revista mov. 2021 n.02
Colagem por Nathan Guimarães
EXCESSO
RESPIRO
carta ao leitor Revista MoV.cidade, nº 02 Junho de 2021
“Nada se parece mais com um prédio em ruínas do que um prédio em construção. Enquanto há um sistema desmoronando, há outro sendo erguido. A pergunta que nós temos que fazer é: para qual prédio estamos olhando? Dependendo do seu foco, vai ver tudo se desintegrando ou vai perceber outra sociedade que já está nascendo, e se coloca intensamente no mundo”.
Viviane Mosé * remover-promover A edição #2 da Revista Collab do MoV.Cidade toca o problema do encharque: os excessos urbanos na dimensão visível ou na invisível, a hiperconectividade, a pressão por produtividade incompatível ao entusiasmo, a contaminação descontrolada do vírus, o fluxo colérico de informação, a intensidade dos sentimentos, as relações da urbanidade - e também a falta delas dentro do limite da pandemia. A revista traz inferências, interferências, imaginações, reimaginações, criações e instigações de uma face visível-dizível dos espaços habituais, e explora a própria ideia do que é ordinário nesse novo tempo. Aqui há arte, ensaio, manifesto, e reflexão de intelectuais que inspiram reconstruções e/ou demolições possíveis para este hoje. Isabella Baltazar
Editora-chefe Isabella Baltazar Curadoria de conteúdo Isabella Baltazar Direção visual e conceito Isabella Baltazar e Beatriz Sacht Revisão Isabella Baltazar Coordenação de Comunicação Ricardo Aiolfi Projeto gráfico e diagramação Beatriz Sacht _ EQUIPE MOV.CIDADE Diretor de Programação Léo Alves Diretora de Produção Tânia Silva Diretora de Comunicação Luísa Costa Coordenação de Produção Fernanda Bellumat Social Media Lais Roccio _ A revista Collab #2 foi viabilizada com recursos da Lei Aldir Blanc 2020-2021 Secretaria de Cultura do Espírito Santo e Governo Federal
Nota: A Revista Collab do MoV.Cidade é um produto elaborado por muitas mãos, por isso organiza percepções de criadores que receberam fundamental liberdade de expressar, opinar e escrever à sua maneira. Há, a seguir, portanto, pontos de vista plurais de uma cidade diversa.
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A gente que pinta a rua da cidade por Eliezer Brazil
A contemplação do destino sem sabê-lo por Ana Luiza Pessoa
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Este é um vão de exatos vinte e um metros por Amanda Amaral
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Pega a bike e sai voando por Lais Rocio
Manifesto MoV por Ana Luiza Pessoa
Poemas para viver urgências por Tacio Russo
“Uau, olha aquilo, que incrível!” por Cidade Quintal
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Cidade de Coragem por Julia Da Ros Carvalho
Ruídos de um tempo-quando por Ariane Andrade Silva | ilustrações Tulio Miguel Melo
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Tem piranha na sala e fogo nas portas por Lucca Nahuel
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A Força do Chamado por Sidemberg Rodrigues
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Lavagem da Purificação por Roque Boa Morte
Cidade Esperançada por Fernanda Vieira
A Festa Encantada das Ruas por Ananda Miranda
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Paisagem de uma varanda gourmet por Marcelo Venzon
Horizonte de Cura conversa com Iaiá Rocha
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Dias estranhos por Nathan Guimarães
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Provoca-ações sobre Racismo Ambiental por Victor de Jesus
A contemplação do destino sem sabê-lo - Por Ana Luiza Pessoa
cena
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A GENTE QUE PINT A RUA DA CIDADE
Por Eliezer Brazil Soares Neto “Eu pensei que íamos cantar das janelas. Eu pensei que íamos chorar juntos, uns pelos outros. Sentindo a dor do próximo, mesmo que não tão próximos… Mas eu realmente pensei que íamos cantar das janelas. Quando li em um meme que dizia que cantaríamos “Evidências”, ironizando o fato dos italianos entoarem orgulhosos o “Bella Ciao”, eu pensei que íamos cantar das janelas. Uns até cantaram pelas janelas seus louvores. Outros tocaram sax, piano, violão… Lá em março do ano passado, eu pensei que ficaríamos dois ou três meses agoniados, tristes, sóbrios – ainda que bêbados – mas hoje, um ano depois, não vejo mais ninguém a cantar das janelas.” Não vejo mais muita gente agoniada, inquieta, como se o peso da História estivesse pesando demais os ombros. Sabem aquela sensação que tínhamos em março? Aquela que estávamos vivendo um período histórico do qual nos lembraremos para contar para os filhos, netos… O que vamos contar dessa época senão que fizemos do caos a nova normalidade? Ficou a lembrança do carnaval que não vivemos. Quando entramos em 2021 e o vazio tomou conta da cidade. Aquela foto da Beira-mar era só concreto, o mar até parecia triste, sem as cores das gentes que pintam a rua com seu universo particular de alegria. A cidade liberal já é vazia, privatizada, onde almas sem sentido vem e vão, apressadas por (sobre)viver. O carnaval é nossa catarse. Nossa liberação da consciência do somos e um dos raros momentos nos quais tomamos o que é nosso de volta – a rua. “A actual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector financeiro –, o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é, por natureza, excepcional e passageira, e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas.” Devagar, o anjo da História foi voando para bem longe e o novo normal virou apenas o mesmo normal, porém de máscaras. Às vezes nem isso. Experimentado de tempos difíceis, eu pensei que essa pandemia seria uma transição do tempo. Batemos a bomba de Hiroshima e partimos para a de Nagasaki. Dobramos a meta. Triplicamos. Não deu tempo de aprender com a saudade, pois mesmo aqueles do “fica em casa” não ficaram. Exibiam seus sociais, suas viagens e suas praias com certa vergonha, tentando escondê-las atrás de um tebetê na legenda da foto. Depois perderam a vergonha e se juntaram aos que jamais a tiveram. Da minha janela eu não via o carnaval e era como se não tivesse mais Brasil – de novo. MOV.revista • 2021
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E o carnaval que eu queria era o do bloco, mas também idealizava aquele grito coletivo, como um gol de final de Copa, quando o fim da pandemia, da quarentena, do isolamento fosse anunciado. Na minha idealização, viria com a música do plantão da Globo anunciando coletiva do governador que, ao fazer o anúncio, remeter-nos-ia a final de filme americano, quando se expulsa os et’s invasores, ou quando se conclama a população que sobreviveu ao apocalipse. Gritaríamos da varanda. Sairíamos pelas ruas nos abraçando uns aos outros e matando a saudade de, literalmente, ser humanos. Abriríamos ali a cortina que nos separa da vida social em prol da rede social. Igreja para quem fosse de igreja. Bar para quem fosse de bar. Os dois para quem fosse dos dois. Por um flash de otimismo, pensei que, no momento que anunciassem o fim da quarentena, nós recuperaríamos o simbolismo alegre do verde-amarelo, dando força aos que perderam alguém para o vírus, esperança para os que perderam o emprego, o negócio, a sanidade… Pintaríamos às ruas de novo, emendando ao outro carnaval. Aquele abraço apertado de quem há muito não se via – como se tivesse acabado de desmoronar um invisível muro de Berlim. Lembrei, porém, que não sou otimista – sou historiador. Ninguém avisou que a quarentena e o isolamento acabaram. As pessoas simplesmente decidiram isso. E quando mais pregam que o Estado não pode interferir na liberdade individual, mais deixam de ter essa liberdade individual. No triste inverno brasileiro, não tem espaço para alegria. Da minha janela eu não via o carnaval e nem a gente pintando as ruas da cidade, espantando a rotina mecanicista da roda morta que nos cerca. Mas decidiram conviver com os mortos. Ignorar os mortos. Quase meio milhão deles. Decidiram pela ganância. Decidiram pela negação. Negacionismo. Obscuro. Mais um “ismo”. Egoísmo.
Eliezer Brasil Historiador, especialista em Filosofia Política, História da América Latina Contemporânea e Gestão Pública e Educacional. Tem pesquisas na área de Análise do Discurso Político, Representação, História e Cinema. Autor de “A História que a Gente Viveu – das jornadas de junho à eleição de Bolsonaro” (AsM 2019).
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intervalo
Série de imagens-textos produzida no período de isolamento social (março - abril), visando tensionar a imagem estática enquanto linguagem e espelho. O que vemos realmente nos olha ou o que nos olha é o que vemos? Este é um vão de exatos vinte e um metros é uma série de nove fotografias em formato polaroid de imagens sequenciais de um mesmo horizonte, registrado no decorrer de nove dias. O texto sobre as três últimas imagens é impresso em papel vegetal. Amanda Amaral Artista multimídia, pesquisadora independente e arte educadora graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), vive e trabalha entre Vitória/ES e São Paulo/SP. Se dedica à pesquisa na qual lida com questões de site/non-site através da imagem, do vídeo e da palavra.
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Por Ana Luiza Pessoa / Ilustração Julia Bastos
manifesto
O grito: uma nota só Sopra a poeira dos tambores Repique, pandeiro e tamborins O vidro da tua janela nem de perto se enxerga Tudo é poeira [mas podia ser purpurina] De longe se pode ouvir harmonias tão bonitas Alguém há de cantar “Gente que revida bate o tambor do barracão pra avenida” Ano de construção Mas já é ruína De novo Tudo é poeira [mas podia ser purpurina] Voz, fúria, fôlego O grito na janela E Caetano diz: “gente quer comer, gente quer ser feliz, gente quer respirar o ar pelo nariz”
[Eu não espero pelo dia em que todos façam o que dizem apenas decorei diversas palavras bonitas]
Nesse país tem gente que anda bem esquecida do som que faz na avenida [tudo é poeira, mas também purpurina] Entrar no bloco Sempre ter um refrão pra cantar, Aquele que fica Dessa coisa que impregna feito a purpurina E quando esquecer, sempre tem uma frase boa de lembrar porque gente é feita pra brilhar!
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HORIZONTE DE CURA Texto Isabella Baltazar Conversa com Iaiá Rocha
NASCIDA NO BAIRRO DA PENHA, moradora do Itararé, ambas comunidades de Vitória que pertencem ao chamado “Território do Bem”, Iaiá Rocha, é fotógrafa, produtora, artesã, e gosta de pensar que é “uma curiosa eterna”, como disse em sua brilhante palestra para o Dia Mundial da Criatividade. Além de psicóloga formada, é também técnica em multimídia, graduanda em artes visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo e faz pós-graduação em gerenciamento de projetos pela PUC Minas. Ufa! Que artista! Na fotografia, seu interesse começou em 2014, quando ela quis dar forma à euforia que sentiu quando circulou por outros estados do Brasil, explorou lugares e conheceu pessoas que muito 12
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admira. A fotografia foi uma forma de registrar suas experiências. Em 2017, envolvida com movimentos antirracistas e conhecendo um discurso com o qual muito se identificava, passou a questionar a normatividade presente no universo da fotografia: era brancocentrada. Iaiá não se via representada. Esse foi o principal estímulo para que ela estruturasse seu próprio projeto - e seu grito: um trabalho de fotografia completamente elaborado e voltado para pessoas negras. O embrião desse desejo se transformou na Foto Melanina, uma página-galeria de fotografias no instagram. E esse projeto tem origem e destino: milita quando transcende a beleza (e que beleza!), e se propõe a trazer também as
subjetividades dos fotografados. Por isso, aproxima-se generosamente da autoestima, do empoderamento e, principalmente, do resgate da memória ancestral. Foi assim que Iaiá chegou à estética afrofuturista. Se ao longo de sua trajetória na academia e no campo da psicologia ela sempre se deparou com a angústia provocada pela ausência de soluções para questões que lhes eram singulares, no afrofuturismo, ela finalmente pôde ver caminhos possíveis de cura (a sua própria e a de sua gente). Isso porque a filosofia afrofuturista abre um campo amplo de perspectivas que vão além do processo de catarse - via por onde passa a cura na psicologia. Propõe-se a pensar pessoas negras no futuro, trazendo, contudo, um resgate ancestral fundamental e incontornável. Ou seja, convida a refletir encaminhamentos, elaborar formas de conectar o
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futuro, considerando o que é construído agora, mas associando (sempre) a história que foi sistematicamente apagada ou é invisibilizada. “Conheci a teoria [afrofuturista] e me apaixonei completamente, porque ela super se conectou com a afrocentricidade.
Sempre fui uma pessoa, depois que comecei a militar, a amar estudar sobre tradições, sobre os mais velhos, mas eu também tinha a minha urgência de projetar futuro”. É assim que nasce o livro Um corpo para o futuro. O ponto de partida do projeto foi definitivo: seria “a gente falando da gente”. Para Iaiá, o mais importante é ser agente de sua própria história, e não mais sujeito da história do outro. Para isso, a fotógrafa convidou para cocriar com ela pessoas que admirava - todas elas negras: Thaís Almeida - Produção e assistente de figurino; Brenda Lima - Assistente de fotografia; Isabella do Rosário - Maquiadora; Castiel Vitorino - Oficineira; Andreia Quitéria - Trançadeira; Jadson Titânio - Assistente de arte.
Iaiá, comenta um pouco sobre como a fotografia, quando entrou na sua trajetória, afetou diretamente seus processos de autoconhecimento, sobretudo no que você chama de cura. Acredito que a fotografia seja uma forma de contar histórias.
Quando comecei a descobrir mais sobre minhas raízes, minha ancestralidade, descobri que nossas histórias seguem sendo invisibilizadas. A fotografia é uma ferramenta forte para que a gente se enxergue, seja no sentido mais literal, seja no sentido de resgatar nossos símbolos. É apenas usando nossas próprias lentes que poderemos ter imagens mais “reais” e representativas do que somos verdadeiramente.
O que te motivou a criar a Foto Melanina? Já disse isso algumas vezes e repito: a Foto Melanina para mim foi um grito. Precisava naquele momento expressar tudo o que o racismo estava me causando naquele momento. Ser negra neste país é procurar ter orgulho de suas raízes, mas tendo sempre em mente que a dor irá passar por nossa vivência. Isso porque ainda vivemos estruturades em uma nação racista. A Foto Melanina foi onde pude acionar minhas potências, e trazer uma resposta a todo esse adoecimento que estava vivendo.
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tete-a-tete De página de fotografia a livro de fotografia: como você chegou ao formato e como o livro cruza sua própria história? Construir o projeto Imagens e Subjetividades Negras foi, de forma estruturada, dar continuidade ao que vinha fazendo na página da Foto Melanina. Meus primeiros ensaios sempre vinham com um conceito, um texto (Ver no Facebook). Quando fui aprovada pela Secult-ES fiz de forma mais organizada e ampla estes ensaios. Minha página começou sendo “contar histórias através das imagens”, e o livro foi exatamente isso. O projeto teve um longo processo, cujas imagens foram a expressão final. Conte um pouco sobre as três etapas percorridas pelo projeto até o chegar no produto final, que é o livro. Desde que criei a Foto Melanina tinha na fotografia uma ferramenta de autoestima, empoderamento e resgate de memória. Quando escrevi o projeto para Secult-ES pensei em como trazer todos estes elementos para o trabalho. A fotografia apenas pela imagem nunca teve sentido, era preciso que quem estivesse na frente das lentes se enxergasse e mostrasse quem é ali. Por isso, selecionamos 12 pessoas negras (através de suas histórias) para estar no projeto, e na primeira etapa elas participaram juntas da equipe de uma oficina de 12 horas que mesclava Psicologia Corporal, práticas de terreiro e dinâmicas de grupo. Foi conduzida pela Castiel Vitorino, que direcionou a oficina para uma experiência de cura através do coletivo. Cada dinâmica trazia elementos importantes, como olhar-se no espelho, tocar o próprio corpo, experienciar o toque coletivo e a força que estar com outras pessoas negras traz. Após a oficina, dividimos o grupo em 4 para os ensaios 14
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fotográficos. Estes foram inspirados no Afrofuturismo e foram em pontos estratégicos da cidade de Vitória. Por fim, tivemos a produção e lançamento do livro, que aconteceu no MUCANE com um bate-papo sobre afrofuturismo e o processo de construção do livro, onde tivemos minha presença e da Morena Mariah que é um grande nome do afrofuturismo no Brasil.
Como você montou seu time de colaboradores (em termos de produção)? Boa parte da minha equipe já trabalhava e militavam comigo. Meu único critério era que minha equipe fosse completamente negra, pois em se tratando de afrocentrar um trabalho, queria que fosse nós contando nossa própria história. Principalmente porque parte do projeto era uma oficina que envolvia falar sobre processos íntimos de adoecimento causados pelo racismo, estar apenas entre pessoas negras foi uma forma de garantir apoio e segurança. Vale ressaltar também que minha equipe era majoritariamente feminina e LGBTTQIA+, algo que trouxe ainda mais diversidade para o projeto e foi uma forma de garantir que não só os participantes quebrassem com a estrutura elitista dessa sociedade, mas nossa equipe também visto que o ramo da fotografia ainda é branco, hétero, cis e masculino. Como você conheceu o afrofuturismo, e dentro dessa filosofia/ estética, o que você estabeleceu como mais relevante para trazer em suas fotografias? Conheci o afrofuturismo através de páginas como o Afropunk, artistas como Xênia França e pesquisadoras como Morena Mariah. O Afrofuturismo foi apaixonante desde o início pois ele trazia um conceito que eu já estudava desde 2017 que era a Afrocentricidade. Esta teoria
Bastidores do ensaio. Da esquerda para a direita, parte de cima: Lucas, Ana, Juliana; sentados, da esquerda para a direita: Thaís, Andreia, Isabella, Iaiá e Brenda.
trata de trazer nós negros como donos de nossa própria narrativa, agentes de nossa própria história. O Afrofuturismo tendo este conceito como base, visa trazer nossa história e nossos símbolos, para construções de futuros possíveis. Algo que acho fascinante neste movimento é que ele não se esquece do passado, algo fundamental para as tradições africanas. E tendo isso como bagagem, vê no passado ensinamentos para trazermos para o presente e o futuro. A priori trouxe o afrofutu-
rismo como estética, mas o trabalho todo se trata disso, pois foi minha forma de desenhar novos futuros no campo da arte, onde pessoas negras estão a frente de suas produções e histórias.
Como se deu a escolha das locações e como você vê a relação afetiva da cidade de Vitória com suas fotografias no livro? As locações foram pela estética urbana, algo forte no afrofuturismo e também eram pontos importantes para Cidade de Vitória. Além disso quis trazer
elementos da cultura negra, como o Mucane que é um ponto de memória da luta negra capixaba, e a Varal que tem de fundo o território do bem, um território negro e periférico muito potente de nossa cidade.
Instagram @fotomelanina
Acesso ao livro Um corpo para o futuro
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a bike
e sai
pega
Por Lais Rocio
Quando os dias sufocarem as noites, quando o olhar se perder vazio de tanto que insiste em preencher a mente, a impedir o seu precioso e sereno silêncio de dentro, vê se lembra da sensação de pegar sua bicicleta e sair voando.
voando
Você sempre rodou o mundo assim, seja quando o mundo era só a varanda e a calçada de pedras, o quarteirão da casa até a escola, ou quando o mundo foi se agigantando sem parar, e da sua varanda você saia pedalando por estradas à beira de oceanos. Por bosques e lagos, e cidades imensas do outro lado do Atlântico ou do Pacífico, com aquelas luzes amarelas, janelas e possibilidades que pra você são mistério, aventura e encanto. Pega a bike e sai voando. Quando as vozes e dúvidas dos outros para você armadilhas que te prendem nos momentos sombrios - forem simplesmente ruídos de tempos que não correspondem ao seu. Rastros desgastados que não pertencem ao seu universo, e você tem a coragem e a liberdade de explodir com tudo isso que te aprisiona. Pega a bike e sai voando. Cala o mundo, olhe-se, se escute, mergulhe-se, com o olhar profundo focado e só em si mesma, é preciso e merecido. Pega sua bike e sai voando pro mundo. É só você, é só isso. É o seu momento, aquele momento brilhante e corajoso, desconfortável por engano em um primeiro momento, de traçar a sua estrada com as suas pernas e sua bicicleta, apenas.
Lais Rocio Jornalista dedicada a contar histórias e redescobrir o mundo pela escrita. Mestranda em Comunicação (UFES), atua em jornalismo independente e assessoria de Comunicação com temas sociais e culturais. Atualmente, produz conteúdos de redes sociais do MoV.Cidade.
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Poemas para viver urgências
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O amor vai destruir a cidade vai destruir o amor.
A cidade que atravesso é a mesma cidade que me atravessa.
Toda cidade é passível de preenchimentos & vazios. Se perceba cidade.
Faz tanto tempo que eu espero esta cidade ruir.
Tacio Russo Artista visual e produtor cultural da cidade de Recife. Possui em seu trabalho a pesquisa sobre o ambiente urbano e o espaço público da cidade, utilizando de intervenções artísticas de lambe lambe com poesias para discutir o lugar contemporâneo da cidade e do seu cotidiano.
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cidade de coragem Por Julia Da Ros Carvalho
O CONCEITO DE CIDADE criativa foi idealizado pelo arquiteto britânico Charles Landry em parceria com o professor italiano Franco Bianchini em meados dos anos de 1990, a partir da publicação de The Creative City. As ditas cidades criativas delineadas pelos intelectuais propõem uma mudança de planejamento estratégico urbano contemporâneo, que visa valorizar a cultura e a criatividade local, e usá-las como um vetor de desenvolvimento econômico e social. Essa transformação deve ser realizada tanto via setor privado, como via setor público. A proposta de aliar à cidade a criatividade e cultura não é uma ideia nova - como diz o ditado popular: “nada se cria, tudo se copia”. Quando observamos a história das cidades e a importância de locais com interesses culturais, podemos relembrar as formações das cidades gregas e a relevância das construções como os teatros. A cidade e a criatividade estão relacionadas desde muito tempo. Pode-se considerar, claro, que a importância da economia aumentou como consequência das demandas capitalistas, mas a criatividade que caracteriza o meio urbano segue sendo fundamental. Na definição pensada por Landry e Bianchini existem três elementos basilares: inovação, conexão e cultura. Quando se refere à inovação, diz respeito à criatividade aplicada na busca por soluções e oportunidades em variados campos, como o tecnológico, ambiental e social, por exemplo. As ligações, as trocas de experiências e de conhecimentos - seja no campo histórico, intelectual e geográfico, para citar alguns - representam as conexões que devem existir para o sucesso do impulso criativo local - além de incentivar a diversidade cultural e social, o que de forma direta enriquece culturalmente e criativamente o contexto. O terceiro elemento, a cultura, envolve a importância dada aos setores tradicionais, estímulo fundamental das indústrias criativas por compor a matéria-prima para o planejamento e desenvolvimento da cidade. É o incontornável valor dado à história cultural local, que transformado através dos anos, permanece sendo o sustentáculo afetivo da urbe. Mas quais seriam as condições para considerarmos uma cidade como criativa? Primeiramente devemos identificar se dentro da economia local há a participação e a colaboração de uma classe criativa, e também verificar a existência de indústrias culturais ou clusters criativos. A “classe criativa” é formada por profissionais atuantes em diversas 18
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áreas relacionadas à arte, cultura, empresariamento, engenharia, mídia, política, educação e saúde, por exemplo, que estejam empenhados em resolver problemas crônicos urbanos e sociais através da produção de novas ideias e tecnologias, contrariando o mercado tradicional, e investindo em soluções criativas. A extensão territorial da cidade importa para esta se tornar criativa? Não. Esse fator não influencia o reconhecimento da cidade como criativa, mas sim a integração e atividades realizadas pelos profissionais criativos atuantes nos espaços. Com isso, uma cidade criativa incentiva a diversidade de setores de serviços, a diversidade de tipologias residenciais, a distribuição de recursos do governo, a parceria público-privado, a iniciativa popular, trabalha na junção dos elementos inovação/cultura/criatividade como substância para potencializar pensamentos e novas soluções para problemas crônicos urbanos. Também privilegia a história local, e usa desse elemento para atrair turismo, e assim gerar aumento na economia da região. Patrimônio e cultura, aliás, são elementos essenciais dentro do conceito de cidade criativa, pois são os responsáveis sociais que constroem a identidade, as características e a originalidade local. Através desses dois elementos, seus atores locais são capazes de se comunicar, produzir e pertencer ao seu meio. O ser humano é capaz de se moldar de acordo com o ambiente ao seu redor. Parte-se do pressuposto, portanto, que quanto mais criativo e inteligente for esse meio, mais atores criativos e inteligentes serão captados e, consequentemente, mais pessoas criativas estarão atuando neste ambiente. As cidades que se destacam no cenário global quando avaliamos o bem estar da população, são as cidades que se sobressaem nas inovações tecnológicas e criativas. A criatividade é, sobretudo, fruto de um contexto, e a busca por inovações exige um ambiente cooperativo e diversificado. “Outra palavra para criatividade é coragem”, é o que diz Henry Matisse, artista fauvista francês.
Julia Da Ros Carvalho é arquiteta e mestre em
Arquitetura, desenvolve pesquisas nas áreas de conhecimento de Cidades Portuárias, Cidades Criativas, Cidade Contemporânea, Políticas de Sustentabilidade e Patrimônio Cultural.
CIDADE ESPERANÇAD
Por Fernanda Vieira Costurei uma cidade no meu peito com meus passos. Trajetórias dos afetos. Alguns pontos meio soltos, outros mal dados, outros com nós muito firmes, outros frouxos, nós duplos, nós. Carrego essa cidade de retalhos no meu peito. E não importa onde esteja, mesmo que perdida nos espaços, me reencontro na geografia da memória. Escrevi uma cidade de memórias que, muitas vezes, não se parece em nada com os lugares onde passei. Na cidade das minhas lembranças, árvores que não estão mais lá, terrenos baldios, casarões demolidos, fachadas que nunca foram e prédios que não chegaram a ser, dividem espaço e se reposicionam. Se recombinando nos quarteirões dos sentimentos. Desenhei um poema para lembrar da cidade no meu peito. Essa cidade com todas as pessoas que me habitam. Essa cidade que não borra no olhar quando olho pelas janelas caminhantes do mundo. Essa cidade com o tempo fluido dos sentimentos. Essa cidade no meu peito tem me salvado das cidades fora dele. A cidade fora do meu peito tem uma urgência no tempo que mancha o olhar, espalhando uma mesma nódoa que sobrecarrega os sentidos. A cidade fora do peito passa zuindo pelos afetos, sem olhar pra trás. Passa pisando apressada e sem piedade, sobre quem não consegue arrastar. A cidade fora do peito tem outras cidades dentro de si, de bitsbytesdados que correm por cabos que sobrecarregam as fibras do sonhar. Estou cansada da cidade que nunca pode parar e que zomba da cidade no meu peito e de seus dias de chuva e chamego sem pressa; da cidade no meu peito com seus dias de sol e céu azul e sorvete sem pressa; com seus dias de ouvir sobre outras cidades que moram no peito de quem mora no meu coração-cidade, sem pressa. Estou cansada. Estou cansada e a cidade fora do meu peito vai ter que esperar eu costurar mais pedacinhos de mim e nós na geografia da cidade no meu peito, porque ela cansou de ter pressa, mas não cansa de esperançar.
Fernanda Vieira (Sub)urbana, Indígena, mestiça, Indigenodescendente, Carioca, descendente Xokó com raízes paternas em Aracaju (SE); e raízes maternas no subúrbio Carioca. Ativista, escritora, pesquisadora, tradutora e professora. Publicou “Crônicas ordinárias”, sua primeira obra de ficção, em 2017 pela Macabéa Edições. Criou e mantém a ikamiaba.com.br.
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“UAU, OLHA AQUILO, QUE INCRÍVEL!”
Ilha do Príncipe. Foto: Francisco Xavier.
Cidade Quintal | Texto Isabela Baltazar galeria
Quando perguntam para a Cidade Quintal quem são eles, a resposta é inspiradora: “uma organização que trabalha para que a rua, a praça, o bairro, a cidade possa ser como o quintal de casa”.
Peixaria Vila Rubim. Foto: Francisco Xavier.
Com a intenção de gerar relações verdadeiras entre pessoas e lugares, o projeto está há quase cinco anos transformando e colorindo algumas paisagens urbanas do Espírito Santo, especialmente da capital Vitória. Com um extenso time de cocriação encabeçado por Juliana Lisboa e Renato Pontello, a organização persegue o objetivo de tornar as cidades mais participativas e mais criativas a partir da arte, do design e do urbanismo. Isso com intervenções murais, ativações, diagnóstico territorial e workshops temáticos.
Peixaria Vila Rubim. Foto: Francisco Xavier.
Peixaria Vila Rubim. Foto: Francisco Xavier.
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Ilha das Caieiras. Foto: Kris Gonçalves.
Floresta. Acervo Cidade Quintal.
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Peixaria Vila Rubim. Foto: Francisco Xavier.
Linha de fotos acima - Ilha das Caieiras. Foto: Kris Gonçalves.
Ilha do Príncipe. Foto: Francisco Xavier.
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A FESTA ENCANTAD DAS RUAS Ananda Miranda Designer pela Universidade Federal do Espírito Santo, comanda o candela_, estúdio de marketing político, sendo certificada pela Harvard University. Foi criada em meio a rodas de samba e saraus. Nas horas vagas estuda música e cultura brasileira.
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Por Ananda Miranda Certa feita Exu foi desafiado a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria uma viagem ao mercado. Uma continha o bem, a outra o mal. Uma era remédio, a outra veneno. Uma era corpo, a outra espírito. Uma era o que se vê, a outra o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra o que nunca será dito. Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem. [...] A terceira cabaça é a do inesperado: nela mora a cultura. – Luiz Antônio Simas. No Brasil, o carnaval data do século XVII. À época, os populares faziam uma espécie de guerra com farinha, água e ovos – quase uma massa de pão ambulante. A prática foi proibida no século XIX e, sem a festa, a elite carioca passou a organizar bailes fechados que logo logo voltaram a tomar as ruas. Vendo a aristocracia desfilar, os populares resolveram voltar a ocupar o espaço público e passaram a organizar, sempre antes da Quaresma, procissões coloridas que iam se arrastando que nem cobra pelo chão atrás de carros decorados. Na linearidade do tempo, a história do carnaval de rua foi desembocar no que conhecemos hoje: excesso de brilho, imaginação, cor, drogas, purpurina, papel picado, som e gritos. O que não se vê, contudo, é excesso de gente, ainda que multidões se estreitem por becos e ruas em que multidões, de acordo com as leis da física, jamais caberiam. São milhares de corpos liderados por trombones e taróis. Não há excesso de gente porque sempre cabe mais gente no carnaval, tipo o 507, na sexta-feira saindo do terminal no fim do expediente. O carnaval, antes de mais nada, é a celebração de corpos excluídos dos debates públicos, é uma reparação histórica e política. Há em quatro dias um certo revanchismo por parte dos foliões. Se não os convidam para os bailes imperiais, eles absorvem as cidades como uma massa esponjosa. Não haverá, portanto, comércio, salvo o de latas de cerveja, de preferência vendidas por ambulantes sem alvará, porque o alvará é a autorização e o carnaval, a subversão de toda lei, inclusive as de Newton. Os guardas não farão outra coisa senão desviar o trânsito que às seis da manhã já enguiçou; o tempo será esticado e andará de acordo com o fôlego dos que carregam os pesados surdos. Há no carnaval a possibilidade de transformar os mecanismos de controle e repressão em um terreiro de encantamento. O carnaval é a terceira cabaça de Exu, em que o veneno pode ser remédio e o excesso, a falta. Os corpos andam em encruzilhadas e pisam em chão de navalha acompanhando o ritmo sincopado dos tambores, os mesmos de Angola. O carnaval é preto e por isso é também o retrato da exclusão. É durante o carnaval que capitães de areia vivem suas encantarias entre vultos e latas amassadas. Se, por um lado, o carnaval é profano, por outro há um deus só para eles, os capitães de Jorge Amado. Historicamente tentam reprimir a ocupação das ruas. É na liberdade que o carnaval propõe que a precariedade a que os corpos são deliberadamente submetidos se rebelam, porque há por parte das engrenagens de repressão um anseio, quase um gozo, em expor o caráter cruel que impõem aos corpos que não são aceitos por elas. Enquanto essas engrenagens trabalham na construção e manutenção
visual da miséria, o carnaval rompe com essa estética. Saem de campo Josés e Marias e entram sereias e pernas-de-pau ou até mesmo sereias em pernas-de-pau. Futuristas e homens da caverna atravessam o tempo e dividem o mesmo ônibus para irem ao mesmo bloco. No resto do ano, futuristas e homens das cavernas vestidos de trabalhadores também dividem o mesmo ônibus, desta vez para irem a trabalhos diferentes.
TERREIRO ENCANTADO E todos cometeram o mesmo erro: proibiram os tambores. Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques, nós, os pretos, faríamos do corpo um tambor. Ou mais grave ainda: percutiríamos com os pés sobre a superfície da terra e, assim, abrir-se-iam brechas no mundo inteiro. - Mia Couto. Se Exu é o elo entre o sagrado e o profano, entre o que se pode ver e o invisível, o carnaval é seu terreiro. Exu embaralha a dicotomia e só alguns sabem ler a gramática das ruas no que, para uns, são só blocos de carnaval. Os Malandros tomam conta do histórico Cordão do Bola Preta; já os Marinheiros, do recente Regional Nair. A diferença também se sente nos toques de caixa das escolas de samba. Em Mangueira se faz um toque de Iansã e a bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel um toque de Oxóssi. Assim, as ruas no carnaval são também ensinos pedagógicos de novas práticas, diferentes das normativas, de rédeas e controles. O carnaval é amálgama que junta os excessos, é terreiro que faz ecoar a resistência política; é “o avesso do mesmo lugar” que canta os “versos que o livro apagou”. Nos quatro dias de carnaval o que é fantasia torna-se real, o encantado é o corpo encarnado. No resto do ano, os corpos até trabalham e chacoalham no Trem da Central. E nas mesas de plástico, que podem ser amarelas ou vermelhas, batucam sempre os tamborins imaginários que comandam passos e preces.
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PAISAGEM DE UMA VARANDA GOURMET
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Paisagem de uma varanda gourmet é um ensaio visual composto por duas imagens manipuladas digitalmente. As imagens são complementares. Dialogam a partir do excesso sobre situações especulativas de dois mercados exploratórios distintos, mas que se cruzam no estado do Espírito Santo: a exploração de pedras e a especulação imobiliária (aqui presente na imagem da varanda gourmet).
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Marcelo Venzon Capixabixa, 1990, Vitória-ES. Estudou arquitetura e urbanismo na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e na Associação Escola da Cidade, no estado de São Paulo. Sua pesquisa passa pelo interesse nas relações entre corpo, matéria e espaço, numa tentativa de identificar superfícies mínimas nas suas tensões. Através de vídeo, fotografia, desenho, performance e instalação, os trabalhos de Marcelo contam com a ideia de previsibilidade em pequenas catástrofes, entendendo o erro como fenômeno possível do próprio fazer. Dessa forma, corpos e matérias são tencionados no seu ponto de esforço máximo até a mudança de estado físico ou social. Na paisagem, este fenômeno é visto como um conjunto de marcas e camadas que se superpõem simbolicamente e fisicamente onde Ruína e Projeto se misturam.
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entre-turnos
RUÍDOS DE UM TEMPO-QUANDO Por Ariane Andrade Silva Ilustrações Tulio Miguel Melo
1. a cidade guarda sem dó uma miríade de corpos sós
2. são 4h20 da manhã y chovem gotas opressoras o líquido turvo escorre no asfalto y revela na vala entupida de lixo aglomerado o sangue indefinido y sujo de um sujeito indesejado
Latos Solos - Xilogravura sobre papel jornal. Dimensão digital - 3127 x 2284.
no ponto, pairam corpos invisíveis daqueles que querem viver demais que são pretos demais que são pobres demais que estão famintos demais que são filhos de porteiros/domésticas/lavadeiras/motoristas/cozinheiras y que por isso geram custos demais pro Estado (de menos) genocida demais no trem, nós inumanos verticais horizontais pendentes formam laços efêmeros desatados estação após estação até o esvaziamento completo da máquina de mo(v)er gentes no chão da fábrica, espirra quatro vezes dá quatro pulos faz quatro sinais de mão pede quatro benção ao pai, ao filho, ao espírito y ao santo recorda suas quatro décadas sobrevividas não sente gosto, nem frio, nem calor sente medo são 4h20 da manhã de amanhã até quando? 30
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3. homeoffice pandêmico é nome chique pra trabalho perpétuo sujeito em romeófice pestilento é menos sujeito sub-sujeito-objeto rejeito explorado.utilizado.enrolado.tapeado.enganado.iludido.ludibriado.engambelado. atraiçoado.embaído.logrado.caloteado.traído.desfalcado.larapiado.usurpado. dimunuído.liquidado.engodado.abatido.
“Dos olhos avermelhados, embargados, se forma uma poça, um rio. Neste rio todos se banham com vaga alegria... desconhecem a origem do rio”.
4. não pude velar seu corpo não pude honrar sua morte não pude não pude não pude guardo no peito todas as palavras não ditas malditas me adoecem deixei tudo pra amanhã y o futuro me escapou não foi esse o acordo que fiz com o universo não foi esse o contrato que assinei se de fato vago na cidade-memória é porque procuro fugir da clausura que se impõe recordo a balada dos nossos dias cutuco as casquinhas ressecadas y toda vez que penso estar curada da ferida reabro a dor percebo que o presente se tornou um acúmulo atravessado de nãos já não basta? dentro aqui já há barulhos muitos ruídos tremendos y todas as minhas dores coexistem no tempo-quando agora tudo dói é também morte o silêncio imposto
Túlio Miguel Melo Artista e terapeuta de medicinas orientais. Em seu processo criativo usa diversas ferramentas, como a xilogravura, escrita, música, entre outras técnicas de desenho e pintura, como nanquim, grafiti, carvão, aquarela, dentre outras. Ilustra atualmente o songbook de seu pai André Melo.
Ariane Andrade Silva Ariane Andrade Silva é feminista, poeta, professora, pesquisadora e doutoranda em Estudos de Literatura na UERJ. Pesquisa narrativas de autoria de mulheres, com interesse em pós-memória, narração, revolução e regimes totalitários. Também é membra da Fenda Literária, coletivo criado em maio de 2020.
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PROVOCA-AÇÕES SOBRE RACISMO AMBIENTAL
Por Victor de Jesus
Suponha que você estivesse caminhando ou pedalando pela cidade, ou até mesmo da janela do ônibus ou do carro avistasse a seguinte cena. Há algo que chame a sua atenção nela? Não responda rápido. Gostaria de te convidar a olhar atenta-mente a imagem abaixo. Essa imagem te provoca alguma reflexão? O que você consegue ouvir-ver-sentir com/a partir de/ nessa imagem?
Muitas vezes naturalizamos os cotidianos, às vezes pela pressa do dia a dia, outras pela distração do olho vidrado no celular que torna o entorno desinteressante, ou ainda pela indiferença que forja nossa subjetividade urbana e nossa atitude blasé diante de gritos-dores-reclames que não são nossos. Diariamente, a cidade e seus cotidianos nos apresentam e, consequentemente, nos convidam a pensar sobre inúmeras questões sociais, políticas e culturais. Será que estamos atentes aos ditos não-ditos? Como isso nos afeta? Aliás, isso chega a nos afetar? Nessa cena específica quero lhe convidar a refletir sobre um reclamação-reivindicação nos gritos-pixos da cidade: + SANEAMENTO BÁSICO! Quando você lê + SANEAMENTO BÁSICO!, você consegue ver a Dona Maria que leva a lata d’água na cabeça porque a água encanada não chega até onde ela mora? Você consegue pensar nas pessoas que tomam banho de caneca e dependem da água da chuva pra encher os baldes? Você consegue 32
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imaginar a casa do seu João onde a água chega tão fraquinha que sai a conta-gotas do chuveiro e da pia e nem tem força pra dar descarga? Você consegue se afetar com as famílias que frequentemente recebem água com cheiro, sabor e cor, portanto incompatível com os padrões de potabilidade? Você consegue ver a Dona Vera, empregada doméstica em bairro dito nobre, onde recebe ordem de limpar a calçada com mangueira, mas que sequer tem água lá no bairro onde mora, e que às vezes não consegue tomar uma ducha depois de um dia cansativo de trabalho? Você consegue ver o drama cotidiano de pessoas em situação de rua que não têm acesso à água no seu dia-a-dia? Você pensa na população negra que sobrerepresenta 62% da população brasileira sem água encanada? Quando você lê + SANEAMENTO BÁSICO!, você consegue ver o Pedrinho de apenas 6 anos de idade ir jogar o lixo do alto do morro ou dentro do córrego porque o caminhão da prefeitura não recolhe o lixo onde mora? Você consegue ouvir as moscas, ver ratos, baratas e urubus sobre o lixo acumulado há dias? Você consegue sentir o cheiro de lixo queimado e a roupa com fuligem no varal porque esse é o único jeito de eliminar o lixo para algumas famílias? Você consegue ver o seu Zé, catador, e Shayane, pessoa em situação de rua, dependendo do lixo para comer? Você consegue ver aquelas pessoas cujas casas são construídas com sacolas, papelões e utensílios retirados do lixo? Você consegue ver Seu Joaquim, com seus 70 anos de idade,
que deveria estar aposentado, mas carrega sob um sol escaldante um carrinho pesado por quilômetros onde coloca os papelões, plásticos e alumínios recolhidos pela cidade? Você pensa na população negra que sobrerepresenta 69% da população brasileira sem coleta de lixo? Quando você lê + SANEAMENTO BÁSICO!, você consegue ver o medo no olhar de quem mora em áreas de encostas, alagados e beira de rios toda vez que o tempo fecha? Você consegue sentir a dor de quem perde a casa e familiares levados pela enxurrada do rio ou pelo desmoronamento num dia de chuva? Você pensa na Dona Francisca e no Seu Serafim que perdem seus pertences toda vez que o rio sobe e que não têm outro lugar para morar? Você apoia os movimentos sociais, como Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), Movimento Sem Teto (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que lutam por direito à moradia digna? Você valida o Moradia Primeiro (Housing First) como política prioritária do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR)? Você prioriza candidatas/os políticas/os que defendem a construção de políticas participativas de Saneamento Básico como prioridade eleitoral? Quando você lê + SANEAMENTO BÁSICO!, você consegue sentir o cheiro da poça de esgoto ao redor da casa de Dona Sônia? Você consegue ver as crianças brincando de bola ou nadando em meio ao esgoto? Você consegue sentir a vergonha que as meninas sentem ao ir fazer suas necessidades em fossas comunitárias? Você consegue ver o Tião metendo a mão (e o por vezes o braço) na caixa de esgoto quando entope? Você consegue ver os corpos d’água sendo local de lançamento de esgotos domésticos e industriais nos mangues e rios onde pescadores e marisqueiras tiram seu sustento diariamente? Você consegue sentir o medo que as mulheres têm de serem estupradas ao se banharem
em casas de banho públicas? Você consegue se imaginar sem sequer um banheiro dentro de casa? Você pensa na população negra que sobrerepresenta 59% da população brasileira sem rede de esgoto? Você pensa na população negra que sobrerepresenta 79% da população brasileira que sequer tem banheiro em casa? Quando você lê + SANEAMENTO BÁSICO!, você consegue ver o racismo ambiental que faz com que historicamente os riscos, impactos e problemas ambientais não sejam iguais para todas as pessoas e que afetem desproporcionalmente a população negra brasileira e também os povos originários (indígenas)? E que essas populações portanto estão mais vulneráveis socioambientalmente e expostas ao adoecimento e à morte? Você se compadece por a cada 1hora e ½ uma pessoa negra morrer no Brasil por Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI), isto é, por anualmente o número de pessoas negras mortas por não ter saneamento básico equivale à queda de 38 aviões? E que metade dessas vidas interrompidas por não ter acesso a um direito-serviço tão básico são de bebês de até 1 ano de idade e idosas/os negras/os? Você ouve o que a cidade está lhe dizendo? Quem está gritando por direitos nas cidades? Quais são os ditos-gritos silenciados-sufocados na/pela cidade? Você consegue enxergar o que a cidade lhe mostra? Qual a sua leitura de mundo, de sociedade e de cidade? Você percebe os processos higienistas-eugenistas no historicotidiano das cidades? Qual a sua vivência-experiência na cidade? Você consegue ouvir-ver-sentir as desigualdades, violências e injustiças do racismo, do machismo-misoginia, da transfobia, da homofobia, do elitismo e do capacitismo pela cidade? O que você tem feito para transformar esse historicotidiano?
Victor de Jesus Doutorando em Ciências Sociais (PGCS/UFES), Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), Licenciado e Bacharel em Ciências Sociais (UFES) e Tecnólogo em Saneamento Ambiental (IFES). Pesquisador do Narradores da Maré (UFES) e da ABPN.
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Tinta acrílica e açafrão em papel de 21,0 x 29,7cm. Lucca Nahuel, 2021.
Lucca Nahuel Lucca Nahuel Ramos dos Santos é poeta, psicólogo graduando pela FAESA e homem trans nascido em Governador Valadares, Minas Gerais.
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A FORÇA DO CHAMADO Por Sidemberg Rodrigues
EVENTUALMENTE, A ARTE PREVÊ (ou deduz) a vida. Porém, até Hollywood comete erros de cálculo. No filme “2010 – o ano em que faremos contato”, lançado em 1984, bem que poderiam ter colocado 2021 no título. Afinal, tudo o que o caos da Terra pode estar precisando neste tempo é de uma ajuda do cosmos. Até porque, algumas candidatas à nave espacial andaram dando o ar da graça e chamando a atenção do pentágono. Talvez porque aqui no planetinha azul a coisa anda tensa! Um vírus de linhagem familiar driblou a ciência, confundiu saúde com política, deu rasteiras em governos e provou quão medíocre e desobediente a humanidade pode ser, inclusive para seu próprio mal. Quase ninguém preparado para viver uma situação de exceção e mesmo emergência, em que a ação individual é vital para o bem coletivo. Nem o país do cinema, em que cientistas-heróis debelam epidemias nos sets de filmagens, escapou na vida real. Aliás, liderou o ranking dos incompetentes para lidar com a pandemia, batendo recordes de infectados e óbitos. Com a mudança no comando do país, as coisas tomaram rumos diferentes. Provou-se que de médico, presidente e louco, todo “o” mundo tem um pouco. Mas o Brasil foi míope e medíocre, subestimando o mal de imensa monta que chegava, com consequências imprevisíveis. Assim, ignorando a força do chamado. Com isso, acumulou situações insustentáveis. Mas, a sustentabilidade também não pareceu item das pautas 36
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internacionais, salvo os estardalhaços verdes em cima do que resta das florestas alheias. Economia fora do carbono que é bom, nenhuma nação assina embaixo. Todo mundo gosta mesmo é de sair no lucro e apontar a vulnerabilidade do outro. A paz relacional parece interessar cada vez menos pessoas e instituições. O racismo continua gerando embates, inclusive com vítimas fatais; conflitos diplomáticos entre potências cabeçudas (líderes idem); caos econômico tendo o desemprego como expoente, além de muito individualismo, intolerância e preconceitos medievais contra etnia, sexualidade, gênero e religião. Falando em gênero, líderes mulheres como Angela Merkel (Alemanha), Jacinda Ardern (Nova Zelândia), entre outras, foram estrelas de primeira grandeza na condução da crise, dando baile nos marmanjos. Mulheres na liderança, já! Refugiados deflagraram a era dos novos êxodos, sem pouso e nem paz. Resumindo: nada de novo sob o neon, enquanto o coronavírus devorava a esperança
de um amanhã para tantos. No cone sul, não bastasse a colateralidade da arritmia política causada por medicações ideológicas, ainda revisitamos a corrupção endêmica – tirando de uma saúde que já não tinha – e sofremos inovadoras ameaças ambientais, como ciclone-bomba, secas, inundações, infestação de gafanhotos, escorpiões e, recentemente, grilos no centro-oeste do Brasil. Tais desequilíbrios não deixaram nada a dever às sete pragas bíblicas. A natureza anda respondendo à altura as agressões contabilizadas até então. Não só aqui... Em um Reino nada Unido, para não mexer nas feridas recentes da realeza como morte e desavenças, uma nuvem de formigas voadoras tentou emplacar matéria de capa nos tabloides londrinos, ofuscando manchetes conseguidas arduamente pelos primos latinos. Esses demoraram a decidir se azucrinavam a cabeça do Uruguai, da Argentina ou do Brasil. Posto o mundo, visto pelo ângulo do senso comum, quais as lições aprendidas?
Não vale citar o arroubo de generosidade da esfera privada em tempo de pandemia, pois embora a solidariedade seja bem-vinda, em uma era de grandes carências, angu de um dia nunca engordou cachorro. Talvez, surtiria mais efeito ajudar no aprimoramento do tecido social (comunidades) em que os negócios se inserem, mas de maneira formal, estratégica, metodológica, tecnológica e regular, via pauta de responsabilidade corporativa, em consonância com políticas públicas de qualidade. Dar oportunidade às pequenas e médias empresas de se sustentarem e evoluírem, contratando-as, também é uma forma de participação colaborativa em tempo de escassez. O chamado mais forte é pelo altruísmo. Como alguns já praticam, o ideal é parar de fazer ações sociais apenas para capitalizar imagem e reputação e partir para algo verdadeiro.
Por outro lado, deve-se condenar aquelas organizações que, de forma oportunista, miram nas vulnerabilidades das empresas para fazer disso moeda de troca com apoios quase pessoais. Investimentos pontuais são ineficazes em um mundo sistêmico e a transparência deve estar no cerne das iniciativas. Independente da motivação de cada um em ajudar (durante a pandemia), a ideia de que sem dar as mãos poderia haver uma falência coletiva definitiva, rememorou até os barões do capital de que há uma interdependência vital para que qualquer sistema funcione a contento.
“Um vírus provou quão medíocre e desobediente a humanidade pode ser, inclusive para seu próprio mal”
O novo coronavírus anda inspirando até mesmo o esquecido resgate das raízes emocionais da responsabilidade, nos lembrando de que somos individualmente partícipes de uma fraternidade ecológica, institucional, econômica e planetária. Se ainda faltam propósitos mais amplos ao capitalismo, visão holística, sensibilidade e ética também fariam muito bem a quem o opera. Aos políticos, economistas, acionistas, empresários, investidores, analistas e gestores que ainda não corrigiram o curso de suas vidas e conduta a partir de setembro de 2008, com o deflagrar da crise econômica mundial, talvez a pandemia seja um novo chamado. Quem sabe o último? Um grito social do planeta, que se revela mais complexo e interconectado do que nunca. Antes do “novo normal” é preciso pensar no “novo sensato”. Considera-se que no capitalismo a desigualdade social e o desequilíbrio econômico sejam partes da paisagem, assim como a acumulação descabida. Não deveriam ser! Com a ganância sob controle, é possível alcançar maiores índices de qualidade de vida coletiva. MOV.revista • 2021
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O sistema capitalista precisa sofrer uma intervenção para que a justiça social tenha alguma chance. E não é uma ideia nova: os nórdicos europeus seguiram esse caminho e alcançaram excelentes resultados econômicos e sociais, principalmente. Cabe lembrar a sintomática frase do editor americano da revista britânica “The Economist”, Matthew Bishop, em referência à falência do banco Lehman Brothers em tempos economicamente muito sombrios: “O capitalismo como o conhecíamos acabou em 15 de setembro de 2008”. Adicionalmente, reafirma, construtivamente, sua opinião acerca do sistema em vigor, quando faz o seguinte comentário em seu livro “A estrada da ruína”: “As escolhas que fizermos agora, nos colocarão na rota da prosperidade renovada ou da estagnação e mesmo da depressão.” E não havia uma pandemia no meio do caminho. Referia-se ao momento de impasse no setembro cinzento em que tudo desmoronou a partir da falta de ética em Wall Street como ilustra o filme “A Grande Aposta”. O complemento da ideia de Bishop é revelador, mesmo para o tempo que vivemos hoje: “Se o maior erro que poderíamos cometer depois da crise (de 2008) seria abandonar o capitalismo, um erro ainda maior seria assumir que ele não precisa mudar.” Não é de hoje esse chamado para se buscar um ensaio de remodelagem das bases conceituais do sistema. Não por acaso, a 38
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corrente do “Capitalismo Consciente” vem ganhando tanta força na tentativa de aparar certas arestas do sistema, aproximando-se a governança de uma gestão baseada em valores e orientando os negócios ao pensar coletivo. Outro veículo eminentemente econômico – a “Revista Exame” – trouxe uma reflexão crítica e impensável em seu editorial em torno das injustiças causadas pelas desigualdades, que põem o capitalismo na berlinda: “Se no século XX cabia ao comunismo comprovar sua viabilidade, no século XXI é o capitalismo que está sob escrutínio. Ninguém com um pingo de juízo duvida de sua eficiência. O ponto é outro. O que, sim, está cada vez mais debatida é a forma como a renda é gerada e distribuída na sociedade.” Sem qualquer viés ideológico, a concentração de riqueza precisa de um olhar incisivo. Nessa matéria da revista “Exame”, os acionistas e os empresários são trazidos como os primeiros a terem de ajustar o comportamento, vez que mudar um sistema é por demais subjetivo e complexo, o que requer começar por suas partes e por todos os atores que dele participam. Desejar maior equilíbrio social no planeta é bastante razoável. A desarmonia tem gerado sofrimento evitável e afetando diretamente a saúde mental do planeta! “As pessoas já não se encantam como antes: parecem ter as emoções cristalizadas; muitas sequer sonham.”, analisa
o filósofo Karel Frans van den Bergen. Precisam redescobrir a sensibilidade e o “divino” dentro de si, nas demais pessoas e na natureza. Sacralizar e vida, que é algo maravilhoso por excelência e que deve ser preservada. Esse chamado é muito de dentro, particular e mesmo espiritual, mas de uma forma ou de outra, é o que o conjunto quer como resposta ao vazio existencial que rasga o peito do século XXI. Isso tem massacrado a inventividade em uma época em que inovar é a regra. Para maior amplitude de ação, o foco precisa ser reorientado para o ‘sentido’ das coisas. A pandemia trouxe reflexões importantes, pois as pessoas acabaram de frente para a finitude e condenadas à reclusão; até mesmo solidão. Todos, obrigados a conviver com a família e consigo mesmo por mais tempo. Acabaram tendo de rever as perspectivas e o ‘propósito’ da vida. Institucionalmente, os principais sinais parecem acusar a urgência de uma ‘espiritualidade na gestão’ ao sublinhar a importância de propósito, holismo, ética (inclusive a do cuidado), autoconhecimento, altruísmo e compaixão. O planeta já está farto de egoísmo. Todavia, apesar de tudo isso afluir para uma ânsia de ‘transcendência’, a força do principal chamado parece evocar, prioritariamente, a ‘razão’. Afinal, as direções nunca estiveram tão irracionais.
Sidemberg Rodrigues Professor; Mestre em ciências sociais pela PUC/SP; Membro da Academia Brasileira de Direitos Humanos; Palestrante nas áreas de Sustentabilidade e Espiritualidade na Gestão; Autor dos livros “Complementaridade”, “Espiritual & Sustentável”, “Miséria Móvel” e “Mensagens do Vento”.
Roque Boa Morte
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LAVAGEM DA PURIFICAÇÃO MOV.revista • 2021
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Todo último domingo de janeiro, desde fins do século XIX, em Santo Amaro, na Bahia, é dia de celebrar a padroeira da cidade, Nossa Sra. da Purificação, que também é Oxum e Yemanjá, para todos aqueles que vestem o branco, molham suas cabeças com água de cheiro das quartinhas das baianas e seguem com a charanga desfilando alegria e magia pelas ruas da cidade. Maria Bethânia, filha da terra, vaticina - “trabalhei o ano inteiro na estiva de São Paulo, só para passar fevereiro em Santo Amaro”, lembrando que quem não é recôncavo não pode ser reconvexo e que alegria e axé tem endereço certo em terras baianas. Quem nunca foi, vá.
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“o que eu herdei de minha gente eu nunca posso perder”
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Roque Boa Morte Professor, Advogado, pós-graduado em gestão ambiental e mestrando em estudos étnicos e africanos do CEAO/UFBA, o fotógrafo negro Roque Boa Morte, participa intensamente da vida cultural do Recôncavo, onde nasceu, pesquisando comunidades tradicionais, grupos étnicos, antropologia e sociologia visual, patrimônio e memória.
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Dias Estranhos - Por Nathan Guimarães
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