura, deixou Glauco Rodrigues em seu lugar. Senhor conseguira equilibrar receita e despesas. A Vemaguete continuava anunciando. Mas “o alto índice de nacionalização do Aero Willys” era “a melhor garantia de completa e permanente assistência técnica”; e o Dauphine era “o carro que você terá orgulho de dirigir”, leve e compacto, “o carro mais econômico do mundo!” ( mais de 16 quilômetros por litro de gasolina, 540 quilômetros sem precisar reabastecer). Enquanto o Simca Chambord era “produzido para nossas estradas e para as condições de tráfego das cidades brasileiras”,e a Volkswagen anunciava que “pelo sistema de refrigeração a ar eliminaram-se 21 fontes de avarias que há em motores de refrigeração a água”. O “carro mais desejado do mundo” era o Thunderbird 1960. Já o Gordini tinha um apelido popular baseado em outro anúncio: Leite

"Quando ela morreu, nem chorei, embora Senhor esteja entre uma das melhores coisas que fiz."

Na seção “Sr. e Cia, anunciávamos, pela primeira vez, o encontro de um “a” craseado no pára-choque de um caminhão. O que nos preocupava era a frase: “Eles virão à noite”. Das máximas de Clark Gable extraímos um filet mignon: “Sempre fui um tímido, principalmente com as mulheres. As cenas de amor me deixavam frio de medo, exatamente quando o diretor pedia uma expressão ardente. Até que resolvi pensar num grande e macio bife, e tudo deu certo. É no que penso até hoje”. Cientistas soviéticos estavam desconfiados de que alienígenas haviam destruído Sodoma e Gomorra com bombas atômicas... No cartum, um sapo dizia ao outro: “Dizem que beijo na boca dá sapinho...”. E a polícia carioca investigava um anúncio publicado no Diário de Notícias: “Dentadura de molas – em férias até o dia 7 de março”. Franz Heilborn (Franz Paul Heilborn era o nome de Paulo Francis na carteira de identidade) escreveu um artigo contando que os republicanos iam preferir Nixon, um político profissional, a Nelson Rokefeller. E anunciava: “A menos que Deus seja também americano, este é o futuro presidente dos Estados Unidos da América”. Bingo. Afirmávamos que “quem bebe cerveja estupidamente gelada é um estúpido”, frase que foi parar na capa do cardápio do falecido e saudoso Bar Zepelim, em Ipanema. E publicávamos a “Pequena História da República”, de Graciliano Ramos. Entre outros pequenos capítulos, o da Revolta da Varíola: “Oswaldo Cruz achava que era vergonhoso uma pessoa apresentar marcas de bexigas. Pensando como ele, o Congresso tornou obrigatória a vacina. E muita gente se descontentou. Estávamos ou não estávamos numa terra de liberdade? Tínhamos ou não tínhamos o direito de adoecer e transmitir as nossas doenças aos outros? A 10 de novembro de 1904, houve um motim; sublevou-se a Escola Militar, o

43 ○


Glória, o que “dissolve sem bater”. Minister era o cigarro (King size, filtro de luxo). Já se podia ir do Rio a Nova Iorque sem escalas, em nove horas e meia no Boeing 707 da Varig. A “massagem capilar com Pantene faz parte da higiene diária do homem moderno”. A “arrojada sinfonia de elegância, energia e vigor da juventude” é o sapato Samello. E a Ramenzoni insistia: “Nenhum homem elegante dispensa o chapéu nos momentos sociais”. Foi quando descobri que toda dedicação, empenho e carinho para fazer a

“nossa” revista não iam render a Senhor como herança. Simão Weisman, com a conta do “Larousse” na mão, agora queria receber de volta o que lhe custava fazer a revista. Ao receber a informação de que Senhor estava à venda, fechei o número de setembro, o último, com uma lindíssima capa all letter do Michel Burton e me fui, que o salário não era essas coisas. Mais tarde, a convite de Odylo Costa, filho, e de Edeson Coelho, colaborei episodicamente. E a convite de Reinaldo Jardim fiz, durante meses, um caderno intitulado “Luiz Lobo dá o serviço”. Mas já

não era a revista dos meus sonhos e da minha paixão. Na verdade, só guardei os exemplares da chamada primeira fase. E, quando ela morreu, nem chorei, embora Senhor esteja entre os meus filhos, como uma das melhores coisas que fiz na vida. Uma jovem repórter, em São Paulo, durante uma exposição comemorativa da Senhor, perguntou o que eu mais me orgulhava de ter feito na revista. Sem dúvida, respondi na hora: um título. Deu-se o caso que Jorge Amado escreveu especialmente para Senhor (e quase tão bem pago como uma edição de

qualquer livro, mantendo em seu poder os direitos autorais), “A Dupla Morte de Quincas Berro D’Água”. Que eu, na minha imodéstia de jovem, ousei renomear, com a cumplicidade de Zélia Gatai, para “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”. Foi assim. Palavra do Senhor. (Esse artigo foi publicado originalmente na revista Jornal dos Jornais, ano 1, número 4, de julho de 1999) Luiz Lobo, jornalista e escritor, foi, por dois anos, editor-assistente-executivo da revista Senhor.

FEITA COM AUDÁCIA E FASCINAÇÃO PELA ARTE

Carlos Scliar Desde o tempo do ginásio, no Rio Grande do Sul, eu tenho fascinação pelo setor gráfico, que acabou sendo um primeiro estágio para uma pintura audaciosa, e principalmente ignorante, de um jovem que, por instinto, acertava e errava em igual percentagem. Foram minha audácia e fascinação pela arte que me levaram a aceitar o convite do Nahum Sirotsky para ser o responsável pelo setor gráfico da Senhor. Seria uma experiência nova, não só para mim, mas também para os patrocinadores da revista, entre eles a empresa Delta, e para o próprio Nahum, que vinha de experiências em revistas populares, como a Manchete e O Cruzeiro. Na Senhor, eu tinha carta branca para criar, a começar pela minha equipe. Convoquei o Glauco Rodrigues, um pintor que eu achava muito talentoso. Ele queria vir para o Rio. Eu, então, usei esse convite como pretexto para trazê-lo. Ele foi um dos elementos chave da revista, trazia uma habilidade gráfica de tal ordem que, se eu desse um texto para ele, descobria, prontamente, o tipo de ilustração adequada. Era um criativo! Outra pessoa que integrou minha equipe eu conheci na própria sede da Senhor. Era alguém que estava interessado em colaborar. Funcionário do Banco do Brasil, se não me engano. Mostrou seus desenhos de humor para ver se podiam ser aproveitados. Eu fiquei fascinado e posso dizer que permiti que se revelasse, de maneira integral: Jaguar. Indiquei também a Bia Feitler, que acabara de fazer um curso em Nova Iorque e estava doida para trabalhar. Ela queria carta branca para colocar em prática o que tinha aprendido nos Estados Unidos. Dei! Ela se revelou uma criativa excepcional. Depois, quando não encontrou mais espaço no Brasil, já fora da Senhor, foi ser diretora gráfica da Arthur’s Bazar, em Nova Iorque. Ninguém da minha equipe deixou, posteriormente, de provar, na prática, ser fora do comum. Eu tive a sorte de ter essa gente quando eles tinham fogo de mostrar suas possibilidades e procurei dar-lhes o maior número de chances possível. O Nahum chegou até a reclamar comigo porque eu dava a maioria das capas para eles, só fiz quatro ou cinco. Eu já era conhecido como pintor e queria dar espaço para o trabalho daqueles jovens artistas. Na área de texto, tínhamos, também, uma equipe excepcional, que o Nahum soube contratar: Paulo Francis, Luiz Lobo,

Só vale a primeira vez, depois fica repetitivo, mas ter feito isso em um momento em que estava havendo interdição de certas matérias foi brilhante. Nós publicamos a matéria e ainda fizemos essa coisa de espírito de porco, já dávamos o que estava acontecendo: censura, página em branco. Habilidade nossa, não só mostrávamos a matéria, mas também a pressão que estava ocorrendo. Apesar do sucesso da página em branco, Simão Weisman não estava satisfeito e quis interromper a revista, quando estávamos no quarto ou quinto número. Mas um dos sócios da Delta protestou: “O senhor não pode, já venderam assinaturas por um ano, pelo menos um ano vão ter que sair”. Tínhamos tantos assinantes, como é que se faria? Devolveriam o dinheiro? Não fazia sentido. A campanha de assinaturas do Nahum salvou a revista do fim e garantiu mais um tempo para ela se firmar. Esse ano eu “lavei”... Com a publicação de mais alguns números garantida, tivemos espaço para experimentar e inovar, sem medo de perder a revista. Do ponto de vista gráfico, nós fizemos uma coisa que eu vinha observando em certas publicações culturais européias: o texto é o mais importante, você tem que chamar a atenção do público através de ilustrações, organizar o espaço de maneira que a planificação gráfica seja estimulante para o leitor, nunca uma coisa fria, mas o texto é o elemento principal. Quando a matéria era séria, por exemplo, a decorávamos o menos possível, para não estimular uma idéia que não correspondesse ao conteúdo principal. Isso deu muito certo. Tive a colaboração da equipe, que foi peça fundamental, e o apoio

"Você tem que organizar o espaço de maneira estimulante para o leitor, mas o texto é o elemento principal."

etc. Paulo Francis, que eu considerava um sujeito muito criativo em certos setores, era um espírito de porco, se achava, como eu, dono da verdade. Só que eu mandava, ele era secundário. Acabei conseguindo transformá-lo em meu amigo. Francis percebeu que meu objetivo não era diminuí-lo, mas ele não tinha minha competência no setor em que eu estava atuando, não era o campo dele. Eu não me metia no texto e não deixava ninguém se meter na minha área. A Senhor ia bem e o Nahum me dava força total. O dono da revista é que, volta e meia, não entendia o sentido do que estávamos fazendo. Acho que ele pensava em uma revista mais na linha de O Cruzeiro, da Manchete. Ele dizia que a nossa tinha um nível que restringia muito a faixa de público. Ele tinha razão nesse ponto. Só que conseguimos, praticamente na base de assinaturas, fazer uma revista que foi um grande sucesso. Além do sucesso, que ajudou muito, utilizamos macetes e truques circunstanciais para manter a revista viva. Por exemplo, logo nos primeiros números, o Nahum fez algo que eu considero, politicamente, inteligentíssimo: começou uma campanha de assinaturas por um ano. Conseguimos uma quantidade fantástica de assinantes, quase 10 mil. Pouco depois da campanha, Simão Weisman, dono da revista, pega o Nahum e pergunta: “Você sabe o que me custa cada página que você publica?” Reclamava de uma página sobre censura, nem me lembro mais do título, mas tinha só a Manchete e a página saiu em branco. A matéria começava na página seguinte. ”Como é que você me faz isso?” O Nahum respondeu: “Você é um bobalhão seu Simão, estou recebendo telefonemas de gente que diz ter sido uma bolação genial”.

Carlos Scliar, pintor, foi responsável pelo setor gráfico da revista Senhor.

"DESCOBRI MUITO MAIS QUE TÉCNICA POR TRÁS DO SUCESSO" Rafael Porto

pensando em colher um depoimento sobre os aspectos técnicos da diagramação da revista, que renderam prêmios internacionais. O pintor me mostrou que havia muito mais que técnica por trás do sucesso de Senhor. Folheando com Scliar alguns números da revista, que ele trata como uma filha, invejei quem a recebia todo mês.

A revista Senhor morreu jovem. Nasci em 77 e não convivi com a publicação. Nunca fui a uma banca de jornal comprar a “esse erre”. Conhecia Senhor de algumas leituras e de ouvir falar. Sr. significava, para mim, reforma gráfica e capas sem fotografias. Uma revista diferente das de sua época, talvez por isso considerada cult. Fui para a casa de Carlos Scliar

44

integral do Nahum. Um dos problemas que enfrentamos no planejamento gráfico da Senhor foram os anúncios. Mandavam cada coisa horrível e éramos obrigados a publicar. Eu cheguei a tentar criar um setor que faria os anúncios, mas não colou, em função do problema com o dono da revista. Para diminuir o estrago, eu consegui uma coisa única: não botar propagandas no meio da Senhor. Mas deixar de publicá-las foi impossível, afinal eram uma das fontes de renda da revista. Fiquei na Senhor até receber um convite da Petite Galerie, em 1960, para viver só de meus quadros. Havia 20 anos que eu sonhava com isso, tinha feito minha primeira exposição individual em 1940. Era o que eu mais queria naquele momento, então, me afastei da revista. Mas naquela altura eu já tinha formado uma equipe estupenda. Com o Glauco lá dentro, a Bia, o Jaguar, eu ficava tranqüilo. A revista só caiu um pouco quando o Nahum saiu da direção, da concepção. Ela se tornou literária, sempre de um padrão médio. O período áureo foi, realmente, nos anos 59 e 60, quando tínhamos a equipe criada pelo Nahum. Todos que trabalharam comigo na Senhor são meus amigos até hoje, os que estão vivos. Ontem de manhã, por acaso, recebo um recado do Nahum, que está em Israel, dizendo para mim e para o Glauco: ”continuo amando vocês”. Coisa maravilhosa, um amigo que você não vê há anos, mas é porque vivemos uma experiência que nunca mais vamos esquecer. (Depoimento a Rafael Porto)

Rafael Porto é jornalista, com um ano de profissão.

Jornal da ABI


Jornal combativo, fundado por jornalistas, teve nas reportagens e promoções o elo com o povo. Financiado pelo catital estrangeiro, acabou dominado pelo governo.

10

(32%) 18.07.1911 27.12.1957

SUCESSO POPULAR QUE ACABOU, 46 ANOS DEPOIS, EM MÃOS DO GOVERNO Fernando Segismundo

dos jornalistas auxiliavam-nos financeiramente. De saída, a folha opôs-se ao governo federal e ao todo-poderoso senador Pinheiro Machado. Durante os estados de sítio, diretores e repórteres conheceram a censura e o cárcere. Em busca de uma linha política independente, o jornal foi algumas vezes impedido de circular. A Noite apoiou os movimentos cívicos de Rui Barbosa, pregou a regeneração dos costumes políticos e a probidade administrativa, incentivou a alfabetização maciça, combateu endemias, bateu-se pelo desenvolvimento econômico e pela eletrificação da Estrada de Ferro Central do Brasil, estimulou a educação, a saúde e as artes, alentou a extinção das favelas e a construção de moradias condignas, animou o esporte e o recreativismo. Tão vasto programa gerou reportagens sensacionais, muitas informações e críticas aos administradores. Sobressaía o caráter opinativo da folha, um tanto por moda, outro por desígnio expresso dos seus responsáveis. A Noite alçou-se a modelo, difícil de ser ultrapassada. Entre os que a serviam destacava-se Vitorino de Oliveira, secretário de redação saído da Gazeta de Notícias e que se incumbiu da campanha pró-aviação nacional - “Dêem asas ao Brasil” - de que resultou a criação do Aéreo Clube do Brasil. Muitos profissionais de mérito trabalharam na empresa, juntos ou separados pelo tempo: R. Magalhães Júnior, Oduvaldo Viana, José Castelar de Carvalho, Nestor Massena, Mozart Lago, José Eduardo do Prado Kelly, Gil Pereira, Leopoldo Diniz Júnior, Nóbrega da Cunha, Jaime de Barros, - futuros teatrólogos, parlamentares, educadores, diplomatas, ministros de Estado. Lidaram eles com distinguidos jornalistas de periódicos competidores, a exemplo de Rodolfo da Motta Lima, João Guedes de Melo, Mauro Carmo, Cândido Campos, Wladimir Bernardes, José Nogueira Bogéa, Artur Cumplido de Sant’Ana, Euclides de Matos. Alguns, como este último, transitaram de A Noite para lugares diversos. Depois de exercer a secretaria da redação de A Noite, Euclides, que acompanhou Irineu Marinho na fundação de O Globo, serviu a este como diretor, por morte do amigo. Em A Manhã, de Mário Rodrigues, instalada na Rua Treze de Maio, próximo às sedes de A Noite e de O Globo,

Apesar de há muito desaparecidos, famosos jornais sobrevivem na lembrança dos pósteros por força de seus feitos. Entre tantos, assinalam-se o Correio da Manhã, o Diário Carioca, o Diário de Notícias, O Jornal, a Imprensa Popular, O Meio Dia, O Radical, a Ultima Hora e a Gazeta de Notícias, folhas com elevadas tiragens, a serviço de partidos políticos e dos interesses imediatos da comunidade. Citálos é invocar os programas da União Democrática Nacional, UDN, do Partido Social Democrático, PSD, do Partido Comunista do Brasil, PCB, do idealismo da juventude militar; o populismo de Getúlio Vargas e, até, a infiltração nazi-fascista em nosso meio. Nasceram esses órgãos, e se extinguiram, na antiga capital da República. Salvo uns poucos jornais de alguns Estados, eram eles que refletiam as ideologias burguesas e proletárias do tempo, disseminavam cultura por meio de cadernos especializados e davam ciência do que se passava noutras partes do mundo, consoante o serviço telegráfico de agências estrangeiras. As pessoas, em geral, rezavam por essas cartilhas, de acordo com as suas conveniências, passividade mental ou ignorância mesmo. Rezavam e batiam-se com ardor, de modo peculiar em relação às atividades esportivas e de recreio. De tantos jornais, por acaso coube a A Noite desempenhar papel de maior relevo junto ao público e à política, por toda a sua longa existência, exatos 46 anos. Fundada no Rio de Janeiro em 18 de julho de 1911, encerrou a ação em 27 de dezembro de 1957. Principiou a circular no governo de Hermes da Fonseca e acabou no governo de Juscelino Kubitschek. Motivos diversos deram-lhe notoriedade: os dirigentes e redatores que teve, as promoções efetuadas, o prédio da Praça Mauá, a maquinaria moderna, a intervenção do poder público, a tiragem alta e as empresas dela saídas: revistas Carioca e Vamos Ler, jornal A Manhã e Rádio Nacional. Um grupo de treze jornalistas militantes criou A Noite, ao estímulo de Irineu Marinho, mais tarde fundador de O Globo (1925). Era folha vespertina, com saída às 17 horas e segunda edição às 19. Nasceu num prédio de dois andares, no Largo da Carioca, no qual se agasalhavam a diretoria, a administração, os redatores, o arquivo, o almoxarifado etc. A oficina localizava-se na Rua do Carmo. Amigos ○

MEMÓRIA E FUTURO

praticavam o ofício Xavier de Araújo, Celso Kelly, Danton Jobim, Osório Borba, Joraci Camargo e Rafael de Holanda, que também sobressaíram na política, no magistério, no teatro. Até 1930 a legislação trabalhista não cobria os homens de imprensa. Durava a

eram indispensáveis, sobretudo as de caráter policial, com assassinos misteriosos só identificados pelos jornalistas, aos quais a polícia recorria. Na reportagem política ou em departamentos próximos salientavam-se escritores iniciantes, pois ainda não funcionavam escolas de comunicação; escritores ou jornalistas-luzeiros do passado: Figueiredo Pimentel, João do Rio, Elói Pontes, Ribeiro Couto, Peregrino Júnior, Pedro Calmon, Gilberto Amado, Viriato Corrêa. Do grupo, somente um continua a produzir: Barbosa Lima Sobrinho, cujo labor no Jornal do Brasil levou-o à historiografia, à governança e à Academia Brasileira de Letras. Entre as muitas reportagens provocadas pela A Noite não há como esquecer a resultante da linha aérea inaugurada entre o Rio de Janeiro e Natal, na década de 20. Responsabilizou-se pelo ato a companhia Aeropostale, que manteve a bordo representantes de A Noite nos setores da escrita, da fotografia e da cinematografia. O percurso ou raid , como à época se chamava ao vôo a longa distância, compreendia os seguintes pontos: Rio, Florianópolis, Pelotas, Porto Alegre, Montevidéu, Buenos Aires, Natal e Rio. Imagine-se o tempo gasto e os incidentes da rota. Herdeiros e ampliadores dessas narrativas chamaram-se Edmar Morel e David Nasser. O terceiro está vivíssimo: Joel Silveira. No tempo, as aeronaves (hidroaviões) decolavam e pousavam na água. Outro sucesso de reportagem: a cobertura dos concursos de beleza (escolha da Miss Brasil aos certames internacionais) e seu desenrolar no estrangeiro, com fatos e murmurações diárias, além dos serviços prestados ao jornal pelas agências Havas e United Press. Mais êxitos devidos aos repórteres e que se constituíram em autênticos “furos” ou exclusividades: a internação voluntária da Coluna Prestes na Bolívia e a morte de Lampião e seu bando. Informações duradouras, que elevaram o número de exemplares de A Noite, colheram-nas os repórteres in loco (Minas Gerais), a respeito de uma criatura canonizada pelo povo: a Santa de Coqueiros. Esse trabalho jornalístico alimentou durante meses o gosto público por ocorrências raras. Geraldo Rocha, sócio de Irineu Marinho, era quem mandava de fato em A Noite, graças aos bens que nela investira. Diziam-no, ou era mesmo, engenheiro, propagandista das potencialidades de

Foi tão poderoso que marcou a cidade, em 1928, com um prédio de 23 andares na Praça Mauá. Alí nasceria, depois das revistas e da editora de livros, a não menos famosa Rádio Nacional.

jornada oito, dez horas, e os salários quase nunca eram pagos por inteiro e de vez. O regime dos “vales” diminuía -lhes o valor efetivo em cerca de 50% . Aos domingos havia plantões para uns poucos; os demais folgavam. Fora daí a lida abrangia o ano todo, excetuados os dias consagrados ao Natal, ao primeiro de janeiro e aos finados. O sucesso de A Noite pode explicarse de várias maneiras. Uma delas reside nos representantes voluntários da folha em grandes e pequenas cidades. Fatos exóticos, acidentes, figuras avivadas de súbito, crimes, viajantes estranhos, lendas sobre cemitérios, tudo era comunicado por carta ou telefone pelos prestativos colaboradores de A Noite, mantendo-a como insuperável órgão de massas. A era das grandes reportagens teve início então. Uma que outra projetara, antes, o nome de Euclides da Cunha e de Eugênia Brandão, atuantes, um, nos sertões, outra no asfalto. Eugênia, mais tarde, deixaria o jornalismo pelo teatro, seria atriz e mulher do escritor Álvaro Moreyra, ambos batalhadores do socialismo. Paralela ao “furo”, incansavelmente perseguido, reinava a reportagem, fruto da argúcia e da teimosia do apurador de acontecimentos. A notícia, a informação, o artigo político tinham importância, mas as reportagens

45 ○


certas áreas do rio São Francisco, onde cultivou com êxito melão e uvas, abrindo caminho para empreendedores audazes. Ausente Marinho, em viagem à Europa (para tratar de saúde), Rocha afastou-o da empresa, substituindo-o por Diniz Júnior, de A Pátria, elevado ao posto de diretorresponsável. Daí O Globo ter vindo à luz no retorno de Marinho ao Brasil (1925). Dessa data até 1930, Rocha imprimiu ao jornal a marca exclusiva de seus interesses, os quais, em verdade, não eram dele próprio, mas dos capitalistas que representava - os donos da Brazil Railway Company, belgas e franceses. Repetindo: A Noite publicava-se no Rio de Janeiro, era dirigida e escrita por brasileiros, gozava de primazia entre as demais folhas, mas a vasta penetração entre os leitores conquistara-a graças à fartura de recursos forâneos. Ao atender às conveniências desse capital, fato despercebido dos leitores, o jornal estava a dominar o mercado ao seu modo, isto é: afeiçoava a conduta moral do povo ou opinião pública em proveito da Company. Os investimentos fáceis e fartos, por seu turno, atraíam anunciantes de posses. Grande negócio, esse, de superintender A Noite. Assumindo o controle do órgão, Geraldo Rocha começou a idealizar-lhe nova sede. Não nos alongaremos a escrever sobre o edifício da Praça Mauá, decantado ao longo de meio século e ainda hoje referência citadina, junto ao Pão de Açúcar e ao Cristo do Corcovado. Lembrar-se-á apenas que ele assenta em rocha viva e tem 23 andares. Pronto em 1928, ali se instalou A Noite no ano seguinte. Ocupava cinco pavimentos, incluindo o sub-solo (rotativa, rotogravura, composição, estereotipia, fundição). Oitenta metros quadrados foram reservados para a administração e a redação, arejadas e com luz natural. Dispunha esta de 50 mesas com cadeiras giratórias, equipadas com máquinas de escrever e telefones da rede interna, estantes, fichários, arquivos (fotografias, clichês, coleções, textos, biografias). Triunfante o movimento armado de 1930, A Noite, que apoiara a candidatura de Júlio Prestes à presidência da República, foi incendiada pelos partidários de Getúlio Vargas, ela e O País, A Nota, A Vanguarda e o Jornal do Brasil. Geraldo Rocha fugiu, indo abrigar-se em Minas Gerais, à sombra de antigos desafetos. O assalto ao jornal foi devastador: destruição das máquinas das oficinas, empastelamento de tituleiras, acessórios e caixas; retirada de peças da rotativa, impedida de funcionar. O fogo consumiu partes da redação, da administração, dos arquivos e dos serviços fotográficos. Depredadores e ladrões esvaziaram os cofres, carregaram máquinas de escrever e calculadoras. Durou três horas o ataque, sem que as autoridades procurassem reprimi-lo. Improvisado como chefe de polícia, coube ao general Bertoldo Klinger tomar medidas para que A Noite pudesse circular de novo. Chefiava o governo da Junta Militar o general Tasso Fragoso, que autorizou o deputado Augusto de Lima, seguidor do ex-presidente Artur Bernardes,

a assumir a direção do periódico. Autoexilado em Minas, Geraldo Rocha tomou conhecimento de que a Cia. São Paulo-Rio Grande entrara na posse das ações até ali por ele usadas como próprias, quando nada mais era que seu testa-de-ferro. A Noite continuava a ser propriedade da Brazil Railway, à qual se subordinava aquela companhia, daí em diante presidida pelo empresário Guilherme Guinle, também presidente das Docas de Santos. Além da censura oficial, teve A Noite de enfrentar os efeitos das dívidas deixadas por Geraldo Rocha. Principia aí (1930) a intervenção estatal, discreta a princípio, ostensiva

Cavalcanti, superintendente do Estado de Guerra e submisso ao credo integralista. Vargas dominava o país apoiado nas Forças Armadas, na elite financeira e na classe média, refortalecido após o malogro das revoltas de 1935 e 1938, de fundo esquerdista e direitista, respectivamente. O Estado encampa o acervo de A Noite, da Rio Editora e da Rádio Nacional em 1940. Para dirigi-la, e a outras empresas incorporadas ao patrimônio nacional, foi nomeado o coronel da reserva Luís Carlos da Costa Neto. Antigo repórter de A Noite e, depois, redator-chefe e diretor do vespertino, M. Carvalho Neto considerou a decisão do governo como “disfarçada manobra” para extinguir a folha “da preferência do povo”. Os olhos da cobiça estavam arregalados sobre o grande jornal. Em 29 de outubro de 1945, estando o jornalista André Carrazzoni na direção da folha, na qual trabalhava desde 1925, foi Getúlio derrubado do poder pelas Forças Armadas, às voltas com a democracia após a participação do Brasil na II Guerra Mundial. O mesmo Carvalho Neto assegura que a venda de A Noite ao empresário Samuel Ribeiro, quer dizer, o retorno do vespertino ao setor particular, foi obstada por Benjamin Vargas, irmão do presidente deposto. No breve governo de José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, respondeu pela Superintendência das Empresas Incorporadas o general da reserva Castro Júnior. Reiniciaram-se as negociações para a venda do jornal e da

"O Estado encampa o acervo de A Noite, da Rio Editora e da Rádio Nacional em 1940. Carvalho Neto considerou a decisão do governo como 'disfarçada manobra' para extinguir a folha 'da preferência do povo'."

rádio, invalidadas logo após a eleição do general Dutra para a presidência da República. Respondia por A Noite o jornalista Gil Pereira, pela Vamos Ler Antônio Vieira de Melo e pela Carioca Heitor Moniz. As três eram deficitárias. A partir de 1946 supervisionou as empresas o coronel Leony Machado, que tinha ainda sob sua jurisdição A Noite, de São Paulo, e A Manhã, do Rio, ambas criadas na gestão Costa Neto. Mediante decreto-lei, de 1946, o presidente Dutra autorizou o ministro da Fazenda a dar A Noite em locação à sociedade que os seus empregados organizassem (bens móveis e imóveis). O arrendamento duraria 15 anos, com opção de compra dentro de dez anos. Todos os servidores seriam acionistas, segundo o tempo de serviço e o salário, garantidos os direitos trabalhistas e previdenciários. Antônio Vieira de Melo era o superintendente das empresas e a crise avolumava-se. No governo de Getúlio, empossado em janeiro de 1951, o quadro não se alterou. Dirigentes e subordinados da empresa não foram capazes de recuperar A Noite. André Carrazzoni, de novo à frente da Superintendência das Incorporadas, enviou ao presidente um relatório reservado (fevereiro de 1954) acentuando o “estado de penúria financeira, o enfraquecimento econômico, a inferioridade técnica e a ineficiência administrativa do grupo...”. “Os objetivos principais não foram alcançados. Os

depois e, por último, definitiva nos destinos de A Noite e suas filiadas. A folha tivera representantes nos Estados Unidos, na Argentina e no Uruguai. Em Lisboa manteve sucursal e no Brasil mais de três mil correspondentes. A vendagem anual excedia 60 milhões de exemplares. Tão excepcional potência estava a passar para o controle oficial, ou seja: o governo “provisório” e discricionário de Vargas. Porém, Geraldo Rocha continuava a ser o maior acionário do jornal; de tudo o mais do Grupo Brazil Railway fora destituído. Pressionado, acabou por reconhecer, em cartório, a elevada dívida contraída com a Cia. São Paulo-Rio Grande. Decorrido o prazo, não quitou o débito, entrando a Cia. na posse de todos os bens de seu antigo representante, incluídas as ações de A Noite. Após a implantação do Estado Novo (1937), A Noite entrou a defender a política oficial, na esteira do nazi-fascismo. A exceção deu-se a partir de 1942, quando o Brasil se viu obrigado à beligerância contra o Eixo. Portas a dentro imperava o discricionarismo, sob a tutela de Getúlio, de Francisco Campos, autor da nova Constituição, do general Eurico Gaspar Dutra, suporte do regime, do ministro Agamenon Magalhães, de Negrão de Lima, articulador do golpe, do general Newton

ANÚNCIO AMIL

46

Jornal da ABI


resultados mínimos obtidos devem-se, exclusivamente, ao devotamento de reduzido número de auxiliares”. Getúlio suicida-se, Carrazzoni deixa o cargo; seguem-se as governanças de Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos. Juscelino Kubitschek é empossado na Presidência em 1956 e governará até 1961. Haviam passado pela Superintendência e, pois, pela A Noite, os jornalistas Marcial

Dias Pequeno, Prudente de Morais Neto e Odylo Costa,filho, além do procurador da Fazenda Haroldo Áscoli. Nenhum obteve progresso na recuperação do jornal. Nessa altura e um pouco antes, A Noite tinha a servi-la os redatores José Gomes Talarico, Afrânio Vieira, José Cândido de Carvalho, Clóvis Ramalhete, Paulo Cabral, Nilo Bruzzi, Antônio Balbino, Bastos Tigre, Adonias Filho, Héstia

Barroso, Ilka Labarte, Pomona Politis, Clarice Lispector. Artistas famosos trabalhavam ali: Álvaro Marins (Seth), Monteiro Filho, Armando Pacheco, Francisco Acquarone, Álvaro Cotrim (Alvarus), Mendez, Augusto Rodrigues, Anísio Mota (Fritz), autor da escultura simbolizando o pequeno jornaleiro, colocada na Avenida Rio Branco, próximo às ruas do Ouvidor e do Rosário.

Nomeado superintendente por Juscelino, o médico Mário Pires anunciou a extinção de A Noite em 27 de dezembro de 1957. Dos 200 mil exemplares diários anteriores à encampação, a folha, ao ser fechada, tinha somente 10 mil leitores. Fernando Segismundo, jornalista e professor, preside o Conselho Administrativo da ABI.

AO SE AFASTAR IRINEU MARINHO, NASCE O GLOBO José Gomes Talarico A Noite foi o primeiro vespertino lançado no período de inovação da imprensa carioca. Fundado em 18 de julho de 1911, por um grupo de 13 profissionais liderados por Irineu Marinho. Surgiu quando o Rio de Janeiro tinha na constelação da imprensa o Jornal do Commercio, Gazeta de Notícias, Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Paiz, O Jornal, A Notícia, A Rua, O Diário, Lanterna, O Debate, A Manhã e outros órgãos. Instalou-se inicialmente no Largo da Carioca. Ali se expandiu, tornando-se a folha mais popular da cidade. Passou a desfrutar a preferência, na época, de quase dois terços dos leitores de jornais. Circulavam duas edições, uma às 5 horas da tarde e outra às 7 horas da noite, que se esgotavam todos os dias. O êxito de seu noticiário e das reportagens causava repercussão em todo o Brasil e no exterior. O quadro redacional sempre repleto de valores. Foi uma grande escola e celeiro de jornalistas. A sua existência, uma sucessão de feitos, que fizeram A Noite o vespertino mais poderoso do país. Sua marcha ascensional nunca sofreu oscilações. Consolidou sua posição de preferência do público com método inovador. Esse sucesso resultou de sua independência e de não omitir a verdade dos fatos. Por sua linha de autonomia, defrontou-se com problemas de parte de governantes e políticos. Por isso, por muitas vezes, esteve impedido de circular, teve edições apreendidas, diretores e redatores presos. Deu apoio aos movimentos cívicos e democráticos, e prestigiou personalidades do passado, como Rui Barbosa, Olavo Bilac e Monteiro Lobato. Não houve causa de interesse nacional que se omitisse. Exerceu vigilância à ação políticoadministrativa. As promoções de diferentes gêneros de A Noite foram um sucesso. Mantinha um excelente serviço d e informações. Uma rede de 2.500 correspondentes. Não poupava esforços na execução de suas campanhas e promoções culturais, musicais e concursos de beleza (de que foi a pioneira). Os eventos nunca tiveram patrocinadores. Toda a cobertura era custeada pelo próprio jornal. Em 1928, Irineu Marinho, seu diretorpresidente, viajou para a Europa. Na sua ausência, Geraldo Rocha que, através da

MEMÓRIA E FUTURO

“Brazil Railway Co.” possuía uma participação acionária no jornal, conseguiu realizar uma assembléia extraordinária e rompeu o vínculo com o idealizador de A Noite, Irineu Marinho, elegendo nova diretoria da sociedade anônima apropriando-se do controle do jornal. No retorno ao Rio de Janeiro, Irineu Marinho e companheiros seus que deixaram o jornal lançaram O Globo, que conquistou, desde logo, leitores. Um mês depois Irineu Marinho, que ainda não tinha 50 anos, faleceu subitamente. Eurycles Matos assumiu a direção, mas não sobreviveu muito tempo, surgindo o terceiro timoneiro, Roberto Marinho, o filho mais velho, que com os irmãos Ricardo e Rogério, conduziu o jornal. A circulação de O Globo não afetou A Noite. Constituiu uma contribuição à opinião pública, em virtude da competição entre os dois vespertinos, permanente e dura, não só pela qualidade das reportagens, como pelos “furos” mútuos que se sucediam. Em 1930, foram lançadas A Noite Ilustrada, o primeiro semanário em rotogravura e duas revistas editadas, Carioca e Vamos Ler. Foi também criada a Editora A Noite, que divulgou um sem número de livros culturais, educacionais, literários e biográficos e reeditou o matutino A Manhã. Em 1936, era fundada a Rádio Nacional, a mais potente emissora do Rio de Janeiro. De posse de tão grande patrimônio, a superintendência se transformou em uma complexa instituição, alvo de ambições e um imenso cabide de empregos. Mal administrada, refletiu danosamente nas empresas jornalísticas. Não nos é possível explanar todo o histórico de A Noite, especialmente a trama engendrada para a sua extinção, iniciada no governo JK. Havíamos cooperado para a eleição de Juscelino, na formação da chapa Juscelino- Jango, participando do Comitê Interpartidários PSD-PTB. Como redator de A Noite e diretor da sucursal do Diário de Minas, havíamos nos empenhado pela sua vitoria. Foi a mais decepcionantes de nossas desilusões. Drama ocorrido nos dois últimos anos de sua existência. Mário Pires, médico e amigo de JK, foi escolhido superintendente das “Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União”. Era um empresário envolvido com encargos de empresas privadas – 27 negócios mercantis e industriais. Residia em Belo Horizonte,

se dirigiu ao Palácio do Catete. Estando Juscelino ausente, pediu-se para falar com o chefe do gabinete, Victor Nunes Leal, que não recebeu a comissão, alegando que o assunto era afeto ao Ministério da Fazenda. Diante da insistência, um oficial de gabinete atendeu. Pleiteou-se que o governo confiasse o jornal aos seus empregados, sem responsabilidade do passivo, para se editar A Noite sem auxílio dos cofres públicos. Entregue a proposta por escrito, firmada por todos que se encontravam no jorna no dia 27. A resposta nunca veio. No dia imediato, desde as primeiras horas da manhã e a “toque de caixa”, o desmonte das dependências do jornal, a retirada das mesas de trabalho, móveis, máquinas. A rotativa e as linotipos doadas à Imprensa Nacional. As coleções, dos jornais, revistas, (também extintas), o rico arquivo de documentos fotográficos doados ao Arquivo Mineiro. Assim, de forma grotesca e até humilhante desapareceu o famoso vespertino depois de meio século de existência. Os responsáveis pela extinção: o presidente JK, o ministro da Fazenda, Lucas Lopes, Sebastião Paes de Almeida e Mário Pires.

"Nos idos de 80, houve a tentativa de reeditar A Noite. Ainda persistia o regime militar. No esforço de se manter, funcionou, por algum tempo, na sede da ABI, no 10º andar. Sofrendo pressões, não teve como continuar."

pouco vinha ao Rio de Janeiro, deixando nas mãos de seus auxiliares a responsabilidade de gerir as empresas incorporadas. De imprensa não entendia, como não entendiam também os seus colaboradores . Em menos de dois anos A Noite passou a enfrentar dificuldades. A superintendência intervinha na orientação editorial e na publicação do noticiário. Baixava atos de caráter administrativo ou pessoal, dividindo os empregados em duas categorias: trabalhistas e extranumerários. E, por último, desvinculou a Rádio Nacional de A Noite. No dia 27 de dezembro de 1957, Mário Pires chamou à sua presença os responsáveis pela redação do jornal, comunicando que a A Noite, a partir do dia seguinte, não mais circularia. Que cruel comunicação, feita friamente e sem possibilitar qualquer contestação ou dar motivos de sua excitação. A redação do jornal, no terceiro andar, estava repleta e recebeu a comunicação com lágrimas, emoções e protestos. Levantou-se a idéia de se apelar ao Presidente da República. Quase todos ali presentes tinham sido seus eleitores. Formou-se uma comissão, com representantes de todos os setores, que

47 ○

UMA SEGUNDA FASE DE A NOITE, COM MÁRIO MARTINS E CARVALHO NETO Nos idos de 80, houve a tentativa de reeditar A Noite. Um empresário bem sucedido, por instâncias de Antonio Vieira de Melo, decidiu investir nesse empreendimento. Ainda persistia o regime militar e as atividades de imprensa estavam sob seu controle. Já haviam desaparecido vários jornais. A nova redação de A Noite funcionava em um dos edifícios da Cinelândia e, colocando-se na linha de independência, defrontou-se com a violência do regime: foi invadida e depredada por policiais militares. No esforço de se manter, funcionou, por algum tempo, na sede da ABI, no 10º andar. Entretanto, o empresário apavorado com as ocorrências e sofrendo pressões, retirou o seu apoio e a revivida A Noite não teve como continuar. José Gomes Talarico, segundo vicepresidente da ABI, foi repórter na sucursal de A Noite em São Paulo e redator no Rio Janeiro, na sua segunda fase.


Futuro hoje é Internet, como princípio, meio e fim. Velocidade é a palavra-chave. Eficiência, rentabilidade, essência velha do novo capitalismo. Evolução incerta em todos os processos e veículos de comunicação de massa.

Comunicação hoje é Internet, como meio, alterando todos os veículos, sem deixar de ser, ela mesma, um fim - veículo concorrente e complementar. Mas afinal, que futuro é esse de tantas palavras sentidas com vários e tão imprecisos sentidos?

PRAGMATISMO: GASTAMOS MAIS EM INFORMAÇÃO

Jack London

preendente valor de US$ 675 gastos em média por cada americano no consumo de informação. Isto é três vezes mais do que gastavam há cerca de dez anos e, segundo as previsões, será apenas um terço do que gastarão daqui a cinco. Somem estes valores aos valores gastos em telefonia/ telecomunicações e será fácil constatar por que falamos tanto em obsolescência da sociedade industrial. Onde gastávamos antes estes recursos de nossos orçamentos pessoais? Como será que nós, brasileiros, estamos nos comportando com relação a este fenômeno? Como será que esta nova realidade do consumo de informação irá impactar o jornalismo e os meios de comunicação tradicionais? A atual debandada de jornalistas rumo ao novo mercado de trabalho na área da Internet irá se consolidar ou já está havendo um refluxo, causado pela saturação de projetos semelhantes lançados no mercado? Que decisões fundamentais para o sistema de geração de informações livres e soberanas são necessárias neste momento para o país?

"O americano gasta hoje 3 vezes mais no consumo de informação que há 10 anos. Será apenas a terça parte do que vai gastar daqui a 5 anos... é a obsolescência da sociedade industrial."

Se o amigo leitor é dos mais atentos, já deve ter reparado numa realidade evidente: o aumento vertiginoso de seus gastos pessoais na área de telecomunicações/consumo de informações. Até bem pouco tempo atrás, as contas de luz, telefone e gás (estas talvez um pouco menores) se equivaliam e nossos fornecedores destes insumos eram empresas, em geral estatais, que tinham perfis empresariais e presenças de mercado semelhantes. Com o advento da “Era da Informação”, este quadro mudou radicalmente. Tente comparar o que você gasta hoje na tarefa de se comunicar e se informar com o que você gastava há alguns anos. Um enorme fosso se criou também entre o valor de mercado das empresas geradoras de telecomunicações e suas antigas “coirmãs”. Basta olhar os outdoors espalhados pelas cidades brasileiras e verificar os patrocínios de eventos culturais e esportivos em geral e poderemos perceber claramente esta realidade. Basta também comparar o número de pontos de telefonia fixa e móvel que você tem em sua casa, comparado ao que você tinha há cinco anos atrás. Vivíamos então com pontos

fixos de conexão - casas e escritórios - e hoje cada um de nós é um ponto móvel de intercomunicação. Imagine o que seremos em breve, com a tecnologia WAP. Mas este é apenas um dos aspectos de uma mudança no panorama de geração e transferência de rendas nos dias em que vivemos. Outro aspecto extremamente interessante e pouco analisado é o gasto no consumo da informação, seja ela de que natureza for. Uma recente pesquisa feita nos EUA mostra um crescimento generalizado dos gastos nesta área. A tabela abaixo chega a ser surpreendente, pois nós brasileiros, não temos o hábito de mensurar o que gastamos em tarefas aparentemente não mensuráveis. Vejam a seguir quanto cada americano gasta por

hora de consumo em diversos meios de comunicação (US$): ver TV a cabo : 0.26 ouvir música : 0.22 ler jornais : 0.34 ler livros : 0.98 ler revistas : 0.50 ver vídeos : 1.76 ir ao cinema : 2.40 usar jogos : 0.45 usar Internet : 0.40 ( Fonte: www.veronissuhler.com) Ouvir um CD em casa é a forma mais barata de lazer e a mais cara é ir ao cinema. A multiplicação destas pequenas unidades pelo numero de horas usadas por ano em cada uma delas leva ao sur-

Jack London é presidente da Netcom.Br, empresa criadora dos sítios BooKNet, Valeu, Hypertexto e Tix.

A MÁQUINA APENAS COMEÇOU A MUDAR TUDO Nilson Lage

As mudanças tecnológicas introdução da diagramação, alterações no planejamento das matérias e das edições, substituição da composição em liga de chumbo-antimônio pela composição a frio e da impressão tipográfica pelo off set, ou mesmo o surgimento do rádio e da televisão - bateram à porta das redações mas não chegaram a sentar-se diante da mesa de trabalho de repórteres e redatores. O texto baseado no lead e na forma expositiva, com profundas raízes na maneira espontânea com que as pessoas contam histórias, resiste às tentativas de modificação, que parecem mais literatice do que outra coisa. A apuração, fundada no cultivo das fontes e nas entrevistas, parece insuperável. Tudo que se discute, na verdade, é ética – algo determinante mas externo ao processo produtivo.

Qualquer leigo dirá, sem pensar muito, que a introdução dos computadores modificou bastante a prática do Jornalismo. Ao estudar o assunto, no entanto, concluímos que essa modificação é mais profunda do que parece à primeira vista e que o processo de mudanças está longe de terminar. Na verdade, ele promete tornarse permanente. Em artigo com título provocativo Why journalism needs Ph.Ds, Por que o Jornalismo precisa de doutores - o Professor Philip Meyer, da Universidade da Carolina do Norte, observa que as alterações vividas pela redação dos jornais foram muito poucas, nos Estados Unidos, na maior parte do século XX. Diríamos o mesmo, no Brasil, para as últimas décadas desse século. ○

MEMÓRIA E FUTURO

O computador chegou para mudar isso. Estabeleceu diferenciais entre o jornalista que domina a máquina e o que não domina - isto é, entre uma nova geração e uma geração antiga. Inicialmente, foram os programas de produção: editores de texto, softwares de editoração, processamento de fotografias e gráficos. Agora, os editores não-lineares de som e vídeo (que substituem aos poucos ilhas de edição, switches, mesas de mixagem e corte etc.) e, especificamente para a reportagem, os usos da Internet, as planilhas de cálculo, os gerenciadores de bancos de dados, o acesso a métodos avançados de pesquisa. Todas as operações de produção jornalística estão sendo informatizadas. O computador passa progressivamente a ser o núcleo de qualquer produtora jornalística, transformando-se os demais equipa-

49 ○

mentos (câmaras fotográficas e de vídeo, gravadores portáteis etc.) em meros periféricos. Essa mudança permite produção jornalística local e setorial de alta qualidade técnica, reduzindo enormemente os custos em equipamentos e a dimensão das equipes. Exige-se do jornalista maior versatilidade e conhecimento universal das técnicas. Desaparecem funções auxiliares, tais como as de laboratoristas, diagramadores, contínuos etc. Numa profissão em que se confundiam o grande profissional e o grande artífice - em que a experiência parecia suprir o conhecimento -, isso já não é pouco. O que caracteriza as atividades modernas, de formação universitária, é justamente a contínua mudança de processos e valores: a medicina, a administração da Justiça, as engenharias e mesmo os conceitos em voga em filosofia ○


ou pedagogia transformam-se rapidamente, de modo que alguém formado num desses campos e que se limite a aplicar o que aprendeu estará em poucos anos total-mente superado, isto é, fora do mercado. O conceito de profissional, nessas áreas, é conforme a origem da palavra. “Profissional” vem da mesma raiz que profeta - aquele que é capaz de se antecipar ao tempo, preparar-se para as mudanças, em oposição àquele que domina, mesmo com proficiência, procedimentos tidos como definitivos. É o que está valendo hoje em jornalismo. E não apenas no aspecto técnico. A informática penetrou na gestão de empresas e governos de tal forma que altera relações sociais importantes. É cedo para apontar o sentido dessas mudanças, mas parece certo que estimulam, por um lado, o individualismo e, por outro, o surgimento de comunidades dispersas que se unem por padrões de comportamento ou preferências. Alteram, portanto, não apenas a maneira de fazer jornalismo, mas a gama de informações a ser veiculada. Mais: a revolução cibernética baixou custos na indústria jornalística, viabilizando expansão notável de informação especializada, quer por assunto, quer pelo perfil do leitor, quer pela intenção política. Não há precedentes para a dimensão que hoje atingem a imprensa sindical, os veículos de empresas (house organs e news letters), as publicações para adolescentes, crianças e pessoas da terceira idade, apreciadores de temas tão variados quanto a pornografia, a numismática ou a decoração de interiores - em impressos, audiovisuais ou na Internet. Paralelamente, os processos de fusão de empresas, a pressão contínua do marketing (de produtos, de serviços, de idéias), a articulação com outros setores econômicos e associações que representam áreas de negócios parecem desafiar o projeto jornalístico de produzir uma informação destinada a atender aos interesses do público. É nesse contexto que deve ser pensada a relação entre computadores e jornalismo. É o que faremos, considerando particularmente os avanços menos conhecidos no Brasil - aqueles que afetam os procedimentos de reportagem.

de freqüentar bancos de dados e construir os seus próprios; operar com planilhas de cálculo e conhecer um tanto de métodos estatísticos. Construirá boa parte de suas matérias a partir de dados brutos e não de versões elaboradas pelas fontes - praticará, em suma, algo que o Professor Meyer, jornalista experiente que se transferiu para a vida acadêmica, chama de “Jornalismo de Precisão”. Um computador - eventualmente, um laptop - e uma conexão com a Internet possibilitam ao repórter acessar, de qualquer parte do mundo, seus próprios arquivos ou milhões de bancos de dados sobre os mais diferentes assuntos. Fotografias tomadas em câmaras digitais ligadas ao equipamento ou fotografias convencionais transferidas para a máquina por um scanner viajam milhares de quilômetros com a velocidade da luz; podese até discutir o ângulo e enquadramento das fotos no momento mesmo em que a reportagem está sendo feita. Contextualizar uma informação de última hora é possível com o uso de instrumentos e técnicas que surgem uma após outra, com velocidade de criação sem precedentes na História. Mas onde a RAC parece mais promissora é na produção de matérias mais analíticas e profundas - isto é, mais críticas e consistentes. Ela permite combinar o uso da Internet com métodos de pesquisa até há pouco apenas conhecidos e disponíveis por pesquisadores acadêmicos e planejadores, no setor público e empresas privadas. A difusão da RAC é intensa nos Estados Unidos, onde só uma entidade - o Instituto Nacional para Reportagem Assistida por Computador (NICAR) havia treinado, até o início de 1999, 12 mil repórteres em técnicas de apuração computarizadas. O NICAR funciona na Universidade de Missouri e compete, nessa tarefa de treinamento, com uma série de outras organizações e empresas jornalísticas. Entre os jornais que fizeram investimentos pesados em RAC, Joel Simon e Carol Napolitano listam, em artigo na Columbia Journalism Review, The Philadelphia Inquirer, o Omaha WorldHerald, o Dayton Daily News, The Asbury Park Press, The Seattle Times, o St Louis Post-Dispatch, o Raleigh News & Observer, o San Jose Mercury News, o Plain Dealer de Cleveland, The Detroit News, o Detroit Free Press, The Charlotte Observer e The Miami Herald. Mas o mesmo artigo cita especialistas e repórteres de organizações tão conhecidas quanto a Associated Press e The New York Times. Utilizando técnicas de RAC, repórteres provaram (e ilustraram com tabelas e gráficos) que um terço da população do estado de Nova Jersey vive em áreas em que a poluição excede em até 20 vezes o limite recomendável (The Record); mostraram a evolução da arrecadação de multas de trânsito por diferentes administrações do Alabama, ao longo de dez anos (The Atlanta Journal-Constitution); encontraram indícios e provas de fraude eleitoral nas eleições para prefeito de Miami (The Miami Herald); provaram que a polícia de Washington é a que mais usa as armas e a que mais perde policiais em encontros violentos, o que se deve, em parte, à deficiência de treinamento (The

A RAC - Reportagem assistida por computador A idéia de um repórter que navega pelo ciberespaço sem limites, para fora de sua base de atuação, consulta arquivos variados por todo o mundo e constrói seu próprio acervo de informações privilegiadas pode estar muito distante da imagem tradicional do fofoqueiro, do libertário ou do contestador, com seu caderninho de notas e um brutal e crescente ceticismo diante do poder - qualquer poder. Mas a ela que nos conduz a RAC, reportagem assistida por computador tradução de CAR, ou computer assisted reporting. A geração de repórteres envolvida nesse novo campo do jornalismo diferencia-se das gerações anteriores não apenas pelo domínio da máquina, mas pelo conhecimento em áreas antes desprezadas na formação profissional. Deve ser capaz ○

MEMÓRIA E FUTURO

reportagem sobre as perspectivas da moda para o próximo outono-inverno; ou sobre o futuro das pesquisas espaciais; ou sobre como serão os desfiles de carnaval dentro de dez anos; ou ainda sobre o que acontecerá, a longo prazo, com países grandes e de cultura variada como o Brasil, no quadro de uma economia radicalmente globalizada. O procedimento tradicional, neste e em outros casos (por exemplo, em reportagens sobre temas históricos de significado controverso, como a ditadura Vargas, a fabricação e lançamento das primeiras bombas atômicas ou a aparição da jovem guarda no quadro da música popular brasileira da década de 60), é entrevistar especialistas e organizar a matéria contrapondo opiniões de uns aos outros. O resultado são reportagens nãoconclusivas, incoerentes como colchas de retalhos, que mais confundem do que esclarecem - uma variedade daquilo que, antigamente, por influência francesa, chamava-se de enquête, espécie de entrevista múltipla em que as mesmas perguntas são feitas a várias pessoas. Muitas vezes, os interesses transparecem nas respostas: no caso dos desfiles de Carnaval, por exemplo, é claro que executivos da indústria de turismo tendem a apostar no espetáculo, velhos carnavalescos a expressar sua nostalgia, artistas plásticos a destacar alegorias e adereços etc. Estas são situações em que se aplica, com enorme vantagem, o método Delfos (Delphi Method). O nome vem do oráculo que previa o futuro na Grécia clássica; a técnica foi desenvolvida para fins militares no contexto da guerra fria e manteve-se secreta de 1948 a 1963, quando se divulgou o primeiro trabalho a respeito. Em linhas gerais, o processo é o seguinte: 1.Cria-se um painel de especialistas no tema a ser estudado e obtém-se a concordância deles em participar da pesquisa, que exigirá mais do que uma entrevista comum. Podem ser dezenas ou centenas, mas, na aplicação ao jornalismo, serão, em regra, algo entre nove e 15, representando um espectro razoável de pontos de vista a respeito do assunto. Numa pesquisa sobre moda, por exemplo, pode-se pensar em três projetistas da alta costura, três executivos da indústria do vestuário, três compradores de lojas de varejo e três acadêmicos da área de sociologia ou semiologia do traje. 2. Prepara-se um questionário inicial, abordando os pontos de dúvida, sobre os quais se vai pedir a opinião dos entrevistados. Numa pesquisa sobre o futuro dos vôos espaciais, por exemplo, se irá perguntar sobre a influência da onda de privatizações numa área até hoje conduzida com recursos e diretrizes estatais; o papel dos países não hegemônicos na conquista do cosmo; os prazos previstos para diferentes metas; possibilidade de viagens para fora do sistema solar etc. 3. Envia-se o questionário aos especialistas, pedindo que cada um faça sua previsão ou estimativa sobre as perguntas e que a justifique num texto breve. 4. Dispondo das respostas desse primeiro round, faz-se um resumo ou briefing das respostas, pergunta por

Washington Post); relacionaram o estilo de vida em Long Island e as estatísticas sobre a incidência de doenças do coração e câncer (Newsday) ou a renda das famílias e o aproveitamento escolar das crianças (The Daily Oklahoman e Detroit Free Press); demonstraram como o milionário Ross Perot Jr. fez sua fortuna comprando empresas em bancarrota a preços baixíssimos (Star-Telegram); compararam o aproveitamento de alunos do segundo grau com seu desempenho em carreiras universitárias (Chronicle Herald e Mail Star); denunciaram fraudes na concessão de licenças para motoristas, associandoas a estatísticas de mortos e feridos no tráfego (Orlando Sentinel). E assim por diante - são centenas ou milhares de textos, sem contar a produção européia. Várias ferramentas foram desenvolvidas para a RAC. Steve Doig, da Escola de Jornalismo da Universidade do Arizona, organizou uma série de procedimentos para serem aplicados na cobertura jornalística dos furacões, comuns no Sul dos

"Alteram, portanto, não apenas a maneira de fazer jornalismo, mas a gama de informações a ser veiculada."

Estados Unidos. Philip Meyer e Shawn MacIntosh criaram para o USA Today um índice, baseado em lógica difusa, para medir a diversidade étnica nas cidades americanas, o que deve fazer sentido para a cultura do País. Talvez o instrumento de aplicação mais universal, no entanto, seja o X2, Chi Square, teste que, aplicado a tabelas estatísticas que comparam dados (por exemplo, de aprovados no vestibular oriundos de escolas públicas e privadas, de firmas que ganharam licitações em dada administração sob suspeita de corrupção etc.), permite estabelecer que valores são significativos (indicam se umas escolas são melhores do que as outras, se houve ou não favorecimento etc.) e quais se devem provavelmente ao acaso. O teste não apenas dá aval às conclusões da matéria como serve como argumento técnico em caso de processos judiciais. Pesquisa qualitativa: o método Delfos Além da pesquisa estatística, que pode fornecer dados quantitativos concretos e indiscutíveis, o computador coloca, finalmente, à disposição dos repórteres técnicas avançadas de pesquisa qualitativa, até há pouco privilégio de estrategistas militares e de planejadores de grandes grupos empresariais. Tomaremos como exemplo um desses métodos, o mais usado atualmente. Suponhamos que se queria fazer uma

51 ○


pergunta, incluindo sumário estatístico das previsões ou estimativas e resumo das justificativas apresentadas. 5. Esse relatório, em que não se mencionam os nomes dos consultados (o anonimato é um dos fundamentos do método), é enviado novamente aos especialistas, que têm a oportunidade de mudar sua opinião, ajustá-la e justificar por que mudaram ou não. 6.Faz-se o mesmo com o segundo round que se fez no primeiro e isto pode repetir-se várias vezes, até que as respostas comecem a se estabilizar, como resultado do diálogo de estimativas, ou quando se exaure a possibilidade de requestionamento. Em regra, no nosso caso, isso deverá acontecer no terceiro round. 7.A julgar pela experiência acumulada em planejamento estratégico e em outras áreas científicas, o resultado deverá ser uma matéria consistente (não contra-

ditória), em que as divergências que sobrarem estarão bem fundamentadas. Será possível ilustrá-la com gráficos, fotos, biografias e flashes de etapas do processo de produção da pesquisa. Antes do computador e da Internet, o método Delfos estava fora das possibilidades da reportagem, pelo custo e, principalmente, pela demora em trafegar por via postal ou outro meio os questionários e respostas. Com os e-mails, isso já não tem tanta importância: pode-se ouvir, por exemplo, vencida a barreira do idioma, especialistas de qualquer país estrangeiro; enviar e receber respostas sem qualquer despesa. O processo é relativamente demorado, mas o trabalho que exige (redação dos resumos e reenvio das perguntas) é descontínuo e o resultado pode valer muito a pena. Por que, então, não ousar? PARA SABER MAIS Admito que muita coisa do que

acesso em seu sítio (http://www.paginade/ fcasal) a tutoriais (em espanhol) para a planilha de cálculo Excel e o gestor de banco de dados Access, preparados especialmente para jornalistas; em sua página pessoal (http://teleline.terra.es/ pesonal/f.casal), ele veicula um resumo que preparou do texto de Steve Weinberg em “The reporter’s handbook. An investigator’s guide to documents and techniques”. O texto clássico sobre o método Delfos é LINSTONE, Harold & TUROFF, Murray. “The Delphi method, techniques and applications”. Londres, AddisonWesley Publishing Company, 1975. Há mais de 400 artigos e livros catalogados sobre esse método.

escrevi acima pode parecer ficção científica para os padrões do jornalismo brasileiro e de nossas modestíssimas e equivocadíssimas “escolas de comunicação”. No entanto, quem quiser informar-se mais a respeito pode ler MEYER, Philip. “Periodismo de precisión, nuevas fronteras para la investigación periodística”, tradução e introdução de José Luís Dader. Barcelona, Bosch, 1993, ou, no original, MEYER, Philip. “The new precision Journalism”. Bloomington, Indiana University Press, 1991. O artigo de Meyer “Why journalism needs Ph. Ds.” está em http://www.asne.org/kiosk/editor/ september/meyer.thm, 1999. Textos sobre RAC (em inglês, CAR, Computer Assisted Reporting) estão em http://www.unc.edu/~pmeyer, http:// www.cjr.org/year/99/nerds.asp, http:// powerreporting.com/ e http://facsnet.org/ cgi-bin/New. O jornalista espanhol Fran Casal dá

Nilson Lage, jornalista, 44 anos de profissão, é professor titular de técnicas de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.

QUE O FIM DO PAPEL NÃO SEJA O FIM DA LEITURA que estamos hoje vendo, o impacto que a tecnologia terá na nossa função de editar revistas e, principalmente, o que vai acontecer na relação entre nossos leitores e nossas leitoras com as nossas revistas. Essa relação está começando a se modificar, timidamente ainda, porque já temos leitores nos lendo em papel e abrindo os sítios das nossas revistas na Internet, embora não saibamos com precisão quantos são. Mas nossas primeiras pesquisas indicam que já estão perto de uns 40 a 45%. E é essa instigante questão com que nos defrontamos a partir de agora: na medida em que nossos leitores estão começando a receber mais informação e mais serviço via Internet, como nós faremos a extensão de nosso conteúdo em papel para esse conteúdo eletrônico? Num primeiro momento, todos nós editores do mundo inteiro - erramos ingenuamente: passamos o conteúdo da revista em papel para a tela. Ler revista em papel é ainda - e guardem bem este AINDA, porque é a palavra mais importante que eu aprendi analisando esse panorama de transformações tecnológicas - muito mais fácil, cômodo e simples. Assim, tudo o que os nossos leitores NÃO queriam on line era o conteúdo de algo que eles achavam melhor consumir na forma de papel. A menos que estivessem viajando… O que é que eles queriam então? Ainda estamos descobrindo, mas algumas coisas ficaram logo claras, e muitas delas não tinham - e não têm - nada a ver com nossas revistas: - eles queriam correio eletrônico, o famoso e-mail; - eles queriam conversar; os famosos chats; - eles queriam montar comunidades de interesses comuns, os famosos fóruns; - eles queriam fazer compras, o famoso comércio eletrônico; - eles queriam jogos eletrônicos;

Thomaz Souto Corrêa Falar sobre mundialização e sobre Internet, ao mesmo tempo, é falar só sobre Internet. Nunca, na história das comunicações, um meio foi mundializado tão rapidamente, e tão rapidamente influenciou os rumos da imprensa. E, quando se fala sobre Internet, é preciso falar de convergência de meios, porque é o que estamos assistindo acontecer ao nosso redor, todos os dias. Ao mesmo tempo, falar sobre os rumos, seja do que for, equivale a falar sobre o futuro, e o futuro - como vocês sabem - é ao mesmo tempo fácil e difícil, e pela mesma razão: o futuro ainda não aconteceu... Vou lhes falar da perspectiva de um editor de revistas. Mas muito do que eu vou dizer serve para a imprensa em geral: o

"Nós, editores, nos defrontamos com uma boa notícia e uma má notícia: a boa é que revista AINDA vai durar algum tempo; a má é que revista, como a conhecemos hoje, vai desaparecer sim. E não vai durar muito."

- eles queriam pornografia, de todas as especialidades humanamente imagináveis, apesar de virtual… - e eles queriam notícias de última hora, cotação das bolsas; - e queriam informações sobre o tempo e sobre o trânsito, coisa que mais tem a ver com rádio… Aos poucos fomos aprendendo, e

FUTURO NUCLEAR: REFLETINDO PARA CONSTRUIR A Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN) vai realizar pela primeira vez, em conjunto, três encontros bienais que reúnem técnicos e cientistas do Brasil e do exterior para um amplo debate sobre o uso seguro e pacífico da energia nuclear. Cerca de 800 participantes são esperados para o evento, que será composto por mesasredondas, conferências, sessões técnicas, pôsteres e uma exposição de produtos e serviços. Por serem os últimos deste século, o XII Encontro Nacional de Física de Reatores e Termohidráulica (ENFIR), o V Encontro Nacional de Aplicações Nucleares (ENAN) e o VIII Congresso Nacional de Energia Nuclear (CGEN) serão dedicados a uma reflexão sobre as extraordinárias conquistas da tecnologia nuclear e suas perspectivas para o início do novo milênio. Diante da escassez de oferta de fontes renováveis, a opção pela energia nuclear na geração de eletricidade é um tema urgente em todo o mundo. No Brasil, a conclusão da usina nuclear Angra 2 e os avanços alcançados no ciclo do combustível nuclear tornam imperativo que se amplie o diálogo com a sociedade. A agenda do evento inclui outras aplicações da energia nuclear (em agricultura, geologia, hidrologia, oceanografia, veterinária, etc), com destaque para os benefícios sociais e econômicos gerados por tecnologias de ponta como a irradiação de alimentos, a produção de radiofármacos e a radioesterilização. XII ENFIR - VIII CGEN - V ENAN De 15 a 20 de outubro de 2000, no Othon Palace Hotel - Rio de Janeiro Na tarefa de utilizar a comunicação como instrumento vital de desenvolvimento e na convicção de que somente a soma de esforços das forças democráticas resultará num futuro melhor para os brasileiros, a ABEN - fonte confiável de informação sobre o setor nuclear - tem um significativo ponto de convergência com a ação da ABI.

52

algumas das coisas que eu acabo de citar, nós também já estamos fazendo nos sítios das nossas revistas: fóruns de discussão (algumas convidam personalidades para conversar com os leitores on line); jornalistas especializados já têm colunas só nos sítios, atualizadas mais rapidamente do que as impressas; pesquisa on line; algumas revistas estarão lançando, em

Jornal da ABI


breve, lojinhas eletrônicas; venda on line de assinaturas das revistas. Enfim, aos poucos vamos nos adaptando ao maravilhoso mundo novo, fazendo coisas eletronicamente que, como vocês viram, mexem pouco com as revistas. Nós, editores de revistas, nos defrontamos hoje com uma boa notícia e uma má notícia: a boa é que revista AINDA vai durar algum tempo; a má é que revista, como a conhecemos hoje, vai desaparecer sim. E muita gente arrisca palpite sobre quando será - cinco, dez, vinte anos -, mas não vai durar muito. A grande maioria dos leitores brasileiros de revistas (e de jornais) são de classe A e B. Esses são também os que estão navegando on line, seja em casa, seja no trabalho. Quando a tecnologia permitir, serão também os primeiros a experimentar a leitura on line. Leitura mesmo, com qualidade de tinta preta sobre papel branco. Só que a tecnologia já resolveu esta questão, ou seja, já permite a leitura numa tela de computador com a mesma alta definição de tinta sobre papel. O primeiro gadget eletrônico de leitura a aparecer surpreendeu um monte de gente - inclusive a mim -, porque trazia a leitura eletrônica em formato de livro, com letra preta em cima de fundo branco, exatamente como Gutenberg fez em 1450. Era o e-book, ou livro eletrônico, um objeto tão esperto, que um dos modelos lançados tinha uma encadernação de couro, para enganar os que achavam que era um livro normal… E esse não é tão caro, coisa de 200 dólares nos Estados Unidos. Sabem quanto cabe, dependendo do modelo? De 4 mil a 100 mil páginas de texto; como comparação, os 17 volumes da “Comédia Humana” de Balzac têm 10.500 páginas. Em um dos modelos do livro eletrônico, cabem 2 mil títulos! No final de março, na inauguração do Salão do Livro de Paris, os franceses lançaram o primeiro e-book europeu, a um preço bem mais caro de 600 dólares, e só só? Cabem 15 mil páginas! As vantagens do e-book: alta definição, é portátil, tem o dicionário que a gente quiser lá dentro, comporta centenas de títulos, permite que se façam anotações nas margens e realces das frases em amarelo, como fazemos com qualquer livro em papel; localiza trechos preferidos, ou procurados, com a velocidade de um computador. Com essa novidade, nós, da mídia impressa, começamos a ficar inquietos. Já tínhamos ouvido falar e visto experiências com jornais que teriam tinta eletrônica , que a um sinal, essa tinta se arrumava na forma das letras das matérias que estavam recebendo. Um objeto que parece um jornal, que recebe notícias quando as letras da tinta eletrônica trocam o conteúdo… Aí veio a segunda leva de tecnologia, com os palmtops. Esses pequenos computadores de mão, de bolso, que já falavam com nossos computadores e reproduziam quase todas as suas funções. Um dia casaram o palmtop com o celular, e ele entrou on line. E a Internet ficou ao alcance da palma da nossa mão, móvel, portátil. ○

MEMÓRIA E FUTURO

E aí veio a terceira leva, com mais uma revolução: o celular se conectou com a Internet! A velocidade dessas inovações é tão grande que cada vez fica mais difícil escolher o que comprar, porque um novo modelo pode estar disponível no dia seguinte… Na Telexpo, que aconteceu em São Paulo na última semana de março, já havia modelos de celular que se ligam com a Internet, sem fio! Não faz um ano, eu estava em Paris numa conferência sobre “Internet e Mídia”, quando o presidente da Nokia fez uma declaração que deixou todo mundo aceso: “No mundo, hoje,” disse ele, “a quantidade de pessoas com um celular no bolso é o dobro do número de pessoas online. A revolução da Internet, concluiu será móvel e se dará nos celulares, não nos computadores.” Ele estava anunciando, sem fazê-lo explicitamente, o que nós já estamos vendo chegar ao Brasil: o celular se ligando à Internet, recebendo notícias de última hora, informações sobre bolsa, cotação de dólar, movimento do trânsito, fazendo transações bancárias e compras on line e - é claro mandando e recebendo e-mails. Até aqui o objeto revista em papel se mantém inalterado e - notícia muito importante - o mercado brasileiro de revista está crescendo muito, graças a um segmento de mercado até aqui não atendido: as classes C e D. No fim do ano passado, a Editora Abril lançou uma revista chamada Viva Mais!, com o preço de capa até então inédito de 1 real, e hoje vende por semana mais de 600 mil exemplares! E as pesquisas indicam que esse novo público não era comprador de revista. O mercado de revistas ia muito bem até que surgiu o que se temia já há algum tempo: o que os americanos e os finlandeses chamam de tablets, e que nós estamos chamando de tabuletas, só que eletrônicas. Alguns exemplos são: - o Mediascreen, da Nokia, onde em um só objeto você tem tudo: computador, telefone, televisão. Em breve, este objeto poderá vir a ser, ao mesmo tempo, livro, jornal, revista, cinema, rádio, televisão… tudo. E é portátil. Mas ainda parece um pouco pesadão, não? Estará no mercado dentro de dois anos. - o WebPC, - de uma empresa chamada Transmeta, da qual são sócios o Steve Allen, fundador da Microsoft junto com o Bill Gates, o George Soros e o Deutsche Bank, ou seja, dinheiro não vai faltar - menor, mais leve, mais portátil, mais jeitoso… também é tudo, faz tudo; e pode funcionar 12 horas sem precisar recarregar a bateria... - um aparelho semelhante a um tubo, desenhado por uma empresa de design futurista chamada Ideo, que imaginam esteja disponível em 2010. Trata-se de uma tela que a gente desenrola de dentro do tubo e pode ser tudo: jornal, revista, livro. E ainda tem função de reconhecimento de voz que dispensa o teclado... Estamos vendo aqui as primeiras manifestações concretas de que, sim, o papel vai acabar para jornais, revistas e ○

2005 Vendas de títulos de e-books, emagazines e e-newspapers chegam a US$ 1 bilhão.

"Nós, jornalistas e editores, vamos continuar investigando os seres humanos, apurando, noticiando, editando, analisando, opinando, seja em que mídia for..."

2006 Bancas de e-books proliferam, oferecendo livros e títulos periódicos em tradicionais livrarias, bancas de jornais, aeroportos - até mesmo durante os vôos. 2009 Títulos de e-books começam a vender mais que em papel, em muitas categorias. Os preços dos livros são cada vez menores e as vendas, cada vez maiores. 2010 O e-book pesa 250 gramas, roda 24 horas, e comporta algo em torno de 1 milhão de títulos. 2012 Livros em papel e eletrônicos competem vigorosamente. Os anúncios da velha indústria editorial promovem “Livros de Verdade, feitos de Árvores de Verdade, para Pessoas de Verdade”.

livros - ou pelo menos para uma boa quantidade deles e delas. Acrescente-se o fato de que a humanidade está passando por uma transformação cultural que tornará isto ainda mais inevitável: todo dia morrem leitores de papel e nascem leitores eletrônicos, gente que já vai entrar na vida com o computador em casa, na escola; gente que vai passar muito mais tempo na frente de uma tela do que da página aberta de um livro ou de uma revista. Vamos olhar agora para uma visão de futuro, que eu encontrei em um anúncio da Microsoft, numa revista americana. Como é que Bill Gates enxerga o futuro próximo. Eles fizeram isso em uma linha do tempo que vai até 2020.

2015 Rivais tecnológicos conhecidos se unem para consolidar a conversão da totalidade da famosa Livraria do Congresso americano para e-books. 2018 Os principais jornais publicam suas últimas edições em papel e migram na totalidade para a distribuição eletrônica. 2019 Livros em papel continuam populares como presentes, para colecionadores, para livros de arte e fotografia refinados e para aqueles que preferem a experiência de ler em papel impresso.

2000 É lançado do Microsoft Reader com Clear Type. (Clear Type é um software lançado pela Microsoft que reproduz em tela de computador a mesma definição de tinta preta sobre papel branco; por isso foi batizado de reader - dá para ler sem cansar...)

2020 90% de todos os títulos são agora vendidos eletronicamente, assim como, em papel. O dicionário Webster passa a se chamar “book” (livro) de e-book (livros eletrônicos).

2001 Livros eletrônicos - os e-books ajudam a reduzir o peso das mochilas dos estudantes.

Vejam que esta visão da Microsoft ignora totalmente a revolução do telefone celular. Estima-se que um bilhão de pessoas terá celulares em 5 anos; e, em 15, metade da população da terra estará conectada a um serviço pessoal, capaz de telefonar, escrever e receber textos, dados e imagens. Ignora também o fato de já termos futurólogos profissionais anunciando a presença de telas de computador nos mais diferentes lugares das nossas casas: na porta da geladeira, para controlar o estoque do que tem lá dentro; na porta do microondas, com receitas feitas a partir dos itens que estão na geladeira. Enfim, computadores controlarão a casa nos seus mais diferentes aspectos: economia de luz, segurança, temperatura, controles remotos… a gente vai dar instruções para a casa ainda no escritório, muito antes de chegar em casa.

2002 PCs e e-books oferecem telas quase tão bem definidas quanto o papel: a resolução de 200 dpi - dots per inch, isto é, pontos por polegada - ainda mais bem definida com ClearType. 2003 O e-book tem um peso menor do que 500 gramas, roda 8 horas e custa algo em torno de US$ 99. 2004 PCs em tabuletas chegam ao mercado com qualidade de leitura de um e-book, transferência de dados manuscritos e aplicativos de computador poderosos.

53 ○


Paradoxalmente, nunca se usou tanto papel, dizem os conservadores de plantão; nunca se imprimiu tanto nas impressoras de mesa. Se a Internet é tão importante, por que é que o Bill Gates escreve os livros dele em papel? Porque ele sabe que ainda há muito mais gente lendo livro em papel do que lendo on line… Só que, há umas três semanas, um dos autores dos maiores best-sellers dos Estados Unidos, o famoso Stephen King, lançou pela primeira vez na história um livro SÓ ONLINE: “Riding the Bullet” (algo como “Cavalgando à Bala”). Ou seja: só pode ser lido no e-book, e quem quiser que imprima em casa… Percebem a revolução? Eu imprimo o livro em casa, se quiser; se não, fica no e-book. Sabem quanto custava “downloadar” o livro? US$ 2,50. Sabem quanto custa um livro do King? 20, 30 dólares... O livro eletrônico é mais barato até do que um pocket-book do próprio King, que custa US$ 7.99. Todo dia eu jogo fora cadernos dos jornais que eu recebo, com os assuntos que não me interessam. Jogo fora! Os editores dos jornais sabem que eu jogo fora alguns pedaços - mas eles não sabem quais são. Revista é a mesma coisa. Não é todo mundo que lê tudo numa revista. Mas é preciso comprar a revista inteira para ler só o que nos interessa. Logo logo, os nossos leitores vão

Some-se a isso o fato de que cada leitor vai buscar, ele mesmo, as informações de que precisa. Ele vai ser o autor da sua publicação. Essa nova tecnologia reforça mais do que nunca o fato de que nossa missão é exatamente a mesma, de informar, noticiar, analisar, opinar etc. Só que servindo nosso leitor onde ele estiver, na hora em que ele quiser, e chegando a ele pela mídia que ele tiver disponível, naquele momento. Eu costumo dizer que não me importa onde, nem em que, as pessoas lêem - papel, plástico, tela -, o que me importa é que leiam! Segundo as últimas estatísticas, o Brasil chega ao final deste ano com quase 10 milhões de internautas. Com tanta gente ligada - e mais gente vai se ligar, com o tempo - nós vamos enfrentar mais do que nunca o desafio do tempo: eu costumo dizer aos meus colegas que nossa concorrência é tudo o que o leitor decida fazer ao invés de ler a nossa revista. Só que agora surge esse poderoso concorrente a disputar o tempo, que é a Internet. As horas do dia e os dias da semana não aumentaram; nossas necessidades básicas são as mesmas: para comer, dormir etc, precisamos dos mesmos números de horas; alguma atividade vai sair perdendo e nós não gostaríamos que fosse o número de horas dedicadas à leitura de revistas.

nos pedir para mandar a revista on line e eles só vão imprimir em casa o que quiserem ler. Alguém duvida de que daqui a pouco estaremos com impressoras domésticas que vão reproduzir a qualidade das mais sofisticadas máquinas de imprimir? Eu até achei um nome para esse fenômeno de os leitores fazerem suas revistas em casa: é magazine on demand, ou seja, revista sob encomenda. Mas a questão principal é que, em algum momento, não vai mais fazer sentido nenhum a periodicidade de jornais diários, ou revistas semanais, quinzenais ou mensais. Imagine se no mundo da notícia instantânea - real time - alguém vai esperar algum tempo para saber alguma coisa. Desaparece a periodicidade, desaparece o fechamento, tal qual nós jornalistas fazemos hoje. Fechar é quando estiver pronto - e entra on line na mesma hora. Lembrem-se de que muita coisa já é assim: as informações sobre cotações em bolsa já são acompanhadas de análises on line - eu não preciso esperar o dia seguinte para saber que ação caiu ou subiu, nem que ação comprar ou vender… E aí, nossas marcas, que habituaram nossos leitores a um tipo de periodicidade, de velocidade, vão valer muito pouco, se nós não soubermos adaptá-las a essa velocidade de informação que independe da periodicidade atual.

54

Há, no entanto, um aspecto otimista em toda essa discussão: é que a leitura não vai acabar com a “eletronização” das mídias. A humanidade vai ter que continuar lendo o que de melhor houver na literatura de todos os tempos; as análises e opiniões dos nossos autores prediletos continuarão a nos ajudar na vida; poetas e escritores continuarão surgindo em quantidade suficiente para despertar nossas emoções; o humor escrito e desenhado não vai sumir... E nós, jornalistas e editores, vamos continuar investigando os seres humanos, apurando, noticiando, editando, analisando, opinando, pondo os acontecimentos em contexto, reportando - enfim - os fatos do dia-a-dia e suas implicações em nossas vidas, seja em que mídia for… Thomaz Souto Corrêa, vicepresidente executivo e diretor editorial do Grupo Abril, é presidente da Federação Internacional de Imprensa Periódica. Este texto é a base da palestra “A influência da globalização e da Internet nos rumos da grande imprensa no Brasil e no mundo”, proferida em 6/4/2000, no Centro de Convenções Rebouças, São Paulo, SP , durante o 3º Congresso Brasileiro de Jornalismo Empresarial, Assessoria de Imprensa e Relação Públicas - realizado com o apoio da ABI.

Jornal da ABI


QUANDO ANTIGAMENTE TEM,NO MÁXIMO, 5 ANOS Nelson Hoineff

é que vai nascer a hegemonia da programação sobre a forma o seu empacotamento. E não só isso. O gerenciamento on line da programação e formas embrionárias de interatividade propiciadas por instrumentos como o Web TV também decorrem dessa convergência. Falta muito pouco tempo, por exemplo, para que o espectador possa clicar sobre uma peça do guarda-roupa de uma novela para comprar o vestido que está desfilando à sua frente. A rigor, a tecnologia para isso já existe. Sua aplicação depende apenas da capacidade de armazenamento de dados e da produção do conteúdo adequado. A possibilidade de processamento dos sinais transmitidos digitalmente dá ao espectador o poder de responder aos sinais que recebe (como acontece na Internet) e também de escolher entre múltiplas emissões simultâneas de um mesmo conteúdo. É isso que vai possibilitar a escolha de uma entre as várias câmeras que estão captando a imagem de um jogo de futebol, ou tornar possivel a recepção de um noticiário apenas com o tipo de informação que mais interessa ao observador (de novo a exemplo do que já é praxe na personalização de portais pela Internet). Já que um sinal digital pode ser armazenado instantaneamente num disco rígido e reproduzido a qualquer momento, é mais do que razoável o aparecimento de instrumentos de instant replay, já existentes no mercado, que armazenam a programação a cada 15, 30 ou 60 minutos em real time. É por isso que você pode se afastar da TV (por enquanto não por muito mais de uma hora) e retomar o programa que estava assistindo do ponto em que parou. O sincronismo é recuperado logo depois. Plataformas digitais permitem transmissões multicanais em faixas de frequência abertas, altíssimas taxas de compressão, que resultam em maior circulação de programação (existem hoje cerca de 30 mil redes de televisão pelo mundo), e virtualmente todas as possibilidades de processamento e interatividade a que já estamos acostumados com a Internet, além daquelas a que vamos nos acostumar nos próximos anos. Nesse quadro vai se destacar o monumental aumento da velocidade de envio e, sobretudo, de recepção de sinais, o que vai permitir o tráfego de sons e imagens com qualidade comparável à da televisão. Pode-se dizer, então, que o que aguarda a televisão para o futuro imediato é a distribuição de programação em banda larga com possibilidades interativas semelhantes às da Internet e um amplo menu de escolhas, que vão do shopping virtual à formatação de grades personalizadas de programação. Certo? Errado. Ou por outra: certo na formulação, mas omisso num sem-número de outras informações, igualmente verdadeiras e que em seu conjunto modificam bastante o perfil futuro do meio.

Quem olhar para o futuro da televisão vai ver um computador. A frase não é original, mas devo admitir que já não tem o mesmo impacto de alguns anos atrás. Não sei quem disse isso e é possível até que ninguém tenha dito; no entanto, Gilder, entre dezenas de outros, certamente expressou a idéia várias vezes. A questão essencial é que quem olhar para o futuro do computador também vai ver uma televisão. Isso remete à serena assimilação de um fenômeno que antigamente era conhecido por convergência de tecnologias. Digo “antigamente” e reconheço que estou falando de dois, três, cinco anos atrás. Essa é a escala em que podemos abrigar conceitos de futuro, quando estamos falando de televisão; porque, se excetuarmos a má qualidade dos programas, tudo mesmo vai estar mudado nos próximos cinco anos. A organização em redes, por exemplo. Ela não irá desaparecer em tão pouco tempo, mas a rede já não será a única forma de se empacotar a programação. Com servidores muito potentes e distribuição de sinais em banda larga, o espectador vai poder acessar o produto final sem a intermediação da rede, mas através de algo muito semelhante ao que se conhece hoje por um portal de Internet. Com o auxílio de instrumentos de busca quase iguais ao que utiliza hoje para uma pesquisa, ele vai fazer um download imediato do filme que quer assistir ou do jogo que não viu em tempo real – e a cobrança virá imediatamente em sua conta. A programação vai ganhar então uma hegemonia que nunca teve sobre a rede que a abriga. É bem possível que as crianças que estejam nascendo hoje jamais saibam, quando chegarem à escola, que essa programação foi um dia organizada em redes. Na pior das hipóteses, elas nunca vão acreditar que durante mais de cinquenta anos essa programação era desenhada sequencialmente – o programa das cinco depois do programa das quatro – e que a novela das oito e meia tinha que ser vista exatamente às oito e meia - nem um minuto antes, nem um minuto depois. A programação on demand é apenas a ponta do iceberg de um conjunto enorme de possibilidades geradas com a substituição das plataformas analógicas pelas digitais. Mais importante, porém, é que tudo isso compõe apenas um dos inúmeros vetores que vão indicar o perfil da televisão nos próximos anos. O que muitos não estão percebendo é que vários destes vetores são conflitantes, ou pelo menos apontam para direções contrárias. E é justamente isso que pode tornar fascinante o estudo dos caminhos que o meio vai percorrer. Vamos por partes. Sabemos que televisão e Internet vão cada vez mais falar a mesma língua. Não há a menor dúvida a respeito disso. Dessa linguagem em comum

MEMÓRIA E FUTURO

Por exemplo: as plataformas digitais não possibilitam apenas a multiplicação do número de sinais distribuidos, nem a clonagem pura e simples dos atributos da Internet. Elas tornam possivel também a evolução da qualidade das imagens e dos sons distribuidos. Com isso, interferem dramaticamente na relação do veículo com o espectador e no ritual do consumo, que se opõe de forma radical ao consumo de conteúdo individualizado, nervoso, ativo, de uma tela de computador. Essas plataformas possibilitaram, por exemplo, a decolagem do HDTV, a TV de Alta Definição, desenvolvida no Japão desde o início dos anos 80, que premia a imagem com uma definição de 1920x1080

televisão luta com a dificuldade de estabelecer mecanismos próprios de expressão. Incorpora linguagens do cinema, do teatro, dos eventos que está transmitindo e resigna-se a ser uma veiculadora disso tudo. A televisão tem aberto mão de desenvolver linguagens e formas narrativas próprias, como qualquer meio de expressão o faz, e isso já vem sendo cobrado há algum tempo pelos que a pesquisam com seriedade. Mas estamos vivendo nesse momento o boom da Internet e é natural que o desenvolvimento de um veículo como a televisão, que passa a incorporar suas atribuições, seja visto por essa ótica. Apesar disso, a própria Internet, que não é em sí um meio de expressão, tem se esmerado em buscar formas que lhe sejam próprias. O sucesso tem sido tão grande que é comum se ver hoje páginas impressas de revistas e jornais (para não dizer televisão) sugerindo links, cliques e cursores. A geração Internet tem aí uma referência para facilitar a leitura (ainda que ironicamente, os ícones eletrônicos exibam desenhos de cartas, fichários e outros objetos pré-diluvianos). A televisão é, ela sim, um meio de expressão, e a busca tardia de uma linguagem que lhe seja própria pode se manifestar tanto pela lnguagem de cada uma das partes que a contém, como pela linguagem que decorra da maneira de organizar essas partes (o que, sem dúvida, é muito mais verdadeiro, muito mais nobre). Uma TV que se transforme apenas no intermediário entre o espectador e cada uma dessas partes perde esta segunda possibilidade. Mata a televisão, por assim dizer, como um veículo capaz de desenvolver uma linguagem autônoma. O HDTV está entre as tecnologias que apontam para o resgate dessa possibilidade - e a novidade é que a essa altura ela é tão irremediável quanto o processamento dos sinais. Todas se encontram em vários momentos (transmissões em HDTV só são possíveis graças à largura de banda), mas, em conjunto, mostram com clareza que os caminhos da televisão nestes próximos anos não são monolíticos. Não basta olhar para a TV e ver um computador, nem viceversa. Quem fizer isso vai estar se concentrando num detalhe e perdendo o contexto. A televisão do futuro, para surpresa de muitos, não tende a ser apenas um instrumento de consumo de conteúdo interativo ou uma caixa para o exercício de transações bancárias. Caminha também para se constituir num veículo. Ela vai estar na cozinha, no banheiro, mas também numa sala de estar. Vai se comportar como um computador, mas também como um meio de expressão. Onde começa um e acaba outro, possivelmente só o espectador é que irá determinar.

"O que aguarda a televisão para o futuro imediato é a distribuição de programação em banda larga com possibilidades interativas. As plataformas digitais tornam possível também a evolução da qualidade das imagens e dos sons."

linhas, mais do que o dobro da resolução atual, com uma relação de quadro de 16x9 (contra os 4x3 de hoje) e som digital de altíssima intensidade. Programação em HDTV digital já é regularmente transmitida em vários lugares do mundo; os preços dos equipamentos domésticos, antes completamente proibitivos, estão em patamares razoáveis de consumo. E é bastante improvável que, depois de experimentar transmissões em HD, o espectador pense em voltar para a televisão convencional. O HDTV é tão parte do futuro da televisão quanto a possibilidade de comprar mesas do cenário, por exemplo, mas o problema é que seu ritual de consumo não poderia ser mais distinto daquele que é estimulado pelo computador. Entre as diversas questões que florescem daí, a mais importante é de ordem linguística. Ao longo de quase 60 anos, a

55 ○

Nelson Hoineff é jornalista, diretor de Televisão, autor de “TV em Expansão” (ed.Record) e “A Nova Televisão” (ed.Relume Dumará).


OUTRA TV ESTÁ NASCENDO - A DE HOJE MORREU comum para a garotada “paleocibernética” de hoje. Novos modelos econômico-financeiros de gestão de um negócio com margens cada vez menores terão que ser encontrados numa época de crescimento

Luiz Gleiser A televisão acabou. Melhor dizendo - a TV como nós a conhecemos acabou. A revolução digital irá levá-la por caminhos ainda apenas esboçados. A explosão no número de canais, não mais na (ainda) excludente TV por assinatura, mas na própria TV aberta convencional é inevitável, pois o modelo de TV de alta definição está sendo combatido, antes mesmo de sua adoção maciça, pela tese dos hoje quatro, amanhã, por força da compressão digital dos sinais, sabe-se lá quantos canais por emissora convencional. A expansão da (também ainda excludente) Internet e a conseqüente criação e distribuição de “emissoras” de TV virtuais são inevitáveis. O crescimento da interatividade é inevitável, e lugar-

dos custos artísticos e esportivos em paralelo à diminuição dos custos de produção, ao menos quanto ao hardware. Por outro lado, a TV nunca esteve mais forte, mais presente. Única mídia capaz de agregar porções substanciais do

público de uma nação (qualquer que seja ela) numa época de fragmentação de meios de distribuição, ela é fundamental para a própria implantação e manutenção das novas mídias. Mais que isso, os arquivos de imagens e narrativas passam a ter novo valor diante dessa própria multiplicação da distribuição. E, num universo onde quem tem marca tem tudo, pois o emaranhado é e será cada vez maior, a TV pula na paisagem como farol de validação. Portanto, a TV acabou - viva a televisão!

"A TV nunca esteve mais forte, mais presente. Única mídia capaz de agregar porções substanciais do público de uma nação numa época de fragmentação de meios de distribuição, ela é fundamental para a própria implantação e manutenção das novas mídias."

Luiz Gleiser, jornalista com mestrado em comunicação, é diretorexecutivo da Rede Globo e já participou da direção de outras emissoras de televisão.

RÁDIO PODE RENASCER COM O SISTEMA DIGITAL Amaury Santos

três anos, talvez), veremos instalado e sendo comercializado nos Estados Unidos o rádio digital pelo sistema USA DR (United States of America Digital Radio), que já está sendo testado com aparente sucesso. Ressurge, então, com toda a sua força - e agora com pureza de som compatível com sua grandeza - o rádio AM, que nestes últimos anos, no Brasil, só fez perder espaço para o FM. Ninguém consegue mais ouvir um conjunto de “chiados” e interferências que, cada vez mais, aumentam e se fazem notar, conseqüência das enormes barreiras de concreto que se avolumam nas grandes cidades e dos equipamentos eletrônicos, em especial os computadores. Com o rádio digital, bastam 25% da potência hoje utilizada para que uma emissora, com uma qualidade de som irretocável, cubra o mesmo espaço territorial; o que significa, de imediato, grande economia de energia elétrica e, em segunda

No ano de 1999, nos Estados Unidos, o rádio teve um crescimento de cerca de 8% no bolo publicitário, elevando sua participação a mais de 15% das verbas destinadas aos meios de comunicação. No Brasil, ao contrário, não consegue se reerguer e sair dos minguados 4% a que foi reduzido nesta última década, chegando a ser menos programado que o outdoor e as recentes mídias alternativas em seu conjunto. Inicialmente, isto pode parecer um discurso pessimista, negativista, sombrio. Mas não. O rádio está prestes a conhecer novos e melhores momentos dentro de muito pouco tempo; nesta década, com certeza. Tudo passa pela grande virada tecnológica que há muito se comenta, mas que nunca esteve tão perto de acontecer. Na recente feira de tecnologia e radiodifusão de Las Vegas fica claro que, mais rápido que se imagina (uns dois ou

instância, que esta economia possa resultar em uma maior capacidade de investimento das empresas em suas produções. Aliás, custos: eis o principal motivo pelo qual as empresas de radiodifusão se refugiaram nos canais de FM, emissoras geralmente musicais (o CD, fornecido gratuitamente pelas gravadoras, não cobra salário), com potências geralmente inferiores às das AM, sem grande produção, com um efetivo bem menor e, por tudo isso, muito mais baratas. O ressurgimento do rádio AM, com toda a sua força e penetração, com sua apresentação revitalizada e um som de primeira, pode fazer com que o rádio aumente seu universo de audiência e, por conseguinte, sua participação nas verbas publicitárias. Aí sim, respirando o ar puro e oxigenado do lucro, as empresas possam reinvestir em mão-deobra e tecnologia, preservando sempre o bom nível da programação que oferecem aos ouvintes.

"Com o rádio digital, bastam 25% da potência hoje utilizada para que uma emissora, com uma qualidade de som irretocável, cubra o mesmo espaço."

Amaury Santos é jornalista, trabalha há 25 anos em rádio e, atualmente, é coordenador artístico do sistema O Dia de rádio.

AINDA HÁ ESPAÇO PARA OS GRUPOS REGIONAIS que as regiões brasileiras, nestes últimos anos, se desenvolveram economicamente, evoluíram no perfil de compras, investiram na mídia e atraíram diversos setores da produção com grandes oportunidades de negócio. Na revista Meio e Mensagem nº 830, detectou-se que o investimento comercial dos anunciantes nas regiões foi vital para a melhoria da produção dos veículos de comunicação regionais. Hoje, em estados como o Rio Grande do Sul, Bahia e Minas Gerais, os investimentos de propaganda, principalmente, locais e regionais superam as verbas governamentais, que até bem pouco tempo representavam uma boa parte da receita.

Eula Dantas Taveira O processo de globalização fez com que muitas barreiras fossem quebradas, como as econômicas e tecnológicas. Além disso, proporcionou um grande impacto aos meios de comunicação, pois a facilidade de transmissão instantânea dos acontecimentos mundiais resultou na busca e preocupação do homem com sua comunidade. Essa volta do olhar para o local favoreceu a revalorização dos grupos regionais de mídia do sul ao norte do país, principalmente. No “Anuário de Mídia 98/99 - Norte/ Nordeste/Centro-Oeste” foi constatado

56

pessoas das mais diversas regiões, como o “Globo Comunitário”. Assim, os grandes empresários da mídia descobriram que o grande filão é o grupo regional. Os que já tinham suas redes criadas e o público definido investiram, também, em TV por assinatura, como fez a Rede Brasil Sul (RBS) no dia 15 de maio de 1995 com o lançamento da TVCOM, em Porto Alegre, uma das primeiras experiências no Brasil de uma TV comunitária paga. O projeto da TVCOM foi baseado nas experiências de TVs comunitárias de sucesso como a City TV, no Canadá, que foi criada por Moses Znamier com objetivo de cobrir exclusivamente o noticiário local.

Mas, como cita a Meio e Mensagem nº 804, na Bahia, em 1997, por exemplo, as verbas da prefeitura e do governo representaram apenas 2,4%. O despertar para a programação local e regional também passou a ser preocupação dos grupos nacionais de comunicação. A Globo, por exemplo, em 1998, investiu nas afiliadas do interior de São Paulo e Minas Gerais, aumentando o espaço para a programação local. Houve investimentos na infra-estrutura dos departamentos de jornalismo e comercial para que as emissoras ficassem mais locais. Além disso, mexeu em sua programação criando programas que atingissem as

Jornal da ABI


A RBS, desde 1997, é considerada a maior rede regional do Brasil. Na época, seu faturamento era de US$130 milhões. Os espaços locais disponibilizados pela Rede Globo são, em média, 15% da programação em todas as afiliadas, mas a tendência é aumentar. Por isso, a RBS tem como alvo a comunidade. Seu objetivo tem sido encontrar soluções para os mais diversos problemas locais, pois esse contato direto com cada habitante dos lugares onde atua garantiu a confiança do público, audiência e investimentos dos empresários locais. No norte do país existem três grupos regionais de mídia: Rede Amazônica de Rádio e Televisão, Organização Rômulo Maiorana e Organização Jaime Câmara. Destes, destaca-se a Rede Amazônica, que surgiu em 1968 e ganhou força na Região Norte. Dos sete estados da região atinge cinco. Tem cinco geradoras de televisão em Manaus(AM), Porto Velho(RO), Rio Branco(AC), Boa Vista(RR) e Macapá (AP), filiadas à Globo, 10 minigeradoras e 115 retransmissoras. De acordo com os dados do Atlas Rede Globo publicado no “Anuário de Mídia 98/99 - Norte/Nordeste/ Centro-Oeste”, a Rede atua numa área de 2.338.052 Km², o equivalente a 27,35% do território nacional. Além das emissoras de televisão, tem quatro rádios: Amazonas-FM (Manaus), Acre-FM (Rio Branco), Amapá-FM (Macapá) e Princesa do Solimões-AM (Manacapuru). Seus altos investimentos em tecnologia e sua meta de integrar a

a energia solar para, também, facilitar a recepção via satélite da televisão, pois em muitas cidades do norte do país a rede elétrica convencional é precária. Na área de entretenimento, o grupo regional criou o Stúdio 5, um local com área coberta para seis mil pessoas e área externa para 20 mil pessoas, sendo considerado um dos maiores empreendimentos do Norte e Nordeste. E, aproveitando o desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação, criou a empresa SCAM (Serviços de Comunicação da Amazônia Ltda) em outubro de 1995, com sistema BBS e de acesso à Internet, com serviços de rádio-chamada (Amigo) e de rádio (Radiofone). A Rede Amazônica tem também as seguintes empresas coligadas: Amazonas Publicidade Distribuidora Ltda, distribuindo as publicações das Editoras Abril e Azul em Manaus e Porto Velho e Alva da Amazônia Indústria Química Ltda Modalva, em Manaus, que fabrica desinfetantes, detergentes e água sanitária. Tem também a Fundação Rede Amazônica, que oferece cursos de qualificação profissional aos funcionários e ao público em geral e promove seminários e encontros de comunicação. De acordo com o diretor Joaquim Margarido, a Rede Amazônica não foi programada, mas como a visão era integrar a Amazônia ao resto do país, o grupo foi investindo. A preocupação, conforme o diretor de jornalismo da Rede, Milton Cordeiro, sempre foi levar a informação,

"A globalização valorizou a comunidade. O despertar para a programação local e regional também passou a ser preocupação dos grupos nacionais de comunicação."

Amazônia incorporaram às suas atividades, em 1986, um transponder no BrasilSat2, denominado AmazonSat. Assim, passou a transmitir programações, via satélite, sobre o Norte, para a maior parte do país e para vários países que captam seu sinal, por ser aberto. A Rede Amazônica tem, também, uma sucursal em Brasília com uma equipe de profissionais que faz a cobertura do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e os Ministérios da República e acompanha o trabalho dos parlamentares da região. Além disso, criou a Amazonas Energia Solar Ltda para montar sistemas movidos

independente de qualquer dificuldade de acesso, a outras cidades amazônicas, pois como o local é todo recortado por rios, os amazônidas têm pouco acesso às novas tecnologias e ao conhecimento do que está acontecendo no restante do país. A principal intenção do grupo, de acordo com o diretor presidente, Phelippe Daou, é ficar na Amazônia, pois seu grande capital é a credibilidade conquistada. E, como têm raízes no lugar, o compromisso é contribuir com o desenvolvimento da região. Essa visão, além de acompanhar as transformações do mercado, possibilita que a região, com o apoio de outros empresários de mídia, também seja valorizada pelos seus habitantes e pelos demais empresários, inclusive estrangeiros, que deverão se adequar às necessidades culturais de seu povo. Assim, de acordo com pesquisas e debates sobre a mídia nestes últimos anos, os grupos regionais passam a ser peças importantes no mercado e no desenvolvimento dos meios de comunicação em cada região. Do sul ao norte do país a realidade midiática é regional. Hoje, quanto mais se investir em cada comunidade, valorizando sua cultura local, muito mais positiva será a resposta para os empresários e para o público local. Eula Dantas Taveira é jornalista, professora universitária e Mestre em Comunicação Social, Estudos de Mídia, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

PREVISÃO DO FUTURO DA INTERNET, VIA INTERNET Pedimos um depoimento do diretor geral do Universo On Line Brasil, Caio Túlio Costa. Por estar extremamente ocupado, Caio Túlio sugeriu um depoimento por telefone. Empregamos, então, uma solução de entrevista que certamente soaria como futurismo para os repórteres que fizeram história nos 10 veículos que ficaram na nossa memória. Segue a entrevista com Caio Túlio sobre o futuro da Internet, feita pela Internet, no chat do sítio da Associação Brasileira de Imprensa (www.abi.org.br). As diferenças de horário se justificam por paralisações involuntárias durante o processo. (17:34:43) Caio Túlio Costa: entra na sala... (17:34:56) Rafael Porto: entra na sala... (17:35:34) Caio Túlio Costa: Rafael, então... pergunte. (17:36:18) Rafael Porto: Como o senhor imagina que será o conteúdo dos sítios de Internet daqui para frente, comercial ou informativo? (17:37:52) Caio Túlio Costa: Os conteúdos serão sempre de informação, de arquivo, de entretenimento e de interação. Para todos será possível a criação de uma interface comercial. Por exemplo: numa resenha de livros pode-se incluir um link para uma loja virtual que venda aquele livro (ou várias lojas). (17:39:39) Rafael Porto: Há inúmeros ○

MEMÓRIA E FUTURO

sítios de informação que buscam profissionais da imprensa para produzir seu conteúdo, muitas vezes pagando melhor que os jornais O senhor acha que, a longo prazo, estes veículos conseguirão se sustentar? (17:44:48) Caio Túlio Costa: Isto depende do modelo de negócio de cada um destes empreendimentos. Como o mercado ainda vive uma certa euforia (que está acabando com a queda das bolsas iniciada em abril), é possível que venhamos a assistir ainda a algumas ofertas mirabolantes de salários. E isto pode até ajudar a melhorar o salários nas redações o que é muito bom. Mas o tempo vai depurar o mercado e só sobreviverão os sites que tiverem uma forte estrutura de conteúdo e uma forte estrutura comercial. Sem conteúdo bom não existe audiência. Sem audiência não é possível vender banner de publicidade nem propiciar comércio eletrônico. É simples assim. (17:52:03) Rafael Porto: O senhor acredita que uma nova linguagem jornalística surgirá para a Internet? (17:53:57) Caio Túlio Costa: Acho que sim, MAIS uma linguagem jornalística surgirá (mais sucinta, mais direta), mas sem que as outras morram. A Internet é tão grande que cabem ali todas as linguagens - escritas ou audiovisuais. (17:54:52) Rafael Porto: O senhor acredita que o jornalismo impresso vá perder espaço para o virtual? ○

coisas imediatas. A rede ainda está por ser definida. A Internet ainda vai mudar muito - principalmente os modelos de negócio. (18:04:30) Rafael Porto: O senhor acredita, então, que os jornais cobrarão dos não assinantes pelos serviços de Internet? Ou só os anunciantes sustentarão os sítios? (18:08:52) Caio Túlio Costa: Sites com grande audiência, sites de massa, podem absolutamente sobreviver de publicidade e comércio eletrônico. Sites segmentados, sites de nichos, sites de especialistas, podem sobreviver de patrocínios ou da venda de conteúdos considerados premium. O fato é que a febre inicial da Internet não permite afirmações peremptórias. Hoje a televisão convive muito bem com o modelo aberto (broadcast) e com o modelo pago (payTV). Por que não a Internet? (18:09:14) Rafael Porto: O senhor falou em modelos de negócios, em que direção eles devem caminhar? (18:09:43) Caio Túlio Costa: Na direção do lucro. (18:10:17) Rafael Porto: E qual é a direção do lucro? (18:10:35) Caio Túlio Costa: Esta receita eu não posso dar... (18:12:35) Rafael Porto: Não é uma questão de dar a receita. Mas o senhor acha, por exemplo, que o mercado de livros virtuais, como o de João Ubaldo, que custa quatro reais, será um mercado lucrativo?

"Só sobreviverão os sites que tiverem uma forte estrutura de conteúdo e uma forte estrutura comercial."

(17:56:46) Caio Túlio Costa: Não sei responder isto. Acho que não. Se eu escrever um artigo num site e você imprimir este artigo na sua impressora, de qual tipo de jornalismo estamos falando? É virtual/ impresso? Falando sério, não sei mesmo. (17:58:32) Rafael Porto: Mas os jornais impressos perderão leitores para a Internet? Como fica a questão das assinaturas? Um jornal impresso não vai perder público para sua versão on line, que é gratuita? (18:02:55) Caio Túlio Costa: Não é bem assim... Depende do modelo. Para ler a Folha, por exemplo, é preciso ser assinante do UOL. Ninguém lê The Wall Street Journal na Web se não for assinante. Ninguém pode dizer hoje, em sã consciência, qual será o modelo. As pessoas ficam muito impressionadas com

57 ○


(18:15:33) Caio Túlio Costa: Sinceramente: não dá para saber ainda. Isto vai depender, óbvio, do tamanho do mercado comprador. Hoje o Brasil tem apenas 4% de internautas. Nosso comércio eletrônico está apenas começando. Mesmo nos EUA, que têm um mercado gigante, os números ainda são pequenos apesar de as projeções serem animadoras. Estamos todos “animados”, mas não sei responder à altura a sua pergunta. (18:17:17) Rafael Porto: Os preços na Internet são mais baixos (exemplo do livro).

Os custos para a produção também? São os custos de produção mais baixos que mantêm o preço para o consumidor baixo ou os preços baixos são só para atrair mais consumidores - prejuízo agora, lucro depois? (18:19:43) Caio Túlio Costa: Isto também é uma falsa questão. Na Internet não temos custo de papel nem de tinta. Os custos de máquina e conexão são baixos quando se fala de sites pequenos e com pouca audiência. Mas quando se fala de sites de massa, de grande audiência, os custos são outros. São necessários servi-

dores parrudos, muita memória, muita banda. (18:21:38) Rafael Porto: Todos estão “animados” com a Internet e um sem número de sítios surge a cada dia. Há consumidores para tantas iniciativas? Os pequenos sítios vão sobreviver ou os megaportais monopolizarão o mercado? (18:42:09) Caio Túlio Costa : Acho que cada vez mais o espaço para o romantismo está se fechando. Mas há um espaço enorme para os talentos. (18:43:41) Rafael Porto: E sobre o

monopólio do mercado pelos grandes portais, haverá espaço para os pequenos? (18:45:07) Caio Túlio Costa: Sempre há e sempre haverá. O mercado é muito grande. (18:45:27) Caio Túlio Costa: Podemos finalizar? (18:47:21) Rafael Porto: Claro, mas antes fale da Internet como ferramenta para a imprensa. (18:51:47) Caio Túlio Costa: A Internet é uma ferramenta fundamental para a imprensa.

FOTÓGRAFOS VERSUS "TRATADORES DE IMAGENS" Flávio Rodrigues

A globalização trouxe em seu bojo, apesar dos pesares, uma particularidade no mínimo interessante, mas também preocupante. Toda a mídia impressa começa a migrar para o virtual e a Internet absorve essa mudança de braços abertos. A impressão que se tem é de que, dentro de bem pouco tempo, todos os jornais e revistas do mundo terão também uma saída virtual, via Web. Talvez livros também entrem pelo mesmo caminho, mas ainda é cedo para essa previsão. Observando a informatização e a conseqüente digitalização, no que diz respeito a fotografia, não existe mais dúvida de que a mudança existiu e não adianta lutar contra ela.

norte, a fotografia freqüentar museus e galerias de arte, ombreando com outros tipos de manifestação artística e granjeando a preferência das pessoas. No que concerne à importância da fotografia na mídia impressa, a questão é diferente e mais complicada. A fotografia jornalística obedece, atualmente, a outros critérios. Prevalece um tipo de informação onde o produto jornal está submetido à visão de seus leitores e à própria globalização. Ou seja, a fotografia jornalística perde sua importância e, com o advento das vídeo câmeras e tecnologias de ponta, projeta os grandes talentos do fotojornalismo brasileiro em outras direções. Daí a se configurar o fato como o fim do fotojornalismo ou o fim da fotografia é ingenuidade.

Qual o futuro da fotografia? O negativo vai acabar? Quem ganha na briga do grão contra o pixel? E o fotojornalismo, como se diz por ai, está realmente com os dias contados? Muitas perguntas e, ainda, poucas conclusões objetivas. No processo em que a fotografia se encontra, principalmente na fotografia jornalística, o grão do filme vai perdendo a guerra ao ver a fotografia digital se instalando. Em um primeiro momento, é de se cogitar que a fotografia tradicional, com filme, revelação e ampliação, vá se alojar em outro nicho, até ganhando status e se convertendo em peça de arte. Já é comum, no hemisfério

O advento da informatização trouxe inegáveis vantagens na produção da fotografia nos jornais atuais. Além de acelerar o processo de maneira mais eficiente, a guarda dessas informações se tornou mais eficaz. Entretanto, o processo de digitalização da fotografia gera um produto final, que a despeito de ficar mais à disposição das redações, traz em seu bojo, a anulação do processo de edição fotográfica. De modo geral, os jornais atuais estão “painelizados”, isto é, feitos de acordo com o perfil de seus leitores e cada vez mais à revelia da editoria de fotografia. Os fotógrafos aceitaram plenamente o processo, mas a qualidade da edição fotográfica caiu vertiginosamente. E por quê?

ANÚNCIO O DIA

58

Jornal da ABI


em processo orquestrado pelo computador em todas as suas fases, após a revelação do filme. Se considerarmos as câmeras digitais, suprimem-se também as processadoras de filmes. Do ponto de vista da qualidade do produto fotografia, perde-se em favor de bites e megabites e ganha-se na velocidade da informação, com conseqüente economia de tempo e de custos. Quanto mais cedo os jornais fecham, mais exemplares são impressos e maior é o lucro de seus donos. Nessa equação, o antigo processo de edição da fotografia perdeu sua posição, antes de relevada importância, e agora se reduz a tarefas básicas no fechamento do jornal. Hoje em dia, com os programas de apresentação de fotos em rede, os thumbnails, o acesso à foto desejada ficou mais fácil, provocando um engessamento da fotografia no que diz respeito ao conceito. Ora, atualmente os filmes são editados de acordo com a redação, na visualização quase instantânea das fotos produzidas naquele dia. A escolha das fotos cai cada vez mais na indicação dos repórteres de texto que fizeram uma determinada matéria. Antigamente, o editor de fotografia mandava para a redação o que entendia ser a melhor foto para uma matéria. Hoje, quando ele “edita” o filme na verdade um mister prosaico de escolher uma foto em foco e razoavelmente enquadrada - está cumprindo um caminho que se originou nos aquários da redação, uma instância reconhecida como superior. Com a visualização rápida nesses softwares, a redação “percebe” que a

emudecer a fonte de origem da fotografia. Há alguns anos, esteve visitando jornais brasileiros o editor de fotografia de um jornal de Providence, Estados Unidos. Quando perguntado sobre como se desenrolava o processo de publicação de fotos, ele não teve dúvidas em afirmar que a editoria de fotografia decidia qual foto publicar, em que tamanho e em que página, claro, preservados critérios mínimos de ligação com os assuntos existentes. Referia-se à autoridade do editor de fotografia como a de um médico no momento de uma cirurgia, quando decide isoladamente que caminho tomar. Todos respeitam o cirurgião; poucos, o editor de fotografia. Ora, a digitalização não pode e não deve se sobrepor de forma tão arraigada à autoridade da editoria de fotografia. A foto conceitual, que era produzida antigamente em todos os jornais brasileiros, começa a perder seu espaço para a foto informativa, sempre um apêndice do texto, tendo como base a informação de quem escreve a matéria. Crise de identidade? Crise de autoridade? Talvez ambas, mas certamente com um elemento que vem se somar aos primeiros. A digitalização lineariza a fotografia jornalística, pasteurizando-a, de tal forma que os quadros nos jornais se tornam homogêneos e sem grandes estrelas. E isso é decorrente também do advento da digitalização, uma vez que com o auxílio dos softwares de tratamento de imagens, qualquer fotografia é recuperável, qualquer imagem é aproveitável. Um clichê mal exposto pode se tornar uma grande

editoria de fotografia não lhe enviou as fotos segundo critérios do repórter e passa, em seguida, a cobrar que sejam “editadas” fotos mais adequadas, mais “no espírito da matéria”. A fotografia se tornou excluída do processo de produção de matérias e o editor, um mero escolhedor de fotos, sem a devida autoridade para plantar a foto que bem entende, da mesma forma que um editor de área fará na capa de seu caderno. Ali ele publica o que quer, a pauta ele é quem escolhe e isso é imutável. Quando,

Editor de foto hoje é escolher o que está "em foco" a partir da instância do "aquário".

porém, o editor de fotografia quer a publicação de uma determinada foto, via de regra, é ele quem tem menos autoridade nesse diálogo com diagramadores e editores, que freqüentemente têm a palavra final. A falta de discussão que se origina na digitalização de imagens, cujo processo é muito rápido, traz esse inconveniente, ao

foto, desde que manipulado convenientemente no software de tratamento. Ou seja, o processo digital aproxima talentosos e medíocres, globalizando o processo produtivo de tal sorte que os talentos se vêem abafados como conseqüência das benesses da digitalização. Considerando o processo digital como um agente na nova forma de ilustração de imagens, cria-se hoje uma nova fotografia, a “digimagem”, que significa fotografia manipulada através de poderosos softwares. Hoje em dia, essa nova fotografia, a digimagem, ainda não tem estatuto próprio, e, como se propaga com velocidade espantosa, se constitui num fenômeno que afasta ainda mais a tradicional fotografia e seus autores intelectuais do processo de produção. Saem de cena os fotógrafos e entram os tratadores de imagens; eles trocam fundos, aplicam filtros, criam novas “imagens”. A partir desse momento é fundamental o cuidado com a fotografia originalmente feita, no que diz respeito à sua manipulação. Há que se respeitar seus autores, quando do manuseio de sua obra e, principalmente, quando se pretende alterar o sentido inicial. A foto jornalística não deve ser manipulada aleatoriamente. Quando entrar na composição de uma ilustração, é necessário que se informe ao leitor que se trata de uma digimagem. Flávio Rodrigues é editor-assistente de fotografia do Jornal do Brasil e edita o sítio Photosyntesis (www.photosynt.net), na Internet.

INTERNET, O MELHOR ASSESSOR DAS ASSESSORIAS Patricia A. Canary

nossas matérias sobre alta tecnologia e atendimento de saúde. Aqui no Brasil, nosso noticiário financeiro aparece no website da Abamec, a Associação Brasileira dos Analistas de Mercado de Capitais. A Internet mudou não só a vida de todos nós da PR Newswire, mas também a vida de jornalistas, profissionais especializados em relações públicas ou relações com investidores. Quantos jornalistas estão lendo esse artigo? Quantos ainda recebem press releases por fax? Quantos prefeririam recebê-los por e-mail, ou gostariam de selecionar somente os releases que mais lhes interessassem, ao invés de serem bombardeados com páginas e páginas de fax por dia? A Internet acelerou a disseminação de notícias e colocou à disposição volumes de informações muito superiores aos que as agências de relações públicas e as empresas enviavam antes por fax ou wire (cabo). O que começou como um benefício, transformou-se logo em um dilúvio de informações por e-mail, em grande parte desnecessárias ou inúteis. Os jornalistas de hoje necessitam de: a) sítios dedicados à transmissão de notícias b) ferramentas de busca competentes, e c) mecanismos de preparação de perfis, que permitam selecionar somente

Tenho muitos anos de trabalho e de vida, mas lembro-me que, não faz muito tempo, ainda discutíamos longa e seriamente na PR Newswire - empresa líder mundial de distribuição de informações e releases, há 47 anos no mercado e com mais de 33 mil clientes no mundo, em diversos setores de negócios: automotivo, farmacêutico, entretenimento, financeiro, alimentício, aéreo, energia e governo sobre o que fazer com essa coisa chamada Internet. A Internet estava aqui para ficar? Será que deveríamos ter um website? Será que nossos executivos de contas entenderiam os produtos e serviços baseados na Web a ponto de poder vendêlos aos clientes? Hoje, a PR Newswire tem um website para os consumidores, três websites exclusivos para jornalistas, um website para a PR Newswire-Europa, outro para a PR Newswire-Ásia e ainda outro, em preparação, para a PR Newswire-Brasil. Os releases de nossos clientes entram em mais de 700 bancos de dados e serviços on line dos Estados Unidos e estamos criando, rapidamente, novos relacionamentos na Europa, Ásia e América Latina. Grandes jornais dos Estados Unidos também colocam em seus próprios websites o conteúdo oferecido pela PR Newswire, entre eles o New York Times, que veicula ○

MEMÓRIA E FUTURO

as notícias que eles desejarem receber. Alguns exemplos poderão ser esclarecedores. Nos 3 websites que a PR Newswire mantém exclusivamente para a mídia: - Mais de 17.000 jornalistas de países do mundo inteiro estão registrados no Press Room, onde podem fazer buscas e criar perfis que lhes permitem receber unicamente a informação que lhes interessa; - Mais de 13.000 estão registrados no Newsdesk, onde podem criar perfis personalizados para receber noticiário sobre alta tecnologia, saúde/farmácia, área automobilística ou entretenimento; - A Profnet processa quase 150 consultas diárias de jornalistas que buscam fontes para os artigos que estão redigindo. O banco de dados da Profnet lista mais de 3.500 especialistas com os quais os jornalistas podem entrar em contato para obter mais informações. Esses bancos de dados podem processar mais de 8.000 buscas mensais iniciadas por jornalistas.

bancos de dados on line podem, agora, ampliar consideravelmente o potencial de público para os releases de uma companhia qualquer. A Internet fortaleceu as campanhas de relações públicas e criou uma nova ferramenta de promoção das próprias empresas, por meio de coletivas e eventos “ao vivo” na Web. Aqui mesmo no Brasil, quando a Elite 3k decidiu fazer um lançamento mundial da primeira modelo virtual, webbie tookay, enviou um release global por intermédio da PR Newswire à Europa, Ásia e Américas do Norte e do Sul. Nós distribuímos o release com fotos, arquivando-o, depois, em uma página especial no website da PRN, que oferecia um link direto ao website da Elite. Mas também colocamos no website um videoclipe que contribuiu enormemente para o impacto do release, já que os jornalistas podiam acessar o sítio e ver a webbie em ação. Além de colocar vídeos e fotos à disposição, a Internet também permite a transmissão de informações por outras ferramentas eletrônicas, tais como o CDRom. A Internet pode servir também de arquivo on line para as informações das empresas, dando, tanto a jornalistas como a outros interessados, acesso imediato a releases anteriores. Mais ainda, a Internet contribui com

Como fica o profissional de relações públicas? A Internet mudou dramaticamente a forma através da qual os profissionais de relações públicas fornecem informações adicionais aos jornalistas e ao resto do público, forma antes limitada à transmissão tradicional por fax e telex. Os serviços e

59 ○


uma nova ferramenta para aperfeiçoar o processo de comunicações em situações de crises ou emergências. Anteriormente, em situações de crise, o pessoal passava horas e horas enviando atualizações por fax aos jornalistas. Agora, as companhias colocam em seus próprios websites e no website da PR Newswire um ícone indicador de crise, recomendando aos jornalistas, os quais acessam outros sítios, que obtenham atualizações sobre a crise. Serviços tais como Profnet podem informar ao departamento de relações públicas de uma companhia ou a uma assessoria de imprensa que um determinado jornalista está buscando uma fonte especializada de informação. Isso permite que o profissional de relações públicas ou assessor de imprensa ligue para o jornalista e ofereça o auxílio de alguém de sua companhia que seja especializado no assunto sobre o qual o jornalista escreve. Usando a Internet, as companhias têm agora condições de saber o que os consumidores e outros interessados estão comentando sobre elas e sobre seus produtos e serviços. Existem serviços, tais como o Ewatch da PR Newswire, que monitoram as salas de bate-papo, os bbs e os newsgroups, locais onde opiniões são oferecidas livremente e transmitidas a milhões e milhões de pessoas em poucos minutos. O Ewatch fornece relatórios diários às companhias sobre essas atividades. Isso ajuda os profissionais de comunicações das grandes empresas a proteger o valor da marca e da percepção pública e permite que os profissionais de relações com investidores evitem possíveis manipulações das ações das empresas. Vejamos alguns exemplos: - Um grande empresa americana – Mrs. Fields Cookies – sofreu uma enorme baixa de vendas durante um fim de semana, depois que uma reportagem especial de um programa de TV acabou gerando o boato de que a empresa Mrs. Fields tinha feito uma doação de seus biscoitos a uma festa em homenagem aos jurados do famoso julgamento de O.J.

- Um funcionário de uma grande empresa foi preso depois que colocou na Internet uma reportagem falsa sobre a empresa, fazendo parecer que se tratava de história veiculada pela agência Bloomberg News. Como resultado, as ações da companhia tiveram uma enorme queda em sua cotação e a Bloomberg iniciou um processo judicial contra 4 nomes da Internet.

"Os serviços e bancos de dados on line podem, agora, ampliar consideravelmente o potencial de público para os releases de uma companhia qualquer."

que cada jornalista dê permissão para que divulguemos o fato de sua consulta. Pelo uso de uma ferramenta de comunicações denominada PRN Direct, os clientes podem agora receber relatórios que mostram quem examinou seus releases e a que organização de notícias pertence. Acreditamos que essa nova ferramenta ajudará também os jornalistas a reduzirem o número de telefonemas que recebem de profissionais de relações públicas e de investidores, perguntando: “Recebeu meu press release?” Basta examinar meus últimos 5 anos de trabalho para ver que minha vida mudou dramaticamente em virtude da Internet e de todas as oportunidades que ela nos oferece. É difícil adivinhar o que o horizonte mais longínquo nos reserva, porém sei que as possibilidades parecem ser simplesmente infindáveis. Daí eu estar sempre me perguntando: “Será que consigo acompanhar toda essa tecnologia?” Mas, sabem de uma coisa? Não tenho dúvidas de que isso seja necessário, não só profissionalmente, mas, também, pessoalmente. Sobretudo quando se tem um neta de 7 anos que olha para mim e diz: “Vovó, deixa eu usar seu computador para entrar na Disney e baixar alguns games?” É, parece que as bonecas evoluíram muito desde meus tempos de menina. Agora, elas são virtuais e interagem conosco por meio de uma tela de computador. Mas acho simplesmente maravilhoso que meus netos e seus filhos vão crescer em um mundo onde existe a Internet.

O serviço Ewatch também acompanha os jornais e outras publicações na Web e prepara relatórios para as companhias que desejam acompanhar e avaliar o impacto dos releases que divulgam. Vários outros acontecimentos interessantes vêm ocorrendo no sentido de ampliar além do imaginável o público potencialmente interessado nos press releases e outras informações. A PR Newswire começou, recentemente, a distribuir os títulos e resumos das notícias enviadas pelos clientes a pagers do mundo inteiro. Existe ainda uma nova tecnologia denominada WAP (ou protocolo de aplicação de tecnologia sem fio), que está permitindo que enviemos o noticiário de nossos clientes a telefones celulares do mundo inteiro. Assim, discutimos os recursos de que dispõem os profissionais da área de comunicação para alcançar de forma mais eficiente o seu público alvo, inclusive jornalistas. Mas como saber exatamente o que esse público lê ou não lê? Tradicionalmente, dependíamos dos serviços de recortes que monitoravam jornais e revistas e nos enviavam toneladas de recortes a cada mês, grande parte dos quais era inútil, porque não atendia aos critérios que havíamos estabelecido. A PR Newswire completou recentemente o ciclo de informações para os assessores de imprensa e profissionais de relações públicas, permitindo que saibam não só para onde seus releases foram enviados, mas também que jornalistas os examinaram nos websites da PRN, com a condição, evidentemente, de

Simpson. Minutos depois da transmissão do programa de TV, o boato atingiu mais de uma dezena de newsgroups da Internet e a própria Mrs. Fields recebeu ameaças de morte pelo telefone. - A Intel, o maior fabricante de chips dos Estados Unidos, ignorou as perguntas de um professor universitário sobre problemas que dizia enfrentar com um dos chips da empresa. O professor levou a discussão à Internet em busca de outros que confirmassem suas constatações. A crise comercial resultante custou à Intel US$475 milhões. - Um indivíduo colocou uma mensagem falsa na Internet alegando ter encontrado um preservativo numa lata de sopa Campbell’s. Em seguida, ele tentou extorquir dinheiro da companhia. Abriuse um processo contra a pessoa, que teve que se declarar culpada sob sete acusações diferentes do governo federal. - A marca Tommy Hilfiger tornouse o alvo de um boicote depois que um boato veiculado pela Internet alegou que o Sr. Hilfiger tinha feito comentários racistas em programas de entrevistas na TV, quando na verdade, ele nunca tinha participado de nenhum programa.

Patricia A. Canary é vice presidente da PR Newswire para a América Latina. Este texto é a base da palestra “Como a Internet está Mudando o Papel das Comunicações Corporativas”, proferida em 7/4/2000, no Centro de Convenções Rebouças, São Paulo, SP, durante o 3º Congresso Brasileiro de Jornalismo Empresarial, Assessoria de Imprensa e Relação Públicas - realizado com o apoio da ABI).

A INDÚSTRIA GRÁFICA BRASILEIRA E O SEU DILEMA Ruy de Carvalho

Chegamos agora, no limiar do novo milênio, a uma situação jamais pensada há vinte anos atrás, de dispormos de equipamentos possíveis de transformar a comunicação impressa, numa velocidade, qualidade e quantidade inimagináveis. O que antes era escrito à mão ou na velha máquina de escrever – Underwood, Royal, Olivetti – hoje é digitado no computador. A velha lauda datilografada – 25 linhas, 70 caracteres – foi substituída pelo PageMaker (PC) ou QuarkXPress (MAC). O diagramador (que escolhia a forma e as características do impresso) e o montador (que preparava a seqüência de páginas), bem como o retocador (fotolito), foram para o espaço, estão na economia informal ou desempregados. A sintetização dos antigos processos se resume hoje a disquetes,

A invenção de Gutenberg acelerou o desenvolvimento humano até então estagnado durante 1.500 anos. A criação do tipo móvel abriu novos horizontes e derrubou mitos e crenças, dando a um número significativo (embora pequeno) de pessoas, o direito de pensar, aprender e escolher caminhos melhores. Otto Mergenthaler, séculos depois quando inventou a linotipo - máquina automática de montar textos a serem impressos através do chumbo - promoveu outro grande avanço na propagação das idéias e do conhecimento; uma verdadeira revolução no campo da comunicação. A partir daí, o progresso e a possibilidade de propagação das idéias e do conhecimento científico mudaram consideravelmente o mundo.

60

syquest, Zip drivers etc, fáceis de manejar, portar, arquivar. Nos primórdios da era da computação, um futurólogo de plantão afirmou que o anúncio para se achar um bom presidente de multinacional, dali a 5 anos, começaria assim: “Exige-se grande experiência em datilografia”. O famoso jeitinho brasileiro há alguns anos atrás permitia a criação de uma série de profissionais do ramo gráfico que mal sabiam ler. Dentro de poucos anos desaparecerão profissões gráficas até então estratificadas e surgirão outras, inclusive as de menor importância com apelos de conhecimentos em nível de segundo grau pelo menos. A parafernália nominativa – pixels, arquivos, internet, hardware, aplicativos, sites, softwares, scanners, deletação, Zip drivers, disquetes, CD-ROM

Situação: "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come." Solução: "Sem mamar nas tetas do governo... é dando que se recebe."

Jornal da ABI


congelamento, up grade – assusta a quem tinha mais ou menos trinta anos na década de 70 e faz da garotada robotizada de hoje a glória dos pais e avós ou suscita inveja de quem ficou para trás. Resulta que a facilidade e disponibilidade do uso da cor por quem não conhece os meandros do design e os segredos da simplicidade da obra impressa transformaram algumas revistas, livros e jornais naquilo que, alguns anos atrás, como uma publicação dos Bloch que usava em excesso a cor, era chamado de “arara ilustrada”. O grande desafio é o descompasso do nível educacional existente em relação às novas técnicas e equipamentos. Uma minoria vive a euforia dos avanços da técnica da comunicação impressa. Alguns progressos foram atingidos, mas, pouco, em relação à realidade. A tendência é cada vez mais dependermos dos países adiantados e a globalização, - no mal sentido

– está aí para isso. Se é que existe solução, enquanto não formos engolidos, cultural e socialmente como país, é a sempre martelada premissa de que a educação, no seu mais amplo sentido, deveria ser a meta principal de governo, seja ele qual for. “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, esta é a situação das pequenas e médias empresas gráficas. Na euforia do plano real e das facilidades com a redução do imposto de importação, umas procuraram se atualizar comprando novas máquinas, assumindo compromissos de financiamento, com a moeda a par do dólar de então. Outras, menos progressistas, deixaram ficar como estava, para ver como ficava. Ambas se estreparam. As primeiras, obrigadas a produzir mais e ganhar menos, face à concorrência, não suportaram a pressão do mercado em exigir preços baixos, alta qualidade e rapidez na entrega - incomuns em épocas anteriores - foram, e estão sendo esmagadas, com a des-

valorização da moeda frente ao dólar, já que era difícil manter em dia os pagamentos do financiamento obtido em moeda estrangeira, ainda mais tendo que arcar com uma majoração dos pagamentos, a partir daí, em cerca de 70%. Outros, menos audazes em relação ao futuro, estão sendo dizimados pela obsolescência de seus equipamentos, face às exigências do mercado. O grande erro é o governo não dar financiamento interno com taxas e prazos possíveis de se cumprir. As instituições financeiras estrangeiras que financiaram e financiam a nossa indústria gráfica colocam o Brasil como um possível mau pagador, daí os prazos reduzidos (3 a 5 anos) para solvência do investimento, quando lá fora, em seus países, esse prazo chega a 40 anos. O BNDES financia o investidor de fora em outros segmentos e nós ficamos chupando o dedo, sem poder competir com a concorrência estrangeira.

Parece chororô, igual ao daqueles que durante muito tempo mamaram nas tetas do governo. Mas não é. A indústria gráfica tem, aproximadamente, 14.000 estabelecimentos de pequeno e médio porte e paga com sacrifício a maior parte dos profissionais do ramo. Se o governo, num processo seletivo, financiasse aqueles que desejam sobreviver, com prazos e taxas possíveis de se pagar, faria, na minha opinião, um grande negócio receberia sua parte (juros) no financiamento e teria o INSS, o PIS, o PASEP, o IR, o ISS, o ICMS e o FGTS pagos em dia. Sem a pilantragem que os políticos fazem, quando trocam votos por favores eleitoreiros, dá para afirmar: “É dando que se recebe...”. Ruy de Carvalho, proprietário da Editora Lidador, tem 35 anos de experiência em gráficas e editoras.

EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA NA HORA DA DEFINIÇÃO anos, houve um incremento de 1,5 milhão de estudantes. Já imaginaram o impacto desse número no ensino superior, que se encontra estagnado desde a década de 80? Vem aí o Plano Nacional de Educação (PNE), uma exigência constitucional que agora se cumpre, com a participação solidária de estados e municípios. Baseado no projeto “Educação para Todos”, uma iniciativa da Unesco (Declaração de

ciedade da informação, possíveis resistências ao emprego da educação à distância (EAD). Só o fato de ainda exibirmos a estatística de 19 milhões de analfabetos seria motivo bastante para a utilização de tecnologias educacionais, hoje disponíveis para a educação, como é o caso dos vídeos, televisões digitais, computadores e da enigmática Internet. Se fosse necessário um segundo exemplo, citaríamos a reduzida qualificação da nossa força de trabalho. Temos 74 milhões de brasileiros na população economicamente ativa (PEA) e somente 9% desse total acessa programas de educação profissional de forma regular. O que é pior: com menos de quatro anos de escolaridade média. Deseja-se alcançar o ano 2000 com matrículas em educação profissional para 20% da PEA, o que justifica a grande reforma do ensino médio em que se empenha atualmente o MEC. A vertente da formação profissional, expressa no Decreto 2208/97, apresenta uma incrível potencialidade, tanto mais que cresce enormemente a matrícula no ensino médio, de um modo geral. Nos últimos quatro

Arnaldo Niskier A modalidade da educação à distância não é propriamente uma novidade da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Desde o início da década de 70, por inspiração do então ministro Jarbas Passarinho e das ações objetivas do educador Newton Sucupira, ouve-se falar no assunto, que não escapou à sensibilidade da Associação Brasileira de Tecnologia Educacional. Na lei brasileira, entretanto, foi a primeira vez que se fez referência à metodologia, conhecida no mundo desenvolvido desde o século passado. Como sempre, chegamos atrasados. Hoje, o Conselho Nacional de Educação está firmando critérios rigorosos para o credenciamento de instituições capazes de utilizar a educação à distancia, procurando valorizar, nesse empenho, a tradição de quem já se encontra no mercado, embora de forma difusa. Fica difícil entender, no mundo caracterizado pelas maravilhas da so-

Jomtien, Tailândia), será montado em parceria pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Inep, com uma particularidade que é notável: um dos seus temas preferenciais é a educação à distância − e o que ela pode representar para o país como recurso pedagógico nos próximos 10 anos. Para a fase de discussão do PNE, sugerimos à professora Eunice Durham, do MEC, que utilizasse não apenas os recursos da TV Executiva, mas também a rede de televisão educativa, hoje vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, além da Rádio MEC. Dando caráter interativo a esse esquema, pode-se conhecer de forma inédita o pensamento de professores e especialistas do Brasil inteiro, com vistas a um planejamento que complete os anseios e as reivindicações das bases, afastando o indesejável caráter centralizador de outros projetos nacionais.

"Vem aí o Plano Nacional de Educação (PNE)... um dos seus temas preferenciais é a educação à distância."

Arnaldo Niskier, jornalista e escritor dedicado à educação, é membro da Academia Brasileira de Letras.

E O PAPEL DO HUMANO, COMO FICA NISSO TUDO? Luiz Lobo

gráfica da humanidade pode ser uma linha reta com oito metros de cumprimento, cada centímetro significando uma geração. Seis metros e meio foram vividos nas cavernas e o homem quase não fazia cultura, por um motivo muito simples: praticamente não se comunicava, por falta de uma língua estruturada. Qualquer conquista técnica, na primeira época paleolítica, levava 40 mil anos para estar ao alcance de todos. A criança só desenha quando é capaz de concatenar idéias, quando tem maturidade intelectual suficiente para deixar de riscar e rabiscar. O homem começou a desenhar na parede das cavernas a partir do último meio metro daqueles seis e meio

Cuidado: a comunicação, em alta velocidade, é perigosa para a saúde e uma ameaça à sobrevivência do homem na Terra. Rápida e em excesso, ela provoca o choque do futuro e é certo que o homem não está biologicamente adaptado para as rápidas transformações por que estamos passando. Vamos por partes, a começar pela velocidade crescente da comunicação. Tomemos, apenas, os 50 mil últimos anos do homem na Terra. Se dividirmos por 62 anos e meio, que é a média da expectativa de vida em nosso planeta, teremos 800 gerações. A representação

MEMÓRIA E FUTURO

que viveu dentro delas. Também é preciso concatenar idéias para falar, e a maioria dos pesquisadores concorda que, por essa época, os homens já se comunicavam oralmente com alguma qualidade. A partir da fala, a pouca cultura do homem acelerou-se e ele aprendeu, além de abrigar-se nas cavernas, a usar peles de animais para proteger-se das intempéries, a coletar comida, a lascar a pedra para fazer pontas de lanças que tornavam o seu braço mais comprido na hora de caçar. Mais do que isso, aumentou sua sobrevivência, comendo de tudo, aprendeu a fazer fogo e como conservá-lo. Com a linguagem, a comunicação conheceu a sua primeira grande aceleração

61 ○

e houve, por isso mesmo, a primeira grande aceleração da cultura: foram precisos apenas 10 mil anos para que a invenção da roda chegasse ao conhecimento da maioria. Para imaginar e realizar a primeira linguagem escrita (no Egito, segundo uns, ou na Mesopotâmia, segundo outros autores), foi preciso esperar muitas gerações: só no último meio metro da nossa linha de oito metros é que o homem conseguiu uma comunicação mais efetiva de uma geração para outra, através de símbolos escritos que permitiam memória mais exata e melhor transmissão da mensagem. Segundo o historiador Julian Huxley,


"É certo que o homem não está biologicamente adaptado para as rápidas transformações por que estamos passando."

a aceleração da evolução humana durante a história escrita foi, no mínimo, 10 mil vezes mais rápida do que a evolução anterior. Assim, a medida da aceleração do conhecimento passou a ser o milênio. Democratizar o conhecimento, através da palavra impressa, exigiu que se passassem mais quase 100 gerações. Na representação gráfica, a imprensa fica apenas a dez centímetros do final da linha de oito metros. Na Idade Média, com a palavra impressa, a medida de velocidade do conhecimento passou a ser o século. O problema é que o novo canal de comunicação provocou reações, inclusive da Igreja Católica, que viu nos livros o poder do demônio e do pecado, condenou quem aprendesse a ler e escrever (a não ser que fosse da Santa Madre Igreja) e com isso ficou com o poder, por muitos e muitos anos. E, como decidia o que podia e não podia ser publicado e lido, atrasou o desenvolvimento da humanidade com sua censura. Por exemplo: Paracelso descobriu que podia usar o éter como anestésico nas cirurgias, mas os cirurgiões só vieram a ler e aplicar sua descoberta séculos depois. A primeira patente da máquina de escrever é de 1714, mas foram precisos 150 anos a mais para que as primeiras fossem postas à venda. Nicolau Appert descobriu como conservar e enlatar comida, mas seus filhos e netos não comeram enlatados, que só foram produzidos pela indústria alimentícia 100 anos depois. Nos últimos anos, a velocidade da comunicação, graças ao telefone, ao rádio, ao cinema, à televisão, acelerou-se a ponto de alterar a medida de mudança da cultura para um decênio. Hoje, o fax, o videotexto, os computadores, os cd-rom e a Internet permitem a comunicação imediata e reduziram essa medida para menos de um ano, muito menos. O ritmo cada vez mais acelerado da pesquisa, descoberta, invenção, difusão e exploração comercial faz parte da guerra de consumo, da globalização, da estratégia das indústrias multinacionais. O consumidor, quase a cada dia, é surpreendido e exposto a novidades que, trabalhadas pelo marketing, despertam nosso desejo de consumir. A esmagadora maioria dos bens materiais que usamos e consumimos, reconhecendo como conforto moderno e conquista da vida contemporânea, assim ○

melhorou por um lado, mas nossa sobrevivência enfrenta problemas e perigos criados pela própria tecnologia, com ameaças que não existiam antes. No Brasil, além disso, em menos de uma geração deixamos de ser um país essencialmente agrícola para ser um dos dez mais industrializados; passamos de eminentemente rural a desesperadamente urbano, com cidades inchadas, verticais, sem quintais, sem solidariedade humana, sem serviços de qualidade; trocamos o progresso lento pelo desenvolvimento desordenado e insustentado que cria excluídos; passamos a país rico mas injusto, cheio de miseráveis; deixamos de ser poupadores para sermos consumidores; aumentamos a expectativa de vida mas perdemos qualidade de vida; aumentamos o produto interno bruto mas ficamos entre os últimos do mundo em distribuição de renda, confundimos desenvolvimento com progresso, substituímos valores com tal rapidez e intensidade que já não há muitos valores reconhecíveis e reconhecidos pela maioria. A velocidade da comunicação não atinge a todos ao mesmo tempo e nem com o mesmo impacto. O resultado, na prática, é que convivemos em um mundo confuso, onde ainda há valores antigos, valores em plena mutação, e quem já não use mais valores éticos. Por isso mesmo a convivência é cada vez mais difícil e geradora de crise na família, na vizinhança, no país, no mundo. Do tambor ao telefone celular, do moleque de recado à Internet, a história da

como praticamente toda a tecnologia aplicada em nossos dias, desenvolveu-se nos dois últimos centímetros da nossa linha de oito metros, isto é, no nosso século. Um detalhe: no ano de 1500, coincidentemente, publicaram-se 1500 títulos no mundo ocidental, onde hoje são publicados 1500 títulos a cada dois minutos. Outro detalhe: só no século XX a humanidade gastou mais recursos naturais da Terra do que todas as outras gerações somadas. Um último detalhe: hoje, no planeta, somos 6 bilhões de habitantes; é um número igual à metade de todas as pessoas que já nasceram, viveram e morreram por aqui. A velocidade das mudanças provoca uma transitoriedade em tudo, o que cria um clima de impermanência que afeta a todos e abala até os valores éticos e morais. Ter tornou-se mais importante do que ser, e a verdadeira felicidade do consumidor já não é mais ter, e sim ter um novo (basta ver que nem a Brastemp usada é mais “assim uma Brastemp”). Há engenheiros de material, nas indústrias, trabalhando muito, mas o objetivo do trabalho não é produzir mais, melhor ou mais barato: eles estudam resistência de material para que o produto tenha a durabilidade reduzida, segundo os interesses da comercialização. Na publicidade, outros especialistas trabalham as modernas técnicas de marketing para provocar a desejabilidade do produto, mesmo que ele não seja necessário à consumidora ou ao consumidor. Meu avô, advogado, ao sair da Universidade, praticamente não precisou estudar pelo resto da vida: é que as mudanças ocorriam tão lentamente que não havia a necessidade da atualização. Meu pai, arquiteto, já foi obrigado a estudar, porque muita coisa estava mudando durante a sua vida. Eu, jornalista, já saí da Universidade defasado. E em todas as áreas a que me dediquei, ficava rapidamente ultrapassado pela velocidade de informação nova, de descobertas e de invenções comunicadas a uma velocidade sempre crescente, na corrida dos registros de patente. Toda essa velocidade exigiu, inclusive, novos conceitos, novas palavras. Para os comunicadores de massa surgiu o problema do real time, o tempo real. E hoje não há profissional que se preze que não se recicle de quando em quando, para não ficar ultrapassado. (Procurem nos velhos dicionários a palavra reciclar!) Nos últimos anos o mundo vem passando pelas maiores transformações da história da humanidade. Agora a Terra é uma aldeia global; mas nunca estivemos mais tribalizados; a economia está globalizada mas perdeu a dimensão do social, do humano; há cada vez mais trabalho e menos emprego; a informação ficou mais importante do que a cultura; o sexo já tem pouco a ver com a reprodução (e vice-versa); criou-se uma variedade notável de extensões cada vez mais velozes para o homem, mas o trânsito nas grandes cidades flui mais lento que a caravana de camelos; o homem está cada vez mais místico e menos religioso; a expectativa de vida subiu, mas a saúde pública está em crise em todo o mundo; a qualidade de vida ○

ANÚNCIO FOLHA DIRIGIDA

62

comunicação entre os homens chegou ao tempo do celular global, um telefone sem fio, com plataforma digital, via 72 satélites em órbita (152 em 2005), alcançando mais de 70% do planeta. Com um prefixo para falar no país e outro com o resto do mundo, pode-se falar com 1O milhões de pessoas em qualquer canto da Terra. A cada dia surgem mais e mais avanços na computação e em um ano o seu PC está para sempre superado. Uma linha telefônica já não satisfaz: é preciso que ela seja turbinada. Na verdade, a velocidade da comunicação não pára e, ao contrário, está aumentando. E mesmo os futuristas da comunicação não imaginam o quanto mais ela pode aumentar. Tratemos, rapidamente, do “choque do futuro”. Para descrever a esmagadora tensão e a desorientação que as pessoas sofrem quando estão sujeitas a uma carga excessiva de mudança em um prazo demasiadamente curto, o sociólogo Alvin Toffier criou (em 1965) a expressão “choque do futuro”. O “choque do futuro” está aumentando na mesma proporção em que se acelera a comunicação e aumenta a velocidade das mudanças, porque é cada vez maior a diferença entre o ritmo da mudança ambiental e a capacidade de reação e adaptação humana a essas mudanças. Nunca, na história do homem, viveuse em um meio ambiente submetido a mutações tão velozes quanto hoje.

Jornal da ABI


Além disso, essas mudanças não ocorrem de modo uniforme, nem atingem a todas as pessoas do mesmo modo. O resultado é que estamos obrigados a conviver com indivíduos que apresentam reações desiguais e adaptações diferentes às mudanças; que têm concepções morais e valores éticos diversos, assim como os próprios comportamentos. Porque os conceitos são vários, e até contraditórios, a respeito do tempo, do espaço, da economia, do trabalho, da religião, do amor, do sexo, da família, da moral, da educação, da saúde, dos direitos humanos, de praticamente tudo. Valores de ontem já não valem coisa alguma para uns, mas ainda têm valor absoluto para outros; e ninguém é capaz de dizer, com segurança, quais são os verdadeiros valores da sociedade de hoje. Verdades de ontem foram desmentidas e as pessoas estão perplexas diante da mutação incessante, nervosa e enervante, provocando o estresse e problemas psicológicos. Hoje, há uma insuportável carga de informação, e as pessoas que não conseguem defender-se dessa corrente de notícias acabam afundando nela. A fadiga da informação aumenta o nível do estresse e pode até causar doenças. Antes disso, pode provocar uma paralisia na capacidade de analisar, de decidir, levar ao adiamento de decisões importantes, aumentar a ansiedade e as dúvidas, provocar decisões levianas, conclusões equivocadas e, em alguns casos, neuroses e psicoses. Em resumo: informação em excesso, mal digerida, pode ser tão perigosa quanto a desinformação e a contra-informação. A isso chamamos de “choque da comunicação”, uma síndrome recém reconhecida pela medicina. Por conta dessa síndrome estamos mais sujeitos do que nossos antepassados a depressões, neuroses e psicoses, porque o equilíbrio mental está cada vez mais difícil e problemático. Em resumo: o ser humano, em sua maioria, não está sabendo lidar com os desafios e ameaças dos tempos modernos. E, por isso mesmo, recorre tanto e com tanta freqüência a substâncias legais e ilegais capazes de alterar seu estado de espírito. Por fim, cuidemos do homem e da sua atual incapacidade de adaptar-se à velocidade das mudanças nervosas e enervantes, porque é certo que o futuro está chegando cada vez mais depressa, submetendo-nos a mudanças cada vez mais repentinas e acentuadas. É certo que não estamos biologicamente preparados para elas. As mutações sofridas pelo ser humano têm sido lentas, na velocidade da natureza, como toda a evolução. O problema é que a velocidade da comunicação está atropelando a nós todos, até porque nunca fomos educados, física e mentalmente, para a rapidez e o impacto das mudanças que ela provoca. Especialistas em comportamento sabem que todas as mudanças são perturbadoras, em algum grau, e que as mais bruscas, inesperadas e profundas são estressantes. Para a maioria das pessoas, inclusive as educadas, a simples idéia de uma mudança radical é ameaçadora, provoca incerteza, insegurança, temor e resistência. E, no entanto, elas estão ocorrendo quase todos os dias e simultaneamente. ○

MEMÓRIA E FUTURO

Um dos maiores neurobiologistas do mundo, o professor (de Harvard) Gerald D. Fischbach, escreveu em 1992 um special report, publicado em 1998 pela revista Scientific American. Em linguagem simples ele afirmou que o cérebro humano é a mais complexa estrutura do universo conhecido, o resultado de milhões de anos de evolução, construída, desenvolvida e mantida em conjunto pelos genes e pela experiência de vida. Comparado a um computador, tem uma diferença fundamental: não foi criado com propósitos específicos ou segundo princípios estabelecidos, e é tão complexo que comporta os mistérios da inteligência, imaginação e da criatividade humana, da

mais antigos. No entanto, ao contrário de outros animais que evoluíram e deixaram para trás o que já não servia muito bem, o homem acabou, na prática, com três cérebros (o crescimento do embrião humano, de certa forma, refaz o percurso evolucionário). A parte mais primitiva do cérebro é partilhada por todas as espécies que têm mais do que um sistema nervoso mínimo: é o tronco cerebral, em volta do alto da medula espinhal. O cérebro-raíz regula as funções vitais básicas, a respiração e o metabolismo de outros órgãos do corpo. É também onde fica o controle das reações e dos movimentos estereotipados. Aqui mora o inconsciente e os nossos medos. Não se pode dizer que pense ou que aprenda, porque é apenas um conjunto de reguladores pré-programados geneticamente para manter o corpo funcionando e para fazê-lo reagir para sobreviver. Esse cérebro reinou na Era dos Répteis. Do tronco cerebral surgiram os centros emocionais. A primeira grande emoção foi o olfato. No lobo olfativo, as células que absorvem, analisam e classificam os cheiros, registraram milhares de “assinaturas moleculares”, que permitiam identificar rapidamente predador ou presa, parceiro sexual, substâncias comíveis ou venenosas. Do lobo olfativo desenvolveuse o primeiro centro de emoções, cujo principal objetivo era a sobrevivência, porque determinava se era preciso fugir, caçar, abordar, cuspir ou comer. Podemos chamá-lo de ‘rinencéfalo’ ou cérebro do nariz. Os mamíferos desenvolveram novas camadas de células em torno do tronco cerebral, capazes de mandar mensagens reflexivas a todo o sistema nervoso, tornando as reações mais rápidas e aumentando as possibilidades de sobrevivência. Estava formado o sistema límbico, um novo território neural que criou novas emoções para o repertório do cérebro (quando estamos ansiosos ou furiosos, apaixonados ou apavorados, é o sistema límbico que nos comanda). Aqui mora o nosso inconsciente e, por exemplo, os preconceitos. A propósito, aqui mora o amor. À medida que evoluiu, o sistema límbico foi aperfeiçoando duas ferramentas de sobrevivência muito importantes: a aprendizagem e a memória. Foi um avanço revolucionário e que distinguiu a espécie, porque tornou o bicho-homem muito esperto. Ele ficou mais ágil nas opções de sobrevivência, muito informado, bastante capaz de adaptar-se a circunstâncias e exigências em mudança, mas ainda continuou sujeito a algumas reações automáticas. Há cerca de 100 milhões de anos o cérebro dos mamíferos deu um grande salto, em termos de crescimento. Foram necessários milhões de anos de evolução das áreas emocionais, todas ligadas aos sentidos, para desenvolver-se o cérebro pensante, o chamado neocórtex, um grande bulbo de tecidos ondulados que forma as camadas superiores. A simples constatação de que o cérebro pensante desenvolveu-se a partir das emoções é suficiente para estabelecer a relação entre razão e sentimento. Por cima das duas camadas do córtex vieram as novas

"Criou-se uma variedade notável de extensões cada vez mais velozes para o homem, mas o trânsito nas grandes cidades flui mais lento que a caravana de camelos."

emoção, da memória, da consciência e da vontade. O cérebro humano contém cerca de um trilhão de células, das quais 100 bilhões de neurônios, um número comparável ao das estrelas da Via Láctea. Essas células variam de formato, de tamanho, de função, de atividade, de estrutura, têm diferenças moleculares, são extremamente especializadas e cuidam apenas dos seus assuntos. Alguns autores chegam a acreditar que cada neurônio é único. Certo é que as cadeias de neurônios que se formam para um determinado trabalho ou função podem ter até 100 mil células, e não medir mais do que um décimo de milímetro. A comunicação dos neurônios, no cérebro, é um fenômeno de comunicação ultra-rápida: a mensagem pode ser transmitida por uma descarga elétrica de 100 milivolts de amplitude e um milionésimo de segundo de duração. A descarga elétrica é o resultado do movimento de íons de sódio carregados positivamente, através da membrana que contém o fluido extracelular do citoplasma. O processo é complicado até para os especialistas, mas é interessante saber que as células se recarregam em um milissegundo. O cérebro de um adulto tem um pouco mais de um quilo de células e líquidos neurais. É três vezes maior que o dos nossos ancestrais não-humanos, os primatas. Ao longo de milhões de anos o cérebro evoluiu, crescendo de baixo para cima, com os centros superiores desenvolvendo-se a partir dos inferiores, ○

63 ○

camadas de células cerebrais, que ofereciam uma extraordinária vantagem intelectual: permitiam falar, imaginar o futuro, prever conseqüências, planejar, compreender o que sentiam, coordenar movimentos. O neocórtex do Homo sapiens, muito maior do que o de qualquer outra espécie, acrescentou tudo o que distingue o homem dos bichos: é a sede do pensamento e contém os centros que reúnem e compreendem o que os sentidos percebem. Além de ser capaz de acrescentar a um sentimento o que pensamos dele (ao permitir que tenhamos sentimentos sobre idéias, símbolos ou imagens), o neocórtex é capaz de criar estratégias, planejar a longo prazo, fazer crítica. Toda a civilização, arte, cultura e desenvolvimento resulta do neocórtex. Aqui é a casa do racional. Nossas emoções têm-nos sido muito úteis, ao longo da evolução. O problema é que a capacidade biológica de adaptação foi superada pela rapidez com que novas realidades vêm mudando a civilização. A evolução não tem podido acompanhar a rapidez das mudanças e os novos desafios trazidos principalmente pela velocidade da comunicação. Os circuitos neurais básicos da emoção com os quais nascemos são um aperfeiçoamento que levou milhões de anos para chegar ao atual estágio. São os que melhor funcionaram para as últimas 50 mil gerações humanas, não tão bem para as últimas 50 e certamente que mal para as últimas 5. Ao longo de um milhão de anos eles foram suficientes. Também acompanharam bem o surgimento da civilização e o seu extraordinário progresso. Mas da explosão demográfica que fez a população da Terra crescer de seis milhões para seis bilhões de habitantes, quase nada foi impresso em nossas células genéticas e nos gabaritos biológicos que orientam nossa vida emocional. A verdade é que, com muita freqüência, estamos sendo chamados a resolver problemas contemporâneos com um repertório talhado para as urgências e desafios do Pleistoceno. Esse é o grande drama do nosso tempo: ficamos ultrapassados pela própria civilização que criamos e não estamos mais biologicamente preparados para um bom enfrentamento com ela. Só há, pelo menos aparentemente, uma saída: deixar de valorizar a memória (a dos computadores é muito melhor) e aprender a aprender, para explorar melhor a própria criatividade e inventividade (o economista Peter Drucker garante que o capital e a terra estão rendendo cada vez menos e que o que está dando bom dinheiro é a invenção, a descoberta, o know how e a patente). E nos reeducarmos para conhecer e valorizar os sentimentos, a controlar as emoções, para sobreviver. O que há de racional no homem precisa superar o que ainda há de réptil e de primata. Mas para isto será preciso que a sociedade estabeleça valores e faça uma retomada ética, tarefa difícil e que talvez fizesse Hércules desistir, preferindo ser jornalista. Luiz Lobo, jornalista e escritor, tem oito livros publicados sobre educação infantil. ○


JORNAL DA ABI

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA EDIÇÃO

ESPECIAL

-

ANO

6

-

NÚMERO

6

-

2000

Rua Araújo Porto Alegre, 71/7 o andar - Rio de Janeiro RJ CEP 20030-010 Fax (21) 262.3893

JORNAIS (Classif. ECT - DR/RJ)

ANÚNCIO SOUZA CRUZ

64

Jornal da ABI


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.