Conferência Internacional Tráfico de Mulheres Romper Silêncios - Comunicações

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SESSÃO DE ABERTURA 5. Regina Marques Membro da Direcção e Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres 7. 12.

Fátima Duarte Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG)

Márcia Campos Presidente da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) e membro da Confederação de Mulheres Brasileira

1º PAINEL 15. 18. 23.

Natacha Amaro Membro da Direcção e do Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres

Emília Fernandes Secretária Executiva do CODESUL-BRDE Presidenta do Fórum de Mulheres do MERCOSUL/Brasil Deputada Federal do Brasil (suplente) Ex-Ministra do Brasil de Políticas para as Mulheres Ex-Senadora da República do Brasil

Inês Fontinha Directora da Associação “O Ninho”

30. Helena Carrilho Membro da Comissão para a Igualdade entre Homens e Mulheres da CGTP-IN 31. Maitet Ledesma Associação GABRIELA – Filipinas

2º PAINEL 35. Brigitte Triems Presidente do Lobby Europeu de Mulheres (LEM) 40. Sandra Benfica Coordenadora do Projecto “Tráfico de Mulheres - Romper Silêncios” MDM – Movimento Democrático de Mulheres 43. Filomena Rosa Presidente do Centro de acolhimento temporário de Protecção da Rapariga Faro 45. Lúcia Gomes Jurista, Membro do Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres. 50. Barbara Switzer National Assembly of Women – Reino Unido


PAÍSES REPRESENTADOS Europa Portugal, Alemanha, Reino Unido, Grécia, Turquia, Chipre

América Brasil, Venezuela, Cuba, Itália, México

Países Árabes Palestina, Líbano

África Cabo-Verde, Angola, Moçambique, Senegal, Guiné-Bissau, Zimbabwe

Ásia Índia, Coreia do Norte, Vietname, Filipinas


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APRESENTAÇÃO O tráfico de seres humanos é um crime que afecta milhões de pessoas em todo o mundo, uma severa violação dos direitos humanos que urge ser efectivamente combatida. Trata-se de um sórdido negócio, altamente lucrativo, que reduz as suas vítimas à condição de escravos em pleno século XXI. Considerado a terceira actividade criminosa mais rentável do mundo, estima-se que cerca de 80% das vítimas sejam mulheres e jovens, traficadas na sua maioria para fins de exploração sexual. Portugal não está imune a este fenómeno e, pelo contrário, está integrado nas principais rotas referenciadas de Tráfico de Seres Humanos, confirmando-se como um país de origem, trânsito e destino de vítimas provenientes de diferentes continentes - África, Europa, América Latina e Ásia. Perante tal realidade, é necessária e urgente uma intervenção essencialmente política, corajosa e efectiva que combata este flagelo. O Movimento Democrático de Mulheres, como organização que há mais de 40 anos intervém na sociedade portuguesa na defesa dos direitos das mulheres, procura com o projecto “Tráfico de Mulheres - Romper Silêncios” contribuir para essa intervenção, reforçando o conhecimento e a sensibilização da população em geral e de públicos específicos para este terrível crime. Nesse sentido, realizou a 3 de Fevereiro de 2012, em Lisboa, no Centro de Informação Urbana de Lisboa (CIUL) a Conferência Internacional Tráfico de Mulheres – Romper Silêncios. Com a presença de duas centenas de participantes oriundos de 23 países, a Conferência constituiu um importante espaço de intercâmbio de informação, de partilha de experiências e aprofundamento do conhecimento, entre especialistas, representantes de organizações nacionais e internacionais, profissionais de comunicação social, entre outros. Pela sua relevância, decide agora o projecto editar as principais comunicações proferidas, na expectativa que elas possam contribuir para continuarmos a desocultar, informar, sensibilizar, conhecer, debater e agir, em suma, para que juntos e juntas possamos continuar a romper silêncios lutando contra esta forma de exploração e exercício de violência que arrasa os valores da dignidade e dos direitos das mulheres.


SESSテグ DE ABERTURA


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Regina Marques Membro da Direcção e Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres

Em nome do Movimento Democrático de Mulheres devo dizer que é uma honra estar aqui a discutir e a querer discutir com tanta gente um problema que é um problema de Portugal, mas também é um problema da Europa e um problema do mundo. Abordar o Tráfico de mulheres, com esta nossa perspectiva, de que é preciso romper silêncios. Trata-se de uma conferência internacional e desde já os nossos agradecimentos. Temos connosco nesta mesa a senhora Presidente da CIG, Dr.ª Fátima Duarte, que é uma recém chegada a esta lide e, portanto também temos o prazer de apresentar ao MDM a Presidente da CIG, a mulher com que nós vamos ter de dialogar muito no sentido também de resolver muitas questões das mulheres em Portugal. Esta mesa é presidida por mim que sou uma das dirigentes do MDM. Temos a honra de ter connosco a Presidente da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), Márcia Campos, uma brasileira da Confederação das Mulheres Brasileiras. A FDIM é uma organização que nasceu em 1945, no pós-guerra, que mantém viva a chama da solidariedade entre as mulheres e nela encerra a experiência da discussão pública das grandes questões e causas que se colocaram desde então às mulheres e as mobilizaram para a participação e intervenção social e política. Ontem tal como hoje, em Portugal e no Mundo. Nesse sentido é uma Federação que nós temos a honra de apresentar aqui às nossas amigas portuguesas, mas também à senhora Presidente da CIG, uma federação que organiza e liga organizações de mulheres de todos os cantos do mundo e, portanto, temos nesta Conferência mulheres vindas de Cuba, de Moçambique, de Angola, da Coreia do Norte, temos mulheres vindas da Inglaterra e também do Brasil, da Guiné, de Cabo Verde, do México, do Senegal e muitas outras desse mundo fora. Recebemos 23 delegações e, portanto estamos, de facto aqui, com mulheres de muitos horizontes e de muitas perspectivas - também políticas e culturais - que, na verdade, sabemos que podemos contar com elas para atravessar fronteiras, atravessar oceanos que ainda muitas vezes nos dividem, mas que também nos aproximam, porque pelos mares andamos para dentro e para fora em ondas de sucessos e declínios, de recuos e avanços. Ao longo dos tempos foi sendo este o desenho da solidariedade feminina e o mapa da luta das mulheres que não nos dissolveram nas espumas das marés. Somos uma organização internacional de mulheres que tem dado um contributo inestimável inclusivamente nas Nações Unidas pelos direitos das mulheres e pela salvaguarda e respeito pela dignidade das mulheres. Tem dado um contributo para a aprovação de normas internacionais visando a erradicação de todas as formas de discriminação das mulheres, ocultação e aviltamento que as menoriza nas sociedades, normas que devem ser cumpridas pelos Estados membros da ONU. Tem sido uma organização de combate a todas as formas de violência que afectam as mulheres, seja a violência física, moral, psicológica ou sexual, ou ainda a violência das armas e das guerras. Uma organização de combate a todos os estereótipos que pretendem “culpar e responsabilizar as mulheres” fechando os olhos aos negócios que se fazem em torno do tráfico de mulheres e de seres humanos, negócios aviltantes da condição humana, com grande incidência nas mulheres, nas crianças e idosos. A FDIM é, dizia, uma Federação de organizações nacionais, vincadas às suas raízes e ligadas aos


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problemas que afectam de forma diversa as mulheres nos seus países, uma organização à qual o MDM pertence e à qual estamos, de facto, muito orgulhosas de pertencer. Por outro lado gostava de vos dizer que na sala, e como conferencista, temos a Presidente do Lobby Europeu de Mulheres, a nossa amiga Brigitte Triems, que também ela desenvolve um trabalho de coordenação com muitas organizações da Europa, organizações de mulheres, dando alento à nossa luta e dando alento também aquela ideia de que afinal as organizações de mulheres existem, tendem a ser cada vez mais e são necessárias para o desenvolvimento e para a paz no mundo. Nesse sentido, em nome da direcção do MDM, é justo reconhecer a presença da Presidente do Lobby Europeu de Mulheres para que também ela possa levar até essa grande mancha que é a Europa a solidariedade das mulheres portuguesas e no fundo tendo aqui a FDIM, a solidariedade das mulheres do Mundo, levando também as preocupações que se levantarão no curso dos nossos trabalhos. Estamos certas que o empobrecimento das mulheres, as incertezas nas condições de trabalho, o desemprego e a degradação das condições económicas das famílias que se aprofundam e alastram na Europa, vão ter consequências sociais drásticas, seguramente neste problema do tráfico de seres humanos, que aqui nos traz hoje, e que justifica uma grande determinação das nossas organizações. Apresentada que está esta mesa, e com estas breves palavras, agradecendo desde já, e de novo, a participação de todas, eu daria a palavra à Senhora Presidenta da CIG, Dr.ª Fátima Duarte, para nos dizer umas breves palavras ou as que ela entender, mas de facto as palavras que ela considera que são as políticas nacionais para esta temática.


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Fátima Duarte Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) Cabe-me, em primeiro lugar, agradecer o convite que, na qualidade de Presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), me foi dirigido pelo Movimento Democrático de Mulheres para estar presente na sessão de abertura desta Conferência Internacional, dedicada ao Tráfico de mulheres, género especialmente representado no tráfico de seres humanos, atividade que se gostaria de ver pertencente a um passado histórico irrepetível, e apenas objeto de evocações literárias, mas que a crua realidade dos números1 não permite, nem sequer, e por vezes, pela absoluta desumanidade das condições em que se opera: nos 58 imigrantes chineses asfixiados no contentor que os transportava, no que ficou conhecido como a tragédia de Dover, ressoam os descritivos versos do Navio Negreiro de Castro Alves, na sua ardente cruzada abolicionista, apesar de o ato de captura física de então e a subsequente redução ao estatuto jurídico de coisa dos/as cativos/as, suscetível de serem livre e legitimamente utilizados e depois negociados/as no Novo Mundo, ter sido substituído, em muitos casos, pelo aliciamento e promessas de uma vida melhor, cuja falsidade as vítimas, frequentemente muito vulneráveis devido às difíceis condições socioeconómicas sentidas nos países de origem, descobrem tarde demais, quando o domínio pelos traficantes se revela e a subtração dos documentos de identificação e/ou de viagem as tornam impotentes para dispor de si, de novo transformadas, desta vez não de jure, mas de facto, em objeto de comércio, predominantemente sexual (o que explica o seu rosto feminino), mas também laboral2 e até destinadas à extração de órgãos. Se o cenário da exploração se mantem nos seus traços característicos – a perda da liberdade e o domínio por outrem3, a anulação enquanto ser de direitos (e não objeto deles), ao fim e ao cabo, há diferenças que se notam - e não me refiro apenas à potenciação do negócio trazida pela velocidade dos meios de transporte e pela liberdade de circulação, mormente no espaço comunitário, tornando os traficantes capazes de rapidamente alterar rotas e deslocar vítimas, e dificultando a investigação- salientando-se a atenção que lhe é prestada por parte de organizações internacionais e europeias4, de que são provas os inúmeros documentos produzidos5, e a sua qualificação como crime, exprimindo um inequívoco e continuado juízo de censura da comunidade internacional, não mais indiferente, mas pelo contrário empenhada na erradicação de um crime6, por um lado, e na proteção das vítimas, por outro7, pela congregação de esforços e de responsabilidades a nível internacional, sinal de que as vozes se vão fazendo ouvir e os silêncios se vão quebrando – globalmente e não apenas localmente. Mas a máxima Think globally, act locally continua válida e Portugal não só não se tem mantido alheio a toda esta evolução, como se tem demonstrado empenhado no cumprimento das suas obrigações internacionais, introduzindo na sua ordem jurídica as alterações legislativas pertinentes (artigo 160º do Código Penal8 e Lei n.º 23/2007, de 4 de julho9, e sua regulamentação10) e elaborando planos nacionais, encontrando-se em vigor já o II Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos (II PNTSH), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 94/2010, de 29 de Novembro, do qual a CIG é entidade coordenadora, apoiada por uma comissão técnica, constituída a) O relator nacional para o tráfico de seres humanos; b) O chefe de equipa do Observatório do Tráfico de Seres Humanos; c) Um representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros; d) Um representante da Presidência do Conselho de Ministros; e) Um representante do Ministério da Administração Interna; f) Um representante do Ministério da Justiça; g) Um representante do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social;


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h) Um representante do Ministério da Saúde, exprimindo a natureza transversal das ações e a consequente necessidade de articulação de esforços de várias entidades na consecução de objetivos comuns. exprimindo a natureza transversal das ações e a consequente necessidade de articulação de esforços de várias entidades na consecução de objetivos comuns. O II PNTSH, que parte de um acervo de conhecimentos e de experiências, adquiridos no âmbito do I PNTSH11, e da participação de organizações da sociedade civil, assenta em 3 orientações estratégicas: a) Continuar a desenvolver o combate dos estereótipos numa perspetiva de género, tendo como primado a questão dos direitos humanos; b) Privilegiar a construção de um acervo de medidas operacionais nas diferentes áreas estratégicas com objetivos claros e precisos, de modo a facilitar a sua execução; c) Apostar na reflexão sobre as diferentes temáticas e realidades que caracterizam o tráfico de seres humanos, nomeadamente no que se refere ao tráfico para fins de exploração sexual e tráfico para fins de exploração laboral, na perspetiva de país de destino, de trânsito e de origem. e estrutura-se em 4 áreas de intervenção 1 – Conhecer, sensibilizar e prevenir 2 – Educar e formar 3 – Proteger e assistir 4 – Investigar criminalmente e cooperar. Com uma abordagem integrada, alicerçada na perspetiva dos direitos humanos, mas com uma aplicação à realidade nacional que não esquecesse que o tráfico é expressivo da criminalidade transnacional organizada e que cruza com outras áreas, nomeadamente imigração, inclusão social e género, no II PNCTSH compatibiliza-se a vertente repressiva do fenómeno do tráfico de seres humanos, norteada pela punição dos traficantes, com as estratégias de prevenção, de apoio, empowerment e inclusão das vítimas de tráfico, ilustrando uma evolução conceptual, em que a reação ao fenómeno não se esgota numa perspetiva de repressão/punição, mas, e pelo contrário, surge acompanhada de aspetos de prevenção e da vertente de apoio às vítimas, concretizados em medidas de apoio efetivo (criação de um Centro de Acolhimento e Proteção às vítimas de tráfico). Por outro lado, e visando a maximização da eficácia, prevê-se uma estreita articulação com os outros planos nacionais, igualmente coordenados pela CIG, nomeadamente o IV Plano Nacional – Género, Cidadania e Não Discriminação 2011-2013, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/2011, de 18 de janeiro. Não sendo a CIG, como já se disse, a única entidade governamental convocada à execução do II PNCTSH, não se queda pelo nível oficial o leque de corresponsáveis, que vai mais além, estendendo-se à sociedade civil, cujas organizações contribuíram para sua elaboração12 e se espera que continuem a contribuir para a sua execução. Contudo, e por muitas e nobres que sejam as boas-vontades, verifica-se a necessidade de recursos para que possam produzir resultados e também nessa matéria a CIG tem especiais responsabilidades, na sua qualidade de organismo intermédio do Programa Operacional Potencial Humano (POPH). Através de um contrato de delegação de competências com o gabinete de gestão do POPH, a CIG assumiu competências técnicas, administrativas e financeiras relativas às Tipologias de Intervenção que se encontram enquadradas pelos Eixos 7,8 e 9 do POPH, o primeiro dos quais tem como objetivo fundamental difundir uma cultura de igualdade, através da integração da perspetiva de género nas estratégias de educação e formação, a igualdade de oportunidades no


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acesso e na participação no mercado de trabalho, a conciliação entre a vida profissional e familiar, a prevenção da violência de género e a promoção da eficiência dos instrumentos de política pública na promoção da igualdade de género e de capacitação dos atores relevantes para a sua prossecução. Tais competências são exercidas pelo Secretariado Técnico para a Igualdade (STI). Entre os projetos que obtiveram financiamento, encontra-se o projeto “Tráfico de mulheres - Romper silêncios”, desenvolvido pelo MDM - Movimento Democrático de Mulheres, que tem como objetivo último aprofundar o conhecimento do público em geral, mas das mulheres em particular, porque vítimas preferenciais, sobre o tráfico de mulheres, correspondendo à i) área estratégica de atuação do II PNCTSH Conhecer, sensibilizar e prevenir. Com o desenvolvimento das restantes atividades e a elaboração dos materiais previstos, esperase o cumprimento de várias das medidas do II PNCTSH, sendo um significativo prenúncio da capacidade e empenho do MDM, enquanto organização da sociedade civil, na execução do II PNCTSH, a organização de uma Conferência internacional, que ora se inicia, cerca de meio ano após o início do projeto “Tráfico de mulheres - Romper silêncios”, e cujo eco se deseja que perdure bem para além do seu termo, pelo menos enquanto houver vítimas que não consigam fazer chegar a sua voz aos ouvidos dispostos a escutá-las, no combate ao crime de tráfico de seres humanos que, e como disse no início, se desejaria definitivamente memória do passado, mas que, e tal como então (e socorrendo-me das palavras de Castro Alves), continua a ser infâmia demais!

1. De acordo com a United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), 2,4 milhões de pessoas são vítimas de tráfico [Vide II Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos (II PNTSH), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 94/2010, de 29 de Novembro]. 2. De acordo com o relatório Global Report on Trafficking in Persons, elaborado no âmbito da Iniciativa Global contra o Tráfico de Seres Humanos das Nações Unidas (UN.GIFT), de Fevereiro de 2009, a exploração sexual assume-se como a forma mais relatada de tráfico, com 79 % dos casos, registando o tráfico para fins de exploração laboral 18 % das situações identificadas (in II PNTSH). 3. Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cúm’lo de maldade, Nem são livres p’ra morrer. . Prende-os a mesma corrente — Férrea, lúgubre serpente — Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!... 4. Destacam-se neste âmbito a Organização das Nações Unidas, a União Europeia, o Conselho da Europa e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) (in II PNTSH). 5. Neste domínio pode referir -se o Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (adoptado por Portugal em 2004) que foi inserido na Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada. Este Protocolo foi ratificado por mais de dois terços dos Estados membros da ONU, o que demonstra o inequívoco posicionamento desses Estados relativamente ao combate ao tráfico de seres humanos de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças (adoptado por Portugal em 2004) que foi inserido na Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada. Este Protocolo foi ratificado por mais de dois terços dos Estados membros da ONU, o que demonstra o inequívoco posicionamento desses Estados relativamente ao combate ao tráfico de seres humanos. Neste contexto, foi ainda aprovado o Plano Global de Acção de Combate ao Tráfico de Pessoas das Nações Unidas (Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 64/293), de 12 de Agosto de 2010, que apela aos governos para que desenvolvam medidas coordenadas e consistentes na erradicação deste flagelo. No âmbito do combate ao tráfico de seres humanos a ONU adoptou ainda outras resoluções. Saliente-se a Resolução n.º 63/156 — Trafficking in Women and Girls, de 30 de Janeiro de 2009, que propõe uma abordagem do tráfico alicerçada nas perspectivas da igualdade de género e da idade. A 63.ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Setembro de 2008, aprovou uma resolução sobre Improving


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the Coordination of Efforts against Trafficking in Persons. Esta resolução sublinha a importância de melhorar a coordenação de acções no combate ao tráfico de seres humanos. A Iniciativa Global contra o Tráfico de Seres Humanos das Nações Unidas (UN.GIFT), em Março de 2007, criou uma parceria entre o Gabinete das Nações Unidas para a Droga e Crime (UNODC), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Internacional das Migrações (OIM), o Fundo das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF), o Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas (OHCHR) e a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), orientada para a mobilização de todos os agentes na erradicação do tráfico de seres humanos, tendo sido realizado o seu primeiro Fórum Global em Viena, em Fevereiro de 2008. A União Europeia tem registado avanços significativos no combate ao tráfico de seres humanos. A exemplo disto refira-se o Plano da União Europeia sobre boas práticas, normas e procedimentos para combate e prevenção do tráfico de seres humanos, adoptado em Dezembro de 2005 (JO C 311, de 9 de Dezembro de 2005), o qual foi objecto de avaliação em finais de 2008. No seguimento dessa avaliação foram elaboradas diversas recomendações dirigidas aos Estados membros, à Europol, ao Eurojust, à Presidência da União Europeia e à própria Comissão Europeia. Entre essas recomendações destaca-se: a) A implementação de um sistema de relatores nacionais ou outros mecanismos similares; b) O estabelecimento de mecanismos de referência nacionais para a identificação e apoio às vítimas; c) A formação contínua ao nível das estruturas de combate ao tráfico de seres humanos. (in II PNTSH). 6. Actualmente, está em fase de elaboração uma directiva relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à protecção das vítimas que revoga a Decisão Quadro n.º 2002/629/JAI. Esse novo instrumento estará alicerçado na Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Seres Humanos, de 16 de Maio de 2005, desenvolvendo, contudo, um quadro mais ambicioso nesta área. Ao nível do Conselho da Europa, a Convenção contra o Tráfico de Seres Humanos, de 16 de Maio de 2005, constitui o primeiro documento internacional que contém uma definição mais ampla de «vítima de tráfico» e impede que cada Estado Parte decida quem deve ter esse estatuto. Nesse sentido, essa Convenção realça que o tráfico de seres humanos constitui uma violação dos direitos humanos e é uma ofensa à dignidade e integridade das pessoas. Os elementos que constituem o crime de tráfico de seres humanos são os mesmos que estão consagrados no Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, das Nações Unidas (in II PNTSH). 7. [A Convenção contra o Tráfico de Seres Humanos] Enumera igualmente um conjunto de medidas de apoio para vítimas de tráfico, incluindo assistência psicológica e física, apoio à sua reintegração na sociedade, aconselhamento, informação, assim como alojamento apropriado e compensação. Contempla, também, medidas de protecção das vítimas ao nível judicial (segurança, realojamento, alteração da identidade), prevê um período de reflexão, a par da possibilidade de se conceder uma autorização de residência quer por motivos humanitários quer alicerçado em circunstâncias de cooperação com as autoridades judiciais (in II PNTSH). 8. Artigo 160.º Tráfico de pessoas 1 - Quem oferecer, entregar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos: a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica, de trabalho ou familiar; d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; ou e) Mediante a obtenção do consentimento da pessoa que tem o controlo sobre a vítima; é punido com pena de prisão de três a dez anos. 2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração sexual, exploração do trabalho ou extracção de órgãos. 3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos. 4 - Quem, mediante pagamento ou outra contrapartida, oferecer, entregar, solicitar ou aceitar menor, ou obtiver ou prestar consentimento na sua adopção, é punido com pena de prisão de um a cinco anos. 5 - Quem, tendo conhecimento da prática de crime previsto nos n.os 1 e 2, utilizar os serviços ou órgãos da vítima é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 6 - Quem retiver, ocultar, danificar ou destruir documentos de identificação ou de viagem de pessoa vítima de crime previsto nos n.os 1 e 2 é punido com pena de prisão até três anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 9. Diploma que definiu as condições e procedimentos de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português, bem como o estatuto de residente de longa duração, e cujos arts. 109º a 115º respeitam à autorização de residência a vítimas de tráfico de pessoas ou de ação de auxílio à imigração ilegal. 10. O Decreto-Lei n.º 368/2007, de 5 de Novembro, definiu o regime especial de concessão de autorização de residência a vítimas de tráfico.


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11. A introdução e a consolidação do tema na agenda pública e política representam alguns dos resultados mais significativos da aplicação do I PNCTSH. Com efeito, o I PNCTSH contribuiu de forma assinalável para o despertar da opinião pública e do poder político para a realidade do tráfico de seres humanos. O I PNCTSH cumpriu dois grandes desafios: uma maior consciencialização sobre este fenómeno e, consequentemente, uma maior responsabilização política no que concerne ao seu combate (in II PNTSH). 12. O II Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos (II PNCTSH) parte da experiência e do conhecimento adquiridos, bem como da participação de organizações da sociedade civil (nomeadamente as ONG ou os profissionais desta área) para desenvolver medidas de intervenção no combate ao tráfico de seres humanos adequadas à realidade portuguesa (in II PNTSH).


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Márcia Campos Presidente da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM) e membro da Confederação de Mulheres Brasileiras

Queria agradecer muito à Fátima Duarte, presidente da CIG, a quem tive a oportunidade de conhecer no meu país, quando ela esteve no Brasil, agradecer demais a todas as portuguesas e a alguns raros portugueses que aqui estão. Agradecer ao MDM pela alegria e prazer com que cada uma de nós de outros países estamos sendo recebidas nesta terra de uma forma fraterna, de uma forma carinhosa, de uma forma alegre, criando uma condição real e efectiva para que os graves problemas que a nossa humanidade enfrenta possam ser travados, possam ser combatidos. Esses graves problemas podem ser enfrentados com a delicadeza com que só as mulheres de toda a parte podem ter. Uma delicadeza que expressa firmeza, determinação, segurança, confiança que o que interessa na humanidade é o ser humano. E tudo tem que ser para o ser humano. Exactamente por isso no momento que a Fátima falava eu comecei a anotar alguns índices em que esse tema do tráfico de mulheres está sendo debatido, num momento, numa conjuntura em que esse debate está acontecendo entre nós. Num momento em que nós vivemos numa Europa, em que a taxa de desemprego de Portugal é 13,4%, em que a taxa de desemprego na Grécia é de 19,6%, em que a taxa de desemprego na Espanha é de 22,3%, imagina se já tratamos do tráfico de mulheres em uma época em que neste continente se vivia uma condição muito melhor e mesmo assim mulheres passavam pelo flagelo desse tipo de coisa que é o tráfico de mulheres. No entanto, querem nos impor uma opinião de que o mundo está em crise, que todos os países estão em crise, e que nós vamos ter que nos submeter à flexibilização do trabalho e a manter o tráfico de mulheres como meio de vida. Mas não é verdade. A taxa de crescimento da China nesse mesmo período é positiva de 9,9%. Na Argentina de 9,8%. Na África do Sul é mais de 8%. Na Índia é mais de 10%. Na verdade estão em crise os países que adoptaram políticas que têm no centro a ganância económica, que não tem no centro os valores humanos, a igualdade de direitos e a promoção da vida entre todos. Esses países estão em crise. Países como os Estados Unidos, Japão e vários da Europa que adoptaram essa política. Quem não adoptou, não está nessa crise. E se nós trabalharmos direito, não vão entrar nessa crise. Nós temos uma solução diferente para a humanidade. Podemos investir nos nossos países, confiar nos nossos mercados, em vez de não confiar no trabalhador, e dar um salário decente para que ele possa comprar e manifestar-se uma economia mais forte. O que se vê em alguns lugares é a política de baixo salário e de desemprego, o que não vai tirar esses países da crise porque o mercado não existe enquanto ser humano. É o ser humano que compra. É o ser humano que come, é ele que move a economia. E se não virmos o ser humano, mulheres e homens, nós não vamos sair dessa situação. E não vamos conseguir acabar com o tráfico de mulheres. Eu queria agradecer de uma forma também bastante especial a cada companheira que está aqui, dos 23 países que vieram debater. Essas companheiras que mais uma vez estão demonstrando o seu compromisso com as mulheres de toda a parte. Mas quero agradecer também de uma forma especial, a outra brasileira que está aqui, a companheira Emília Fernandes, que foi Ministra da Mulher do Governo Brasileiro do Presidente


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Lula. É uma companheira que preside à Federação de Mulheres do MERCOSUL, é uma companheira que faz um trabalho muito grande, vai ter a oportunidade de nos brindar com algumas informações na área do tráfico. E ao citá-la quero dizer-vos que não é fácil. Enfrentar a situação do tráfico quando a gente escuta muitas vezes entre nós mesmas, que as mulheres têm que se dar o valor e que não se podem permitir virarem prostitutas ou “profissionais do sexo”, ou o nome que se dê em cada parte. Por outro lado, eu sempre falo, se o sistema capitalista não construir bordeis, não vai ter lugar para as mulheres desesperadas irem buscar alternativas que não fazem nada em prol da sua própria dignidade. Acabar com bordel ninguém quer, mas exigir-se da mulher um comportamento diferente parece que é bandeira em toda a parte. Eu diria para vocês, vamos acabar primeiro com os bordeis, vamos dar educação, saúde e trabalho para as mulheres de toda a parte que essa coisa de tráfico vai acabar. Enquanto a gente não assumir isso e culpar essas mulheres pelo comportamento, coisa que não é a intervenção da companheira Fátima, que falou dos programas, das políticas públicas, do poder político e do que vem fazendo para minimizar essa situação. Mas isso ainda é minimizar. Para acabar, nós temos que efectivamente mudar a forma capitalista de ver a sociedade em toda a parte. Não é fácil, e tão pouco podemos esperar por isso acabar para resolver o problema do tráfico. Vamos ter que andar juntas nesse processo, mas se tivermos imbuídas que essas mulheres são vítimas de uma política económica, de um sistema ganancioso que vive do lucro, um sistema que transforma verdadeiros ambientes, os chamados bordeis, em casas de prazer para meia dúzia e de infelicidade plena para as mulheres que lá estão. Na hora que nós tivermos sensibilidade, compromisso, e isso não só as mulheres porque já estamos nessa luta, mas as sociedades. Queremos apelar a todos os segmentos da sociedade, aos dirigentes sindicais, aos parlamentares, aos estudantes, aos políticos, a fazerem suas essas bandeiras e promover a mulher dos seus países. Garantir a igualdade e a presença delas no mercado de trabalho. Prestar atenção que as mulheres muitas vezes estudam mais anos que os homens, mais anos, mas na hora do trabalho e da qualificação no trabalho, elas conseguem menos que o homem no mesmo emprego, sendo que ele estudou menos que a gente. Mas importa não aceitar isso, nem homem nem mulher. Não conviver com a discriminação. Se for verdade, e é verdade, que quanto mais qualificados melhor será o posto de trabalho, porque não para as mulheres? Para elas inclusive terem mais tempo de escola, é mais difícil do que para os homens. Vocês sabem disso. Temos que nos esforçar mais, temos que dormir menos porque temos todas as outras tarefas inerentes à nossa pessoa dentro de casa que muitas vezes ainda não são compartilhadas. Está crescendo, está avançando essa consciência, mas ainda não mudou. Este tipo de debate me traz uma alegria muito grande primeiro de ver o poder público, de ver uma instituição pública, é o caso da Fátima, se colocando com propostas, com decisão de enfrentar esse tema. De ver a Emília, poder público, actualmente inclusive no Governo do Rio Grande do Sul, Governo extremamente progressista no meu país, a companheira também viajando para Portugal para dedicar-se a enfrentar essa questão. Todas vocês, a FDIM e tantos segmentos e organizações. É só para estimular, que a gente radicalize ainda mais esse compromisso que existe. Porque quanto mais rápido a gente resolver isso, mais em paz nós vamos estar com a nossa consciência que fizemos tudo o que é possível. Muito obrigada.


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TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO LABORAL, SEXUAL E PROSTITUIÇÃO – EM PORTUGAL E NO MUNDO. Natacha Amaro Membro da Direcção e do Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres

Em Plena Vida e Violência “...Será que a mente, já desperta Da noção falsa de viver, Vê que, pela janela aberta, Há uma paisagem toda incerta E um sonho todo a apetecer?” Fernando Pessoa, in Cancioneiro

Apesar da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e o seu Protocolo Adicional relativo à Prevenção, Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas (em especial Mulheres e Crianças), e a Decisão Quadro 629/JHA de 19 de Julho de 2002 contra o Tráfico de Seres Humanos vincularem o nosso país, a verdade é que o tráfico de mulheres prospera, configurando um crime profundamente desigual: poucos enriquecem à custa de muitos; mulheres são a esmagadora maioria das vítimas face ao número de homens; o tráfico para fins de exploração sexual sobrepõese gritantemente a outros. Esta desigualdade espelha uma sociedade organizada em torno do lucro e da exploração, reflecte a pretensão de desvalorização da mulher e do seu estatuto na sociedade, configura mais uma forma de violência exercida sobre as mulheres. Um fenómeno como o tráfico alimenta-se da exploração, da proliferação do lucro à custa do corpo humano, do corpo de alguém. A sujeição de seres humanos a esta condição de mercadoria pode ser explicada por inúmeros factores, mas um sobressai dramaticamente: o agravamento das condições de vida e de trabalho que não lhes permite uma existência DIGNA, arrastando-as, por vezes, para baixo dos “limiares” que tantos economistas e cientistas sociais estabelecem. Há um ano, o MDM desenvolveu uma campanha de recolha de assinaturas sob o lema “Dar dignidade à vida das mulheres” que se centrava na questão do aumento brutal do custo de vida, resultado das políticas desenvolvidas, e dos impactos na vida das mulheres. A entrega na Assembleia da República de milhares de assinaturas viria a confluir numa


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discussão em plenário, que decorreu nesta 4ª feira. Foi importante ouvir no Parlamento nacional o reconhecimento dado ao MDM pela premência do tema, mas continua a desapontar-nos a ausência de resposta por parte de quem esteve na altura e de quem está actualmente no Governo da exigência de uma “mudança de rumo, seguindo políticas que garantam aos homens e mulheres uma vida digna e com qualidade, que assegurem a igualdade e a não discriminação e que contribuam para um país justo e equilibrado”. As premissas da igualdade, da justiça, do equilíbrio foram partilhadas por todas as bancadas parlamentares, mas a dura realidade mostra-nos um fosso profundo e o agravamento das condições de vida para todos. E é no “caldo” das desigualdades, do empobrecimento, da exclusão, do desemprego, das dependências que germina a vulnerabilidade e o desespero que tão vorazmente alimenta um negócio ilícito de exploração humana, de lucros milionários, da venda clandestina de um corpo - seja numa rede de mendicidade, realizando trabalho escravo no sector agrícola, num casamento forçado ou sendo sexualmente abusada noite após noite. Em 2011, o MDM assinalou, em Portugal, o Dia Europeu Contra o Tráfico de Pessoas. Nessa altura dissemos: “Lutar pela dignidade das mulheres, pelo respeito pela sua condição, pelo reconhecimento do seu estatuto social, é para o MDM, também, opormo-nos ao tráfico de mulheres e denunciar as suas causas”. Defender direitos plasmados na Constituição da República Portuguesa (direito à integridade física e moral da pessoa humana; o direito à protecção jurídica; o direito à igualdade), é para nós uma questão primordial. Suscitar a discussão, aprofundar a reflexão, contribuir para uma maior consciencialização sobre a importância do combate ao crime do tráfico, é para nós uma questão fundamental. Inserir a batalha contra o tráfico de pessoas numa luta mais geral, na exigência de políticas económicas e sociais que pretendam, de facto, banir a exploração, é para nós ir à raiz do problema. A defesa dos direitos faz-se, exercendo-os, todos os dias. A reflexão e consciencialização florescem a partir de iniciativas como a de hoje. Novas políticas económicas e sociais conquistam-se, em todos os espaços, sendo a rua o primeiro. O próximo momento para exigi-las será, seguramente, a manifestação nacional de 11 de Fevereiro, em Lisboa, que contará com a presença das mulheres do MDM, das suas reivindicações, da sua força e combatividade. É isto que nos propomos fazer: romper silêncios! Com esta Conferência, com cada cartaz, em cada reunião, no contacto com muitas, muitas mulheres, procuramos: •desocultar um sórdido negócio que cresce à custa da aviltante exploração das mulheres, •dar visibilidade a mais uma forma de violência exercida sobre as mulheres e que escapa totalmente ao famigerado confinamento da questão da violência ao foro “doméstico” •retirar a mulher de uma caixa multicolor e translúcida, como a do logotipo do nosso projecto, que a oprime e esmaga, procurando destitui-la do seu estatuto, do seu papel, do seu valor intrínseco. Uma caixa dourada pelo horror do lucro à custa


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do corpo, uma caixa que esconde de um olhar atento, sem a tapar. Um olhar que procuramos despertar e que procuramos, também, que se transforme em acção. Em Portugal, como na Europa e no resto do Mundo, mulheres e crianças são apanhadas, todos os dias, nas malhas de redes criminosas de tráfico. São milhões, em todo o mundo, e precisam de nós. A inscrição do tema do tráfico e exploração de mulheres nas prioridades de acção e intervenção do MDM, nomeadamente com a candidatura e posterior desenvolvimento do projecto que “empresta” o seu título a esta Conferência, responsabiliza-nos (e mobiliza-nos!) para fazer a diferença: entre as nossas aderentes, junto de muitas outras mulheres, na opinião pública portuguesa, com a comunicação social, com as organizações congéneres de outros países com quem partilhamos espaços de debate e linhas comuns de acção. Muitos são os temas que partilhamos com organizações de mulheres e outras, existindo também, evidentemente, espaço para a diferença de opinião e de acção. No entanto, permitam-nos partilhar com este Auditório um desejo que perpassa na nossa intervenção e que rouba ao Lobby Europeu de Mulheres o seu lema de campanha: estarmos juntas por um Portugal livre de prostituição, por uma Europa livre de prostituição, por um Mundo livre de prostituição. Na defesa inflexível dos direitos das mulheres, da liberdade e da dignidade, o MDM conta com todas. Para dar voz às vítimas de tráfico, para desmistificar um negócio de violência e exploração, para fazer crescer um movimento de opinião que condene e pressione no sentido da erradicação das causas subjacentes a este flagelo. Com solidariedade, com esperança, com empenho, poderemos, seguramente, fazer a diferença.


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Emília Fernandes Secretária Executiva do CODESUL-BRDE Presidenta do Fórum de Mulheres do MERCOSUL/Brasil Deputada Federal do Brasil (suplente) Ex-Ministra do Brasil de Políticas para as Mulheres Ex-Senadora da República do Brasil

O TRÁFICO DE MULHERES – um mal sem fronteiras A exclusão da vida política e económica é o marco histórico negativo que ainda pesa sobre as mulheres. O debate é antigo e até hoje, ocupa o cenário de países capitalistas e socialistas. A marca do machismo excludente, não escolhe nacionalidade, nem classe social: ainda persiste uma ótica sexista e discriminatória. A mulher ainda é tratada como mercadoria, sexo frágil e inferior ao homem e por ele pode ser usada, comercializada e eliminada quando o “seu dono” e “proprietário” assim o desejar. A discussão do tráfico internacional de mulheres deve ser realizada no âmbito histórico, político-ideológico, social e jurídico que estrutura as relações de género e de poder nas sociedades contemporâneas. Também no tráfico de mulheres, está presente a questão de género e de poder e toma visibilidade a divisão de classes sociais e suas consequências excludentes. Milhões de pessoas são traficadas no mundo a cada ano, o que proporciona lucro de bilhões de dólares. É um delito que gera mais riqueza, depois do tráfico de armas e de drogas. Ocorre através de redes criminais poderosas e geralmente transnacionais. As vítimas do tráfico são mulheres em situação de vulnerabilidade, desempregadas, trabalhadoras de baixa-renda e chefes de família, maltratadas, violadas em seus direitos, moram em periferia, são negras/afrodescendentes e geralmente são de países mais pobres. Compromissos Internacionais = direitos das mulheres: • Conferência Mundial dos Direitos Humanos-Viena (1993); • Conferência Mundial sobre a População e Desenvolvimento do Cairo (1994); • Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing (1995); Já em 1969, o Pacto Internacional de San José – Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, determina que o tráfico de mulheres é uma violação de DH. (Artigo 6º: “Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas”). Porém, é na Conferência de Viena/Áustria, que se reconhece expressamente que “os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte integrante, indivisível e


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inalienável dos direitos humanos”.

BRASIL Em 2007, a OIT, apontava o Brasil como campeão mundial em tráfico de mulheres e como grande fornecedor de capital humano para alimentar uma crescente demanda, principalmente em países da Europa como Espanha, Holanda, Itália, Suíça, Alemanha e França. O Brasil aparece nos documentos internacionais como um dos maiores exportadores de mulheres, tornando-se o líder no tráfico de mulheres da América do Sul. No Brasil, existem mais de 110 rotas domésticas e 131 internacionais. No país, ainda, há falta de controlo e de informação sobre a extensão do problema. Dados da ONU registram que milhares de brasileiras estariam sendo obrigadas a se prostituir, somente nos países da União Europeia, representando 15% de todas as “escravas” do continente e, que 60% das profissionais do sexo em Portugal, são da América Latina, principalmente do Brasil. Os Estados brasileiros de Goiás, Rio de Janeiro, interior do Paraná, São Paulo e estados nordestinos são exportadores de mulheres para Itália, Espanha, Portugal, Israel, Japão, Argentina e Paraguai. Na perspectiva da relação capital x trabalho, constata-se nos países industrializados uma tendência em utilizar mão-de-obra barata e clandestina e, “o processo de feminização da pobreza e a discriminação entre homens e mulheres tornam as mulheres mais vulneráveis ao tráfico”. Estudo da Organização Internacional das Migrações – OIM, realizado na Argentina, no Chile e no Uruguai, revela que as vítimas são mulheres de classe social baixa, que vivem em um ambiente de vulnerabilidade, com um entorno familiar instável, além do precário nível educacional. Os aliciadores, que também podem ser mulheres e familiares, recorrem a táticas como a publicação de anúncios, testes para trabalhar no mundo da publicidade, ou como modelos e até sequestros. Na maioria dos casos, os “contratantes” se encarregam das despesas da viagem. Quando as mulheres chegam a seu destino, já possuem dívida contraída e têm seus documentos sequestrados. Pelo menos 50% das mulheres não têm consciência da sua condição de vítima. Além dos agentes diretos, o tráfico também conta com a intervenção dos secundários, como motoristas de táxis, funcionários públicos, policiais, juízes e políticos, que colaboram implicitamente ou que, com sua indiferença, tornam possível este tipo de prática.


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ARGENTINA A Argentina, onde o predomínio é do tráfico interno, também é um país de passagem de mulheres latino-americanas para a Europa, e um receptor de dominicanas e paraguaias. Cerca de 52% dos 118 casos de paraguaias vítimas do tráfico sexual, analisadas pela Organização Internacional para as Migrações – OIM, em 2005, tiveram a Argentina como destino final. Em 2006, o Chile foi o país de destino para: • 40% de mulheres argentinas; • 25% de peruanas; • 24% de colombianas; • 5% de chinesas e, • 2% de dominicanas, brasileiras e equatorianas. O estudo também revela que o Uruguai não é um país em potencial, de destino de vítimas do tráfico com fins de exploração sexual, embora alguns casos de mulheres argentinas e brasileiras tenham sido registrados. O Uruguai é um país exportador e de trânsito para países como Espanha e Itália e, em menor escala, para Argentina e Alemanha. A Argentina é um lugar de captação, transporte e destino de mulheres para fins de exploração sexual, segundo dados do Ministério Público da Argentina. A captação ocorre principalmente em províncias do norte e do nordeste do país (Chaco e Misiones). A exploração é mais concentrada na capital Buenos Aires, em Córdoba e outros grandes centros, além da região sul e em cidades costeiras como Mar del Plata e Bahía Blanca. Na Argentina, as entidades não governamentais, ajudam a dimensionar o problema. ONGs realizam protestos mensais, em frente ao Congresso Argentino, em Buenos Aires, para chamar a atenção das autoridades para o tráfico de mulheres. “De abril de 2008 a outubro de 2010, uma única ONG Argentina, resgatou 1064 vítimas de exploração laboral e sexual, das quais 220 eram menores e 844 maiores de 18 anos”. Das que sofrem exploração do trabalho, na Argentina, a maioria vem da Bolívia. “Entre as vítimas de exploração sexual, a maior parte vem do Paraguai e da República Dominicana”. (Escritório de Resgate, que funciona no âmbito do Ministério de Justiça e Direitos Humanos – Argentina). Em 2008, foi aprovada na Argentina a Lei de Prevenção e Sanção da Exploração Sexual de Pessoas e Assistência às Vitimas. Conhecida como Ley de Trata, a legislação estipula sanções mais severas para exploração de menores de 18 anos. Porém, os consumidores querem meninas cada vez mais novas, denunciam ONGs que prestam assistência a mulheres traficadas e advertem que a faixa etária das vítimas vem diminuindo.


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Nos casos de sequestros, modalidade que envolve maior uso de violência, as mulheres são interceptadas na via púbica, para depois serem drogadas e exploradas na própria Argentina ou no exterior.

URUGUAI No Uruguai o tema tráfico se torna público na década de 90 a partir de denúncias sobre uma rede de traficantes uruguaios que transportavam mulheres para serem exploradas sexualmente em Milão/Itália. Em 2010, a ONU divulgou em Madrid, um informe onde estima que “na Europa há 104 mil mulheres exploradas sexualmente, quase todas enganadas ou vendidas por familiares ou amigos para serem prostituídas mediante coação, na Alemanha, Holanda e Espanha”. O tráfico de pessoas sempre existiu em diferentes épocas e culturas, mediante diferentes modalidades. Na grande maioria, são mulheres, meninas e adolescentes, porém os jovens de qualquer idade também são utilizados nesse mercado. É a exploração de pessoas na sua máxima expressão, reduzindo-as à condição de mercadoria para a geração de riqueza. O Instituto das Mulheres do Uruguai (INMUJERES) constituiu uma Mesa Interinstitucional sobre o Tráfico de Mulheres, integrado por organismos públicos, sociedade civil e a Organização Internacional para as Migrações.

PARAGUAI Este é principalmente um país de origem. Das vítimas do Tráfico, 99% são mulheres, isto confirma a vulnerabilidade das mulheres. Sendo 55% destas, são jovens entre 15 e 19 anos. Sendo que 66% a finalidade do tráfico é a exploração sexual, embora para mais de 30% das vítimas, não dispõem de informação. No país há legislação considerando crime o tráfico de pessoas, porém os dados ainda são muito questionados, pois há uma grande discriminação em ser identificadas como vítimas do tráfico, principalmente para fins de exploração sexual. Daí o silêncio das vítimas, somados à falta de conhecimentos em torno do tráfico, sua caracterização, registro do real número de vítimas e punição dos criminosos, leva muitos casos à invisibilidade da situação.

MERCOSUL O combate ao tráfico de pessoas vem ganhando cada vez mais força. Várias iniciativas são tomadas e acordos assinados para ampliar essa luta. Entre essas ações está a oficina “Cooperação e Coordenação Policial no MERCOSUL e Chile no enfrentamento ao tráfico de pessoas”, realizada pela Organização Internacional do


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Trabalho (OIT), em abril de 2008. A partir desse âmbito, o movimento de mulheres, tem chamado a atenção para a desigual proporção de responsabilidade existente entre os Países, com relação ao tráfico de pessoas e o controle migratório. Alertam, também, que durante a discussão do assunto, é preciso definir claramente o que é tráfico de mulheres, atenção às vítimas, causas, formas de investigação. E, formas de prevenção, repressão e sanção ao delito do tráfico de pessoas, devem ser realizadas através da coordenação dos diferentes organismos de segurança e o intercâmbio de informações. Para enfrentar um problema da magnitude que tem o tráfico de mulheres, é necessário, além da adesão aos tratados internacionais que regulam o tema, prestar grande atenção a forma em que se sustentam os acordos internacionais nas legislações locais. Em muitos casos, as medidas contra o tráfico foram reduzidas, de maneira inquietante, a uma série de restrições migratórias. Se esta tendência se multiplica nas legislações nacionais, resultará num endurecimento ainda maior das políticas migratórias e dos controles fronteiriços. Há uma tendência nos parlamentos locais ao elaborarem a legislação, visar simplesmente programas de capacitação às vítimas do tráfico, que em muitas vezes, acabam transmitindo às pessoas traficadas, um sentimento de culpa pela ignorância ou falta de capacidade delas. Também existe a passividade das autoridades, uma aparente miopia, com os grupos que operam as redes de tráfico, e tendem a minimizar o problema do tráfico e deixar de lado quem o promove, gerencia e se beneficia desse crime. A existência de “pagamento paralelo”, que alimenta funcionários, no âmbito privado, local e nacional, de maneira estrutural e sistemática, nos faz suspeitar, em muitos casos da cumplicidade governamental. Para combater de forma comprometida e austera, os responsáveis destes crimes, os órgãos de segurança devem converter-se em espaços confiáveis, onde as vítimas possam procurar e encontrar ajuda. Por outro lado, é preciso estar atentas às políticas migratórias executadas pelos governos dos países ricos, principalmente nos Estados Unidos, na Europa e no Canadá. Políticas não podem criar cidadãos e cidadãs de primeira e segunda categoria e contribuir para que surjam e aumentem as novas caras da exclusão social. Os movimentos de mulheres devem exigir que os países assegurem ações de prevenção do tráfico internacional de mulheres, meninas e meninos, que não inibam a liberdade migratória, a liberdade de viajar e circular de acordo com as leis, especialmente que não diminuam a proteção prevista às e aos refugiados através das leis internacionais. Todos os países devem assumir compromisso em combater a exclusão e garantir políticas públicas de género e raça, que valorizem e garantam os direitos das mulheres, das crianças, dos jovens, dos idosos, dos homossexuais e das pessoas com deficiência,


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no campo e nas cidades. O empoderamento político e económico das mulheres, é parâmetro para a democracia e o desenvolvimento e a garantia do cumprimento pleno dos Direitos Humanos. “Não há democracia sem as mulheres e não há desenvolvimento sem as mulheres”. (Michelle Bachelet)

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES: 1. No mundo apenas 19% dos parlamentares, são mulheres (pesquisa em 187 países do mundo); 2. Ruanda é o país com maior participação das mulheres na política, elas ocupam 56,3% das vagas da Câmara dos Deputados e 34,6% do Senado. (Organização Interparlamentary Union); 3. Em segundo lugar vem a Suécia, com 47% de participação no Parlamento (não existe Senado) e, 4. Em terceiro, a África do Sul com 43% de deputadas e 30% de senadoras. O Brasil ocupa a 107ª colocação no ranking com apenas 9% de participação feminina na Câmara e 12,3% no Senado, atrás de países como Togo, Benin, Botsuana, Síria, Serra Leoa, Burkina Faso, El Salvador e Iraque. Na América Latina, o Brasil só fica à frente da Colômbia. A eleição da primeira mulher presidenta do Brasil, infelizmente, não se refletiu no parlamento brasileiro. A pergunta que se impõe é porque as mulheres permanecem ausentes da política e excluídas ou autoexcluidas do direito ao poder? Decepção, medo, hipocrisia dos (as) agentes públicos eleitos, falta de compromisso e vontade dos partidos políticos? Os direitos das mulheres foram conquistados com muito esforço, em espaços de negociação demarcados pela tensão entre o nosso direito a ter direitos e, a idéia de que o direito deve ser neutro perante as diferenças de gênero e raça. Desafios das mulheres brasileiras: maior participação das mulheres na política e a garantia da autonomia econômica. Maior número de mulheres nos espaços de poder e de decisão – públicos e privados, como um direito e uma conquista e, não uma herança ou concessão. Vivemos uma democracia que avança... porém ainda inacabada... que nos desafia ainda mais... todos os dias... Os países precisam construir seu desenvolvimento, com inclusão, justiça social e sustentabilidade e, isso somente será possível com igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens.


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Inês Fontinha Directora da Associação “O Ninho”

O Tráfico de Seres Humanos e a Exploração Sexual As vítimas – assistência, valorização e integração social. “Dizemos que a espera demora muito tempo. Poderíamos igualmente – ou mais correctamente – dizer que a espera demora pouco, uma vez que ela consome grandes períodos de tempo sem os vivermos ou beneficiar deles” Thomas Mann in “Montanha Mágica “, 1924 Trabalhar com mulheres prostituídas e mulheres traficadas para fins de exploração sexual exige ter em conta conceitos que ajudam a clarificar os problemas que estamos a abordar. Prostituição é a efectivação de práticas sexuais, hetero ou homossexuais, com diversos indivíduos, a troco de remuneração e dentro de um sistema organizado. Quando falamos de vítimas, pensamos, naturalmente, em pessoas que foram maltratadas por outra ou por outras pessoas, e pela nossa intervenção constatamos que as mulheres prostituídas foram profundamente maltratadas ao longo do seu percurso de vida. Através da análise das histórias de vida, que nos relatam, podemos definir um percurso convergente que podemos denominar de história-padrão, porque existem factores comuns que nos ajudam a compreender as múltiplas e complexas causas conducentes à prática prostitutiva e que nos ajudam também a compreender a desvalorização, a vulnerabilidade que foi percorrendo as suas vidas. Podemos afirmar que as mulheres prostituídas são provenientes de bairros degradados, de casas sobrepovoadas de famílias numerosas, de pais alcoólicos. Sofreram maustratos, abandonos, violação, incestos. Passaram fome. Não se sentiram amadas. Não foram à escola e quando a frequentaram não tiveram sucesso, e quando o tiveram foi apenas até ao 4º, 6º, ou 7º ano de escolaridade. Cresceram depressa…Namoraram cedo, engravidaram cedo e depois foram abandonadas.

“Sentia o olhar acusador da minha mãe. Aos 16 anos já tinha feito dois abortos. Do terceiro já não tive coragem” Teresa, 22 anos

E um dia encontra alguém que lhe promete afecto e a ilusão instala-se com promessas


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de amor. Dar o nome ao filho que está para nascer é prova de amor. E a criança nasce e ele cumpre o prometido. E passado algum tempo ele diz-lhe que tem dificuldades, que não tem dinheiro… mas ela pode ajudá-lo…não custa nada… é por pouco tempo…Ela chora, não quer. Mas o amor é forte, e para prová-lo faz-lhe a vontade. E assim começa a vida de prostituta. Vivia em conflito.

“ Não era esta a vida que queria ter”. Era outra bem diferente. Mas olhe, é o destino. O meu destino é este”

Embora esta seja a forma mais comum de entrada no meio prostitucional existem outras formas. Rupturas familiares, anúncios de jornais com ofertas de trabalho, que são recrutamentos para casas fechadas ou para bares de alterne, influência de terceiros, por exemplo, namorados, que passam a desempenhar o papel de chulos, donos/as de bares, entre outros. São mulheres provenientes das classes sociais pobres A entrada na prostituição não é feita por decisão própria. Indica a influência de outros agentes. O início da prostituição tem lugar em idades muito jovens, 14, 15, 16,17 anos. E a partir da década de noventa, assiste-se a um “boom” de jovens traficadas para fins de exploração sexual. A economia tornou-se global e as pessoas já não são recrutadas apenas na periferia das cidades ou nas zonas pobres de Portugal. Já não são só as filhas dos portugueses pobres que se prostituem. O campo de recrutamento cresceu. Hoje, em diversos locais do nosso país, multiplicam-se jovens africanas, asiáticas, brasileiras, da América Latina, da Europa de Leste que sofrem diante dos nossos olhos a forma mais violenta de escravatura. O mundo todo com os seus níveis de subdesenvolvimento cruéis transforma-se numa reserva gigantesca de mulheres, jovens e crianças para a indústria do sexo global. São jovens que vieram para a Europa, nomeadamente, para Portugal à procura de melhores condições de vida e que foram colocadas na prostituição.


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“Eu tinha 15 anos. A minha família vivia com muitas dificuldades e um homem prometeu à minha mãe que me arranjava trabalho no estrangeiro e que eu podia ganhar muito dinheiro. Arranjou todos os papéis e eu vim com um amigo dele. Vim de barco e ele entregou-me a outro amigo, no cais de Alcântara. Fui colocada num apartamento… Foi o início da descida aos infernos. Eu nunca tinha tido relações sexuais com ninguém, e quando recusei o homem que me tinha escolhido…fui violada brutalmente pelo dono do apartamento… e puseram-me num quarto sem janela, fechada à chave… Senti-me morta e deixei-me ficar…” Alice, 23 anos

Mais tarde Alice teve conhecimento que tinha sido vendida a um proxeneta português por 20.000 €. A sua dívida ascendia aos 50.000€ Quando a conhecemos olhava-nos como se não nos visse. Era um olhar vazio… sem expressão… Levou tempo a ganhar confiança. Contar o que lhe tinha acontecido foi um processo moroso. Num processo de ajuda é necessário saber compreender o outro, do ponto de vista do outro e o ponto de vista do outro só pode ser apreendido facilitando-lhe a comunicação. Numa relação de ajuda uma das partes (o profissional) procura promover no outro o crescimento, a maturidade, um melhor funcionamento e uma maior capacidade de enfrentar a vida. Este processo leva tempo, porque uma pessoa precisa de tempo para experimentar mudar. E o tempo necessário para experimentar a mudança e consegui-la depende de cada pessoa e respeitar esse tempo é fundamental para o sucesso da ajuda. É isto que fazemos na intervenção psicossocial com mulheres prostituídas e com mulheres traficadas para fins de exploração sexual. Propiciamos às mulheres condições para se bastarem a si próprias e isto só se consegue pela tomada de consciência dos próprios problemas, dos próprios recursos e possibilidades, tanto a nível material, como a nível psicológico e social. E esta tomada de consciência só é possível através do diálogo, da comunicação e da capacidade do profissional saber escutar, compreender, aceitar a mulher como pessoa única e singular, numa relação em que tem uma atitude não directiva ou semi-directiva, em que parte do ponto de vista do outro, respeitando o tempo que a mulher precisa, sempre e em permanente acolhimento do que é expresso pela mulher. Acompanhamos um número, que podemos considerar significativo, de jovens traficadas para fins de exploração sexual. E também constatamos à semelhança das mulheres portuguesas prostituídas, factores comuns: são provenientes de famílias pobres, e famílias numerosas, têm baixa escolaridade, e foram vítimas de violência familiar. Constatamos também que o auto reconhecimento de uma situação de exploração é algo difícil, porque requer uma visão crítica que poucas mulheres têm e, por isso não


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se consideram vítimas. Foram aliciadas por um “angariador” no seu país, que lhes paga a viagem, trata dos documentos, de um modo geral, falsos, e passa a ser “dono” da sua independência. E o que se segue é o desespero permanente e uma situação de ilegalidade sistematicamente lembrada pelo explorador. Rose é uma jovem que também foi traficada com 14 anos. A promessa feita pelo “angariador”, amigo da família, foi para trabalhar em Itália na restauração.

“ Ele falou com a minha família e tratou de todos os documentos, dizendo que eu pagaria quando tivesse dinheiro, porque na Europa ganha-se muito dinheiro. Fui directamente para uma rua de um “bairro vermelho” e ele explicou-me como devia fazer. Fiquei a olhar para tudo sem perceber o que estava a acontecer. Ele era o meu “dono”. Ele pegou-me vudu, na minha terra. Levou-me a um templo e não me disse o que ia fazer. Tira sangue muito sangue da menstruação, cabelos, unhas… Matam uma galinha, tiram as entranhas e tudo misturado com água, dão para beber. Se vomitar torna a beber. É um feiticeiro do vudu que faz isto. Uma rapariga com vudu tem de fazer tudo o que o homem quiser, senão ela morre ou alguém da família”

Esta prática é muito comum em alguns países africanos. As crenças estão profundamente enraizadas na mente colectiva e muitas jovens são submetidas a esta prática e ficam prisioneiras do explorador, de tal forma que não precisam ser controladas por ele. O vudu lá está, no seu íntimo, para fazê-las obedecer às ordens que lhe são dadas. Encontramos redes de tráfico nas ruas da cidade de Lisboa e em muitos outros locais do nosso país. São jovens oriundas de outros países e continentes que querem “fugir” à pobreza extrema e que vêm para Portugal com a promessa de um trabalho e que são colocadas na prostituição. Estas jovens não falam português. São muito reservadas quanto a contactos com outras mulheres e com pessoas exteriores ao “meio”. Estão ilegais não têm documentos (foram-lhes retirados pelo proxenetismo) e ao fim do dia entregam o dinheiro a uma pessoa pertencente à rede ou controlada por esta. Ficam com algum dinheiro, com autorização do explorador, que enviam para a família que ficou no país de origem, porque a vinda para a Europa foi com o objectivo de ganharem dinheiro para a família a fim de assegurarem a sua subsistência. Na rede existem indivíduos conhecidos da família que ameaçam contar-lhe a “vida” que fazem se tentarem fugir. Muitas das jovens africanas foram objecto de vudu que as controla psicologicamente e que as tornam totalmente submissas.

É o caso da Rose que foi vendida, depois de ter estado um ano em Itália, a um proxeneta


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português que opera juntamente com um nigeriano em Portugal, por 25.000€ e que foi prostituída num apartamento, durante 4 anos, tendo percorrido o nosso país de norte a sul e de sul a norte, vezes sem conta. Conhecemos várias “casas fechadas” que estão adaptadas ao estatuto social do cliente. Apartamentos de luxo são comprados pelos proxenetas, onde estão jovens traficadas, que são prostituídas por clientes de luxo. Estas jovens percorrem o nosso país de norte a sul, permanecendo no máximo 2 a 4 meses em cada casa e depois são vendidas para outros países. É um trafico interno, onde se encontram também muitas portuguesas. Jovens portuguesas também são traficadas para Espanha, França, Bélgica, Holanda, Alemanha etc. São jovens provenientes das bolsas de pobreza do nosso país.

“ O tráfico de seres humanos é considerado um dos crimes mais graves à escala mundial, uma violação grosseira dos direitos humanos, uma forma moderna de escravatura e um negócio extremamente lucrativo para a criminalidade organizada” (Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à luta contra o tráfico de seres humanos e à promoção das vítimas - 2010) Afirma-se também nesta proposta que: “sempre que o recrutamento, transporte, transferência e acolhimento ou recepção de pessoas para efeitos de exploração envolver uma criança (qualquer pessoa com menos de 18 anos) deve ser considerado crime de tráfico de seres humanos, ainda que não tenha sido utilizado nenhum dos meios indicados no ponto anterior”, isto é mesmo que não tenha sido através do recurso a ameaças ou à força ou outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso de poder, o que está em consonância com a Resolução da Assembleia da República nº 1/2008 que no artigo quarto alínea d) afirma” Criança designa qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos” Uma mulher traficada quando consegue pedir ajuda já não é criança, mas foi objecto de tráfico ainda menina, o que significa como afirma Thomas Man “que a espera demora muito tempo (…)” o que causa muitas vezes traumas que podem ser irreversíveis e, por isso quando estamos perante uma mulher vítima de tráfico, devemos saber o que fazer e como fazer. E por isso a ajuda deverá passar por uma equipa pluridisciplinar com formação para saber realmente ajudar e que em nosso entender exige: disponibilidade, ausência de preconceitos, relacionamento empático, assertividade, atitude de não julgamento e de não culpabilização, empenhamento, e “intenção autêntica de compreender o Outro na sua própria linguagem, de pensar e agir pelos seus próprios termos, de descobrir o seu universo subjectivo, isto é de apreender as significações que a situação tem para o Outro, porque cada pessoa é única e singular“ (Carl Rogers, 1983). Traduz-se num processo metodológico que exige uma relação de confiança (que leva


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tempo) e uma relação afectiva (envolvimento emocional controlado) entre quem ajuda e as vítimas, e que assenta em três dimensões, três competências da prática profissional: • o conhecimento da situação tal como é “vivida” pelas mulheres •a compreensão e a aceitação como pessoa com dignidade inerente a todo o ser humano, tendo em conta os constrangimentos que sofreram no seu percurso de vida. Acreditar e faze-las acreditar nas suas capacidades e possibilidades para a mudança • a construção de um projecto de vida em que as mulheres são co-agentes do processo. O acompanhamento a mulheres vítimas de violências várias exige uma intervenção holística, isto é, é necessário ter em conta a globalidade e a complexidade do ser humano, centrando-se na totalidade do indivíduo. É assim que O Ninho trabalha. É uma Instituição Particular de Solidariedade Social que tem por objectivo a promoção humana e social de mulheres vítimas de prostituição e de mulheres traficadas para fins de exploração sexual. Fazemos um trabalho qualitativo, o que significa que não temos pressa, que respeitamos o tempo da mulher que necessita de ajuda, que fazemos o melhor que sabemos com o capital de experiência adquirido ao longo de 41 anos e com a partilha de experiências com organizações congéneres da Europa e do Brasil. A metodologia de carácter qualitativo é direccionada na interpretação das lógicas dos actores sociais, num domínio social caracterizado pela exclusão, no panorama valorativo subjacente às suas trajectórias, o que vem reforçar as situações em que se torna necessário captar traços específicos, tais como atitudes, motivos, motivações, pressupostos e quadros de referência. Por isso, a abordagem qualitativa permite descrever, interpretar e compreender no sentido da lógica que as mulheres imprimem às suas acções, onde a interpretação e a compreensão desenvolvidas por elas e a busca do sentido dado à realidade social figura como principal objectivo. O Ninho utiliza uma metodologia capaz de “sistematizar a memória oral dos indivíduos em análise, abrangendo, para o efeito, a preocupação de se aproximar cada vez mais do real concreto” (...) Assim para atingir este domínio, a opção pelas “Histórias de Vida” ou “Récitis de Vie” que pressupõe a “ técnica de escuta (...) que vem fazer falar os povos do silêncio” através das raparigas e mulheres que acompanhamos. Este método permite-nos organizar o sentido e a consistência das suas vidas na interacção com as estruturas e com as instituições sociais. É, pois, aqui, que reside a “veracidade” das histórias e a “sinceridade” dos actores na articulação coerente com o seu percurso. Assim, a história de vida, enquanto material qualitativo personalizado, reveste-se ou pode revestir-se daquele aspecto de exercício em liberdade que caracteriza, com efeito, a escrita de um diário. (Brilhante, M. 2000)


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Uma história exemplar: “ Aos 14 anos vim para a Europa. Vivia na terra e da terra numa aldeia africana. Vivia em pobreza extrema. Vim para trabalhar e mandar dinheiro para matar a fome à minha família. Foi um homem que disse que me trazia para um país rico da Europa onde se ganhava muito dinheiro. A minha família disse que sim – “Se é bom para ela é bom para a família”. Era uma forma de o meu filho homem poder estudar. (...) Era uma forma de não passar tanta fome. A minha irmã também veio comigo. Ela tinha 16 anos. Ele tratou dos documentos. Mostrou os passaportes à minha família. Mostrou as viagens de avião que havia comprado. Quando tivéssemos dinheiro lhe pagaríamos todos os gastos e as trabalheiras que teve nesses afazeres. Não disse quanto, nem ninguém lhe perguntou. A minha irmã ficou numa cidade que ele disse ser de França. “ Um país muito rico onde tu ganhas o que preciso for”. Eu continuei viagem com ele. “Estamos em Espanha”. Um país também cheio de promessas para o ganho do dinheiro. Nunca mais vi a minha irmã. Fui posta numa casa com outras raparigas. Todas nós éramos muito novas. Éramos 17. Era uma torre com vários apartamentos. Não conhecia ninguém! Eram raparigas que me pareciam assustadas e indiferentes. Não compreendia a palavra delas, nem elas a minha. O primeiro cliente tinha, penso, 40 anos, não sei bem. Fechadas num quarto todo vermelho, cama redonda, espelhos onde eu me olhava como se eu fosse muitas. Homens também eram muitos e todos iguais. Obrigou-me a despir. E fez tudo, mas tudo o que quis de mim. Chorei, gritei, implorei. Nada. Ele foi indiferente. Indiferente não. Sorria e os olhos brilhavam. Eram de vidro pensei. Estive lá um ano. Veio o homem “amigo” o da minha terra. Implorei-lhe que me levasse dali. “Ainda me deves dinheiro”. Sorriu, pensei que com carinho... Eu pago tudo o que devo, mas leva-me contigo. “Vamos para Portugal”, prometeu. Entregou-me a outro homem que numa carrinha fechada andou muito tempo. Não sabia se já era dia. Não, não sabia. Fui novamente para um andar. Aconteceu o mesmo que no outro lugar que se dizia Espanha. Estive lá três anos.


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Todos os dias, todas as semanas o tempo sem horas. Veio outro homem que me levou de lá numa carrinha, outra fechada, e que me despejou com mais cinco numa rua de Lisboa, disse-me depois uma mulher que fui encontrando nos dias futuros. Até que enfim estava na rua, a agarrar o ar, o vento, a chuva, o frio, o calor. Já não era o mesmo ar de homens, que agarravam o meu corpo preto, com cheiro a perfume e com olhos de vidro cobiçando o fazer de prazeres arrancados de mim. A água da chuva lavava-me a alma, ensopava o meu corpo. Inspirava profundamente o cheiro da terra, o cheiro do ar, voando para a terra do meu lugar distante em lembranças passadas nos meus tempos de infância... Como fugir desta carrinha que me levava de uma casa para a rua, e da rua para a casa? Eu era outra. Acordava de noite com pesadelos de morte. Os meus mortos perseguiam-me vivos, esses seres errantes apontavam-me o fogo purificador que me queimava a carne e a alma. Deixava-me ficar transformada em cinzas que penetravam a terra e que lhe dava vida. Eu renascia das cinzas e voltava a ser uma mulher de 14 anos purificada no Ser do meu filho que ficou na terra esperando por mim. Mas eu não voltarei. Serei morta. Contar na minha terra o que eu fazia na Europa do sonho africano não tinha perdão. “Se não fizeres isto conto à tua família e a todos os da tua aldeia”. O terror é de tal tamanho que não sei falar em palavras. Estou num lugar estranho. Sou estrangeira, preta, deambulando numa rua para traz e para a frente, indo com homens, recebendo dinheiro sem saber porquê. Hoje não me vendo. Alguém me ajudou sem medo dos homens que me metiam medo. Devolveu--me à terra deste país estrangeiro onde sou preta estrangeira. Cheiro o cheiro da terra, da água que rega esta terra onde crescem árvores plantadas por mim, flores, sebes, jardins. Mexo e remexo na terra que me entra no ser e me purifica. Afinal em terra estrangeira, uma preta estrangeira encontrou um lugar onde a terra lhe foi devolvida e a dignidade lhe foi concedida. Sonho, sonho sempre que o futuro está a vir. Há-de vir toda a minha família para esta terra estrangeira para não passar fome e onde o meu filho homem há-de estudar. Eu não posso voltar.”


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Helena Carrilho Membro da Comissão para a Igualdade entre Homens e Mulheres da CGTP-IN

A CGTP-IN desenvolve a sua ação, colocando no centro da atenção os problemas do mundo laboral, dos trabalhadores e das trabalhadoras. O tráfico de seres humanos é um fenómeno crescente de violência e de discriminação nas sociedades ditas desenvolvidas e as suas vítimas são, na maioria, mulheres. Verificamos que as vítimas que são traficadas para exploração sexual, são conduzidas a uma situação de escravatura de todo intolerável e contrária aos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Temos vindo a assistir ao aparecimento de correntes de opinião na sociedade portuguesa, que defendem que a prostituição deve ser considerada como um “trabalho” e neste sentido como uma “profissão”. A CGTP-IN, consciente que a prostituição está frequentemente associada ao problema do tráfico de seres humanos, considera que a mesma também contraria a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao admitir, que a pessoa humana possa ser considerada como uma “mercadoria”. A CGTP-IN tem vindo a desenvolver uma discussão ampla sobre esta matéria, nomeadamente com ONG’s (Organizações Não Governamentais) que possuem trabalho neste domínio e um conhecimento aprofundado sobre esta problemática, participando também em iniciativas públicas que têm vindo a ser realizadas. A nossa perspetiva sobre esta matéria está focalizada no âmbito da consideração, proteção e defesa da pessoa humana, enquanto mulher, homem, rapariga ou criança, que por norma são arrastados para a prostituição, por razões que radicam em motivos económicos e sociais, que importa identificar, conhecer e combater. Neste sentido defendemos, enquanto parte integrante, ativa e transformadora da sociedade, que temos uma responsabilidade acrescida, para que se verifique uma real alteração e melhoria das condições socioeconómicas das pessoas conduzidas à necessidade de a ela recorrer para sobreviver, num mundo onde crescem a exploração e as desigualdades. Comungamos da ideia adotada pelo nosso ordenamento jurídico, da sua não criminalização, defendendo, porém, que o corpo não pode ser considerado como um objeto transacionável, destituído de qualquer valor afetivo. Por isso a prostituição constitui um problema humano e social assente na exploração e injustiça, que persistimos em combater, fazendo parte dos princípios da CGTP-IN, a defesa dos direitos da pessoa humana, nela se inscrevendo, o combate ao tráfico de seres humanos e a proteção das suas vitimas, aderindo não só à Estratégia da UE Contra ao Tráfico de Seres Humanos, como à implementação da Diretiva correspondente (nº 36, de 2011, da UE). Reafirmamos o nosso empenhamento na discussão, tendo em conta todas as questões


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sociais, económicas e políticas relacionadas com o crime de tráfico de seres humanos, a necessidade imperiosa de o combater e erradicar, na defesa do Trabalho Digno, em igualdade e sem discriminação.


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Maitet Ledesma Associação GABRIELA – Filipinas

Já passaram três décadas desde a primeira campanha da GABRIELA “JUSTIÇA PARA LISA”, uma mulher vítima de tráfico sexual para a Holanda, e ainda não existem mecanismos ou instrumentos concretos para reduzir, senão mesmo impedir, o tráfico sexual. Assim sendo, continua a florescer e os seus perpretores - tanto individuais como grandes organizações - continuam impunes e livres para prender mais mulheres que se encontram em situações difíceis e de vulnerabilidade. Relatórios sobre tráfico sexual de mulheres filipinas continuam a preencher as páginas dos jornais desde os anos 80 até ao presente. Além do célebre caso de Lisa (em 1981), por exemplo, em 1995, 150 Filipinas foram vendidas para o sexo na Nigéria. Em 1998, 196 Filipinas, incluindo seis menores, foram resgatadas da prostituição em Beirute. Em julho de 1999, um jornal informava que cinco Filipinas foram recrutadas como artistas na Coreia do Sul e obrigadas a despirem-se e a terem relações sexuais com os clientes na frente de outros. Em março de 2001, 15 Filipinas foram resgatadas de um covil do sexo na Costa do Marfim, na África Ocidental. Em julho de 2001, um grande número de jovens foi resgatado numa operação em Los Angeles. Soma-se a tudo isto um número incontável de jovens mulheres incógnitas que são traficadas para o Japão, e que de acordo com o Centro de Mulheres BATIS, chegam actualmente a 351. Com as controvérsias que cercam o Artist Record Book (ARB), não é inverosímil que o ARB, admitido pelo Estado, possa ter contribuído para o tráfico de mulheres Filipinas para o Japão. Ainda a uma escala maior, a Comissão Nacional sobre o papel das Mulheres Filipinas estima que entre 25,000 a 35,000 Filipinas são traficadas por ano em todo o mundo e que 200.000 Filipinas estão no comércio do sexo, no exterior. Enquanto o tráfico sexual permanece descontrolado, bilhões de dólares são espremidos do corpo e do trabalho das mulheres. Em 2000, por exemplo, o comércio sexual mundial foi avaliado em cerca de 17 bilhões de dólares norte-americanos, um negócio rentável de facto, num tempo de crise económica. Não há como negar que a crise económica, cada vez pior no país, provocada pela adesão continua da actual administração ao regime global de privatização, desregulamentação e liberalização, irá agravar ainda mais o tráfico de mulheres e crianças na medida em que as suas oportunidades de uma vida digna se torna nula, quando não, uma ilusão. Todas as mulheres, especialmente as jovens e as mais desprotegidas, são potenciais vítimas e estão numa posição de vulnerabilidade ao tráfico e à exploração. No Iraque, por exemplo, a guerra dos EUA torna a situação ainda pior para as mulheres que uma vez mais são colocadas à disposição dos homens em serviço como aconteceu durante a Guerra do Golfo, onde mulheres Filipinas, num número desconhecido, foram violadas. O tráfico sexual é um crime que avilta as mulheres como pessoas. Não apenas devasta o seu estado físico e mental enquanto lucra da exploração dos seus corpos, como mais


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profundamente, viola fortemente as sobreviventes ao nivel psicologico marcando-as para sempre, mesmo quando é feita justiça. É uma ofensa social e criminal que reforça a imagem das mulheres como mercadorias e objectos sexuais. Para nós, o tráfico sexual é o recrutamento, transporte, transferência, abrigo e/ou alojamento de pessoas com ou sem o seu consentimento ou conhecimento através de meios legais ou ilegais, dentro ou além das fronteiras nacionais, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, abdução, fraude, engano, abuso de poder ou de posição, aproveitando-se da vulnerabilidade da pessoa, ou, a entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração, que inclui, no mínimo, a exploração ou a prostituição de outrem. Para nós, o que constitui o tráfico sexual, é, portanto, qualquer acto de recrutamento, transporte, transferência, recebimento e / ou abrigo de pessoas, especialmente mulheres e crianças para fins de exploração e / ou prostituição para a gratificação sexual de outras pessoas, para além da questão da intenção, conhecimento e consentimento das mulheres traficadas. A nossa experiência de assistência às mulheres vítimas de tráfico apresentou-nos as diversas formas e meios pelas quais as mulheres são traficadas, e sabemos que isso não acontece sem o conluio entre funcionários e responsáveis governamentais com agências de recrutamento, recrutadores e promotores. A rede de tráfico é tão complexa e sistémica que é fundamental e necessária uma abordagem abrangente para lidar com o problema do tráfico sexual. Nesse sentido, a necessidade primeira e fundamental é resolver a crise económica que reconhecidamente torna as mulheres vulneráveis ao tráfico A pobreza das mulheres, deve, portanto, ser abordada como forma de atenuar pressões para migração involuntária e voluntária e a servidão das mulheres. Medidas e programas concretos devem ser instituídos para tratar o desemprego, os baixos rendimentos, a falta de oportunidades, muitas vezes geracionais, o afastamento e isolamento das suas comunidades devido a todo o tipo de violência, como por exemplo, conflitos armados, e o analfabetismo que força as pessoas especialmente mulheres e crianças de comunidades pobres à escravidão sexual e outras análogas. Além disso, às vítimas de tráfico sexual deve ser proporcionado o direito a apoio e criados mecanismos que assegurem a sua recuperação, repatriamento, segurança, reabilitação e reinserção social. Somos contra todas as formas de tráfico de mulheres e apelamos aos nossos legisladores que aprovem medidas que abranjam todas as formas e espaços, incluindo, mas não limitados a: arrendamento ou subarrendamento de espaços utilizados para o tráfico sexual; produção, impressão e outras formas de emissão de documentos e certificados usados no tráfico; publicidade e promoção de tráfico sexual; auxílio na falsificação ou fraude de documentos; facilitação ou ajuda na saída ou na entrada; confiscação, ocultação ou destruição de documentos de pessoa traficada; patrocínio, compra ou contratação de serviços de pessoas, especialmente mulheres e crianças para exploração sexual; lucros do trabalho forçado e escravidão; recrutamento de mulheres e crianças para a prostituição militar; sistema de angariação de noivas por


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correspondência, tráfico de “mulheres de conforto” exploradas sexualmente em bordéis militares, especialmente por parte das forças militares; e utilização da internet para falsa propaganda de casamentos mas para fins de tráfico sexual. A punição aplicada deve ser igual ao crime cometido. É necessária uma lei que puna os infractores de forma proporcional ao crime cometido. O tráfico sexual não é, e não é igual ao recrutamento ilegal, actos de libertinagem ou de qualquer outro crime contra as mulheres. O tráfico sexual é uma ofensa social e um crime que deve ser resolvido principalmente nos tribunais. Séria atenção deve ser dada às práticas de corrupção de funcionários públicos e de agências supostamente preocupadas com tráfico e que compactuam com agências de recrutamento e de promoção e de organizações que traficam mulheres. As políticas e mecanismos de migração devem, ainda, livrar-se de espaços e mecanismos que promovem o tráfico sexual. O problema do tráfico sexual, embora seja basicamente o resultado da pobreza também é o resultado de uma visão patriarcal que as mulheres não são mais do que produtos.

Assim, há a necessidade de pôr em prática ao nível da comunidade, programas de informação, educação e de defesa contra o tráfico de pessoas, bem como um programa de reorientação que defenda a visão de que as mulheres não são mercadorias ou objectos sexuais. Aqui vemos o envolvimento das comunidades locais e entidades oficiais, como cruciais para a contenção do tráfico de pessoas. Três décadas de tráfico sexual de mulheres Filipinas são mais que suficientes. O mínimo que o governo pode fazer é promulgar uma lei contra o tráfico que as proteja. O “Acto Anti-Tráfico de Pessoas” é uma legislação importante para as mulheres e crianças, especialmente aquelas que são vítimas de tráfico sexual e aquelas que estão em situação de vulnerabilidade. Não é, contudo, nem uma garantia, nem o princípio ou o fim para a resolução do problema do tráfico sexual. Enquanto não se reconhecer que a força de trabalho da mulher, e não o corpo da mulher é vital para a vida económica do nosso país, o tráfico sexual não terá fim.


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ROMPER SILÊNCIOS CAMPANHAS, RESPOSTAS E POLÍTICAS DE COMBATE À PROSTITUIÇÃO E TRÁFICO Brigitte Triems Presidente do Lobby Europeu de Mulheres (LEM) (comunicação apresentada com suporte PowerPoint)

A Prostituição é violência contra as mulheres: Campanha do LEM “Juntas por uma Europa Livre de Prostituição” Lobby Europeu das Mulheres (LEM): a voz democrática das mulheres a nível Europeu • A maior organização de associações de mulheres na União Europeia, que trabalha na promoção dos direitos das mulheres e da igualdade de género na Europa; • Membros em todos os 27 estados da UE e em três países candidatos, assim como 21 associações a nível europeu, representando mais de 2.500 organizações de mulheres Principais áreas do trabalho Político do LEM • Políticas e legislação europeia sobre igualdade entre mulheres e homens • As mulheres nas tomadas de decisões / Paridade • Emprego e Assuntos Sociais • Violência contra as mulheres e tráfico de mulheres • Imigração, Integração e Asilo. Carta de Príncipios do LEM sobre a Violência Contra as Mulheres, Prostituição e Tráfico de Mulheres: • A prostituição e o tráfico de mulheres constituem violações fundamentais dos direitos humanos das mulheres • A prostituição e o tráfico de mulheres não devem ser associados aos termos “forçado” ou “livre” • “a livre escolha” é um factor relativo • A desigualdade restringe severamente a liberdade de escolha • A prostituição é um dos principais obstáculos à igualdade de género nas nossas sociedades


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UNODC, 2009 “A exploração sexual, geralmente forçando uma pessoa à prostituição, é a forma mais comum de tráfico de seres humanos, representando mais de 79% de todos os casos registados de tráfico de pessoas”. Mitos sobre prostituição • As mulheres escolhem ser prostituídas • A prostituição é liberdade sexual • A prostituição é a profissão mais antiga do mundo • A prostituição nunca vai desaparecer • A prostituição é um trabalho como outro qualquer, que dá liberdade às mulheres. • A prostituição é necessária para alguns homens • Sem a prostituição, haveria mais violações. Uma escolha? • Mais de 95% das mulheres na prostituição de rua são consumidoras problemáticas de drogas • 9 em cada 10 mulheres na prostituição gostaria de sair do sistema de prostituição mas sentem-se incapazes de fazê-lo • Entre 50 a 90% das mulheres na prostituição em grandes cidades da Europa Oriental são estrangeiras • 75% das mulheres vítimas de tráfico para exploração sexual têm menos de 25 anos • Cerca de 80% das mulheres na prostituição foram abusadas sexualmente durante a infância.1 Um trabalho como outro qualquer? • Na Europa Ocidental, estima-se que mais de 50% das pessoas na prostituição são menores de idade. Crianças de 11 anos trabalham como prostitutas e são usadas na produção de filmes pornográficos > Há uma explicitada solicitação de crianças2 • Em Londres, as mulheres na prostituição têm uma taxa de mortalidade 12 vezes mais elevada que a média nacional. • No Reino Unido, cerca de 1/5 das mulheres sem abrigo recorreram à prostituição para escapar das ruas à noite3. Uma solução para homens desesperados? • 43% dos homens estavam com amigos quando se envolveram na prostituição como clientes. • 65% tiveram sua primeira experiência organizada por amigos ou colegas > A pressão entre pares, ligada a uma ideia estereotipada de “masculinidade”4 Uma expressão de liberdade sexual? • Para 10% das raparigas e 37% dos rapazes entrevistados, é normal receber dinheiro ou presentes em troca de sexo oral.


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• A idade média de entrada para a prostituição é 13-14 anos, e não existem evidências de que esta média esteja a diminuir.5 O que é a prostituição? • O acto de envolvimento em relações sexuais por dinheiro > Imagem tradicional das pessoas na prostituição • Mas a prostituição também implica clientes, proxenetas e redes, o Estado e a sociedade > Vários actores envolvidos > Sistema prostitucional. O Tráfico de Seres Humanos existe porque … … existe prostituição: 79% dos casos reportados de tráfico de seres humanos é para fins de exploração sexual. … a prostituição : Gera lucros que atinguem 27.8 biliões de dólares norteamericanos com a exploração sexual das vitimas.6 Prostituição na Europa… • 17 dos 27 Estados Membro da União Europeia ratificaram a Convenção das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem. E o seu país? • 20 dos 27 Estados membro da UE ratificaram a Convenção do Conselho da Europa Relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos (16 de Maio de 2005); Artigo 4 – Definições: TSH para o propósito de exploração, inclui a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual... • Portugal ratificou a 27 de Fevereiro de 2008 • Os seguintes Estados Membro não o fizeram: República Checa, Estónia, Finlândia, Alemanha, Grécia, Hungria e Lituânia Na Europa existem hoje três abordagens principais para o sistema da prostituição: • Regulamentarismo: a prostituição é um trabalho, o proxenetismo está descriminalizado (Alemanha, Países Baixos) • Abolicionismo: a prostituição é considerada como violência contra as mulheres, o proxenetismo e os clientes são criminalizados (Suécia, Noruega, Islândia) • Proibição: “simplesmente esconde-o!” As pessoas em situação de prostituição e proxenetismo são criminalizadas, e por vezes, também o são os clientes (Croácia) A abordagem regulamentarista: dez anos depois ... (Alemanha, Holanda) Impacto sobre as pessoas prostituídas • Condições ainda mais precárias. • Diminuição de bem-estar (emocional, social, legal, etc.).


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• Não há oferta de alternativas. Impacto sobre o tráfico • Aumento do crime organizado e do tráfico • 50 a 90% das mulheres na prostituição foram traficadas • Aumento do tráfico de crianças e prostituição A abordagem abolocionista: dez anos depois ... (Suécia) Impacto sobre as pessoas prostituidas • Redução da prostituição de rua (para metade) • Não há evidência de envolvimento de suécos em turismo sexual no estrangeiro. Impacto no tráfico • Diminuição do crime organizado e do tráfico Impacto na sociedade • Aumento do apoio à lei • Diminuição do número de clientes de prostituição Para acabar com o tráfico de mulheres, precisamos acabar com a prostituição. Ao tolerarmos o sistema prostitucional, apoiamos os traficantes e o crime organizado. A prostituição é uma forma de violência masculina contra as mulheres. • A prostituição não é uma questão de “escolha” - O que é “livre escolha”? • A prostituição não é uma questão de sexualidade - Não há nada de sexualmente novo na prostituição! • A prostituição é sobre o patriarcado: é a derradeira forma de controlo do corpo das mulheres e da sua sexualidade, através de uma troca de dinheiro ou de um abuso de uma relação económica desigual. Prostituição é violência contra as mulheres • A prostituição é parte do continuum histórico de violência masculina contra as mulheres. Incesto, violação, violação marital são actos proibidos graças as ONG’s de mulheres. • O sistema prostitucional permanece como o derradeiro lugar da dominação masculina, legitimada por uma representação distorcida de igualdade numa troca comercial - troca de dinheiro é tudo menos uma expressão de igualdade. • Recusar a prostituição é estabelecer um padrão de dignidade humana para todas as mulheres e meninas no mundo • Recusar a prostituição é apelar a uma sexualidade livre, verdadeira e respeitosa - somos “pró-sexo”! > Não haverá verdadeira igualdade, enquanto existir prostituição de algumas mulheres por alguns homens. Princípios abolicionistas do LEM A prostituição de mulheres e meninas constitui uma violação fundamental dos direitos humanos das mulheres e uma forma grave de violência masculina contra


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as mulheres. A tolerância da UE e dos seus Estados-membros para o sistema da prostituição permite aos homens o uso e o controlo sobre o corpo e a sexualidade das mulheres, e alimenta o tráfico de mulheres para exploração sexual. A persistência de sistemas de prostituição nos Estados-Membros da UE demonstra o fracasso a nível europeu para se alcançar a igualdade de gênero e promover os direitos das mulheres. Exigências políticas do LEM • Não repressão contra pessoas na prostituição / Não tributação dos seus rendimentos / alternativas concretas / incondicionalidade na atribuição de autorizações de residência a pessoas estrangeiras na prostituição / Igualdade de tratamento às vítimas da violência masculina • Tornar crime o acto de compra de “serviços” sexuais / Campanhas de responsabilização e de dissuasão dirigidas a clientes de prostituição • Prevenção da prostituição / Educação para a sexualidade / sensibilização sobre a realidade da prostituição e quebra de estereótipos associados • Condenação de todas as formas de proxenetismo e lenocínio e recusa da sua descriminalização / Restituição de todos os benefícios e fundos obtidos pelo proxenetismo Campanha do LEM “Junt@s por uma Europa Livre de Prostituição” Lançada em 17 de Junho de 2011 em Bruxelas Objectivos: • Aumentar a conscientização sobre a realidade da prostituição • Informar sobre as opções legais nos diferentes países europeus e defender a visão abolicionista • Apoiar as ONG’s abolicionistas activas a nível nacional • Iniciar um Movimento Abolicionista Europeu • Apoiar mulheres sobreviventes de prostituição • Envolver os homens e alterar a pressão entre pares para uma atitude positiva em relação à igualdade e respeito pelos direitos das mulheres > Precisamos de mudança social e política! Instrumentos Film e clip ‘Not for sale’ (2006) / Clip ‘Por uma mudança de perspectiva’ (LEM, 2011) Apelo > Assine! / Sites da campanha com informação e recursos / Postal / Logo comum

1. Home Office, Paying the price, 2004 2. Eurojust News, Abril 2010 (do Relatório do CE sobre crime organizado) 3. Home Office (2004a). Paying the Price: A Consultation Paper on Prostitution. London: UK Government. 4. Anderson & O’Connell Davidson, 2002. Farley et al., 2009 5. Danish social services, 2008 Benson, C. and Matthews, R. (1995), Street prostitution: Ten facts in search of a policy in International Journal of Sociology of the Law, Vol. 23, pp395-415 6. UNODC 2009 Global Report on Trafficking in Persons, UNODC Preliminary findings of the human trafficking database (2003), Europol Mai 2007


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Sandra Benfica Coordenadora do Projecto “Tráfico de Mulheres - Romper Silêncios” MDM – Movimento Democrático de Mulheres

Antes de mais, permitam-me que vos cumprimente em nome da equipa do Projecto Romper Silêncios - Lisboa e Algarve, agradecendo a vossa presença nesta Conferência Internacional que constitui um momento muito importante para o nosso trabalho e para a nossa organização. Desejava igualmente referir e agradecer as muitas mensagens recebidas de amigas e amigos, de organizações, instituições e entidades do mais variado âmbito, que não podendo estar presentes não quiseram deixar de se associar fazendo-nos chegar votos de êxito. Às organizações internacionais aqui representadas e às nossas oradoras, companheiras de um longo percurso na defesa dos direitos das mulheres em todos os continentes, certas que esta Conferência servirá para reforçar a coordenação dos esforços das nossas organizações na luta contra este terrível crime. A vossa presença tem um significado muito especial para nós e constitui um forte e gratificante estímulo ao nosso trabalho. Para nós, tráfico de seres humanos é sinónimo de escravatura. Tal como é sublinhado por um vastíssimo número de Organizações internacionais, existem hoje milhões de pessoas escravizadas, reduzidas à condição de mercadoria, aliás, em número que não encontra paralelo nem nenhum momento da história da humanidade. São na sua maioria mulheres e crianças, traficadas com o objectivo de alimentar um negócio altamente lucrativo que rivaliza com o tráfico de droga e armamento, impondose neste momento, e de acordo com as Nações Unidas, como uma indústria que gera um lucro anual de 5 a 7 biliões de dólares americanos. Mulheres e crianças destinadas a uma vida de trabalho forçado, mendicidade, e estimase que 80% dessas são-no com fim da sua exploração sexual e prostituição, ou seja, 700 mil mulheres e crianças a cada ano. Metade são menores de idade, situando-se a idade média de entrada para a prostituição ou exploração sexual nos 12 anos; e todas elas, sem excepção, são sujeitas a actos de violência, que inclui violações, torturas, abortos forçados, fome, ameaça de represálias sobre familiares e não poucas vezes, homicídio. Poucos ou mesmo nenhum país está imune a esta realidade, e Portugal é mesmo apontado como um país que não cumpre as regras de combate ao tráfico. De acordo com o relatório estatístico do Observatório do Tráfico de Seres Humanos de 2010, o nosso país parece seguir a tendência internacional, particularmente se atendermos aos dados revelados ao nível da sinalização de vítimas: São, sobretudo, mulheres para fins de exploração sexual. Partindo dessa evidência é incompreensível que subsista o não reconhecimento da íntima ligação entre tráfico e prostituição. É que o tráfico está correctamente associado


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a uma forma de escravatura, a uma severa violação dos direitos humanos, a um negócio sujo, portanto inaceitável e condenável. Já a prostituição, continua a ser vista por muitos, como algo desagradável e socialmente incómodo, mas pertencente ao foro individual, justificado como uma opção ou escolha de cada mulher. Esta dissociação, para além de errada, branqueia a prostituição como um sistema organizado para o lucro; cria duas categorias de mulheres prostituídas, as vítimas (no caso de mulheres traficadas) e as que “escolhem” para si essa “actividade” – é a materialização da teoria da prostituição dita consentida e da forçada – cria igualmente sérios perigos no quadro do combate ao tráfico e distorce o próprio estatuto social da mulher. O debate, embora velado, visando a legalização da prostituição, está em curso na sociedade portuguesa, inclusive com reflexos do ponto de vista institucional e governamental, que implicitamente qualifica a prostituição como um trabalho, uma profissão aceitável para as mulheres, fazendo uso, também, mas não só, do argumento do exercício de direitos, sociais, económicos, laborais e humanos de cada indivíduo que “opta” por se dedicar a essa “actividade”. Sabemos a que caminho nos leva a promoção dessa teoria. Se olharmos para os países que legalizaram a prostituição verifica-se que esta não diminuiu, tão pouco diminuiu o tráfico, ou se garantiu direitos para as mulheres prostituídas, bem pelo contrário: Nesses países, a indústria do sexo foi promovida a um negócio legítimo, passando os proxenetas a respeitáveis homens de negócios com a aprovação do Estado. O lucro do negócio aumentou, lucro de que o Estado também beneficia. Na Holanda, por exemplo, em 2004 (dados do Conselho Económico e Social das Nações Unidas) a indústria gerava 1 bilião de dólares americanos. Os traficantes passaram a utilizar as autorizações de trabalho para trazer mulheres estrangeiras para a indústria da prostituição. Só na Alemanha, onde a prostituição foi legalizada em 2002 em nome da redução do tráfico, dados de 2010 revelaram que num período de 5 anos o tráfico aumentou 70%. E quando as barreiras legais desapareçam, também desaparecem as barreiras sociais e éticas que permitem tratar as mulheres como uma mercadoria sexual. Inúmeros estudos apontam para o aumento das formas, bem como da crueldade, infligida a mulheres e meninas na prostituição. Nesse sentido é fundamental sublinhar que há muito que estão identificadas as causas e os factores que criam as condições que tornam as mulheres mais vulneráveis ao tráfico e as empurram para a prostituição, fazendo florescer o negócio. Causas associadas à pobreza, ao racismo, à migração, à desigualdade, à discriminação, à globalização e ao colapso económico das mulheres. Factores que estão intimamente ligados ao aumento da insegurança económica, de maior risco de desemprego e pobreza e de ressurgimento de práticas discriminatórias contra as mulheres. Para nós MDM, defender os direitos das mulheres, lutar pela sua dignidade, respeito pela sua condição e reconhecimento do seu estatuto social, passa também por nos opormos ao tráfico de mulheres e denunciar as suas causas.


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Este Projecto nasce dessa profunda convicção. É seu objectivo central, aprofundar o conhecimento do público em geral, e das mulheres em particular, sobre o tráfico, centrado nos concelhos de Lisboa, Amadora, Setúbal, Faro e Lagos. Para tal, trabalharemos em vertentes diferentes: com a comunicação social nacional e local; com entidades ligadas ao estudo e acompanhamento do tráfico, com comunidades imigrantes (mais próximas do fenómeno); com a juventude, em escolas, associações juvenis ou outras estruturas que integrem jovens. Podemos, se é possível tal a sua complexidade, resumir e integrar os objectivos mais gerais do Projecto na seguinte linha de intervenção: “Desocultar, informar, sensibilizar, conhecer, debater e agir” - porque este é ainda um fenómeno oculto na nossa sociedade, que se alimenta do silêncio e da mais profunda clandestinidade; porque é necessário desconstruir estereótipos associados particularmente à natureza do crime e às suas vítimas; porque é fundamental aprofundar o conhecimento, o debate e o combate ao tráfico de seres humanos, também na sua relação com o estudo sobre as causas e consequências da prostituição; e finalmente porque urge actuar, a todos os níveis, combatendo esta forma de violência sobre as mulheres. Desde que iniciamos este projecto – em Outubro de 2011 - temos contado com o melhor acolhimento, sendo muito relevantes os inúmeros apoios e adesões à campanha, quer se trate da participação na rede de parcerias, quer se trate da programação de acções concretas de sensibilização, ou como podemos observar hoje mesmo, na participação nesta Conferência Internacional que excedeu as nossas mais elevadas expectativas. Revela em nossa opinião que a nossa sociedade se recusa a conviver passivamente ou mesmo tolerar um horrível fenómeno que atravessa fronteiras, negócio que rende milhões e arrasa os valores da dignidade da pessoa humana. E revela igualmente que nesta como em outras lutas contamos com muitas vozes para Rompermos Silêncios.


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Filomena Rosa Presidente do Centro de acolhimento temporário de Protecção da Rapariga- Faro

O direito a construir projetos de vida com direitos. Relatos de jovens raparigas com idades entre os 12 e os 18 anos Protegidas pela Lei de protecção de crianças e jovens em perigo Lei nº 147/99 de 1 de Setembro

Histórias de vida de quem não teve escolha: • Vítimas quando vivem; • Vítimas quando falam; • Vítimas quando silenciam. Para conseguirem proteção têm que falar demasiadas vezes sobre as situações de abuso…. … já os agressores agridem em privado e continuam com vida privada!

Violência e abuso: • Na família; • No namoro; • Nas fugas das instituições de acolhimento; • No tráfico para fins de exploração sexual e mendicidade; Alienação parental: treinada para obedecer incondicionalmente ao pai, privada desde sempre de contatos com outras crianças, com outros membros da família, com pessoas da comunidade, afastada da mãe, não tem amigos, nunca foi à escola ….medo… 13 anos “Quando é um estranho, ficamos assustadas, com medo … mas o pior de tudo é quando é alguém da nossa família!” 16 anos “Fugi da outra instituição e estive um ano fugida. Passei fome, o meu namorado batia-me muito, fiquei grávida, já tinha a barriga muito grande, um dia ele bateu-me na barriga e …” 15 anos


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“…choro porque o meu namorado chamou-me puta …e eu não tenho culpa do que me aconteceu…” 16 anos “Fugi da instituição e estive desaparecida durante 8 meses. Um dia um homem pôs-me uma pistola na cabeça e fez tudo o que quis … depois fez o mesmo à minha amiga…” 14 anos “numa fuga, fui violada por um homem a quem pedi comida …” 14 anos “O meu pai violou a minha mana e levava homens lá a casa. Quis fazer comigo e eu contei na escola …” 12 anos

Doloroso é viver; difícil é ouvir; difícil é falar; difícil é calar! Como “romper silêncios” sem que a vítima se sinta outra vez na condição de vítima????

Muito obrigada!


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Lúcia Gomes Jurista, Membro do Conselho Nacional do Movimento Democrático de Mulheres.

Uma perspectiva sobre os quadros legais possíveis no quadro do tráfico e da exploração sexual Recuo a 5 de Maio de 1838: em Lisboa publica-se um edital que procura limitar a área de actuação das prostitutas, proibindo-as de habitar em casas «próximas de templos, passeios ou praças». Neste ano, é publicado o «Regulamento Policial e Sanitário para Obviar os Males Causados à Moral e à Saúde pela Prostituição Pública», criando uma classificação: a divisão das mulheres prostituídas em três categorias «segundo o seu luxo», assim como as casas de passe, «segundo a sua ostentação». Esta mesma dita categoria, que, ainda hoje é entendida como prostituição de luxo: a que resultaria de escolha, e a prostituição de rua, a que resultaria da necessidade. A partir de 1850 estabiliza-se um modelo um modelo burguês de vivência do quotidiano. Poucas terão sido as personagens sobre as quais tanto se escreveu a partir de meados do século XIX e até ao início do século XX como a prostituta. Elevada a musa, tema de poesia e música que ocupavam os tempos boémios cortesãos, ela era, simultaneamente, o símbolo da decadência moral, mas um mal necessário para suprir as necessidades afectivas e sexuais dos homens, principalmente daqueles com posses. Em Lisboa emitem-se regulamentos em 1858 e 1865, que servirão de modelo aos de outras cidades do país como Porto e Évora caracterizados pelas preocupações sanitárias e esforços de severa regulamentação da actividade prostitucional. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa, determina no seu artigo 13º que «são consideradas meretrizes todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. Denominam-se toleradas quando se acham inscritas no respectivo registo policial.». E sempre, entregues ou matriculadas nas autoridades pelos seus proprietários – pais, maridos, irmãos mais velhos. A legislação e o discurso social transformam então estas mulheres em ameaças à estabilidade social e à moral pública, higienizando-se o discurso e as normas, submetendo estas mulheres a rigorosos controlos sanitários para evitar a propagação das doenças venéreas (daí a diferença entre as matriculadas e as que se encontravam em circulação) ao mesmo tempo em que se regulamentava a dita «profissão», não para garantir quaisquer direitos a quem se prostitui, mas a saúde e o bom nome dos clientes. Com os anos do fascismo, com o empobrecimento brutal e a degradação generalizada das condições de vida, entre 1925 e 1928, em termos globais, o número de matriculadas aumenta mais de 15%. Em 1928, verifica-se que, os dois maiores centros urbanos do país, no seu conjunto, englobam cerca de 2/3 do total (Lisboa acima dos 40% e o Porto perto dos 25%), cidades onde a pobreza era mais aguda e onde o controlo era mais fácil, dado que, no interior, a matrícula era um estigma social e como tal, evitado. Entre as razões adiantadas pelas mulheres prostituídas avultavam o abandono pelo amante e a miséria, embora em quase um terço dos casos a causa não fosse


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adiantada. Solteiras eram 94% e analfabetas 83%. Entre as que tinham ocupação profissional anterior, encontravam-se serviçais, domésticas e costureiras. Imperava, então, o discurso higienista, permitindo-se por decreto a prática da prostituição por maiores de 20 anos, em casas especificamente localizadas, desde que não causassem má vizinhança. Diz-se ter sido este, o primeiro passo neste processo: a remoção da sexualidade ilegítima dos espaços públicos. Em Itália, logo em 1923, a mando de Mussolini, a polícia ordenava a todas as prostitutas, incluindo praticantes “isoladas”, que transportassem um «passaporte especial com o registo dos seus exames vaginais de doenças venéreas.» E esta regulamentação, esta consideração da prostituição como profissão, como actividade comercial, como uma indústria, foi mesmo para o responsável das inspecções obrigatórias, Tovar de Lemos, algo que, afinal, tudo mudava para que tudo ficasse na mesma. Podemos ler na reflexão que abre o seu relatório de 1947: «Quanto à prostituição clandestina é extraordinário o número de raparigas que a exerce. Não se sabe hoje onde começa o que se pode chamar prostituição clandestina nem onde acaba. É difícil fixar os limites do que se pode chamar prostituição clandestina dentro do esbatido que vai desde a profissional que vive da prostituição 100% até à rapariga quase 100% honesta» Nestas palavras com mais de 60 anos, revemos as tendências ditas modernistas dos dias de hoje, no que ao tráfico de mulheres e à prostituição diz respeito. São muitos os instrumentos internacionais e nacionais a que Portugal está vinculado: a Lei n.º 23/80, de 26 de Julho, que ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Resolução da Assembleia da República n.º 17/2002, de 8 de Março, que aprovou para a ratificação o Protocolo Opcional à Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 5/2002, de 8 de Março, bem como a Decisão-Quadro do Conselho, de 19 de Julho de 2002, relativa à luta contra o tráfico de seres humanos, ao considerar que este «constitui uma grave violação dos direitos humanos fundamentais e da dignidade humana e implica práticas cruéis, como a exploração e manipulação de pessoas vulneráveis, bem como a utilização de violência, ameaças, servidão por dívidas e coacção», sendo que o consentimento das vítimas é irrelevante. Já em 1993 a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre os direitos humanos afirmou, na Declaração e Plataforma de Acção de Viena que «Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis, integrais e são uma parte indivisível dos direitos humanos universais.» «A violência baseada no sexo e todas as formas de perseguição e exploração sexual, incluindo aquelas resultantes de preconceitos culturais e tráfico internacional são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e devem ser eliminados.» Não obstante, a United Nations Office on Drugs and Crime estima que mais de 2,4 milhões de pessoas são actualmente vítimas de tráfico para fins comerciais. Segundo o relatório Global Report on Trafficking in Persons, de Fevereiro de 2009, a exploração sexual assume-se como a forma mais relatada de tráfico, com 79% dos casos.


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De acordo com a OIT, a exploração sexual é de 63% nas economias industrializadas, sendo que Portugal é um país de destino, origem e passagem de vítimas de tráfico. E Portugal tem vindo a ser sistematicamente descrito em vários relatórios internacionais, como é o caso dos relatórios anuais do U.S. Department of State, como um país que apenas cumpre os requisitos mínimos no combate ao tráfico, baseandose mesmo em dados transmitidos por entidades governamentais portuguesas que, em muitas situações, não retratam, minimamente, a realidade portuguesa. Assim, publicados que foram os dois Planos Nacionais contra o Tráfico de Seres Humanos e instituído o seu Observatório, que tem vindo a desenvolver um meritório trabalho de sensibilização, estudo e divulgação desta realidade, podemos ler no 2º Relatório Anual que durante 2010 foram realizadas 3.048 acções de combate à imigração ilegal e tráfico de pessoas, tendo existido um total de 28 crimes de tráfico registados por autoridades policiais: 6 crimes registados pela GNR, 5 crimes registados pela PSP, 8 crimes registados pelo SEF e 9 crimes registados pela PJ. Números que, certa e infelizmente, estarão aquém do real.

Através dos órgãos de polícia criminal e de organizações não governamentais e internacionais, foram registadas durante 2010 um total de 86 vítimas: 22 vítimas confirmadas como vítimas de tráfico de pessoas; 5 vítimas sinalizadas ainda em investigação, 29 vítimas não confirmadas porque consideradas como vítimas de outros ilícitos que não o tráfico de pessoas. A exploração sexual e laboral continua a figurar como o principal «destino» das pessoas traficadas. O problema da prostituição assume particular importância na agenda política, por força do recrudescimento da tentativa de regulamentação da prostituição por parte das ditas “trabalhadoras do sexo” e dos proxenetas, como actividade económica, como profissão. Esta ofensiva pretende criar as condições para que os proxenetas sejam considerados parceiros económicos dos Estados e os clientes legítimos consumidores a quem se atribui, como um direito, a utilização de uma pessoa. Na Europa, temos quatro linhas orientadoras, quatro correntes, relativamente aos quadros legais: • O abolicionismo: a prostituição não é proibida. Contudo, o lenocínio é criminalizado – República Checa, Polónia, Eslováquia, Eslovénia, Portugal, Espanha. • O neo-abolicionismo: a prostituição não é proibida, contudo, o Estado proíbe a existência de bordéis – Bélgica, Chipre, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Itália, Luxemburgo. • O proibicionismo: a prostituição é proibida, havendo sanções penais para os intervenientes – Irlanda, Lituânia, Malta, Suécia • A regulamentação: a prostituição é regulamentada e, como tal, não é proibida desde que exercida segundo as regras estabelecidas – Áustria, Alemanha, Grécia, Holanda, Letónia, Reino Unido. Nos países onde a prostituição está regulamentada, pode afirmar-se que o tráfico de


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pessoas aumentou e que a prostituição é fundamentalmente exercida pelas vítimas de tráfico. Um levantamento feito pelo Grupo de Budapeste atesta que 80% das mulheres dos bordéis da Holanda são traficadas de outros países. Já em 94, a Organização Internacional das Migrações declarava que na Holanda perto de 70% das mulheres traficadas eram oriundas dos países da Europa Central e do Leste Europeu. A prostituição infantil terá aumentado de 5000 crianças em 95 para 15000 em 2001. Em toda a Europa o tráfico e a exploração na prostituição não param de aumentar. Em Portugal, um estudo de 2005 sobre a prostituição em clubes afirma que a percentagem de portuguesas é de 15%, de brasileiras é de 62%, de colombianas é de 8% e de africanas é de 12%. Um relatório da Unicef afirma que de 95 a 2005 foram traficadas 100.000 mulheres e raparigas albanesas para a Europa Ocidental e outros países balcânicos. Documentos da Unicef e da “Salvem as Crianças” revelam que «até 80 por cento das mulheres traficadas de alguns cantos da Albânia e da Moldávia são crianças, com relatos que mostram uma diminuição da idade média das crianças/mulheres que são traficadas para a prostituição.» Milhões de raparigas e jovens foram escravizadas e roubadas das suas vidas de modo a que os investidores na chamada indústria do sexo possam acumular cada vez mais capital e serem considerados empresários. Empresários da vida humana e da dignidade, em Estados que patrocinam a escravatura e a exploração dando-lhe corpo legal. Noutros países, contudo, o caminho é outro. Na Argentina, a 6 de Julho de 2011 foi publicado um decreto que proíbe a publicidade de ofertas sexuais nos órgãos de comunicação social do país. Em Espanha, a 19 de Julho 2010 foi apresentada uma Proposta de Resolução a instar o Governo a não subsidiar, nem realizar publicidade institucional nos grupos de comunicação social que realizam publicidade a serviços de prostituição. Em 2010, o Parlamento espanhol tinha já aprovado, por unanimidade, uma resolução que defendia o fim dos anúncios da prostituição na imprensa. Em Portugal, faz-se caminho para a abertura à consideração da prostituição como profissão. Sem uma posição claramente assumida pelos sucessivos Governos, são apoiados e financiados projectos que utilizam a denominação “trabalhadores do sexo” e cresce a banalização desta expressão. Multiplicam-se as conferências e seminários que apontam a profissionalização como a solução legal, sem cuidar sequer de uma análise fina à legislação já existente. Entendemos, no MDM, que o caminho da profissionalização não vai resolver o problema essencial, que é motivo do recurso à prostituição: a falta de meios para sobreviver ou para viver com dignidade. O que hoje dispomos no quadro jurídico português está demasiado judicializado: as vítimas de tráfico – e apenas as de tráfico internacional dado que o tráfico doméstico não tem tratamento penal autónomo – são identificadas pelo Guia Único de Recursos que, não obstante poder ser utilizado por associações, obriga à remissão às autoridades policiais, o que afasta, à partida, as potenciais vítimas de tráfico com medo de repatriamento. Os 60 dias de reflexão revelam-se insuficientes para o encontro de alternativas reais para as pessoas traficadas e o sistema público de Segurança Social,


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de Saúde e de Justiça está longe de garantir o acesso universal e o apoio necessário às vítimas de tráfico e às mulheres prostituídas. Soluções jurídicas e de protecção social são urgentes numa perspectiva de acção integrada direccionada à dignidade das mulheres e de todas as vítimas de tráfico, envolvendo a adequada protecção social, apoio médico e medicamentoso, protecção judiciária, nomeadamente com a concessão imediata de apoio jurídico, e condições reais de emancipação. Tudo isto a par de uma protecção que, ao invés de revitimizar pessoas traficadas lhes conceda um efectivo estatuto de vítima, permitindo a sua permanência em Portugal até que esteja assegurada a sua segurança e liberdade e um novo quadro jurídico-penal que proteja as mulheres, crianças e homens que, não sendo vítimas de tráfico, sejam explorados na prostituição, penalizando severamente quem, desta forma, mercantiliza o corpo humano e com ele cria o seu lucro e o seu rendimento. São notáveis e clarificadores os resultados de um estudo de Julho de 2011 denominado Comparing Sex Buyers and Non-Sex Buyers, que nos dá, em discurso directo, o pensamento dos clientes, na sua maioria homens: «És o patrão, o patrão total», «Até nós, homens normais queremos dizer alguma coisa e fazê-lo sem que nos façam perguntas. (…) Obediência inquestionável. Quero dizer que é poderoso. O poder é como uma droga.» ou mesmo «Podes encontrar uma prostituta para qualquer tipo de necessidade – espancamento, asfixia, sexo agressivo para além daquilo que a tua namorada faria». É este o nosso grande desafio. Pensar esta realidade. Agir sobre ela. E essencialmente criar um quadro legislativo e social que proteja quem tem que ser protegido: não os proxenetas, não os traficantes, não a moral pública e os bons costumes, mas toda e qualquer pessoa que, por necessidade, seja explorada na prostituição. E enquanto existir uma mulher, uma criança, um homem nesta situação, o nosso trabalho não estará findo. Porque não podemos admitir viver numa sociedade em que se regulamente a escravatura, a exploração. E enquanto uma só pessoa seja explorada e se vê obrigada a vender o seu corpo, o seu afecto, não podemos, porque somos humanistas, considerar que essa pessoa escolheu esta profissão. Como se dizia na Associação O Ninho, em França, «o que choca não é o sexo. É o dinheiro.». É o aceitar sob capas de modernidade que é digno, que é uma escolha, vendermo-nos. Comprarmos alguém. Que chegámos aos idos de outros tempos, onde cada um de nós tem um valor de mercado.

Para o MDM, a vida, a dignidade não tem preço.


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Barbara Switzer National Assembly of Women – Reino Unido

O tráfico humano é a escravatura dos tempos modernos, e é um crime organizado e lucrativo em crescimento e acima de tudo uma violação grosseira da dignidade das pessoas e dos direitos humanos. Tem a sua raiz na desigualdade, particularmente nas iniquidades globais, e nas desigualdades de pobreza, bem como de género, raça, idade e deficiência. É o submundo da globalização, contrariando a liberdade de circulação de pessoas e dos mercados. O tráfico de pessoas faz-se às escondidas, com as vítimas, especialmente raparigas e mulheres, sofrendo a exploração à margem da sociedade, como em “apartamentos de sexo” privados, fábricas de altos ritmos, criminalidade coerciva e serviço doméstico.

Quem são as vítimas? Tem havido um trabalho significativo no Reino Unido contra o tráfico ao longo da última década, incluindo a introdução da criminalização do tráfico humano, a implementação da Convenção do Conselho da Europa sobre Tráfico, a criação do Centro para o Tráfico Humano do Reino Unido e três planos de acção do Governo Britânico da Escócia. Historicamente, a maioria das vítimas adultas identificadas são mulheres traficadas para exploração sexual e o Reino Unido é um dos principais destinos para as mulheres traficadas. Contudo, tendências recentes sugerem que o tráfico para exploração laboral se poderá tornar mais prevalente que outras formas de tráfico. Crianças vítimas de tráfico são trazidas para o Reino Unido para muitas finalidades, incluindo exploração sexual, servidão doméstica, fraude de benefícios, plantações de cannabis, pedidos de esmola nas ruas, roubo e assaltos a lojas. A maior parte das vítimas adultas são traficadas para o Reino Unido da China, Sudeste Asiático e Europa de Leste; as crianças vítimas são maioritariamente traficadas do Vietname, Nigéria, China e Europa de Leste. Contudo, trata-se de um crime internacional com potenciais vítimas de mais de 80 países diferentes, referidos no Mecanismo Referencial Nacional (MRN) desde a sua existência e 47 países identificados como fonte de tráfico de crianças para o Reino Unido, pelo Centro de Protecção Online contra a Exploração de Crianças (CEOP), do Reino Unido. A natureza escondida do tráfico torna difícil obter um quadro exacto do número de vítimas no Reino Unido. O Projecto Acumen, um estudo da Associação de Chefes de Polícia, estima haver pelo menos 2600 vítimas femininas adultas de exploração sexual em Inglaterra e no País de Gales. Relatórios do CEOP sugerem que em média há cerca de 300 crianças vítimas de tráfico, referidas no MRN entre 1 de Abril de 2009 e 31 de Dezembro de 2010. Em contraste, o MRN, que é o quadro de apoio à identificação das vítimas de tráfico humano, registou como potenciais vítimas de tráfico humano no Reino Unido, entre 1 de Abril de 2009 e 31 de Dezembro de 2010, a seguinte repartição:


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Tipo de Exploração

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Número de casos referidos Crianças

Adultos

Exploração Sexual

99

438

Exploração Laboral

98

267

Serviço Doméstico

44

175

Não-especificado

81

52

Totais

322

932

Número de acusações registadas Pelo Ministério Público - 116 | 2010/2011

Que lhes acontece, depois de entradas no Reino Unido? As vítimas poder ir parar a vilas ou cidades onde funcionem bordéis. O Projecto Poppy (Papoila), que as apoiou e deu alojamento, referiu que muitas mais podem agora estar a trabalhar nas ruas. As mulheres são frequentemente transferidas para vários locais no país, podendo ser vendidas ou trocadas entre uma série de gangues. Não é claro o destino de muitas vítimas, embora se saiba que muitas foram enviadas de regresso a casa, por ficarem doentes ou grávidas. A outras é permitido pagar as suas dívidas aos traficantes. Contudo, o Projecto Poppy encerrou devido a corte no financiamento do governo!

A política da NAW (Assembleia Nacional de Mulheres) Na sua Assembleia-geral anual de 2006 foi aprovada por unanimidade a seguinte moção: “A NAW está profundamente perturbada pela situação de mulheres e crianças traficadas para a UE e Reino Unido para exploração sexual e prostituição. O Parlamento Europeu tem dados de 23 de Junho de 2005 que afirmam que há entre 600 a 800 mil pessoas vítimas de tráfico, em cada ano, em todo o mundo, com mais de 100 000 mulheres vítimas de tráfico dentro da UE. Em Londres, excluindo Westminster, há, em média, em cada freguesia de Londres, 19 sites para compra de sexo, com 4 a 8 mulheres por site. 4/5 das mulheres são estrangeiras, sobretudo da Europa de Leste e do Sudeste Asiático. A polícia Britânica efectuou 343 operações contra traficantes nos 12 meses até Março passado, prendendo mais de 1400 pessoas e arrestando 4.5 milhões de libras em materiais. Com efeito, o sexo e o negócio do tráfico foram industrializados. Quem dirige esta indústria é o crime organizado e trata-se de uma forma de escravatura moderna. Para construir estratégias transnacionais de prevenção efectivas, é preciso: 1. Actuar sobre o triângulo do mercado do tráfico; vítimas, traficante e cliente; 2. Programas e protecção em termos de apoio jurídico e psicológico a grupos de maior risco; 3. Cooperação entre os países de origem, de trânsito e de destino; 4. Cooperação a nível da UE, regional e local; 5. Acção coerente entre organizações Internacionais como as Nações Unidas, Conselho da Europa, UE e G8.


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Apelamos ao governo para que actue de quatro modos específicos, de acordo com essa estratégia: 1. Em cooperação com governos europeus e internacionais, para fazer mais para parar o tráfico; 2. Impor penas mais pesadas, incluindo o confisco de bens dos traficantes detidos; 3. Fazer mais para ajudar e reabilitar as vítimas de tráfico, através de alojamento seguro, aconselhamento, cuidados médicos, apoio jurídico, reintegração social – Não oferendo às mulheres apenas a escolha entre pôr em risco as suas famílias no seu país de origem devido a terem sido traficadas ou a serem repatriadas, o que pode levar a serem de novo traficadas; 4. Encontrar formas de penalizar os homens que utilizam mulheres traficadas; Este comércio é efectivamente violação. A actual situação é uma verdadeira desgraça para todos nós. A NAW trabalhará com outros numa campanha de acção contra o tráfico e junta o seu apoio à campanha ECPAT UK (Acabar com a Prostituição Infantil, a Pornografia Infantil e o Tráfico Sexual de Crianças) e a outras relacionadas com crianças vítimas de tráfico, particularmente no apelo da ECPAT para a formação e orientação imediata de assistentes sociais. No seu contributo ao Inquérito do Comité Conjunto de Direitos Humanos sobre os direitos humanos das pessoas traficadas para o Reino Unido, de Janeiro de 2006, a ECPAT fez 22 recomendações que ajudaram a informar o desenvolvimento da estratégia do governo do Reino Unido.

Em que ponto nos encontramos? Existe agora um consenso internacional nas Nações Unidas, na União Europeia e no Conselho da Europa sobre uma definição criminal para o tráfico humano. Isto inclui os seguintes 3 elementos: Acto de recrutamento, transporte, transferência, recepção ou recebimento de pessoa (s) através de Meios de exploração, incluindo coacção, rapto, fraude, engano, abuso de poder ou vulnerabilidade, bem como fazer ou receber pagamentos ou benefícios para conseguir o consentimento de uma pessoa, para que uma pessoa exerça controlo sobre outra pessoa (este elemento não é necessário para estabelecer o tráfico de pessoas menores de 18 e com o Objectivo de exploração, incluindo, no mínimo, a exploração de prostituição ou outras formas de exploração sexual, trabalho forçado, bem como serviços e práticas semelhantes a escravatura, servidão ou remoção de órgãos.


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Tráfico Humano: A Estratégia do Governo A estratégia do governo, publicada em Novembro de 2011, define um enfoque renovado na prevenção do tráfico humano no estrangeiro, antes que o mal possa chegar ao Reino Unido, mantendo e melhorando cuidados para as vítimas no nosso país. A estratégia tem uma abordagem global do tráfico: • Confirma o nosso empenhamento em melhorar os cuidados com as vítimas; • Põe o enfoque no desmantelamento das redes de traficantes, antes de chegarem ao Reino Unido; • Estabelece uma base para uma acção mais inteligente de múltiplas agências nas fronteiras; • Visa melhorar a coordenação dos nossos esforços de aplicação da lei no Reino Unido; • Procura reforçar a recolha e partilha de dados secretos, através da nova Agência Nacional do Crime; • Põe ênfase na consciencialização sobre o tráfico de crianças e na garantia de que as crianças vítimas são protegidas de voltarem a ser traficadas.

Tráfico Humano na Escócia Em Abril de 2010, um inquérito ao tráfico humano na Escócia foi lançado pela Comissão para a Igualdade e Direitos Humanos, presidida pela Baronesa Helena Kennedy, uma eminente advogada de direitos humanos. A Assembleia Nacional de Mulheres sente-se privilegiada por ter a Helena como Vice-Presidente. Mais especificamente, o inquérito analisou a situação na Escócia, referenciando as obrigações centrais internacionais anti-tráfico, que exigem acção nas seguintes áreas: • Prevenir o tráfico humano; • Criminalizar os diversos actos na definição de traficantes de pessoas; • Investigar e acusar os traficantes de seres humanos; • Cooperar na luta contra o tráfico, entre estados e agências e: • Observar as tendências e padrões relacionados com o tráfico humano. O inquérito interessou-se particularmente pelas políticas e práticas contra o tráfico humano na Escócia, no domínio do asilo, investigação judicial e aplicação da lei e pelos serviços de alojamento para as vítimas de tráfico humano. A Comissão procurou olhar para a natureza e dimensão do tráfico humano, focando-se, sobretudo, mas não exclusivamente, no propósito de exploração sexual comercial, mas considerou também os outros propósitos, tais como trabalho forçado, serviço doméstico e exploração para o crime. Embora o inquérito tenha revelado provas de excelente trabalho a todos os níveis do governo, evidenciou também uma ausência de abordagem coerente sobre a aplicação, acusação e o que é vital, no apoio à vítima. As recomendações do relatório destinam-se a ajudar a desenvolver e informar uma resposta estratégica e global. Deve ser dirigido


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pelo Governo Escocês e envolver o governo do Reino Unido e as suas agências, bem como organismos e serviços de aplicação da lei e de acusação, organizações de apoio à vítima, autarquias e sector privado. Tem de colocar no centro as pessoas traficadas, olhando-as como vítimas de crime e não como um assunto de imigração. O relatório foi lançado em 28 de Novembro de 2011. Ao lançar o relatório, a Baronesa Kennedy sublinhou que o tráfico humano é uma questão de direitos humanos. É uma questão de crime, cabendo à polícia o papel central na identificação do crime. Às outras agências cabe também um papel, tal como a Agência de Fronteiras, mas trata-se de assunto de polícia que não deve ser confundido com políticas de imigração. A Assembleia Nacional de Mulheres apoia totalmente os comentários da Baronesa Kennedy.

Os Sindicatos e as “trabalhadoras do sexo”. No Reino Unido, as trabalhadoras do sexo estão organizadas no Sindicato Internacional dos Trabalhadores do Sexo e no GMB (Sindicato Geral e Municipal de Trabalhadores). Esta é uma questão controversa que tem levantado um grande debate. A Conferência de Mulheres da Central Sindical Britânica – o TUC, realizada em Março de 2009, tinha na sua ordem de trabalhos duas moções sobre prostituição, a Moção 39, apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores das Comunicações (CWU), propondo a discriminalização da prostituição e a Moção 40 do Sindicato de Universidades e Ensino Superior (UCU) defendendo a criminalização dos homens que compram sexo: Moção 39. Discriminalização da Prostituição (Sindicato dos Trabalhadores das Comunicações (CWU) A Conferência apela a que o governo discriminalize a prostituição. Porque as actividades das mulheres que trabalham como prostitutas estão sujeitas a penas por crime, têm menos possibilidade de aceder a apoio de agências, quando necessitam. A criminalização dos que trabalham na indústria do sexo cria também uma divisão entre as mulheres das classes trabalhadoras, que combatem a pobreza e o sexismo. Pensamos que as mulheres que trabalham como prostitutas têm direito ao apoio das mulheres sindicalistas e não ao nosso apoio na sua repressão. Nós apoiamos a sindicalização da indústria do sexo. A Conferência também concorda decididamente que a Polícia, o Ministério Público e as agências associadas devem aplicar rigorosamente a legislação contra a violação e outro tipo de violência – incluindo assalto sexual, ofensas corporais graves, falsa prisão, extorsão, assalto sexual racista – independentemente do estatuto da vítima enquanto trabalhadora do sexo. As mulheres que foram traficadas necessitam de ter confiança no sistema para relatarem casos de violência, sem correrem risco de deportação. O governo deve considerar a atribuição de fundos, presentemente gastos para criminalizar as mulheres prostitutas, para recursos e serviços independentes do sistema criminal judicial, de forma a garantir o respeito pelos direitos das trabalhadoras do sexo e para permitir que as que queiram sair da prostituição o possam fazer.


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A Conferência apela ao próximo Comité de Mulheres do TUC para que faça desta questão uma das suas principais prioridades e que prepare e apresente um relatório de eventuais evoluções à próxima Conferência de Mulheres de 2010. Moção 40. O negócio do sexo (Sindicato das Universidades e Ensino Superior - UCU) Nas duas últimas décadas tem-se promovido a legalização como a solução para os problemas que acompanham a prostituição em muitos países. No Sudeste Asiático encorajam-se governos, segundo um importante relatório da Organização Internacional do Tabalho, a reconhecer oficialmente o “sector do sexo” e o seu contributo para o produto nacional bruto (1998). Na Grã-Bretanha, continua o debate sobre a “discriminalização”, com algumas mulheres a afirmarem que os bordéis legalmente regulamentados são a única forma de proteger as mulheres traficadas e as prostitutas de rua. A experiência da legalização noutros países não resolveu nenhum destes problemas e conduziu a muitos mais, incluindo à expansão de uma indústria na qual os homens, que anteriormente teriam sido classificados de engagadores e chulos, são agora vistos como uma nova e respeitável classe de “homens de negócios”. A Conferência apela a que se inicie uma campanha que: i) denuncie as causas sociais da prostituição, incluindo a pobreza das mulheres; ii) reveja o estatuto de residência das mulheres traficadas; iii) criminalize os homens que compram sexo e não a sua venda; e iv) garanta que o negócio do sexo e o tranformar o corpo da mulher em objecto seja evidenciado como um factor que contribui para a violência contra as mulheres. A Moção 39 foi derrotada e a Moção 40 foi aprovada.

Fontes online úteis: • Human Trafficking: The Government Strategy UK • EHRC Inquiry into Human Trafficking in Scotland • International Sex Workers Union UK • End Child Prostitution and the Trafficking of Children for Sexual Purposes (ECPAT) • Stop the Traffik


Ficha Técnica Título: Edição: Impressão: Tiragem:

Conferência Internacional Tráfico de Mulheres - Romper Silêncios Projecto Tráfico de Mulheres – Romper Silêncios MDM – Movimento Democrático de Mulheres Regiset – Comunicação e Artes Gráficas 500 Exemplares



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