Violência de gênero - Poder e impotência - Heleieth Saffioti

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Vialencia de Genera: Poder e hnpotencia Copyright © 1995 by Livraria e Editora Revinter Uda. Todos os direitos reservados. Eexpressamente proibida a reproduC;ao deste livro, no seu todo ou em parte, por quaisquer meios, sem 0 consentimento por escrito da Editora.

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ISBN 85-7309-044-8

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Violencia de Genero: Poder e Impotencia e 0 resultado de uma ampla pesquisa, bibliognifica e de campo, que levamos a cabo nestes ultimos seis anos em que temos trabalhado em conjunto. Nossas expe­ riencias neste terreno e neste lapse de tempo tern side expostas em semimirios, encontros e congressos, disseminando algumas de nossas reflexoes te6ricas, provocadas, de uma parte, peIo contacto com vfti­ mas, agressores, assistentes sociais e policiais, e, de outra parte, por nossas leituras e discussoes por elas suscitadas. Procuramos mostrar 0 quao generalizada e a violencia de genero, sobretudo a que acontece no interior do domicflio. Do Rio de Janeiro ao Maranhao, passando por Sao Paulo e demais Estados, ela grassa como erva daninha desta gramatica sexual que rege as relac;6es entre homens e mulheres, atse incluindo a impunidade dos perpetradores de atos considerados delituosos. Embora estas condutas estejam tipificadas no C6digo Penal brasileiro, sao extensamente toleradas ela sociedade simplesmente por se tratar de vlOlencia cornett a por homens. Com rela~o amulher a sociedade revela muito menor ou nenhuma com la- " cencia. sto equivale a dizer que 0 inimigo da mulher nao e propria- 1 mente 0 homem, mas a organizac;ao social de genero cotidianamente . , alime - a enas or homens mas tambem r eres. Tivemos 0 cuidado de mostrar abundantemente a transvers dade da violencia de genera, que ignora fronteiras entre as classes sociais, entre paises desenvolvidos e subdesenvolvidos, entre contingentes et­ nico-raciais distintos, entre a cultura ocidental e a cultura oriental, etc. Trata-se, enfim, ao contrario dariqueza, de fenomeno democraticamen­


te distribufdo. Para comprovar esta reparti~ao social da violencia e oferecida uma importante massa de dados. No Brasil, sao escassos os dados de natureza global. Em decorrencia disto, utilizamos informa~6es de diferentes procedencias, que nos permitiram pintar 0 retrato da violencia masculina contra a mulher no pafs. Com exce~ao feita aos dados resultantes do trabalho de campo, coligidos por nos proprias com observancia das normas cientfficas, e dos da FIBGE sobre violencia ffsica, nao tivemos controle sobre a metodologia utilizada na coleta dos demais. Julgamos, contudo, que, com certeza, nao obstante subestima­ rem 0 fenomeno, eles sao valiosos para se transmitir ao leitor urn alerta sobre a gravidade da situa~ao. Isto significa dar alguma visibilidade a este tipo de violencia, a fim de que 0 leitor possa, pelo menos, desen­ volver a atitude da denuncia. abviamente, isto nao basta, havendo necessidade de proposi¢es que visem acoibi~ao e, sobretudo, apre­ ven~ao da violencia de genero em familia. A Constitui~ao Federal especifica as fun~6es do Estado no que tange agarantia de rela~6es harmoniosas no seio da fanulia no § VITI de self artigo 226. Nao obstante, a omissao deste aparelho tern sido fmpar. Como naoobserva os dispositivos da propria CF, tampouco cumpre 0 exposto na Conven~o sobre a Elimina~o de todas as Formas de Discrimina~ocontra a Mulher, da aNU, da qual esignat£1rio. Urge, assim, pr(ssionar 0 Estado brasileiro para que intervenha, atraves de polfticas publicas dirigidas afamilia e a mulher, coibindo e, principal­ mente, prevenindo a vitimiza~ao desta ultima. J£1 na J se pode, atualmente, pensar no desenvolvimento de urn pais em termos puramente tecnologicos. Mesmo stricto sensu, 0 desenvol­ vimento exige que se pense no capital humano. Isto e, na capacita~ao dos seres humanos para 0 desempenho de todij.s as modalidades de fun~o, qualquer que sejaseu grau de complexidade, independentemen­ te da extra~aosocioeconomica, da origem etnico-racial e do genero dos socii. Como a pobreza esta, crescentemente, sefeminilizando, e urgente a formula~o e implementa~ao de medidas estatais, visando amelhoria do padrao de vida das camadas menos favorecidas, em geral e, particu­ larmente, das familias monoparentais chefiadas por mulheres. A co­ nhecida rela~ao, de 4m lado, entre a educa~ao, a nutri~ao e a saude e, do outro, a capacidade de trabalho, a iniciativa e a gera~ao de renda imp6e que se encontrem, rapidamente, solu~6es capazes de tomarvia­ veis as futuras gera~6es. a investimento na produ~ode seres humanos

e, pois, tao importante quanta 0 investimento na produ~ao de bens e Alem disso, nao se pode esquecer da dimensflO (i)maral da pobreza, mormente daquelas(es) mais subprivilegiadas(os) em razao de seu sexo ou de sua ra~/~tnia. a ser humane nao e apenas urn gerador de renda na economia. E portador de potencialidades cognitivas e mo­ rais, cujo desenvolvimento nao somente 0 toma mais capaz de produzir bens e servi~os, como tambem de criar novas formas de sociabilidade na dire~ao da solidariedade. Desta sorte, 0 desenvolvimento de uma na~ao, seja tornado stricto sensu, seja considerado lata sensu, presume a necessidade do cultivo de condi~6es que'permitam 0 desabrochar das potencialidades cognitivas, sociais e moraisjde todo ser humano. Neste sentido, este deixar£1 de ser importante meramente como capital econo­ mico para se transformar tambem em uma pe~a fundamental ao apri­ moramento do capital social, do capital cultural e do capital simbolica. Eevidente que esta forma de se pensar 0 desenvolvimento incor­ pora uma nova visao, quer da perspectiva quantitativa, quer do ponto de vista qualitativo, dos direitos humanos. Estes tern side, como a ciencia cartesiana, estritamente masculinos. Recentemente, teve infcio uma nova leitura destes direitos, de modo a incluir neles as mulheres. a lema do lobby desenvolvido pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, junto aos constituintes em 1987-1988, denotava bern esta in­ corpora~ao: "Constituinte pra valer tern que ter direitos da mulher." Hoje, a luta pela conquista de direitosdefacto no Brasil, que beneficiem categorias sociais e fra~6es de classe sub-privilegiadas, nao pode ser considerada tao~somente nos marcos da democracia burguesa. Trata-se de batalhas fundamentais para produzir mudan~as estruturais em urn pafs com larga tradi~ao clientelista e com altos fndices de exclusao social. servi~os.

No contexto de urn desenvolvimento centrado no ser humano e, portanto, da incorpora~odas mulheres na era dos direitos, nao se pode admitir a violencia de genero, da mesma forma como nao se pode ser conivente com a violencia de ra~a/etniae de classe social, os tres pilares da estrutura social brasileira. A violencia tout court e uma questao de saude publica; a violencia domestica, da qual a mulher se'constitui na vftima preferencial, nao 0 e menos. Sem saude nao e possIve! aprimorar a educa~o intelectual e moral, colunas mestras de urn desenvolvimento voltado para 0 bem-estar de homens e mulheres.


Nossas pnHicas intelectuais, parcialmente presentes neste livro, assim como nossas pnHicas sociais e politicas, revelam este compromis­ so com urn projeto da sociedade que favore~a as categorias e fra~6es de classes vitimizadas na linha das tres pilastras referidas. Trata-se, portanto, de urn compromisso com a maioria esmagadora dos membros da sociedade brasileira: mulheres, nao-brancos, pobres. S6 as primeiras representavam, em 1990,51,5% da popula~ao do pals. Como a elite econ6mica e restritfssima e as classes medias vern vivenciando urn acentuado processo de proletariza~opor mais de uma decada, estamos compromissadas com a constru~ao de uma sociedade que ofere~ bem­ estar amaioria de sellS membros. Estamos cientes de que as lealdades de ra~a/etniae de classe social impedem a uniao de todas as mulheres e de que, por conseguinte, devemos enfrentar estas tres contradi~6es simultaneamente. Tentamos adotar este procedimento cotidianamente. As analises que desenvolve­ mos neste livro visam a retratar esta complexidade, embora privilegian­ do a contradi~ao de genero. Esperamos, desta maneira, apontar para 0 leitorum caminho de autonomia, oferecendo-lhe nao apenas dados e sua interpreta~aote6rica,mas urn instrumental analftico que 0 capaci­ tara a esquadrinhar outras ocorrenciasviolentas vitimizadoras, potencial ou concretamente, de mulheres.

Heleieth I.B. Saffioti Suely S. de Almeida

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Agradecimentos

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Nosso reconhecimento aos auxiliares de pesquisa, em especial a Sheila Backx e a Renato Veloso; as (aos) depoentes e a todas(os) aque!as(es) que possibilitaram a realiza~ao deste trabalho. A Maria Elena Can~do, que conosco percorreu parcela significa­ tiva da trajet6ria necessaria a realiza~ao deste estudo. (In memoriam)


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l!r~\' PARTE I A PRODU<;AO DA VIOLENCIA DE

GENERO E REFERENCIALTEORICO . . .

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Capitulo 1 QuadroEpidemio16gico.... . . . . . . . . . .

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Capitulo 2 Brasil: Violencia,Poder, Impunidade . . . . . ..

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Capitulo 3 ACapturadaHist6ria . . . . . . . . . . . . . ..

57

PARTE II A VIVENCIA COTIDIANADA VIOLENCIA

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Capitulo 4 Trajet6riasPessoais,DestinosdeGenero. . . ..

79

Capitulo 5 CidadeMaravilhosa:AOutraFace . . . . . . ..

147

Capitulo 6 Estado e Politicas Pliblicas

195

Finalizando

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Como se nao bastassem os crimes cotidianos que homens cometem contra mulheres, de acordo com os dados expostos mais a frente, 0 mundo atual, no ocaso do segundo milenio, assiste aos horrores perpe­ trados por servios contra muc;ulmanas, na B6snia-Herzegovina. 0 estu­ pro em serie, visando a reproduc;ao forc;ada de seres humanos etnica­ mente hfbridos, demonstra a todos os povos do planeta que a viola~iio sexual de mulheres foi, e ainda e, utilizada como estrategia de guerra. Verifica-se, assim, a forc;a da criatividade humana para infligir humi­ Ihac;6es a seres indefesos. Ainda que se afrrme freqiientemente que 0 estupro em mulheres objetiva vilipendiar os homens, sao elas as sub­ metidas a relac;6es sexuais diarias, durante meses a fio, ate engravida­ rem. Sao elas que suportam a gravidez indesejada, e e nelas que brota o sentimento de rejeic;ao pelos rebentos. Ao serem vistas na televisflO as imagens de berc;arios repletos de bebes rejeitados por suas maes por serem fruto de uma estrategia militar, e diffcil, senao impossivel, opinar sobre qual das duas gerac;6es e ou sera mais infeliz. Mas urn grande baluarte do machismo - a Igreja cat6lica, cuja palavra de ordem e expressa pelo papa - continua a condenar 0 aborto, mesmo neste caso, atrelando a mulher aos designios da biologia e ao arbitrio dos homens que usam uma expressao~~.'!.J:!lO!).9.!1~~jg,_ar~lac;aosexual, como arma Egrac;as a insTituic;6es deste carater que a sUpreriiaCiamaSCu:lffnr~-. ( ' resistido as investidas dos processos renovadores e contribuido para manutenc;ao de uma organizac;ao social de genero terrivelmente iniqua.' As atrocidades perpetradas por servios contra ~!!l;J!lnmllasda B6snia~ \ _Herz.egQy!Dll ~£Q!!~titw nenhuma novidade.\A. hist6ria mosfraque, em todas as guerras, 0 estuprotranSforma~se·eIn. uma arma para vili­ pendiar 0 inimigo. 0 horror provocado pela ocorrencia deste fenomeno 3

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QUADRO EPIDEMIOLOGICO

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~ sociedades falocentricas. Como todas 0 sao, em maior ou men_Qx-me-di:----~ _,--d~J~~r:ifica-se ~~~Qes~nomenolliOtreta~fu~-ele foi pouco

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estudado e dele amda se fala msuficlenrerrlente. Ha cerca de duas decadas, gra~as aos esfor~os de feministas, vem-se levantando dados sobre ele em varios paises, fazendo-se pesquisas sobre 0 contexto de sua produ~ao e divulgando-se hipoteses e conclus6es. Tambem se esrno implementando politicas publicas que, por urn lado, dao guarida a mulheres vitimas de espancamento, estupro, amea~a de morte e, por outro, pressionam as autoridades policiais e judiciarias, visando a redu­ ~ao das altissimas cifras de impunidade. A ubiqiiidade deste tipo especifico de violencia e os investimentos de tempo e de energia de muitas feministas permitem oferecer ao leitor urn panorama, embora extremamente lacunoso, do tratamento que a sociedade em geral e os hQ!!l~DS-em...es.p_~cialdispensam a§_ mulheres. ~asocialtz~a6lemininaestejam sempre presentes-a-suspeiUfl contra os desconhecidos e a preven~o de urna eventual aproxima~o com estes elementos, os agressores de mulheres sao, geralmente, pa- I rentes ou pessoas conhecidas, que se aproveitam da confian~adesfru- I tadajunto as suas vitimas. ,.-1 Dentre 1.432 casosdepaclentes vitimas de agress6es fisicas aten­ didas por urn medico forense, em La Paz, Bolivia, em 1986, 964 eram mulheres. Deste contingente, cerca de dois ter~os sofreram agress6es por parte de seus maridos e 17% por parte de outros familiares ou vizinhos. Desta sorte, apenas cerca de urn quinto foi agredido por desconhecidos. Em La Paz e Alto, Bolivia, 60% dos estupros ocorrem no entorno familiar, sendo que, na maioria dos casos, 0 agressor tern la~os de parentesco, sejam consangiiineos ou por afinidade, com sua vitima (Mujer/Fempress, 1990). Outro levantamento demonstrou que na Bolivia dois ter~os dos abusos sexuais sao praticados por pessoas conhecidas da vitima, como amigos e vizinhos, 12,5% sao perpetrados por parentes e cerca de urn quinto, por agressores inteiramente desco­ nhecidos (RSMLAC, 1987). Urn estudo realizado em Cali, Colombia, em 1989, alem de ter revelado urna alta participa~o de companheiros e parentes consangiii­

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neos na pratica de violencia sexual contra mulheres, mostrou que 23% dos homens, que infligiam maus-tratos psicologicos a elas, eram seus esposos, 40% eram seus companheiros, 2% eram seus sogros e 7% eram seus irmaos (Londono, 1990). Calcula-se que, em Caracas, Venezuela, ocorram entre 40 e 50 estupros por dia (Mujer/Fempress, 1990a). Na Bolivia, 57 mulheres sao violentadas por dia (Londono, 1990). Em EI Salvador, uma pesquisa com 900 prostitutas revelou que 80% delas haviam sofrido abusos sexuais por parte de seus pais antes da idade de 12 anos (Londono, 1990). De 98 mulheres investigadas em Quito, Equador, aproximada­ mente urn quarto recebeu espancamentos com uma freqiiencia quevaria entre uma vez ao dia e uma vez ao meso dentre as que nao sofreram les6es corporais, 41% foram objeto de amea~as (Mujer/Fempress, 1991b). Do total de estupros denunciados na Colombia, 29% foram perpe­ trados contra mulheres de 15 anos ou menos, 61% contra menores de 20 anos e 10% contra maiores de 20 anos. Mais de quatro quintos pertenciam a estratos medios e baixos da sociedade e 18% a medios e altos (Londono, 1990). As cifras de maus-tratos a crian~as no Paraguai sao altissimas, incluindo-se, muitas vezes, a morte da pequena vitima (Mujer/Fempress, 1991a). De acordo com uma investiga~aolevada a cabo pela Oficina de La Mujer na Nicaragua, das 500 mulheres inter­ rogadas 44% sofrem maus-tratos independentemente da classe social a que pertencem (Barricada Internacional, 1988). Na Bolivia, 70% das vitimas de estupro sao menores de 15 anos, muitas delas morrendo apos a agressao ~exual (Mujer/Fempress, 1990). No Peru, 25% das meninas sao vitimas de abuso sexual antes dos 16 anos de idade (Byerly, 1984). Em Porto Rico, entre 1977 e 1978, mais de 50% das mulheres vitimas de homicidio morreram assassinadas por seus (ex)maridos. Urn estudo realizado em 1984 revelou que 58% delas haviam sofrido abusos se­ xuais praticados por seus esposos ou companheiros (Isis, 1988). Na Jamaica, 22% dos delitos cometidos contra a mulher envolvem violen­ cia domestica (Isis, 1988). Em Santiago do Chile, uma pesquisa mostrou que 80% das mulheres sao vitimas de violencia em seus proprios lares (Awrari, 1985). Urn estudo realizado em Merida, Mexico, mostrou que 90% das mulheres que trabalham fora sao sexualmente assediadas por seus superiores ou por seus colegas de trabalho, chegando-se, em mui­ tos casos, ao estupro (Lagunas, 1988). De acordo com levantamento


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realizado pela Federaci6n Mexicana de Mujeres Sindicalistas, 90% das trabalhadoras mexicanas sofrem assedio sexual no local de trabalho. Na Costa Rica, 50% das mulheres sao vftimas de agressao em algum momenta de suas vidas (Isis, 1988). Investigac;ao cientffica le­ vada a cabo na Argentina indica que 25% das mulheres casadas sao espancadas par seus maridos (Isis, 1988). Na Bolivia, 58% das fisica­ mente agredidas foram tambem violentadas por seus espasos ou compa­ nheiros (Isis, 1988). Em Barbados, as meninas tern uma probabilidade quatro vezes maior do que os meninos de marrer por desnutric;ao ou negligencia antes de completarem 4 anos de idade. Segundo urn levan­ tamento realizado em Quito, Equador, 60% das mulheres entrevistadas ja haviam sofrido maus-tratos ffsicos par parte de seus maridos ou companheiros (Mujer/Fempress, 1991). DeFrancis (1969) descreveu 0 seguinte quadro para os Estados Unidos na decada de 60: 97% dos agressares sexuais eram homens adultos e 87% das vftimas eram do sexo feminino. Ainda nos Estados Unidos, Maisch (1973), estudando casos de abusos incestuosos que chegaram aos tribunais, revelou que 90% deles envolviam pais e filhas, padrastos e enteadas, av6s masculinos e netas. A metade dos 10% restantes referia-se a contatos sexuais entre pais e filhos. Estudo reali­ zado por urn delegado da cidade de Sacramento, Calif6rnia, revelou que 80% dos abusos sexuais perpetrados contrajovens eram incestuosos (Butler, 1979). Butler tambem afirma, baseada em outras investigac;6es, que, nos Estados Unidos, 80% das crianc;as sao vitimas de adultos a quem conhecem e em quem confiam. Mais recentemente, uma pesquisa em uma amostra aleat6ria de 930 mulheres residentes em Sao Francisco, Estados Unidos, detectou 648 casos de abuso sexual, ou seja, aproxi­ madamente 70% das informantes. Dentre estes casos, 152 (23,4%) eram de abuso incestuoso. Cerca de urn quarto destes ultimos foi praticado por pais biol6gicos ou sociais (Russell, 1986). Outras cifras resumem a situac;ao norte-americana: 99% dos violadores de crianc;as sao ho­ mens; 93% das vftimas sao crianc;as do sexo feminino; as violac;6es por incesto sao cometidas primeiro contra a filha mais velha durante anos, depois contra cada uma das crianc;as do sexo feminino da mesma famf­ lia; a media de idade das crianc;as vftimas de estupros incestuosos situa-se entre 08 e 12 anos, e nao na adolescencia; mais de urn milhao de crianc;as de todas as origens sociais e sexualmente agredido por ano. Trinta e dois por cento a 46% do conjunto das crianc;as com menos de

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15 anos sao sexualmente agredidos; 25% das meninas sao sexuaimente agredidos antes de atingirem a idade de 13 anos; os agressores exterio­ res ao cfrculo familiar representam somente entre 5% e 10% do contin­ gente total de agressores sexuais de crianc;as; 72% dos agressores de crianc;as sao seus pais; pelo menos 10% das ctianc;as submetidas a abuso sexual tern menos de 5 anos; 20% das l1).eninas submetidas a abuso sexual sao vitimas de urn homem de sua pr6pria familia (Clarac & Bonnin, 1985). No pais em pauta, a violencia domestica ocorre em pelo ,. menos dois terc;os dos casais, sendo a mulher a vftima (Roy, 1982). Os espancamentos constituem a causa principal de lesoes corporais nas mulheres, sendo 4 mil mulheres espancadas ate a morte por ano (WGLC, 1991). t

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Verificou-se, em 1975, que urn terc;o das crianc;as que fugia de casa o fazia para se afastar de familiares sexualmente abusivos. Em Minnea­ polis, USA, urn estudo mostrou que tres quartos das prostitutas inves­ tigadas apresentavam uma hist6ria de abuso incestuoso. No vizinho Canada, 25% das mulheres correm risco de Serem agredidas sexualmen­ te em algum momento de suas vidas, ocorrendo a metade destes casos antes que elas completem 17 anos de idade (MacLeod, 1990). Nas Filipinas, a metade das mulheres presas pela policia e obrigada a despir-se, segundo urn estudo sobre estupros perpetrados par militares (CRMlGabriela). Dentre as presas, 14% sofrem espancamentos ou se­ veros castigos. Outras 14% sao sexualmente assediadas ou ameac;adas com estupro e morte. Na Africa do SuI, em 17,5% dos casos, as mulheres adultas sao agredidas com regularidade par seus companheiros. Em quase a metade dos casos, os homens tambem abusam das crian s da familia (CABW, 1990) aquistao, 0 a s- e-casa e 77% das mulheres que <. ra a ham fora do lar sao es ancadas por seus maridos (Awran, 1985 . m angko, ailfuldia, estima-se que % das mulheres casadas sejam regularmente espancadas por seus maridos (Isis, 1988). Dentre os pa­ puas da Nova Guine, 60% das pessoas que morreram assassinadas em 1981 eram mulheres, sendo que a maioria foi morta por seu marido ap6s uma cliscussao (Carrillo, 1990). Na Franc;a, 95% das vftimas de violencia sao mulheres, sendo seus maridos os agressores em 51% dos casos (Carrillo, 1990). Na Inglaterra, urn estudo realizado com 100 mulheres espancadas acolhidas par urn


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QUADRO EPIDEMIOLOGICO ~8

abrigo revelou que em 44 delas os maus-tratos provocaram cortes ou feridas sangrentas. Todas haviam recebido socos; 59 haviam sido per­ sistentemente pisoteadas. U saram-se armas contra 42 dessas mulheres; 11 foram queimadas; 24 sofreram fraturas de costelas e perda de dentes. Houve 19 tentativas de estrangulamento (Isis, 1988). Os dados ate aqui exposto.s indicam 0 carater endemico da violencia de genero. Mais do que isto, 0fenomeno desconhece quaIquer rronterra: de classes SOCialS, de bpos de cultura, de grau de desenvolvimento economico, podendo ocorrer em qualquer lugar ­ no espa~ publico como no privado - e ser praticado em qualquer etapa da vida das mulheres e par parte de estranhos ou parentes/conhecidos, especialmen­ te destes ultimos. f . . . .genero como'relac;ao social, ate 0 presente caracterizada pela dominac;ao-explora<;ao,* constitui urn fenomeno em permanente trans­ formac;ao, pois a mutabilidade faz parte intrinseca da sociedade. Se se conceber a instancia-cultural que constr6i 0 genero, af compreendidas as praticas sociais, como urn conjunto ~e leis rigidas, recai-se na antiga e combatida formula a biologia 0 destino. Apenas se coloca a cultura em lugar da biologia (Butler, 1990), continuando-se a pensar 0 genero com.o c. amisa-de-for~a. Na qualidade de constitu.tivo das. reI.ac;o.es so­ '\ ciais, "0 genero e urn primeiro modo de dar.s.ignificado a!LIylaC;Qc;<~qe . poder:-(Scott, 1990, p. 14). Por conseguinte, e ubfquo, permeando as instancias do simballco, das normas de interpretac;ao do significado dos diferentes sfmbolos, da polftica institucional e da polftica lato sensu e da identidade masculina ou feminina ao nfvel da subjetividade (Scott, 1990). Desta sorte, embora 0 genero nao se consubstancie em urn ser especffico, por ser relacional, atravessa e constr6i a identidade do ho­ mem e da mulher. Nestes termos, a cultura oferece limites, perceptfveis sobretudo pelo discurso hegemonico e a repressao sop distintas formas. Isto nao significa, todavia, que nao haja uma gama de condutas diferenciadas

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• Embora, como indica 0 texto, genero seja concebido como umarelartao enlre sujeitos socialmente conslrufdos em determinados contextos hist6ricos, nao denotando nenhum ser substantivo, e preciso atentar-se para 0 fato de que genera tambern designa 0 masculino e 0 feminino.Haja vista a afirma<;iio de Welzer-Lang (1991, p. 278): "A violencia dom6stica tern urn genero: 0 masculino, qualquer que seja 0 sexo ffsico doCa) dominante".

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para mulheres, de urn lado, e para homens, de outro. Ha, pois, urn territ6rio onde se situam as amplas possibilidades de escolha para 0 homem e as menos extensas, mas ainda assim existentes, op¢es para ,. I as mulheres. Nem poderia ser de outra forma, ja que 0 sujeito e mUltiplo (Lauretis, 1987). Em outras alavras stitui - 0 dos sujeitos nao se f~ exdusivamente pe 0 generol-maS tambem.pcla dasse ~()(;l. ~ P~@" rasa/et~. Urn sujeito apresenta, simultaneamente, urna identidade de i~ genero, urna i? ' . e de dasse, u~a i~eIl.tidadeetnico-racial, convi­ (l):/ Y~I!¥2_~m ~~or ~~e~lOr harmo~a. u mellior, ~ada conjumura es- \, . peclfica ~o su:tett urn poslclOnamento mats acenUilldo de sua -; idtmtid;:ld.~_c!~roall de classe ml, ain?a, de rasfIL~tlli~&Aconcepc;ao da multiplicidade do sujeito representa urn enorme avanc;o cientffico. Nao basta, no entanto. O,pensamento autoritario sempre tratou de hie.:.. rarquizar as referidas iOf:utidades, 0 Que equivale a class!ficar, segundo Q criterio da importancia, as trescontr.!lllic;.oes sociais Msicas. No pre­ sente, construfdo urn significativo acervo de instrumentos te6ricos e metodo16gicos, trata-se de verificar qual identidade social sera predo­ minante em determinlldo c texto, quando se observa 0 sujeito intera­ gindo socialmente. sim, nao compe e ao m e ectua esta elecer hie­ arquias entre os elXOS de distribuiC;ao/conquista do poder, mas desco­ brir, dentre as possibilidades que se poem para 0 sujeito, 0 processo que q\O~ o conduz a uma opc;ao. Rigorosamente, opc;ao nao e a palavra adequada, ~.. ',"''''' ja que 0 relevo adquirido ~r uma identidade Rode resultar de uma _determina<;ao inconsciente,. ta concepc;i'io apreende a dinamica psiqm­ ca e social, nao incorrendo no erro do congelamento do sujeito em urna unicidade fictfcia, existente apenas no reducionismo de certos intelec­ /~ tuais. Desta forma, 0 sujeito e multifacetad~~~!!g..J}dg,.n&V6'r~, i / )( ) ) v~s ~stassao frutos de uma produc;ao em serie da /

sociedade capit lsta, como se se tratasse de uma linha de montagem. Em outros termos, "somos todos pequenas colonias, e e 0 Edi 0 que .

\ {e' \ ,nos oloniza" Deleuze & Guattari sId, p. 212, constituic;ao as \, ( subjetividades, contranamente ao rocesso e sm lariz a n- e .'--­ l ' --_ .... , umaVlaoemrrcfdupla constru~ao serial de subjetividades, como .. "-am~italfsticos, obsta~? os Qrocessos de sin­ fruto g atizac;ao, Nos processos seri-aTIzados;<aexperien~un­ \). cionar como referencia para a criaC;ao de modos de or aniza~ao do uetid@no: interr~em-.s.e.QS..~ E, portari , num s6 mOVlm-e 0 que nascem os indivfduos e morrem os potenciai

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processo de su15Jetlva($ao, estao presentes a cnatlVldade, 0 fora­ do-lugar, 0 alem da ordem institufda, a transgressao. ':tor essencia, a criac;ao e sempre dissidente, transindividual, transcultural." (Guattari & j "Rolni10986, p. 36). , ;l Embora seus pontos de partida sejam distintos, Guattari e Lauretis, • esta valendo-sfl de Foucault, chegam ao mesmo porto: a produ($a ~ \. maqufnica de subjetividades, incapaz de realizar a totaliza($ao no indi /) vfduo, corresponde ao sujeito multifacetado, produz' 0 elas tecnolo( J) . ~genero, "nao tanto fragmentado quanta contradit6rio ,l·.. "prov dutocteVarlas tecnologias sociais como 0 cinema e Q..§ ~, epis­ " temologias e prafIcas-cnhcas inSlliUcionalizados, assim como pniticas ~ -1 l' da vida cotidiana" (Lauretis, p. 3). c; '.J I r' Existem, entretanto, diferen($as substanciais entre estes autores. ,I I ~(para Guattari, are resenta ao situ -se ao nivel molar, is," e, onde as -'j;5' ~"'I formas sociais se a resentam de modo mais rf . 0, ate mesmo quando ~' :;, f, I • J nao correspondem as pn'lticas cotidianas 0 movimen 0 mcessante no \1 ~ pThnmnoI ar mma as ormas SOCIalS cristalizadas, desestabilizando­ '('-I as e, assim, provocando mudan($as, sem, contudo, jamais transformar p.., ~ ,,' suas partlculas em novas formas so ~ - _Neste plano, tudo emovimen-' -r~ .. ' . to; pa se soliditica, nada decanta, nada deposita. Tudo e fluido, por ue '' e urn agitar-se ermanente de partfculas. 0 da questao reSI e na . ela ora($ao coJetiva / . os po 'ti~9s ap~e~ de operar transf2.fl11a-) '~ oes molares.rGUatrari atribuiu extrema importfu1aaarevolu~aomQk::-- ) 0 cUIar, elabonindo suas reflexoes sobre 0 que denominou de "micropo­ . lftica do desejo" (1981) ou, em outros tennos, uma economia libidinal (Lyotard, 1974). Nao resta a mais palida duvida sobre a relevancia desta malha fina...O-spro.ce~§'Q§jl~"!I}udan_~ imPQ~~~S de cima para baixo fracassa~nte porque g?o encontram eco-nasi~anmn:tas rela($oes sociais. Dando-apalavraaoproprio~Guat1arr: "Nao'se-trata malSOe ncKfeapropriarmos apenas dos meios de produ($ao ou dos meios de expressao polftica, mas tambem d~ sairmos do campo da economia polftica e entrarmos no campo da economia subjetiva" (1986, p. 139). o excerto transcrito merece, pelo menos, urn comentario. Na sua prlmeira parte, 0 perfodo revela a insatisfa¢o de seu autor com a analise que Marx e seus seguidores fizeram da sociedade capitalista, ideia que se refor($a na segunda parte, quando afirma a necessidade de se trabalhar ao nfvel de uma economia subjetiva. 0 problema reside na expressao \

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"sainnos do campo da economia politica"_Este tipo de terminologia d3 margem a uma leitura dicotomica: a economia polftica se constit . . " em urn domfnio e a economiasub'etiva; em urn outr ra, se Guattari "ataca a concep($ao e III ra-estrutura e de superestrutura, nao pode admitir limites, muito menos rfgidos, entre os pianos molar e molecular. Rigorosamente, 0 movimento das partfculas tambem ocoue nos in~ !icios dos processos macropolfticos. J o processo que antecedeu ao impeachment do presidente Collor mostra sobejamente como os movimentos no plano micro produzem efeitos no nfvel macro. A tftulo de ilustra($ao, lembra-se 0 poder que passou a exercer a secretaria Sandra de 01i\reira, quando decidiu revelar o carater farsesco da opera¢o Uruguai. Promoveu uma ruptura na subjetividade socialmente modelada segundo os dmones de uma profis­ sao bastante semelhante ade dona-de-casa: tidelidade ao seu senhor, discri($ao, subserviencia. Eneste registro que Sandra se apropna segredos de Esta~Deve,portanto, calar para ser tiel a seu patrao. Num movimento de exp sao da subjetividade programada, gera urn novo contexto para 0 segre 0, inserindo-o no registro das institui($oes polfti­ cas,d,a!espublica. ~,,><" . Desta sorte, ficam patentes, de urn lado, os limites fluidos entre 0 micro e 0 macro e, de outro, sua intensa articula¢o. Poder-se-ia mesmo afirmar que todos os fenomenos apresentam-se em dois tipos de tes­ situra: a malha tina e a malha grossa. E hel processos, ou melhor, momentos de processos, que se inscrevem simultaneamente nos dois pianos. Os processos molares e os moleculares podem ser visualizados ela imagem do direito e do avesso' interdependencia total. , conversa($oes travadas entre Sandra eo senador Eduardo Suplicy, antes do depoimento da secretaria na CPI constitufda para a apura($ao das faIcatruas de Paulo Cesar Cavalcante Farias, constitufram exatamente urn momento deste processo, em que 0 direito e 0 avesso se apresentam juntos, isto e, em que as re1a¢es sociais se inscrevem, ao mesmo tempo, no plano macro ' . <, - - ' )('­ l g ao obstante a simultaneidade dos regist..ros e.. a con.. ti . u."" idade dos ~./\sp'l processos, p~duvida sobre como trans[<?'!]l~!:~ssosde sin..:. '1t­ gulariza($ao em projetos polfticos de mudan a estru aI. TaIvez nem seJa es a me' or manerra de problematizar ideias a vez ue ere repele a linearidade. mUdan($3S radicais nao decorreriam, segundo este autor, exatamentedas cria¢es propiciadas peIa articula­

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C;lIo entre 0 molar e 0 molecular? Por conseguinte, nao parece haver necessidade de urn vetor fIxo na dire<;ao do molar para 0 molecular, ou 9 Jnverso.;Bste caminho mostra-se mais proffcuo, naffiedida-enrque-i' nllo se afrrma propriamente a indetermina<;ao, mas se ampliam os limi­ tes da determina<;ao: ao inves da produ<;ao material situar-se como determinante, ainda que em Ultima instancia, articula-se com a econo­ mia libidinai nos processos de conserv - ~ ~rmas de sociabilidade. nfim, no campo da determina<;ao, \ assegura-se 0 lugar do desejo como uma importante mola propulsora de rupturas dos processos de repeti<;ao. Neste sentido, nao .b.asta. a apropria<;ao dos meios materiais de produ<;ao, mas e imprescindfvel que os sujeitos sociais se apro riem tambem dos meios de pro~aod~ sentido. Ora, a m er e a grande teceffi das rela<;6es de conexiio (Gilligan, , podendo converter a depenctencia em interdependencia (Gusman, Portocarrero, 1992). Efetivamente, Gilligan descobriu que os referenciais femininos sao distintos dos masculinos, quando se trata de expressar 0 eu, seja atraves d~ julgamentos, seja por meio das proprias reJa<;oes sociais.Begunao'l -esta au(ora, ceu masculino e defInido pela separa¢o radical, enquan.tOJ a conexao delineia 0 eu feminine .Q qu~ cons~iiencias Rara a ropria no<;ao de responsabilidad~-1Estacentra-se, para os homens, no seu eu avaliado segundo urn "ideal abstrato de perfei<;ao" (p. 46); para asmulheres, e muito forte a rela<;aocom os outros na configura¢o da responsabilidade, l}a medida em que seu eu e aferido por atividades que I representam cuidar de ~l.leIll· "0 mais impressionante entre essas . diferen<;as sao as imagens de violencia na resposta do menino, retratan­ d.0 u.m mundo de confronto perigoso e conexao explosiva, onde a menina enxerga urn mundo de cuidado e prote<;ao, uma vida vivida com outros a quem voce pode amar tanto ou ate mais do que ama a voce mesmo:(p,.A9.) . -.---COmo a separa¢o, atraves da nega<;ao do feminino (Chodorow, 1978), caracteriza 0 processo de individua<;ao do homem, os valores individualistas tendem a ser extremamente marcantes em sua identida­ de. Logo, 0 eu masculino tern contomos rf idos. Na mulher ao contra­ rio; 0 eut~nn!!ID es eXlveis, pOlS seu processo e separasao da mae caracteriza~se pelameomp@l.lge. Embora na vida adulta nao haja mais simbicise"entiEfilha e mae, permanece uma vincula<;ao tao forte que nao se pade falar em separa<;ao completa. As mulheres mantem, atraves

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das rela<;6es de conexao, vfnculos com as gera<;6es mais velhas e com as mais novas. Os homens tendem a relacionar-se no seio de sua propria faixa etaria. Como sao, obviamente emvirtude de sua socializa¢o, mais competitivos, em media, do que as mulheres, convivem com maior freqiiencia com seus pares. Eevidente que os concorrentes apresentam diferen<;as entre si, 0 que lhes assegura a possibilidade concreta de mudar de posi<;ao. Mas 0 processo de competi¢o pressup6e uma igual­ dade basica. Urn homem de 70 anos mo pode mais competir, no terreno profissional, com urn jovem de 40. Urn garoto de 20 anos leva desvan­ tagem na disputacom urn profissional de 35 anos. Diferentemente dos homens, as mulheres estao habituadas a con­ viver com as diferen<;as de idade, com tudo que elas carregam: valores, cren<;as e ideais mais anacronicos ou mais contemporaneos. A preocu: pa<;ao de cuidar extrapola, por defini¢o, os limites de uma gera<;ao. E verdade que as mulheres podem cuidar de seus pares. Cuidam, no e~tanto, com mui~~r fre~iie~cia, dos ~at~ros e d?s idosos; Exe.!;.. . cltam, por consegumte, a"WClenC13 e a tolerancIa. Isto mterfere sobre­ maneira em seus imperatIvos morais, orientados, via de regra, para a I responsabilidade e a obriga<;ao de atenuar sofrimentos, amenizar dispu­ ! tas, tomar mais leve 0 fardo cotidiano dos agentes sociais com quem mantem rela<;6es de conexao. nte, esta atitude e autoprotet~ Antes rem, e autocrftica. pasi¢o dos homens a proPOSltO do cUidarJ e distinta: a obnga<;ao para com os Qll1ros ~ercebid.a n~g~, ~ sentido da nao-intromissa~odesenvolvimento de uma com­ preensao etica pos-convencional, as mulheres enxergam a violencia como inerente a desigualdade, ao passe que os homens percebem a limita¢o deumacoocep;aodejusti<;a cega as diferen<;as na vidahumana" (Gilligan, p. 110). Quando se exprime urn julgamento a partir de uma logica abstrata, procedimento em geral adotado por homens, isolam-se os dilemas das conjunturas hist6rico-psicol6gicas em que ocorrem. Podem refinar-se, atraves deste processo, princfpios objetivos de justi<;a, que modelam uma logica formal da igualdade e da reciprocidade. Entretanto, como tudo se passa no terreno abstrato, nao se tern como avallar 0 sofrimento a conduta das mulheres, ao contrario, obser- "\ dos sujeitos env' va-se concretude: sujeitos hipoteticos sao situados em contextos con­ cretos, passando a sofrer as erno<;6es e demais contingencias que a experiencia, tambem hipotetica, propicia. A injusti<;a social, neste con­

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tcxto substantivado, ganha novas cores: nao se trata da cegueira da '\:4. Justi~~tJU.~ g51 injusti~a como indissocia~~lda desigualdC:l~esocial . . ~ .---- ""Em decorrencia disto, pode-se afirm,ii"'que a 6ptica (' . iiiina e [ articularista, ao passo que a masculina e universalista. E preciso, contudo, tomar a precau<;ao de nao hierarquizar estasper:spectivas em detrimento dos imperativos morais femininos. A 6ptica dos homens e distinta da das mulheres em virtude das diferen<;as ja apontadas no processo de constru<;ao das identidades de genero masculino e feminino. "... as vozes masculina e feminina falam tipicamente da importancia de diferentes verdades, a primeira do papel da separa~oenquanto defme <e fortalece 0 eu, a ultima do processo em curso de liga<;ao que cria e c\:jlmantem a comunidade humana" (Gilligan, p. 168). Nesta linha de raciocfnio, pode-se afirmar que os homens sao individualistas e as mulheres, universalistas. Em outros termos, enquanto os homens con­ sideram-se literalmente centrais em qualquer rela<;ao social, as mulheres assumem 0 ponto de vista social. A fusao da identidade com a intimi­ ldade nas mulheres constitui uma boa medida de sua pe.rspectiva,..c.omu­ nitiria, enquanto nos homens a afirma~o da identidade e direta e aspera .....------ ...------- -. --'- ... em seu isolamento. '~ mbora na tra . - a a olescencia para a etapa adulta da vida a dema integridade versus cuidado scja identico para homens emu-I ",' eres, as distintas 6pticas destes sU.jeito.s g.,e.ram duas ideologI'as mora~is. I,) r ~ iferentes: a da separa<;ao, fundada numa etica dos direitos, e a da 17.", nexao, ancorada numa etica do cuidado. :fu1quanto a mimeira se aseiano..p.rincipJ2 da igualdade, a segunda ap6ia-se no conceito de~ ~dade, au seja, incolJ?or~ a resp~~!9~~-~~112!:s.1A etrcamascii1iiia, 10 direito, tenta situar no mesmo nfvel as reivindlca<;6es do eu e do outro. A etica feminina, da responsabilidade, considera as necessidades geradas pelas diferen<;as entre as sujeitos de uma teia de rela<;6es, na qual seu pr6prio eu pode nao apresentar qualquer relevo. Nao se esta afirmando que a ideologia moral das mulheres expressa princfpios eticos superiores. Qualquer hierarquiza<;ao exigira a escolha de urn ponto de observa<;ao distinto. Tampouco se diz que as mulheres sao partadoras de uma cultura diferente da dos homens. E extremamente importante ressaltar que as diferen<;as apontadas par Gilligan e, em menor medida, por Chodorow sao constmidas no seio da mesma cul­ tura androcentrica. Embora nenhuma das duas autoras chame a aten~o do leitor para este fato, convem evitar a maniquefsmo que informa a

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concep<;ao de duas culturas: uma feminina e outra masculina. Este maniquefsmo atinge seu climax em certas posturas ecofeministas, nas quais a "cultura" feminina figura como pacffica, nao-predat6ria, enfim, boa, e a "cultura" masculina e representada como belica, predat6ria, em suma, rna. Da perspectiva adotada neste trabalho, alem de nao fazer sentido separar cultura masculina ~u1tura feminina, este procedimen­ to se mostra nocivo em virtude do maniquefsmo nele implicito, condu­ zinda a urn impasse. Com efeito, se as categorias de genero vivem sob culturas distintas, como se justificam:

1. a machismo da maioria esmagadora das mulheres; 2. a legitima~o, par parte da sociedade c6mo urn todo, da domina~o da mulher pelo homem; 3. a aceita<;ao geral da freqiiente conversao da agressividade mascu­ tina em agressao contra mulheres etc.?

E evidente que homens e mulheres vivem sob a mesma cultura e '\j que esta destina a cada genero urn papel diferente nas rela<;6es sociais, sejam elas conflitivas au de alian<;a. Esta ultima, embora ocorra amiude, da-se sempre entre desiguais, a que permite a retomada do terna das duas diferentes eticas. A etica do direito ostenta, como s6i acontecer ~m a etica do dominador, a ambi<;ao da universalidade, mas e incapaz~.

\ ~.; de atentar para a diferencia~o de genero gerada pela cultura falocen- /~)

','-.-/ tric3:'~da responsabilidade ~..!?em men?s Qretensiosa: situa-s.e na \ j

artlculandadeOOS eventos concretos mas n orosamente, encarrYnba /'<: a so u<;ao dos conflitos a partir da 6ptica comunitaria. Embora nao se '. comungue das explica<;6es baseadas na 16gica da complementaridade, da perspectiva da falocracia, a mulher deve complementar a homem, isto e, desempenhar as papeis sociais que ele recusa para si pr6prio. Em outros termos, ela deve atingir, no maximo, a penumbra, quando nao j. consegue se limitar asambra. ,7 o domfnio da teia de rela<;6es sociais par parte da mulher, a cultivo do cuidado e das rela<;6es de conexao que ele implica, analisados par Gilligan, aproximam-na de Guattari. Com efeito, a micropolitica cons­ titui a locus de atua<;ao cotidiana privilegiada da mulher. Esta constitui uma razao relevante para se aproveitarem as anaIises deste autor. Nao se esta afirmando que todos as conceitos formulados par Guattari podem ser utilizados sem questionamentos. Ao contrario. Tam­

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pouco se tern certeza de haver ele construfdo uma teoria capaz de dar conta da realidade. De outra parte, porem, consideram-se criativos, sugestivos e proffcuos seus enfoques, sobretudo porque se reconhece a <~ ~ relevancia do plano molecular nas rela<;6es de genero. Mais do que isto, J$~ e exatamente 0 movimento das partfculas que estrangula os agencia­ ~ mentos de produ~o maqufnica de subjetividades, para permanecer na \~ terminologia do autor. _ . _ 'TodavIa, as concepc;6es teoricas de Guattari parecem desejar co­ ~ " ~tar diretamente 0 plano molecular com 0 plano molar, sem a media­

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c;aO..d. 0 part.l.'CU. lar: o. ge.nero, a ra.c;a/etnia e a. c.lasse social. Ora, ejusta­ mente neste nfvel que se gestam e ex ressamQs co'etos de transfor­ ~ mac;ao estrutural da sociedade Se os processos de smgu anza<;ao ~ merecem relevo, dado seu carater criativo, sao incapazes, sem a media­ c;ao da instancia particular, de promover mUdanc;as significativas..fuID--_ dra de Oliveira rompeu com sua subjetividade programada, sem, con­ ou de ra aletnia ou, ainda, sua tudo, organizar sua categoria de . classe SOCIa em tomo e suas bandeiras. Ainda que estim a a por uma conJuntura polftica propfcia adenuncia do assalto ao enirio publico, a secrehiria-cidada protagonizou urn papel linico numa cena unica, sem mobilizar contingentes humanos a ela similares por sua inserc;ao na estrutura social classista, sexista e racista do Brasil. E e ao nfvel destas forma¢es que se levam a cabo os projetos polfticos alimentados Pq[ ~Naoha como expliear a socledade, trabaIhando exc1uslvamente com os pIanos singular e universal e ignorando 0 particular. Talvez este fenomeno ocorra na obra de Guattari em func;ao de sua recusa de re-equacionar a tradic;ao do pensamento que opera com categorias bi­ mirias, sem jogar fora 0 bebe com a agua do banho.j"Os'antagonismos de cIasse her&dos seculo XIX contribufram inicialmente para forjar campos homogeneos bipolarizados de subjetividade. (...) Ainstaurac;ao a longo prazo de imensas zonas de miseria, fome e morte parece daqui em diante fazer parte do monstruoso sistema de 'estimulac;ao' do Ca­ pitalismo Mundial Integrado. (oo.) No entanto, podemos nos perguntar se esta fase paroxfstica de laminagem das subjetividades, dos bens e do meio ambiente mlo esta sendo levada a entrar num perfodo de declfnio. Por toda parte surgem reivindicac;6es de singularidade; ... (...) Urn outro antagonismo transversal ao das lutas de classe continua a ser 0 das rela<;6es homem-mulher. Em escala global, a condic;ao feminina esta longe de ter melhorado. (...) ... trata-se, a cada vez, de se debruc;arsobre A

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o que poderiam ser os dispositivos depnJdU~ao de subjetividade, indo no sentido de uma re-singulariza~oindividual e/ou coletiva, ao inves de se ir no sentido de uma usinagem pela media, sinonimo de desola~o e desespero" (Guattari, 1990, pp. 10-15).

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As indica<;6es de uma nova praxis sao imprecisas, Que significado tern 0 individual e 0 coletivo no processo de re-singularizac;ao, se a postura etico-polftica do autor consiste na articula~oentre 0 que chama de registros ecologicos: "0 do meio ambiente, 0 das relac;6es sociais e o da subjetividade humana" (p. 8)? Porventura 0 meio ambiente nao. envolve relac;6es sociais? A subjetividad<; humana nao e construfda grac;as aatividade que os socii desenvolvem no convfvio em sociedade (Saffioti, Canc;ado e Almeida, 1992)? Onde, pois, reside a especificida­ de do meio ambiente e da subjetividade humana vis-a-vis as rela¢es sociais? 0 genero, a rac;aletnia e a classe social, sendo todos fenomenos que estruturam rela¢es sociais, apresentam suas peculiaridades, porque se inscrevem no domfnio da historia. Ainda que as relac;6es de genero tenham traduzido sempre, ate 0 presente, a supremacia masculina, esta se realiza em graus diferentes e de foemas distintas, conforme 0 perfodo historico. 0 mesmo se passa com 0 racismo. As classes sociais so ganham contomos nftidos com 0 capitalismo, embora as castas e os estamentos possam ser pensados como seus embri6es. Ao nfvel do particular, que realiza a mediac;ao entre 0 singular e 0 universal, todos os fenomenos ganham novas dimens6es. Eis porque nao se pode, de maneira alguma, descartar seu exame. Isto nao constitui razao, entre­ tanto, para a rejei~o de todos os conceitos de Guattari. Ele chamou a atenc;ao dos cientistas sociais para uma dimensao bastante desprezada das rela¢es humanas e da maior im.portancia para sua compreensao e explicac;ao: a filigrana. Mais do que isto, tambem insistiu no abandono das posturas que congelam os fenomenos sociais e na adoc;ao de posi­ ¢es que permitem apreender os fenomenosin flux. "0 processo, que aqui oponho ao sistema ou aestrutura, visa aexistencia em vias de, ao mesmo tempo, se constituir, se definir e se desterritorializar. (oo.) Em cada foco existencial parcial as praxis ecologicas se esfon;arao por detectar os vetores potenciais de subjetiva¢o e de singulariza~o.(...) Tais vetores dissidentes se encontram relativamente destitufdos de suas fun¢es de denotac;ao e de significac;ao, para operar enquanto materiais existenciais descorporificados." (Guattari, 1990, pp. 27 e 28)


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'"I Na verdade, Guattari revela ojeriza pelo conceito marxista de es­ trutura, sem conseguir redefini-Io. A rigor, cada evento historico e (mico, mas muitos deles, separados no tempo e no espa<;o, apresentam regularidades de processo. Nao se trata, todavia, nem de adotar uma concep<;iio de historia sincopada, como em Weber, cuja ideia mestra consiste nas configura<;oes historicas inteiramente singulares, uma nao dando passagem a outra, nem de pensar em regularidades determinadas por uma estrutura cega. 0 problema reside na imobiliza<;ao da estrutura, razao pela qual Guattari a recusa, para pensar a realidade in flux. Entretanto, a historia pode ser concebida como processo, sem que se tenha necessidade de ver a estrutura como algo congelado e, portanto, impeditivo da apreensao do devir. Obviamente, isto mio seria possivel para estruturalistas radicais. A estrutura, aqui, e conceituada como urn conjunto de possibilidades, no qual ha lugar para a contradi<;ao. Admitindo-se a hip6tese de uma logica contraditoria (Saffioti, 1988), pode-se pensar a estrutura como uma ~ "logica do processo" historico (Thompson, 1981, p. 99). Ha uma passa~em de~~ histori~.??r ue. ~d~ria ser incor or,ada para significar -". __estrutura('O matenaIismo hlstonco vern, esde a epoca e ICO, US~\ ). cando uma expressao que denote as uniformidades de costumes etc., e D as regularidades das forma<;oes sociais e. as analise nao como. neces­ .l, sidades sujeitas a leis, nem como coincidencias fortuitas, mas como pressoes modeladoras e dire iv ,,JUii~ indi~tkas ~, humanas" (p. 99). sta perspectiva nao reduzaliistoria a soma das ~ ~ uais nem as cegas determina<;oe~ de "!_'!1a estrutur~" __ ~ , imune a dinamica das praticas sociai;!Comentando carta de Engels a jl "~ uo.sePh. BlOCh. (1890), Thompson perceb.e a "ambivalencia crucial de ,-.1 nossa presen<;a humana em nossa propria historia, parte sujeitos e parte )1 \-. objetos, agentes voluntarios de nossas proprias determina 0 . volun­

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---PreS~ a rede molecular, cuja importancia nao se nega de forma alguma, dando-se a ela, ao contrario, muito relevo neste trabalho, Guattari acaba, por oposi<;ao ao realce dado por Marx a rede molar, caindo no outro extremo. Isto nao constitui, parem, raziio para se rejeitar in totum sua teoria. Embora portadora de numerosas lacunas, ela per­ mite levantar hipoteses plausiveis sobre certas condutas repetitivas, presentes nas rela<;oes de violencia cronificada, onde se encontram as raizes da culpa, da ang6stia e da propria provoca<;ao de cenas violentas.

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Por outro lado, tambem da margem a interpreta<;ao de rupturas com formas padronizadas de subjetividades, abrindo espa<;o para a crialtao de novas manifesta<;oes da sociabilidade. Trata-se, no minimo, de urn pensamento democratico, que libera 0 vetor da determina<;ao e abre ~aminho para novas praxis transformadoras[cabe aos que utiliZam esta teorra-ennquece-Ia com 0 nivel do particular, detectando as media<;oes (, que permitem 0 transite entre os Qlanos molar e molecular. J ' Digam-se mais algumas pala~ a teona deste autor. De acordo com seu pensamento, a representa¢o insereve-se no plano mo­ lar, no nivel dos agenciamentos maquinicos de produ<;ao de subjetivi­ dades. Estas sao solapadas pela agita<;ab das partfculas presentes no plano molecular. Os intensos movimentos deste plano jamais chegam a cristalizar-se em formas sociais estabilizadas (1986, p. 136). Em outros terrnos, nao ha representa¢o ao nivel molecular, da criatividade, da singulariza<;ao. Por urn lado, isto faz sentido, na medida em que, num primeiro momento, a singulariza<;ao nao se realiza no registro do social. Por outro lado, contudo, se nao ha mediadores entre 0 singular e 0 universal, isto significa que a sociedade perde sua opacidade e se torna transparente. Nao seria este 0 sentido da afirma<;ao de Guattari segundo a qual"A alteridade tende a perder toda aspereza?" (1990, p. 8). A aspereza nao poderia ser tomada como opacidade? Admitir a transparencia das rela<;6es sociais nao seria negar a existencia da cultura e, por conseguinte, da propria sociedade? 0 acervo de conhecimentos cientificos acumulados ate agora indica que as representa<;oes medeiam as rela<;oes sociais, isto e, que estas circulam pelo simbolico, que car­ regam significados. Ouer se trate de subjetividades serializadas, quer de singularidades por defini<;ao inovadoras, 0 simbolismo esta sempre presente. Desta sorte, nao seve como liminar a opacidade n el -e ~u.E:!:anas, ~~r gue elas sejam. mo exp lcar os fen6menos da ~ I eologia - de genero, era e ma, de classe ­ e da representa<;ao, se nao se concebere~la~6es sociais como opacas? DiIerentemente de Guattari, Lauretis concebe 0 genero como re­ presenta<;ao em todos os niveis. A propria constru<;ao do genera se faz gra<;as a representa<;ao e ocorre nao apenas nas institui<;oes e agentes sociais explicitamente interessados na manuten<;ao do status quo, mas tambem "na academia, na comunidade intelectual, nas teorias radicais, nas praticas artisticas vanguardistas e ate mesmo no feminismo" (Lauretis, 1987, p. 3). Por paradoxal que possa parecer, a descoostru<;ao

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do genera por parte de praticas feministas ou quaisquer outras, af inclufdas as forma<;6es discursivas, inconformadas com seu carater ideol6gico, integra sua propria constru<;flo. "Isto porque 0 genera, como oreal, nao e apenas 0 efeito da representa<;ao, mas tambem seu excesso, o que permanece fora do discurso como urn traurna potencial, que pode romper oudesestabilizar, senaocontida, representa -0" (Lauretis, 1987, p. 3),,0 referente do genera e uma rela<;ao social, que remeteos\' ~ a uma categoria previamente constitufda. Ou seja, 0 genera \ ea representa<;ao de urna rela<;ao. Coloca em rela<;ao urn indivfduo com I outros, determina se ele e pertencente a uma categoria e 0 posicion~~ , face a outros pertencentes a outra categoria. Para Lauretis, 0 genera na '" · e apenas uma constru<;ao socio-cultural, mas tambem urn aparelh ~ · semiotico, "urn sistema de representa<;ao que atribui significado (iden · tidade, valor, prestfgio, posi<;ao no sistema de parentesco, status na --bierarquia social, etc.) aos indivfduos no interior da... ~.­s9c;j~dade~~ --_.-_

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Aconcep<;ao relacional de genero elaborada por Lauretis encami­ nha-a para analisar 0 fenomeno de sua constru<;ao simultaneamente enquanto praduto e enquanto pracesso de sua representa<;flo. Na qu~­ dade de pmduto, 0 genero resulta da atua~9g~_~~~I!QlQgiasde genera, terminologia~'!!..~de em..2~esti!J}()cleFoucault. Para usar a linguagem de Guattari, 0 genera deriva dos agenciamentos capitalfs­ tieos, resumindo-se a uma subjetividade, ou faceta dela, serializada. As representa¢es que constroem 0 genera praduzem diferen<;as entre ho­ mens e mulheres. Nestas circunstancias, "a constru<;ao do genera e 0 produto e 0 processo tanto da representa<;flo quanta da auto-representa­ <;ao" (p. 9). Os pracessos de representa<;ao do genera ocorrem na pre­ sen<;a e em rela<;flo aos seus proprios pradutos. Neste contexto, ainda que a concep<;iio do genera enquanto rela<;ao social signifique urn enor­ me avan<;o na compreensao da sociedade em sua dinamica, nao se pode negligenciar 0 fato de que 0 genera tambem designa contingentes hu­ manos movidos pelas representa¢es do outra e auto-representa<;6es do masculino e do feminino. Rigorasamente, Lauretis distingue dois sujeitos femininos que nao guardam nenhuma semelhan<;a com a Mulher com M maiusculo, com nenhuma essencia a ela inerente. Ha mulheres historicamente situadas, agentes sociais modelados pelas tecnologias de genera e, portanto, conduzindo-se de forma sexuada (nao-neutra do c1ngulo do genera) nas

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rela<;6es sociais. 0 segundo tipo de sujeito diz respeito ao sujeito do feminismo, ou seja, urn construtor teorico. Este novo sujeito, dotado da consciencia de situar-se, simultaneamente, dentro e fora da ideologia de genera, nao ocupa, portanto, urn lugar fDm no que tange aorganiza­ <;flo social de genera. Fala a partir da posi<;flo de genera, como tambem a partir da posi<;ao crftica do genera. Como 0 genera consiste em representa¢es e auto-representa¢es, 0 sujeito do feminismo tern uma ancora no seio das representa<;6es e outra fora delas. Aqui reside urn forte ponto de comunica<;flo entre Lauretis e Guattari. 0 genera, mode­ lado pelas tecnologias de genera ou por agenciamentos maqufnicos, insere-se no domfnio da representa<;ao. Desta sorte, 0 sujeito do femi­ nismo, enquanto no interior do genera,topera na constru<;ao deste ulti­ mo, como tecnologia de genera. Fora da representa<;flo, ou seja, fora do genera, trabalha na desconstru<;ao, na verdade desconstru<;flo-reconstru­ <;ao, deste mesmo genera. Este e 0 plano da criatividade, das inova<;6es. Embora Lauretis nao mencione Guattari, trabalha nos pIanos molar e molecular, tentando, porem, nao perder de vista as diferen<;as pessoais e as diferen<;as polfticas, atraves de urn transito obrigatorio pelos gru­ pamentos formados historicamente ao longo da ra<;a/etnia e das classes sociais. Assim, insiste na importancia da reten<;ao do que chama de "ambigiiidade do genera": 0 estar dentra e fora ao mesmo tempo, a capacidade de urn discurso de construir e desconstruir-reconstruir, 0 poder das pnlticas sociais de modelar condutas masculinas e compor­ tamentos femininos e de inova-Ios. A preserva<;ao desta ambigiiidade, considerada desconfortavel pela autora em pauta, constitui, se nao uma garantia, pelo menos uma condi<;ao imprescindfvel para evitar a des­ sexualiza<;ao e a andraginiza<;flo do genera, 0 que equivaleria a privile­ giar as contradi<;6es de classe e etnico-raciais. 0 longo excerto que se segue demonstra pontos de contacto bastante estreitos entre Lauretis e Guattari, operados, certamente, pela adO<;iao de conceitos foucaultianos. "A constru<;ao do genera continua atualmente atraves de varias tecno­ logias de genera (por exemplo, cinema) e discursos institucionais (por exemplo, teoria) com poder de contralar 0 campo da significa<;ao social e, por conseguinte, praduzir, pramover e 'implantar' representa¢es de genera. Mas os termos de urna constru<;ao diferente do genera tambem existem nas margens dos discursos hegemonicos. Colocados a partir de fora do contrato social da heterassexualidade e inscritos nas praticas micrapolftieas, estes termos tambem podem representar urn papel na


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constru<;ao do genera, notando-se seus efeitos mais ao nivel 'local' das resistencias, na subjetividade e na auto-representa<;ao" (p. 18). Os es­ pa<;os a partir dos quais se des-re-constr6i 0 genera nao existem apenas nas franjas dos discursos hegemonicos, mas tambem nos "interstfcios das iostitui<;6es e nas fendas e rachaduras dos aparelhos de poder-saber" (p.24). Aquilo que se estfi aqui chamando de ponto de obse1Va~iio (Saffioti, 1991) correspande ao outro lugar mencionado parLauretis. Na verdade, nao se trata de margens, nem de intersticios, nem ainda de brechas. Trata-se de urn movimento permanente entre a ideologia de genera e a contra-ideologia de genera; entre a representa<;ao de genera e aquilo que permanece fora dela ou que ela torna irrepresentavel. Estes dois tipos de espa<;o nao estao em oposi<;ao simples de modo a formar uma categoria binaria, mas comp6em uma contradi<;ao. 0 movimento do sujeito do feminismo de urn para outra destes espa<;os caracteriza-se, conseqiientemente, pela "tensao da contradi¢o, multiplicidade e hete­

ranomia" (p. 26). Nao resta duvida de que esta contradi<;ao, esta ambi­

giiidade enriquece sobremaneira a 6ptica feminista. Permanece, entre­

tanto,.uma questao seria, sobre a qual se tentarao levantar algumas

hip6teses no segundo capitulo: as diferen<;as e rela<;6es entre as representa<;6es e as ideologias, no caso, de genera. Para Lauretis, estes dois fenomenos nao sao senao urn, pensamento com 0 qual nao se concorda Tambem as mulheres comuns, em suas atividades cotidianas, si­ tuam-se no interior e no exterior do genera. 1sto equivale a dizer que elas operam a partir de dentro da representa<;ao e tambem a partir de seu exterior. Com maior razao isto se passa com 0 sujeito do feminismo. Neste sentido, "0 feminismo nao pode se lan<;ar como ciencia, como urn discurso ou uma realidade que esta fora da ideologia ou fora do genera como uma instancia da ideologia" (p. 10). Em outras termos, os pontos de observa<;ao das feministas nao se situam em nenhum lugar

privilegiado, passivel de ser tornado asseptico, descontaminado de ideo­

logia, a exemplo do que pretendiam os positivistas e a corrente althus­ seriana. Por conseguinte, as feministas praduzem conhecimentos poli­ ticamente engajados ou, em outras palavras, 0 feminismo e aqui enten­ dido enquanto uma nova perspectiva cientifico-politica (Saffioti, 1985). 1sto conduz a reflexao para a existencia de diferentes epistemologias que embasam os questionamentos feministas dos pracedimentos cien-

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Hficos oficiais. "As criticas feministas da ciencia praduziram uma listB de quest6es conceituais que amea<;am tanto nossa identidade cultural, como uma sociedade socialmente pragressista e democratica, quanta a medula de nossas identidades pessoais, como individuos pertencentes a g~neras distintos" (Harding, 1986, pp. 28 e 29). ' o-g-erlera, asslm como a classe-soclareara-~arefiiia,condicioiiaa---' percep<;ao do mundo circundant.e. e 0 pensamento. FU. nciona, assim, como urn crivo atraves do qual 0 mundo e apreendido pelo sujeito. Logo, a atua<;ao deste sujeito sobre ~ de sua maneira . e eGi'fica de cQD112reende-IQ.}Apostura aqui esposadanaoconslSteem­ reduzir tudo a genera, mas e;rt afumar que ele, como tambem a ra<;a/et­

nia e a classe social sao fundantes das reIa<;6es sociais, pois regulam as

rela<;6es homem-mulher, as rela<;6es homem-homem e as rela<;6es mu­

lher-mulher. Socialmente construido, 0 genera corporifica a sexualida­ de (nao 0 inverso), que e exercida como uma forma de poder. Logo, as

rela<;6es de genera sao atravessadas pelo poder. Homeos e mulheres sao . classificados pelo genera e separados em duas categorias: uma domi-I nante, outra dominada, obedecendo aos requisitos impostos pela heterossexualidade. A sexualidade, portanto, e 0 ponto de apoio da desigualdade de genera. Pelo exposto se pode concluir que 0 estar fora da ideologia (ou da representa<;ao), para Lauretis, nao tern 0 mesmo significado que para Guattari. De acordo com este, os pracessos de singulariza<;ao escapam ao campo da representa¢o, enquanto para Lauretis, a postura critica do, genero situa-se num outro tipo de concep<;ao das praticas cotidianas. 1sto e, 0 estar fora da ideologia de genero significa assumir uma posi¢o critica em rela<;ao a ela. 0 que ela chama de outro lugar (ponto de observa~iio, na linguagem de Saffioti, 1991), a partir do qual falam as feministas, tambem apresenta opacidade, nao sendo, de forma algu­ rna, asseptico do angulo das idees re~ues. Nisto reside, parece, a grande divergencia entre Guattari e Lauretis, embora nunca seja demais insistir sobre a enfase dada por esta Ultima a uma instancia negligenciada por aquele: a do particular. Cabe, agora, lembrar que as idees re~ues nao sao necessariamente obsoletas, nem representam sempre a 6ptica dos dominadores. As inova<;6es geradas ao myel das praticas sociais, ai inclusas as forma<;6es discursivas, constituem idees re~ues de dois pontos de vista: derivam de campos semi6ticos subversivos constitufdos no interior dos apare­

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II10s de saber/poder e fornecem 0 diapasao para 0 concerto de novas tessituras, articulando os dois dominios. Desta sorte, 0 outro lugar, pretensamente situado fora da ideologia, obedece tambem as coordena­ das do campo ideol6gico, nao obstante sejam outros seus conteudos. Desta perspectiva, a concepr;ao das Delegacias de Policia de Defesa da Mulher situa-se num campo epistemico de enfrentamento com a ideo­ logia de genero dominante e, nem por isto, fora da ideologia (ou contra-ideologia). Entre uma ideologia de genero e outra ha diferenl;aS etico-cientifi­ cas insupenlveis. Com efeito, nao se trata apenas de uma extensao dos direitos humanos as mulheres, como se a questao fosse meramente quantitativa. Trata-se de uma nova conce~o de direitos humanos, que, nao somente inclui as mulheres, como tambem gera espal;o para a vivencia das diferenl;as de genero socialmente construidas num contex­ to de igualdade social. Nestes termos, a nova ou contra-ideologia de genero traz uma qualidade inedita, qual seja, no limite, a erradical;ao da supremacia dos homens, responsavel pela legitimal;ao da violencia por eles perpetrada contra as mulheres. Vale dizer que a contra-ideolo­ gia de"genero - 0 lugar em que as relal;6es entre homens e mulheres se tornam irrepresentaveis, na concep¢o de Lauretis - assume forma de ideologia de genero, na medida em que des-re-constroi os moldes do feminir 0 e do masculino. Recai-se, assim, no problema do nivel ­ molar ou molecular - em que se constitui a represental;aO. A rigor, embora textualmente diga 0 oposto, Lauretis admite a representa­ ¢o/ideologia na malha tina, enquanto Guattari so a concebe (represen­ tal;ao) na malha grossa, enquanto produto. Por paradoxal que possa parecer, os dois podem estar corretos. Os processos de singularizal;ao, sejam individuais ou coletivos, processam-se, em ultima instfmcia, no registro da sociedade. Nao se trata, obviamente, nem da sociedade como um todo, 0 que seria uma ficl;ao, nem de sua parte dominante, mas de sua parcela oprimida. 0 fato de os produtos simb6licos desta Ultima nao receberem 0 aval da "sociedade oficial" nao significa que ela nao constroi representa¢es dos eventos concretos, representa¢es estas que entram em competil;ao com as inscritas no nlvel molar. Esta optica implica 0 abandono da concepl;ao do molar como estabilizado e do molecular como em permanente movimento. Admitida a competi¢o entre os produtos de ambas as instfulcias, so resta a hipotese de estarem as duas in flux. 0 que da legitimidade as represental;6es inscritas no

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nivel molar e 0 poder a elas associado ou desfrutado por aqueles que as professam. A rigor, elas so apresentam maior estabilidade em virtude de serem permanentemente defendidas pelos que transitam com mais freqiiencia pelas rela¢es de poder. Nao fora esta verdadeira muralha, as represental;oes dominantes estariam sujeitas ao mesmo ritmo de mudanl;a das subversivas. Desta forma, parece mais adequado pensar as represental;oes em ambos os niveis e em competil;ao. Alias, nao e dificil admitir a competil;ao entre os frutos dos processos molares e os frutos dos processos moleculares, 0 que representa uma diferenl;a rele­ vante em rela¢o COnCepl;ao do molar como produto e do molecular como processo. 0 que seria das minoriaSySociol6gicas nao fota a pos­ sibilidade de suas representa¢es estarem constantemente lutando para oeupar 0 lugar das hegemonicas? "Em briga de marido e mulher nao se mete a colher" constitui uma represental;ao cotidianamente minada pelas ideias e politicas pUblicas nascidas da proposta feminista de rela­ ¢es de genero igualitarias.

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Capitulo 2

Brasil: Violencia, Poder, Impunidade

Da perspectiva aqui adotada, ao mesmo tempo em que 0 genera e constitutivo das rela<;6es sociais, a violencia e constitutiva da ordem falocnitica. Por conseguinte, 0 genera informado pela desigualdade social, pela hierarquiza<;flo e ate pela 16gica da complementaridade traz embutida a violencia. Nao faz sentido, por via de conseqiiencia, separar a violencia estrutural * de outras que, por oposi<;flo, se poderiam deno­ minar conjunturais ou, como querem Azevedo e Guerra (1989), resul­ tantes de rela¢es interpessoais, como se estas independessem da estru­ tura social. Assim, estas autoras chamam de vitimiza<;ao 0 pracesso de violencia estrutural contra crian<;as, denominando assim 0 resultado da violencia interpessoal. Hi dois referenciais neste tipo de analise: 0 de dasse, que vitima os pobres, e a assimetria das rela<;6es entre adultos e crian<;as, que vitimiza estas ultimas. Ainda que se possam diferenciar as rela<;6es entre contingentes humanos pertencentes a distintas faixas emrias de outros tipos de assimetrias sociais (Saffioti, 1989),0 adulto­ centrismo e tao estrutural quanta as discrimina<;6es praticadas em fun­

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• "Estas (criane<as de alto risco) sao as crianl<as-vitimas da violencia estrutural, caracte­ rfstica de sociedades como a nossa, marcadas pela domina~o de classes e por profun­ das desigualdades na distribuic<ao da riqueza social. Sao as que, eufemisticamente, denominamos menor, enquanto categoria designativa da infancia em situa~o irregular, a reclamar, portanto, interven'<iio e prote'<iio do Estado. (...) A denomina'<iio alto-risco refere-se ao fato de que essas criane<as tem uma alta probabilidade de sofrer, cotidiana e permanentemente, aviolac<ao de seus direitos humanos mais elementares: direito a vida, asaude, aalimenta'<iio, aeduca~o, aseguranc<a, ao lazer, etc. A viola'<iio desses direitos faz-se atraves do processo de violencia estrutural caracterfstico de nosso sistema s6cio-economico e poIftico e que se exerce principalmente sobre as classes subalternas, sobre os "deserdados do sistema." (Azevedo e Guerra, 1989, p. 26)

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liao da classe social, do genero e da ra~a/etnia, 0 que nao significa que a violencia intergeracional 0 seja. E nao 0 e. Mais importante do que buscar dissemelhan~as neste ponto e procurar entender que nas primei­ ras esta presente uma "desigualdade temponiria", enquanto nas demais ocorre a "desigualdade permanente" (Miller, 1991, pp. 30e 31). Mais do que isto, as probabilidades de mudan~na desigualdade permanente sao remotas, ao passo que a desigualdade temponiria acaba se inverten­ do ao lange da vida. Efetivamente, 0 adulto exerce dominac;ao sobre a crian~a e 0 adolescente, mas, ao envelhecer, torna-se dependente da vontade daqueles adultos em que se transformaram os menores. Ate a inversao integra visceralmente os andaimes dasociedade. Neste sentido, tambem ela e estrutural. A autoridade exercida pelo adulto sobre crian­ ~as e idosos, entretanto, nao implica necessariamente violencia. Pode ate mesmo dar-se num clima de extrema amabilidade e afeto. A violen­ cia de classe, de genera e de ra~a/etnia, ao contrario, e conditio sine qua non para a instaurac;ao e preservac;ao da hegemonia destes agrega­ dos. Desta sorte, as rela~oes inter-geracionais nao se confundem com as rela¢es de contradi~ao,ja explicitadas. Para as autoras em pauta, cujo referencial, ao nlvel do particular, consiste exclusivamente nas classes sociais, 0 que varia entre 0 processo de vitima~ao e 0 de vitimiza~ao "e a natureza da rela~ao do poder envolvida: macropoder, no caso da vitima~ao;micropoder, no caso da vitimiza~ao" (p. 46). a que se pode dizer e que 0 poder, quer se desenvolva no myel macro, quer no plano micro, tern sempre a mesma natureza. Por outro lado, 0 que ja foi exposto mostra que 0 macro e 0 micro s6 se distinguem para ems analfticos, pois todos os fenomenos ocorrem simultaneamente nestas duas instfmcias, cuja imbrica~ao e profunda. Isto posto, as violencias de genero e as de ra~a/etniainscrevem-se no nfvel molar tanto quanta a violencia de classe, privilegiada pelas autoras sob enfoque. Isto significa que as normas sociais que regulam a convivencia de homens e mulheres, de brancos e negros e de ricos e pobres contern violencia. Assim, a mera obediencia as regras sociais conduz aviolencia de genero, de ra~etnia, de classe (Monso e Smigay, 1989). Este constitui mais um forte elemento para corroborar a afirma­ ~ao de que a violencia de genero e estrutural. Ao se adotar a termino­ logia de Azevedo e Guerra, ter-se-ia que dizer que as mulheres sao vitimadas pela violencia masculina.

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a contrato heterossexual, cuja forma chissica de expressao consiste no contrato matrimonial, especialmente legal, estabcleCeooontrole da sexualidade feminina por parte do homem. a "dever conjugal" que obriga as mulheres a manterem rela~6es sexuais com 0 companheiro, mesmo contra seu pr6prio desejo, nao expressa, enUio, a violencia contida no casamento e a qual as mulheres cedem? (Mathieu, 1985). Efetivamente, M uma diferen~ qualitativa entre 0 consentimento e a cessao. a primeiro conceito esta vinculado a ideia de contrato e presume que ambas as partes se situem no mesmo patamar de poder. au seja, sO podem consentir em algo ou estabelecer um contrato pessoas social­ mente iguais. Por que 0 estupro de menmas com idades inferiores a 14 anos elimina a hip6tese de consentimento e pressup6e a violencia? Exatamente porque, segundo as normas jurfdicas, uma crian~a de ate 13 anos nao tern discernimento para consentir. A falocracia admite a imaturidade da crian~a. a problema reside na mulher adulta. Esta e considerada capaz de discernir entre 0 que the convem e 0 que lhe desagrada/prejudica. Mas a considerac;ao e feita apenas em termos de idade e em termos da igualdade formal entre homens e mulheres. Nunca se poe com clareza a inferioridade social da mulher frente ao homem. Assim, a mulher adulta e considerada capaz de consentir. A rigor, contudo, 0 consentimento the escapa, s6lhe restando a cessao. Ela cede aos desejos do marido, mas nao consente na rela~ao sexual, pois, neste caso, 0 consentimento s6 pode estar alicer~dono desejo. Desta sorte, o casamento, ou melhor, atraves dele, 0 homem procede a "passivizac;ao do erotismo das mulheres" (Fernandez, 1989, p. 150). As mulheres s6 podem firmar 0 contrato matrimonial por serem formalmente iguais aos homens. Rigorosamente, portanto, 0 contrato e firmado entre os homens para estabelecer a posse das mulheres repartidas entre eles, pois, na verdade, nao M contrato entre desiguais. Nao obstante a enorme varie­ dade dos contratos matrimoniais, "subsiste arela<;iio necessaria e naOo contingente entre conjugalidade e violencia, ja que a apropriac;ao desi­ gual dos bens economicos, culturais e er6ticos... faz com que este contrato se desenvolva entre atores sociais que, independentemente dt; sua vontade, sao - em certo sentido - politicamente antagonicos. E uma situa~ao de alto custo para todos: uns tratando de preservar seus privilegios, outras resistindo, submetendo-se ou tentando conquistar novos direitos. Neste sentido, pOder-se-ia dizer que 0 arnor conjugal e a guerra por outros meios" (Fernandez, p. 150; grifos no original).


BRASIL: VIOLENCIA, PODER. IMPUNIDADE

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o genero constitui uma verdadeira gramatica sexual, nonnatizando condutas masculinas e femininas. Concretamente, na vida cotidiana, sao os homens, nesta ordem social androcentrica, os que fixam os limites da atua<;ao das mulheres e determinam as regras do jogo pela sua disputa. Ate mesmo as rela<;oes mulher-mulher sao normatizadas pela falocracia. E a violencia faz parte integrante da normatiza<;ao, pois constitui importante componente de controle social. Nestes termos, a violencia masculina contra a mulher inscreve-se nas vfsceras da socie­ dade com supremacia masculina. Disto resulta uma maior facilidade de sua naturaliza<;ao, outro processo violento, porque manieta a vftima e dissemina a legitima<;ao social da violencia. Embora os excessos sejam negativamente sancionados pela sociedade (MacKinnon, 1989), a im­ punidade dos homens grassa solta, em fun<;ao da natureza visceral da domina<;ao destes sobre as mulheres. Das sevfcias ffsicas as sexuais, passando-se pela tortura psicol6gica, tudo se encontra a granel. No Brasil nao ha dados globais sobre a violencia perpetrada por homens contra mulheres. Existem alguns dados pontuais, que serao aqui utilizados, na tentativa de se fornecer uma ideia do pano de fundo da pesquisa empfrica realizada No que tange a violencia sexual intrafamiliar contra crian<;as, dado semelhante ao norte-americano foi levantado na cidade de Sao Paulo: de 168 casos de abuso incestuoso denunciados em 1981, apenas 6,5% das vftimas eram constitufdos de meninos (Azevedo e Guerra, 1987). Em urn programa de atendimento a menores, de 50 meninas, 32% relataram casos de estupro. Dentre elas, 85% tinham entre 9 e 17 anos, 76% eram negras ou mulatas, 60% nao trabalhavam, 35% estudavam e 51% viviam com a familia (Teixeira, 1991). Levantamento realizado na cidade de Sao Paulo (Azevedo, 1985) mostrou que dos 2.316 boletins de ocorrencia relativos a crimes contra mulheres, 1.082 (46,7%) refe­ riam-se a lesoes corporais dolosas e 937 (40,5%) registravam lesoes corporais culposas. Outro levantamento feito nos 2.038 boletins de ocorrencia registrados nos primeiros cinco meses de funcionamento da primeira Delegacia de Polfcia de Defesa da Mulher de Sao Paulo (agos­ to a dezembro de 1985) revelou 714 (35%) casos de lesao corporal dolosa e 528 (25,9%) casos de amea<;a (Seade/CECF, 1987). Romens cometem violencias contra outros homens por distintas razoes. Cabe ressaltar, porem, a violencia inter-classes sociais, que se manifesta pelo roubo, pelo latrocfnio, pelo homicfdio puro e simples

como ato de vingan<;a contra aquele que possui mais bens, que desfruta de mais alto padrao de vida. Este tipo de violencia pode ocorrer quer no espa<;o reservado as atividades privadas, quer para as~'blicas.Como os homens, em geral, transitam mais no espa<;o pub ·co do que as mulheres, nao s6 durante 0 dia quanta durante a noite, a Qlencia entre eles acontece, com mais freqiiencia, nas ruas, nos bares, naSboates. A mulher freqiienta mais raramente tais locais, em qualquer pais do mun­ do. Na maior parte das cidades do Brasil isto e ainda mais verdadeiro, o que nao significa que ela esta isenta de riscos. Com efeito, muitas sevfcias e ate mesmo homicfdios ocorrem no espa<;o do lar. Mas 0 maior numero de atos violentos fatais ocorre nas ruas e em outros espa<;os publicos, vitimizando uma muito maiqr propor<;flO de homens. Estatis­ ticas de Mortalidade (1987) do Ministerio da Saude revelam que, em todas as faixas etarias, a propor<;ao de homens assassinados e maior do que a de mulheres. 0 diferencial agiganta-se a partir da adolescencia, quando os meninos ganham mais espa~o nas vias publicas. Dentre os assassinados na faixa de 10 a 14 anos, em 1987,76,4% eram homens. Mas e a partir dos 15 anos que os diferenciais se ampliam. Entre os 15 e os 69 anos, mais de 90% dos assassinados eram homens. Esta pro­ por<;ao cai urn pouco na classe dos 70 anos e mais. No computo geral, porem, os homicfdios de homens atingiram 91,5% do total, em 1987. Na categoria de 6bitos decorrentes de outras violencias, os homens tambem constituem maioria esmagadora (83,2%), uma vez que sao belicosos com rela<;ao aos seus pares, em razao da competi<;ao, e des­ pendem muito mais tempo do que as mulheres no espa~ publico, onde pode ocorrer toda sorte de viola<;6es de direitos humanos. Mesmo na categoria de auto-agressao, como e 0 caso do suicfdio, os homens perfazem tres quartos do total. Se os homens cometem e sofrem violencias no espa<;o publico, reinam soberanos no espa~ privado, como detentores do monop6lio do uso "legftimo" da for<;a ffsica. Com efeito, 0 dornicflio constitui urn lugar extremamente violento para mulheres e crian<;as de ambos os sexos, especialmente as meninas. Desta sorte, as quatro paredes de uma casa guardam os segredos de sevfcias, humilha<;oes e atos libidino­ sos!estupros gra<;as a posi~ao subalterna da mulher e da crian<;a face a9 homem e da ampla legitima~ao social desta supremacia masculina. E com esta estrutura que a familia tern garantido 0 status quo, pleno de privilegios para os homens, sobretudo ricos e brancos. Dai 0 panico ate


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mesmo em se pensar em transforma-Ia. Ademais, ela treina seus mem­ bros na competilito, valor basilar da sociedade de classes. Constr6i-se, em virtude da sacralidade da familia, urn verdadeiro muro de silencio em tome dos eventos ocorridos no seio deste grupo. Em nome da defesa de uma privacidade que existe apenas para os homens e nao para as mulheres, a sociedade em geral - excelito feita a alguns grupos - nao atua no sentido de alterar as violentas formas de sociabilidade desen­ volvidas pela familia. Teoricamente, podem-se desenrolar diferentes sociabilidades: desde a mais democratica ate a mais fascista. 0 que se observa empiricamente sao praticas extremamente autoritarias, tanto na direlito adulto-erian~ quarito no sentido homem-mulher. Pode-se afir­ mar, sem muita margem de erro, que a familia constitui urna das institui­ c;6es sociais mais autoritarias e castradoras (Gaiarsa, 1986,19800), nao apenas em virtude de sua organizalito intema e do papel que desempe­ nha na sociedade como urn todo, mas tambem porque perdura ao longo de toda a vida do socius. Mesmo depois de mortos, certos membros da fanulia perturbam 0 sossego dos vivos, quando estes intemalizaram, por exemplo, a figura repressora do pai ou da mae. Cabe lembrar que os "pequenos assassinatos" cometidos no seio da familia tendem a vitimi­ zar sempre a(s) mesma(s) vftima(s): a mulher e espancada e/ou o(a) filho(a) do meio, por exemplo, e transformado em bode expiat6riode todos os males, ou, ainda, a(s) filha(s) e (sao) sexualmente utilizada(s) pelo pai, pelo padrasto, pelo irmao mais velho, pelo primo, etc. Dife­ rentemente, .as violencias ocorridas em lugares publicos tern como sujeitos pessoas variadas, entrando em relac;6es tambem variadas. Por esta razao, raramente, M urna estabilizac;ao de relac;6es violentas fora do que se convencionou chamar de "esfera privada": A propalada "esfera privada", que se prefere chamar de espac;o intrafamiliar, ao

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• Nao se considera adequada esta terminologia de "esfera privada" e "esfera publica". Embora predominantemente se executem atividades privadas na primeira e atividades publicas na segunda, estes campos nao se separam estanquemente. A propria divisao da casa em comodos denota os diferentes graus de intimidade admissfveis em cada urn. Desta forma, na sala, podem serrealizadas atividades publicas, como neg6cios, leitura de testamento, seroes litenirios. 0 quarto ereservado avida intima. A terminologia das "esferas" dicotomiza, dissipando a gama de nuan~s que povoam a trilha entre as atividades privadas e publicas e suas interal$oes. Eis porque se prefere esta ultima linguagem.

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contrario, constitui 0 caldo de cultura propicio arotinizalito das relflc;6es violentas. Como se discutiu amplamente em outro trabalho (Saffioti, Canc;ado e Almeida, 1992), sao rarissimas as ac;6es de viOlencia, pois isto implica unilateralidade, unidimensionalidade. Mesmo niN:!-Ia, sem nunca terem trocado urna palavra, duas pessoas constroem, ainda que efemeramente, urna relalito de troca de violencias ou reac;6es de defesa a tentativas frustradaslbem sucedidas de ferimento fisico, emocional ou sexual. As vitimas, embora possam se sentir paralisadas pelo medo e/ou tratadas como objetos inanimados, nao deixam de, pelo menos, esboc;ar reac;6es de defesa. Com razao isto se verifica nas relac;6es de conviven­ cia freqiiente ou cotidiana. Consciente ou inconscientemente, a vitima formula e executa estrategias para conviv~r com a violencia. Participa, pois, desta. A posic;ao vitimista, na qual a vitima figura como passiva, sem vontade e inteiramente heteronoma (Chaw, 1985), alem de nao dar conta da realidade hist6rica, revela urn pensamento extraordinariamente autoritario. Obviamente, se a vftima teve sua vontade anulada pela vontade de seu agressor, cabe a algum iluminado propor soluc;6es ca­ pazes de tira-Ia da situac;ao de violencia vivenciada. Na condic;ao de vitima passiva, ela jamais se livraria sozinha de seu "destino de mu­ lher". Adota-se, aqui, posic;ao frontalmente contraria ada conscientiza­ c;ao, implfcita no pensamento autorlffirio. Por que, entao, nesta postura nao-vitimista, continuar chamando uma parte devftima? Todas as relac;6es humanas apresentam urn certo grau de tensao, nem sempre negativo. As relac;6es de violencia sao extremamente tensas e quase invariavelmente caminham para 0 p610 negativo: a violencia tende a descrever uma escalada, comec;ando com agress6es verbais, passando para as ffsicas e/ou sexuais e podendo atingir a ameac;a de morte e ate mesmo 0 homicfdio. Mas 0 exito do agressor depende das reac;6es da vftima. Assim, a escaladamo acontece forc;osamente. Como toda relac;ao social, a relalito de violencia implica for~a - nao neces­ sariamente fisica, mas como capacidade de determinar· 0 destino de outro(s). A forc;a reside na relalito, 0 que equivale a dizer que apresenta uma dinamica nao passivel de congelamento num determinado status • Determinal$ao, aqui, tern 0 sentido que Ihe atribui Thompson (1981). "... dai a impor­ tancia de definir 'determinar' em seus sentidos de 'estabelecer Iimites' e 'exercer pressoes'"... (p. 176).


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quo.Trata-se, portanto, de uma rela~ao de for~a. Assim, embora ten­ dencialmente haja'uma escalada da violencia, ela pode estabilizar-se num certo nfvel, 0 que na~ elimina a eleva~ao da tensflO em certo momento, podendo ocorrer homicfdio ou tentativa de homicfdio. A cronifica~ao da rela~o violenta pode situar-se em varios momentos do processo e assim permanecer por lange tempo, tomando-se necessaria para os co-partfcipes. (Saffioti, Can~ado e Almeida, 1992).

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as dados internacionais coligidos, assim como os brasileiros que se fornecedio em seguida, revelam como as mulheres estao mais expos­ tas a rela~6es de violencia rotinizadas, ja que sao as vftimas preferen­ ciais das agress6es em familia. Estatfsticas da FIBGE (1990) para 0 ana de 1988 indicam maior tendo a mulher como vftima que 0 homem. Nas cidades, dentre os homens que sofreram agressao fisica, 7% foram golpeados duas vezes e outros 7% 0 foram tres vezes ou mais. as nUmeros correspondentes para as mulheres sao 8% e 9%. Examinados isoladamente, estes dados revelam diferen~as insignificantes. Podem, contudo, ser analisados ao lado de outros produzidos no mesmo con­ texto. Dentre os homens agredidos fisicamente, 10% 0 foram por pa­ rentes e 44%, por pessoas conhecidas, enquanto esmo no primeiro caso 32% e no segundo 34% das mulheres que sofreram agressao fisica. Este conjunto de dados permite a leitura de maior rotiniza~ao da violencia para a vftima mulher do que para a vftima homem, pois a violencia fisica domestica contra a mulher representa mais de tres vezes a sofrida pelo homem (32% para 10%). as dados que se seguem corroboram a analise da cronifica~aoda violencia domestica, da qual a mulher e a vftima em uma grande parte dos casos, partilhando esta condi~o com as crian~as. Dentre as vftimas de agressao ffsica, os homens compare­ cern com 37%, quando a violencia ocorre no domicilio; alcan~ 87%, quando acontece em predio comercial, como e 0 caso de bar; e atingem 68%, quando e praticada em via publica, terreno de ample domfnio masculino. Logo, a violencia perpetrada dentro de quatro paredes incide maci~amente sobre as mulheres: elas comparecem com 63% dos efeti­ vos agredidos fisicamente no domicilio. Como a maioria das violencias perpetradas contra mulheres e obra de (ex)marido, (ex)companheiro e (ex)namorado, a probabilidade de que ocorram no domicilio e a1tfssima Dados da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) mostram

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que, no perfodo de agosto a dezembro de 1985, 85,5% das registradas tinham por agressores homens nas referidas rela~6es c6m suas vftimas (Feiguin & Bordini, 1987). Embora na~ se conh~am os metodos utilizados na coleta dos dados e no tratamento a eles dispensado, os resultados parciais de uma inves­ tiga~ao levada a cabo pelaRede Globo recentemente (Jornal da Tarde, 1%2/93) retratam uma situa~ao alarmante no que tange a violencia de genero: "A cada quatro minutos, a polfcia registra uma agressao ffsica contra a mulher no Brasil." Partindo-se da premissa, verdadeira em qualquer parte do mundo em maior ou menor grau, de que uma pequena fra~ao da violencia cometida por homenS contra mulheres chega as autoridades policiais, esta cifra e extraordinariamente alta. A mesma pesquisa detectou urn dado assustador: 60% dos casais em que a mulher e vftima de violencia pertencem as classes media e alta. Como estas camadas representam menor propor~o na popula~ao,pode-se concluir que nelas a incidencia da violencia domestica apresenta uma taxa rela­ tiva muito superior a que atinge as chamadas classes perigosas, cuja presen~a supera, em muito, 40% dos brasileiros. * Este dado corrobora o processo de desconstru~odo mito, segundo 0 qual os homens vio­ lentos pertencem as camadas pobres. Com efeito, a imagem do espan­ cador, do homicida e do estuprador, no imaginario coletivo, cor­ responde ao homem pobre e, de preferencia, negro. Sera diffcil eliminar este estereotipo no Brasil. A coleta dos dados do Censo e feita de maneira a permitir que 0 informante decida com rela~ao a sua cor. Ora, dada a influencia da ideologia do branqueamento, e inestimavel 0 nu­ mero de pardos, sobretudo, que se declaram brancos. Isto produz vies em qualquer estatfstica. Desta forma, na~ se considetam como conclu­ sivos e definitivos os dados levantados porFeiguin & Bordini (1987) na primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), de Sao Paulo, no perfodo de agosto a dezembro de 1985. Deixam-se de lade as informa­ • As PNADs 1973 e 1989 revelam uma proletariza~aoacelerada dos estratos medios brasileiros. A propor~lio dos que ganhavam ate US$ 75 aumentou de 16% para 23 %, ou seja, cresceu quase 44%. Na faixa seguinte, cujo limite superior era de US$ 370, a propor~o passou de 62% para 54%, isto e, sofreu umaredu~ao de 13%. Os estratos superiores nlio sofreram altera~o relevante. A faixa de US$ 370 ate US$ 1.500 ganhou urn ponto percentua!, passando de 18% para 19%, no perfodo, enquanto a mais alta, com rendimentos superiores a US$ 1.500, manteve-se nos 4%.


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c;oes sobre a cor das vftimas, por serem irrelevantes as diferen<;as entre o comparecimento das pretas e pardas na popula<;ao e de sua presen<;a nas ocorrencias registradas na DDM. Quanto aos agressores, os de cor preta representavam 4,7% da popula<;ao masculina residente no Muni­ cfpio de Sao Paulo, em 1980, e compareciam com 8,9% dos contingen­ tes de indiciados nas ocorrencias registradas na DDM, em 1985. As cifras correspondentes para os de cor parda eram de 20,5% e de 27,4%. o preconceito racial e de tal monta que se tentou apagar a cor da popula<;ao brasileira de origem africana atraves da supressao desta informa<;ao nos censos demognificos. Neste contexto, nao se pode con­ fiar na auto-defini<;ao da cor. Ademais, dado 0 preconceito racial, ha que se considerar a provavel maior freqiiencia de indiciamento de negros do que de brancos dentre as ocorrencias registradas. As coordenadas te6ricas da analise do genero sinalizam, obviamen­ te, urn alto grau de impunidade dos agressores. Efetivamente, 0 levan­ tamento da Rede Globo fomece 0 seguinte panorama: tao-somente 10% dos homens que ferem deliberadamente os direitos humanos de mu­ lheres chegaJ:!l a julgamento, sendo de apenas 2% a propor<;ao dos condenados. E evidente que as camadas abastadas disp6em de mwtiplos mecanismos para, de urn lado, abafar a violencia domestica e, de outro, livrar-se das penas da lei. Assim, embora possa ser verdadeiro que a violencia domestica incida relativamente mais nas classes alta e media, as pris6es estao repletas de pobres. o relat6rio da Comissao Parlamentar de Inquerito destinada a in­

vestigar a quesHio da violencia contra a mulher deixa muito a desejar

quanta aorganiza<;ao dos dados. Mais do que isto, nao se teve acesso

ametodologia usada, ignorando-se, portanto, de que forma foi construi­

do 0 questionario e por quem e sob que instru<;6es foi respondido.

Entretanto, na falta de pesquisa realizada de acordo com os canones

cientfficos, nao resta outro recurso senao fazer uso do mencionado

relat6rio. Os dados referem-se ao perfodo janeiro de 1991-agosto de

1992e procedem de 20 unidades da federa<;ao, nas quais foram respon­

didos 205.219 questionarios. Os crimes perpetrados contra a mulher,

considerados sempre como igual a 100%, apresentam a seguinte distri­

bui<;ao: 26,2% de Iesao corporal; 16,4% de amea<;a; 3% de crimes

contra a honra (difama<;ao, calUnia, injUria); 1,9% de sedu<;ao; 1,8% de

estupro; 0,5% de homicfdio. 0 complemento da soma destas cifras

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representa nada menos do que 51%, categoria residual denotninada outros e englobando atentado violento ao pudor (AVP), rapto, c'6rcere privado, discrimina<;ao racial e no trabalho. Ora, e muito dificil trabalhar com dados apresentados desta maneira. Vma categoria residual nao poderia conter, em princfpia, mais de 5% dos casos. No relat6rio da CPI esta categoria e 10 vezes maior do que 0 desejavel, deixando-se, com este procedimento, de isolar casos de AVP, via de regra cometidos contra crian<;as e adolescentes, na maior parte do sexo feminino. Ademais, ignora-se a propon;ao de crimes contra a mulher no conjunto total dos delitos praticados na Ilfl<;ao, 0 que obriga 0 leitor a situar seu raciocfcio no mais completo isolamento. Trata-se, assim, de numeros. relativos que revelam 0 universo das vftimas investigadas, como se fora completamente fechado. Nao se oferecendo os numeros absolutos nem 0 numero total de crimes, nao se pode concluir sobre 0 percentual de mulheres brasileiras vivendo em situa<;ao de violencia. Mesmo operando-se no interior deste universo fechado, podem-se fazer algumas observa<;6es interessantes. A medida que sobe 0 percen­ tual de homicfdio, cai, evidentemente, 0 de lesao corporal, por exemplo. Ha estados com altas propor<;6es de lesao corporal: Santa Catarina, com 75,5%; Rio Grande do Norte, com 66,1 %; Acre, com 60%. Outras unidades da federa<;ao chamam a aten<;ao pela alta presen<;a relativa de homicfdio. Em Alagoas, 25% das mulheres vftimas de violencia sao tambern assassinadas, sendo a propor<;ao de 13,2% em Pernambuco e de 11,1% no Espfrito Santo. Estes mesmos tres estados sao campe6es de estupro: 13,3% no primeiro, 19,1% no segundo e 19,8% no terceiro, percentuais exageradamente altos no total de delitos cometidos contra a mulher. Embora nao se apresente a cifra exata, afirma-se no relat6rio da CPI: "Existem dados comprovando que mais de 50% dos casos de estupro ocorrem dentro da pr6pria fann1ia" (p. 24). Cumpre mencionat as altas concentra<;6es do crime de amea<;a, imprescindfvel para manter 0 status quo de genero: 36% na Panuba; 35,1% no Rio Grande do SuI; 32% no Para; 26,7% no Rio de Janeiro; 25,4% em Minas Gerais; 25%em Roraima; 21,8% no Acre; 21,1 % na Bahia. Este tipo de delito, com efeito, integra 0 conjunto de salvaguar­ das da falocracia. Assim, se e verdade que apenas 0,5% das mulheres vftimas de violencia sao estupradas, todas as mulheres, em qualquer etapa da vida, estao amea<;adas de se-Io. Se e verdade que somente uma


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parcela das mulheres casadas sofre agress6es ffsicas por parte de seus companheiros, sobre todas paira esta amea~a como uma espada de Dfimocles. "0 controle pelos homens da produ~ao e do emprego dos utensflios e das armas e confrrmado como sendo a condi~ao necessaria de seu poder sobre as mulheres, baseado ao mesmo tempo sobre a violencia (monop6lio masculino das armas) e sobre a deficiencia de equipamento das mulheres (mon0p6lio masculino cIa; utensflios)" (fabet, 1979, p. 10). Ao pe da letra, a situa~ao descrita por Tabet s6 se aplica a sociedades simples. Todavia, ela continua prevalente querem termos concretos, quer em termos simb6licos. Na medida em que a sociedade s6legitima a violencia masculina e nao a feminina, os homens detem o monop6lio simb6lico da capacidade de infringir deliberadamente os direitos humanos das mulheres. 0 acesso a tecnologia, termos atuais para 0 "monop6lio masculino dos utensflios" e amplamente assegurado aos homens e apenas marginalmente oferecido as mulheres. Ao lange do texto, deixou-se claro que a posi~ao aqui assumida quanto ao entendimento do fenomeno da violencia em geral e da do­ mestica em particular e ados direitos hurn.anos estendidos as mulheres. Obviamente, esta impllcito que 0 abuso, ou seja, 0 desrespeito aos direitos humanos, e representado por "toda conduta que, por a~o ou omissao, ocasiona dana ffsico e/ou psicol6gico a outro..." (Corsi, 1992, p. 46). Da perspectiva de genero, nao e diffcil averiguar a existencia de seqiielas nas vitimas de violencia, sejam elas mulheres, crian~as ou velhos, as mais freqiientes presas dos homens. De uma 6ptica preten­ samente neutra com rela~o ao genero, entretanto, os prejuizos causados podem ser altamente discutiveis. Nao e dificil verificar 0 que se acaba de afrrmar. Basta assistir a julgamentos realizados por juri popular (os crimes contra a vida sao julgados por juri popular) ou ler processos sobre outros tipos de crimes, como estupro, por exemplo. Na argumen­ ta~ao dos "neutros", do ponto de vista do genero, a vitima provoca 0 crime. Logo, e culpada, seja ela uma mulher de 40 anos, urn velho de 80 ou urna crian~ de 5. Exatamente em fun~o desta disputa argumen­ tativa, derivada da ad~o da perspectiva de genero ou do repudio a ela, prefere-se sair deste terreno dos danos provocados pela violencia. * * A respeito do incesto, por exemplo, existem posi¢es antagonicas. A coletanea de Constantine e Martinson (1984) revela as divergencias aeste respeito.

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Permanecer neste dominic exigiria uma complexa e extensa incur­ sao por alguma corrente da Psicologia. Nao se furta, porem, a penetrar, embora ligeira e superficialmente, nesta area. Como os valores as­ sociados ao masculino sao diversos daqueles vinculados ao feminine, homens e mulheres apresentam diferen~ quanta as zonas de seu apare­ lho psiquico. Sao distintas, por exemplo, as zonas que respondem pela representa~ao da rela~o do eu com 0 mundo social, com outros eus e com suas pr6prias fantasias. Cada espa~o psiquico e regido por normas especificas. Portanto, a articula~o entre seus vanos elementos obedece as regras daquele espa~o, povoado de desejos, cren~as, valores, refe­ renciais de identidade, frustra~6es, etc. Os espa~os psiquicos constroem viriculos sociais imprescindiveis a existencia h!Jffiana. Posto de outra maneira, as rela~6es sociais pro­ movem a constitui~o de espa~s psiquicos que, por sua vez, constroem e/ou refor~aIi1 vinculos com outros eus, passando estes a serem signi­ ficativos em diferentes graus. Tais liga~6es podem ser positivas ou negativas. No primeiro caso estiio aquelas que, atraves do exercicio de direitos, permite ao eu obter aprova~o socia~ absolutamente necessaria ao set humane como membro de urn gropo social, pois e seu sentimento de pertinencia que esta emjogo. Mais do que isto, trata-se da preserva­ ~ao de sua pr6pria identidade. Assim, na busca de aprova~ao social, 0 ser humane submete-se as situa~6es mais humilhantes. Neste caso, 0 vinculo social ja nao e de comunidade e solidariedade, pois este e cortado pela violencia, pelo desrespeito aos direitos humanos. Estabe­ lece-se, desta forma, urn. vinculo social negativo, porquanto "a violencia social acentua diferen~as em nome de urn c6digo perverso...; 0 que implica dividir 0 mundo em bons e maus, superiores e inferiores, sem permitir nenhum matiz" (Puget, 1990, p. 21). Neste contexto, nao ape­ nas de agudiza~ao das diferen~as, mas tambem de sua disposi~ao em uma ordem antagonica, fica prejudicada a constitui~o dos espa~os transubjetivos, garantes da comunhao que informa a solidariedade. "Os valores fundamentais organizadores do espa~ transubjetivo sao os da defesa da vida e da lei que a organiza. A violencia op6e-se a defesa da vida e instaura uma Lei segundo a qual 0 matar e permitido. 0 matar refere-se nao somente a sujeitos singulares, como tambem a espa~s sociais que se transformam em zonas mortas ou desvitalizadas a seme­ lhan~ de abcessos t6xicos" (p. 21). Para fins de ilustra~o, lembra-se, aqui, 0 fato de que nem sempre a violencia do companheiro contra a


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... mulher recai sobre 0 corpo desta. Muitas vezes, ele destr6i os pertences da mulher, provocando 0 aparecimento de "zonas mortas". !sto tern, via de regra, profundas repercussoes na saude da mulher, embora seu corpo jamais tenha side diretamente objeto de violencia. As somatizac;oes aparecem com muita freqiiencia. Quando a violencia se instala entre os membros do casal, interrornpem-se os vinculos sociais positivos e as, diferenc;as, de acordo com a referida16gica peIVersa, tornam-se abissais, portanto, intransponiveis.

Desta sorte, a violencia impede a constituic;ao e/ou 0 desenvolvi­

mento do espac;o inter-subjetivo, organizado pelo tabu do incesto, que

permite a construc;ao das identidades masculina e ferninina e que atribui

ao homem e a mulher posic;6es particulares na estrutura familiar. Tam­

bern ficam prejudicados 0 espac;o intra-subjetivo, ou seja, 0 imagimmo,

eo tn1nsito entre os tres diferentes tipos de espac;os psiquicos. "... cada

urn incide sobre 0 outro e as marcas de morte do espac;o social acentuarn

a forc;a das marcas de morte do espac;o familiar" (p. 26). No espac;o

transubjetivo, a violencia exerce urn poder onipresente, seja ela politica,

ideol6gica ou religiosa, contra 0 sujeito social. Registre-se que as tres

esp6cies de violencia sao exercidas contra as mulheres. A violencia no espac;o inter-subjetivo obstaculiza a inserc;ao do sujeito na estrutura familiar. Neste plano, a mulher, nao podendo se inscrever conic sujeito de igual estatura em relac;ao ao homem, transforma-se em sua inferior.

Na zona intrassubjetiva, os efeitos da violencia sao igualmente desvas­

tadores, provocando uma cisao no eu e instalando a impotencia no espac;o familiar e no espac;o social, as vezes em oposic;ao. Obviamente, o tdinsito entre estas diversas zonas nao e simples: exige elaborac;ao e deixa pelo caminho as vivencias nao passiveis de transformac;ao.

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Nesta linha de raciocfnio, podem-se trabalhar 0 poder e a impoten­ cia, tendo-se em vista os tres eixos de distribuic;ao/conquista do poder. Como sao pouco numerosos os homens ricos (em geral, tambem bran­ cos), a maioria esmagadora dos brancos e a quase totalidade dos negros e mestic;os situam-se no p610 da impotencia, quando se toma em con­ siderac;ao 0 eixo das classes sociais e da rac;aletnia. Nestes dois orde­ namentos sociais, grassa, portanto, a impotencia. Na ordem do genero, o homem desfruta de gigantescos privilegios frente a mulher. E isto ocorre nao apenas porque a sociedade legitima amplamente a falocracia, mas tambem porque 0 homem sente necessidade de afirmar-se, fazen-

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do-o com exagero nesta relac;ao interpessoal, de preferencia em uni6es de caniter relativamente estavel, para compensar 0 massacre de que e alvo nos outros tipos de ordenamento das relac;6es sociais. A impotencia ai gerada ultrapassa os limites destas rela¢es, penetrando no dominio do genero. Desta sorte, a violencia masculina contra a mulher pode ser pensada como fruto da necessidade do homem de fazer parecer maior o pequeno poder de que goza neste tipo de relac;ao. Ha, assim, uma exacerbac;ao das condutas denotadoras de poder, ou seja, a sindrome do pequeno poder (Saffioti, 1989). A func;ao do exagero seria exatamente a de ocultar a pequenez da parcela desfrutada de poder. Este tipo de analise encontra eco em May (1981), que desenvolve a ideia de Hannah Arendt de que "a violencia e a expressao da impotencia" (May, 1981). "Em nossa socieaade, os atos de violencia sao executados, em grande parte, por aqueIes que tentam estabelecer seu amor-pr6prio, defender sua imagem pessoal e demonstrar que tambem sao individuos signifi­ cativos" (May, p. 20). Rigorosamente, por conseguinte, a pratica da violencia nao e so­ mente 0 resultado da c6lera reprimida; e tambem 0 fruto do medo permanentemente cultivado na impotencia 0 exercfcio da violencia em busca do (re)estabelecimento do amor-pr6prio nao constitui apanagio dos homens. As mulheres tambem procedem desta maneira, agredindo crianc;as, cujo status e ainda inferior ao seu. A violencia passa, assim, a penetrar cada poro do tecido social: ricos violam direitos humanos de pobres; brancos, de negros; homens, de mulheres; mulheres, de crianc;as e velhos. Epreciso, porem, chamar a atenc;ao para 0 seguinte: a impo­ tencia, sem duvida, constitui fonte de violencia; mas sua expressao, ou melhor, a manifestac;aoviolenta da impotencia, encontra limites sociais variaveis segundo a categoria social a qual pertence 0 socius. Para os homens brancos e ricos, os limites sao extremamente lassos. A medida que se desce na escala de poder da sociedade, os limites se vao estrei­ tando para atingir urn elevado grau de rigidez na vida da mulher. Deixando-se de lade as crianc;as e os velhos (estes quando dependentes ffsica, psiquica ou economicamente), as mulheres ocupam 0 ultimo posta da hierarquia de poder. Convivem, portanto, com uma alta dose de impotencia. Entretanto, a expressao desta impotencia atraves da violencia nao encontraria 0 beneplacito da sociedade. As mulheres recebem, por isso, desde 0 nascimento, urn treino especffico para con­


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viver com a impotencia.· Eis porque a mulher e muito menos violenta do que 0 homem. Em outros termos, a mulher aprende, inclusive atraves da violencia contra ela praticada, a coexistir com a impotencia. Assim, tern menos necessidade do que 0 homem de exprimi-Ia atraves da violencia. No mundo todo este fenameno pode ser observado. Levan­ tamento realizado em Sao Paulo (Saffioti, 1993)·· mostrou que 0 Brasil nao foge a regra. 0 que foi exposto ate aqui demonstra, sobejamente, que a san~ao positiva da sociedade em rela~ao a violencia perpetrada pelo homem contra as categorias sociais moos fnigeis - mulheres e crian~as - ou, pelo menos; a complacencia em dire<;fio a este fename­ no, tern permitido que sua agressividade se transforme freqiientemente em agressao ou, em outras palavras, que sua impotencia se expresse por meio da violencia.

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• Belotti (1975) relata observa¢es deste treinamento para 0 convivio pacifico da mulher com a frustra.,ao, 0 desagrado, a impoti!ncia. Maes alimentando beb& (amamenta.,ao ao seio ou com mamadeira) foram observadas dando urn tratamento muito mais generoso aos meninos que as meninas. Ja que valores como for<;a, garra, vohlpia sao positivamente associados aos homens, as maes permitem que os filhos se saciem, quando os bebi!s masculinos se revelam muito glut6es. Procedem de maneira inversa com as meninas que manifestam gula: a intervalos mais ou menos regulares, tiram 0 seio ou a mamadeira da boca da menina, pois a mulher deve comer pouco, ser fnlgil e saber contornar desejos nao satisfeitos. • .Saffioti examinou, na II e na 81 DDMs, em Sao Paulo, 4.825 BOs de 1991, 6.242 de 1992e 1.899 de 1993 (ate maio eso na II DDMpara 0 anode 1993), com a finalidade de construir estatfstica sobre violi!ncia contra crian<;as e adolescentes, obtendo os resultados que se seguem. Do total de atentados violentos ao pudor, apenas 2,4% foram perpetrados por mulheres. Das lesoes corporais dolosa,s e maus-tratos as mulheres participam, enquanto agressoras, com apenas 16,9%. E ainda menor sua presen<;a relativa como praticante do crime de amea<;a: 14,6%. As agressoras nao ultrapassam 20% dos que cometem crime de corrup.,ao de menores e rufianismo. Mesmo nos crimes contra a honra (calunia, difama<;ao, injuria) as mulheres sao minoria (40%), nao obstante sua fama de faladeiras. Apenas na pnltica do abandono,de crian<;as e adoles­ centes, as mulheres figuram com uma taxa muito alta: 65,2%. E preciso, porem, ter cuidado com esta cifra, pois os pais que abandonam a familia nao sao computados, sendo enumerados somente quando a fanulia e constitufda de pai e filhos. A propor.,ao das famflias brasileiras chefiadas por mulheres e da ordem de 13%. Em numeros absolutos, isto representa quase 4 milh6es de familias. 0 numero absoluto sobre abandono de menores por parte de maes e de 15. As estatfsticas levantadas provam, por conseguinte, que os homens praticam muito mais violi!ncia contra crian<;as e adolescentes do que as mulheres.

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1.

Embora nenhuma pesquisa sistematica, na medida do co­ nhecimento que se detem, revele uma mais profunda baixa auto-estima no homem do que na mulher, levantam-se hip6teses a respeito deste tema. Como a mulher e, majoritaria ou integralmente, considerada inferior nos tres ordenamentos das rela~6es sociais, apresenta homoge~ neidade em termos de se subestimar. Sua auto-estima, portanto, e um­ formemente baixa. Com 0 homem, ao contrario, ocorrem disparidades. A maioria esmagadora da popula<;fio masculina e subvalorizada no eixo das classes sociais. Na escala de poder estabelecida entre brancos e negros, estes ultimos sao subprivilegiados. Na organiza~ao social de genero, contudo, a sociedade consagra a supremacia masculina, fe­ chando os olhos, inclusive, para as exacerba~6es dos humores dos homens, mesmo quando isto significa ceifarvidas femininas. Cria-se, assim, para os seres masculinos, uma fissura na conceitua~aode sua auto-estima. Esta cisao pode ser fonte de inseguran~a,tomando poroso o tecido da primazia masculina sobre a mulher. A baixa auto-estima esta a postos para preencher estes poros, transformando 0 pequeno poder em autocomisera<;fio. . Se forverdadeira esta hip6tese, sera grande a gera<;fio de 6dio contra as representantes da categoria de sexo que desperta esta baixa auto-ava­ lia~ao. A violencia seria, entao, decorrencia, pelo menos parcialmente, deste movimento ondulat6rio presente na vida dos homens e derivado das posi¢es dispares que eles ocupam nos diferentes ordenamentos das rela~6es sociais. Esta hip6tese encontra respaldo na analise de May (1981, p. 27), quando afirma: "A violencia alimenta-se da baixa auto­ estima e da ausencia de seguran~ intima da pessoa em si mesma (oo.); a violencia assenta na explora<;fio...". Esta Ultima ora~ao da assertiva de May merece comentario. Aceita-se aqui sua afirma~ao de que a violen­ cia esta ancorada na explora~ao. No fundo, a sociedade faz com os homens lUDa barganha: deixem-se explorar e lhes sera oferecido 0 poder frente as mulheres. Aparentemente, esta transa~ao faz urn vitorioso ­ o homem - e uma vitima - a mulher. Na verdade, porem, os dois sao vitimas, na medida em que a violencia domestica e autofagica, destruin­ do ou impedindo 0 nascimento da sociabilidade democratica no grupo familiar. Propiciando a emergencia da sociabilidade desp6tica e nutrin­ do-a, a violencia destr6i espa~os psfquicos capazes de, num clima de sociabilidade democratica, estabelecer e manter vfnculos sociais com os mais variados outros significativos. A natureza do'vfnculo muda,


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passando de negativa para positiva amedida que se transita da autocra­ cia para a "policracia", ou seja, 0 exercfcio coletivo do poder no seio dafamflia.

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A necessidade de exercer 0 poder, de ter potencia, e'extremamente positiva, urna vez que exprime a luta pela constru~ao da auto-estima, do amor-pr6prio. Se 0 grupo familiar nao e capaz - e, via de regra, nao 0 e - de propiciar a constitui~ao de sujeitos positivamente auto­ avaliados, nao ha, seguramente, na sociedade, lugar para faze-Io ade­ quadamente, ou seja, de forma harmonica. Ha muitos socii, sobretudo homens, gozando de elevado conceito enquanto profissionais. E ate possfvel que eles pr6prios se autodefinam como excelentes profis­ sionais. Mas esta aprecia~ao nao pode ser comparada aauto-estima, uma vez que diz respeito apenas a urn segmento da vida destas pessoas. Nas rela~6es afetivas, capazes de infundir seguran~ quando positivas e, por isso, capazes de promover a integra~ao de diferentes experiencias e distintas dimens6es da vida, os processos segmenmrios de constru~ao de auto-estima sao negativos, geradores de 6dio, de afastamento, de insulamento. Ora, se 0 exercfcio do poder pode ser positivo, e precise lembrar que, para isso, ele precisa ser partilhado. "0 poder e sempre interpessoal; se e puramente pessoal, chamamos-lhe 'for~a' " (May, p. 31). Desta sorte, 0 poder, inscrito no registro do social, significa urn acordo entre os socii em termos do valor reciprocamente atribufdo. Rigorosamente, esta e a expressao do sentimento de auto-significa~ao. A valora~ao dos outros como a autovalora~o situam-se num esquema relacional. Cada sujeito nao e senao a hist6ria de suas rela~6es com 0 mundo circundante, com tudo que este mundo contem: outros signifi­ cativos, outros comuns, produtos da atividade economica, politico-ideo­ 16gica, religiosa, intelectual, das atividades-trabalho e dos sentimentos vinculados aprodu~ao antroponomica (Bertaux, 1977; Saffioti, 1991). Aimpotencia dos homens deriva do contacto, consciente ou inconscien­ te, com 0 fate de que 0 acordo social entre homens e mulheres e urn embuste. Como ja se mostrou, 0 contrato s6 pode ser estabelecido entre iguais e, de partida, a mulher e considerada inferior. Assim, a potencia nao pode ser compartilhada, pois nasce do engodo. E a impotencia grassa, dando vazao violencia.

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A violencia de genero ultrapassa, permanente e perigosamente, dois limites: 0 da capacidade imaginativa e 0 da contingencia. Ou seja, em

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'. primeiro lugar, a realidade consegue ser mais brutal do que as fantasias geradas no espa~o intrassubjetivo. Haja vista as condutas de varios maridos que lan~amnas mulheres produto inflamavel e nelas atearam fogo. Em segundo lugar, ha uma banaliza~ao da violencia, atos extre­ mamente barbaros passando a ser considerados normais, dada a sua habitualidade. 0 contingente passa a servisto como necessario. Pode-se ultrapassar 0 limite do impensavel, com a destrui~o total dos vfnculos necessarios 11 constitui~o e 11 preserva¢o da auto-estima. Ademais, esta situa~ao produz urn profundo isolamento, onde ocorre 0 impensado. "Ha certas percep~6es ou ideias alojadas no aparelho psfquico que s6 podem adquirir uma significa~ao, e ser transformadas em pensamento, quando,assim 0 permitir 0 contexto ou 0 vinculo com urn outro quali­ ficado. E tao-somente com urn outro que a palavra adquire uma signi­ fica~ao simb6lica" (Puget, 1990a, p. 30). A linguagem, como tudo 0 mais na vida hurnana, integra os esquemas simb6licos atraves dos quais a autovalora~ao e a valora~ao mutua sao realizadas. E exatamente a ausencia de urna linguagem elaborada, seja articulada, seja gestual, que enseja 0 surgimento e a manuten~ao da violencia, se se admitir 0 conceito dela formulado por Puget (p. 16), isto e, "urn comportamento vincular coercitivo, arbitrario, de pouca complexidade, que se op6e a urn vinculo reflexivo e elaborativo no qual a distancia entre urn Eu e outro Eu poderia ser coberta por atos de linguagem e afetos de maior complexidade". Aconstitui~ao psicossocial do sujeito envolve nume­ rosos paradoxos, dos quais decorre 0 sentimento de desamparo. A incapacidade de lidar com 0 desamparo e de suportar as contradi~6es restringe sobremodo as possibilidades de se apararem as arestas nas rela~6es amorosas, propiciando, assim, a pratica da violencia. Esta conduta, por sua vez, torna mais pronunciadas as diferen~as, tomando­ as como criterio de classifica~aodos agentes sociais sUbalternizados. Nascem, desta forma, no plano simb6lico, as classes perigosas, os marginais. 0 mundo passa a ser dividido, maniqueisticamente, entre os bons e os maus, suprimindo-se as nuan~as, 0 largo espectro coberto pelos socii. Esta breve incursao pelo terreno dapsique mostra a complexidade de se examinarem os danos provocados na vftima pelo perpetrador da violencia. Com efeito, e mais diffcil estabelecer parametros para 0 julgamento dos danos ffsicos ~ sobretudo psico16gicos do que adotar a 6ptica dos direitos hurnanos. E bern verdade que estes tern sido defini­


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'. dos em fun~ao do prot6tipo da humanidade, isto e, 0 homem, estando a exigir uma releitura da 6ptica de genero. E a tarefa nao e tao dificil quanta aparenta ser. Basta que se abandone a ideia imposta de que 0 homem constitui 0 paradigma do humano. Enquanto a visao androcen­ trica dos direitos humanos e parcial, na medida em que foi elaborada por uma pequena parcela dos socii masculinos, a concep~ao deste mesmo fenomeno com perspectiva de genero deve refletir a multiplici­ dade do sujeito: mulheres de diferentes classes sociais e de diferentes ra~as/etnias. Reconhecer a mulher como titular de direitos humanos significa lan~ar uma fmcora no principio da igualdade. Nao e mais possivel se aceitar 0 principio formal da igualdade ou 0 principio de uma igualdade formal. Na concep~aodo sujeito multiplo esta inscrita a diferen~a: de genero, de ra~aletnia,de classe social. Desta maneira, a 6ptica de genero na avalia~aodas politicas de direitos humanos engloba, necessariamente, 0 igual eo diferente. "Com esta concep~ao de igual­ dade, nao ha lutas prioritarias, nem movimentos que se subsumem em outros. Todas as lutas pela melhoria e respeito aos Direitos Humanos sao validas e todas as viola~6es das pessoas, independentemente de pertencerem a esta ou aquela classe, ra~a, preferencia sexual, credo ou grupo com alguma incapacidade visivel, sao viola~6es aos Direitos Humanos" (Facio, 1991, p. 121).

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Cabe, agora, retomar 0 tema da representa~ao,inclusive porque a releitura dos direitos humanos da 6ptica do genero esrn introduzindo acentuadas mudan~as na maneira de as mulheres se representarem, assim como de serem representadas por outros. Como 0 conceito de representa~ao esta muito longe de ser univoco, convem fazer uma discussao, ainda que ligeira, sobre a compreensao que dele se tern. Freqiientemente, ele se mescla com a concep~ao de ideologia, razao pela qual come~a-se por distinguir estes dois fenomenos. A ideologia consiste em urn projeto politico de estrutura~ao da sociedade por inteiro, segundo os interesses da classe social/categoria social que 0 elaborou. Desta forma, ha ideologias de classe, de ra~alet­ nia, de genero (Saffioti, 1992). Cada uma delas admite diferencia~6es internas, que dao cobertura aosinteresses imediatos de uma fra~ao de classe/categoria, diferentes dos de outra fra~ao e ate conflitantes com eles. Obviamente, nem os interesses imediatos, nem os mediatos sao postos, pois a ideologia tern a pretensao de expressar 0 "interesse

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comurn", 0 "interesse geral", 0 "interesse de todos". Obviamente, isto e fic~ao, na medida em que a sociedade esta organizada na base de contradi~6es.A ideologia, entretanto, se apresenta como se fosse pro­ duzida pelo conjunto da sociedade e em seu beneficio. Desta sorte, e fundamental ressaltar 0 que ha de muito singular na ideologia: a inver­ sao dos fenOmenos. "Se a Natureza, pelas ideias religiosas, se 'huma­ niza' ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se 'naturaliza', isto e, aparece como urn dado natural, necessario e eterno, e nao como resultado da praxis humana" (Chaui, 1991, p. 64). Isto nao significa dizer que a ideologia s6 contem conhecimentos falsos. Eexatamente pelo fata de conter tambem conhecimentos verdadeiros que ela se imp6e e se mantem. Ressalte-se, por outro lado, que a ideologia apresenta urn carater lacunar, gra~s ao qual se adapta facilmente as diferentes con­ junturas. A famnia ideal passa a ser de tres filhos, em vez de dois, ap6s a II Guerra Mundial, nos Estados Unidos, a fim de justificar a volta das mulheres ao lar para liberarem os postos de trabalho para os homens que voltavam da frente de batalha. Assim, a incompletude da ideologia e nuclear para a compreensao de sua capacidade de adapta~aoas exi­ gencias mais distintas dos diversos momentos hist6ricos. A representa~ao, ao contrario, aspira a completude. Isto e, auto­ res/portadores de representa~6estern do fenomeno representado urn retrato inteiro e operativo. Cabe, desde logo, explicitar que a represen­ ta~ao nao se confunde com a vivencia, mas se aproxima do refigurar a vivencia. Trata-se das imagens que as vivencias assumem no nivel simb6lico e de cuja elabora~ao 0 inconsciente, individual e coletivo, participa ativamente. Arepresenta~ao e, assim, uma alegoria. Mas nao se pode perder de vista 0 fato de que a representa~ao repousa sobre uma base material, como alias tambem a ideologia, pois a base material condiciona urn determinado tipo de rela~6es sociais e, por sua vez, contribui para transforma-Ia. Isto equivale a dizer que 0 contexto ma­ terial permeia 0 nivel simb6lico, 0 myel das representa~6es, e que estas constituem urn dado do real. Rigorosamente, representar significa sub­ jetivar 0 objetivo, pensar-sentir a vivencia. Dadas as conex6es entre 0 substrato material e 0 plano simb6lico, as representa~6es construidas pelos seres humanos operam como for~as propulsoras de novas a~6es por eles desenvolvidas. Ha, portanto, dois vetores: 0 do substrato ma­ terial em dire¢o ao pensamento-sensa¢o e vice-versa. Arepresenta¢o


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ea subjetivac;ao da objetividade* que, na condic;ao de mola propulsora da a<;flO, volta para 0 mundo da objetividade. "Re-presentar-se e 0 reconhecimento da necessidade do outro re­ produzir-se pelo e no seu oposto" (Oliveira, 1987, p. 12). Tambem nas rela<;oes de genero, a representa<;ao constitui 0 momenta de subjetivi­ dade da objetividade. A constitui<;ao das categorias de genero repousa no intrincado processo de produ<;ao e re-produ<;ao da vida material e social. A rede de media<;oes presente neste processo e formada pelas representa<;oes das categorias de sexo uma face a outra, isto e, em suas rela<;oes. Daf deriva a enorme relevancia da compreensao da represen­ ta<;ao enquanto mediac;ao se, efetivamente, se acredita que 0 desvenda­ mento da trama de media<;oes constitui tarefa precfpua do cientista social. Re-presenta<;ao e 0 re-conhecimento do eu e do outro e, sobretudo, das rela¢es do eu e do outro. 0 eu e 0 outro podem ser classes sociais, contingentes humanos de distintas ra<;as/etnias e categorias de sexo. Construir uma representa<;ao significa, assim, fazer 0 re-conhecimento de ulna relac;ao. Representam-se as mulheres por referencia aos homens, do mesmo modo como se procede com as classes e as ra<;as/etnias em intera<;ao. A referencia da representa<;ao e 0 outro que, ao nivel do particular, soem ser a classe, a ra<;a/etnia eo genero. Re-presentar significa, pois, tomar a conhecer relacionalmente, situar de novo, re­ significar por referencia a outros. Tanto as representa<;oes dos outros quanto as auto-representa¢es sao relacionais. A representac;ao, diferen­ temente da ideologia, nao aspira a universalidade; e mais miuda do que a ideologia, ainda que sua referencia ultima se inscreva ao nivel do particular. Este particular mescla-se freqiientemente com 0 singular sem, contudo, perder sua inserc;ao basica na historia. A representa<;ao nao promove necessariamente a inversao dos fe­ nomenos. A necessidade de inverte-Ios nao integra seu imo. Ela se constroi segundo as disponibilidades/necessidades dos diferentes espa­ <;os psiquicos, constituidos a partir das rela<;oes do eu com outros mais ou menos significativos, trazendo, portanto, simultaneamente, 0 toque singular do sujeito e 0 caniter historico de sua inser<;ao social. * Esta e outras reflexoes que se fariio adiante inspiram-se em Oliveira (1987).

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Cabe, aqui, retomar Guattari e Lauretis. Quanto ao pensamento do primeiro, carece, sem duvida, de uma elaborac;ao ao nlvel do particular. A analise realizada neste trabalho talvez possa contribuir no sentido de estabelecer conexoes entre 0 singular e 0 particular e entre este e 0 universal, procedimento que escapa ao autor em pauta. Nao se tratou aqui das representa<;oes as quais se confere foro de universais, prefe­ rindo-se examina-Ias na sua origem. Mas, indubitavelmente, Guattari tern razao quando considera negativamente as representa¢es "oficiais". Pena e que nao descobre as possibilidades de sua constru<;ao no mundo dos vencidos. Mais do que isto, os vencidos, os considerados exclufdos da historia. (Perrot, 1988) tambem faze~ historia. E construir representa<;6es nao apenas faz parte da historia, como faz parte do fazer hist6ria. Assim como a historia dos vencidos existe, tambern existem as representa<;oes das classes/categorias subalternizadas. Embora nao­ hegemonicas, estas representa<;6es desempenham papel fundamental na orienta<;ao de parcela dos agentes sociais. Ha que se considerar, alem disto, 0 alto potencial subversivo destas representa<;oes, uma vez que elas minam as imagens "oficiais" da mulher, do negro e do trabalhador. Para Guattari, entretanto, talvez 0 impasse se resolva ao nivel da linguagem, reservando 0 termo representa<;ao para as imagens preva­ lentes, aceitas/impostas, enfim, "oficiais". Mas, na ausencia destas, no domfnio da subversao, como e feita a mediac;ao entre 0 sujeito e ooutro e ate mesmo entre 0 sujeito e seu proprio eu? As rela<;oes sociais mio se processam com as imagens auto e reciprocamente construidas ou tambem com elas? Suprimir estas imagens, inscritas tambem no discur­ so, nao significa anular a referencia ao outro e ate mesmo a referencia ao eu? A postura aqui assumida e a de que a rela<;ao social nao pode prescindir da representa<;ao. Seja ela dominante ou subversiva, seu trabalho consiste em realizar a mediac;ao das rela<;oes dos seres huma­ nos com a natureza e dos seres humanos entre si. Isto equivale a dizer que nao ha rela<;oes sociais transparentes, devendo-se sua opacidade exatamente ao fato de que os seres humanos se relacionam com as imagens de si proprios e de outros. Em parte, as clivagens de classe, ra<;a/etnia e genero respondem por este fenomeno. Isto, porem, nao esgota a questao. Ainda que 0 grau de opacidade possa diminuir numa sociedade de desigualdades menos gritantes ou ate mesmo bern reduzi­ das, a cultura estara sempre fomecendo os meios para a constru<;ao das representa<;oes, que mediarao as rela<;oes sociais.


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No que tange a Lauretis, a solu~o parece mais simples. Na medida em que ela rejeita a existencia dicotomizada de dois espac;os - 0 da representac;ao e 0 da nao-representac;ao - ou, em termos althus­ serianos, "0 espac;o da ideologia" e "0 espac;o do conhecimento cientf­ fico e real" ou, ainda, "0 espac;o simb6lico construfdo pelo sistema de sexo/genero" e "uma realidade extema a ele" (p. 25), as coisas se pOem como processo, como devir. Ou seja, a nao-representa~onao 0 e(nao tern existencia) em duplo sentido: 1. ela nao existe enquanto nega~o da representa~o;2. ela nao existe, porque a representa~o pode nascer a qualquer momento, istoe,ja existe em potencial. Para a autora, "nao existe realidade social para uma dada sociedade fora de seu sistema particular de sexo/genero. 0 que eu quero dizer, ao contrario, e que M urn movimento do espac;o representado por/em uma representac;ao, por/em urn discurso, par/em urn sistema de sexo/genero em direc;ao ao espac;o ainda nao representado implfcito (nao-visto) neles" (p.26). A rigor, Lauretis esta dizendo que as representac;6es de genero de uma sociedade falocratica nao cobrem todo 0 espac;o social. Isto equi­ vale ~ dizer que M espac;os sociais vazios do angulo do androcentrismo nos quais a mulher e nao-representada e irrepresentavel, tambem da perspectiva machista. A impossibilidade da representa~oeposta pelo discurso hegemonico. Fora dele, a partir de outro ponto de observa~o, outra tipo de representa~o, com novos conteudos, se toma inteiramente possfvel. Este ponto de observa~o,situado fora das relac;6es prevalen­ tes de genero, representa, et pour cause, a subversao, a possibilidade de transforma~omais rapida de relac;6es, cujo ranc;o, cujo desrespeito e cuja crueldade agridem os direitos humanos. Desta sorte, e a partir deste ponto de observac;ao que se M de fazer a releitura dos direitos hurnanos, adotando-se urn conceito de igualdade que contemple 0 di­ reito adiferenc;a. Em suma, que gozem do mesmo estatuto 0 direito a indiferenc;a e 0 direito adiferenc;a. A postura aqui assumida e de con­ fianc;a na capacidade de feministas defenderem, com exito, estes direi­ tos. Mais do que isto, pensa-se que 0 contradiscurso, produzido pe­ laseos) investigadoras(es) a partir de pontos de observa~osituados fora do genero, nao existe apenas nas franjas e brechas do discurso hegemo­ nico. Ele ja alcanc;ou as formac;6es discursivas dominantes e as esta minando a partir de seu pr6prio interior. Assim, Lauretis esta basica­ mente correta. Apenas foi tfmida, pois 0 contradiscurso ja esta inocu­ lando 0 discurso hegemonico com perspectivas de analise formuladas

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a partir de pontos de observac;ao exteriores ao genero e, por via de conseqtiencia, com alto potencial subversivo. Na coleta dos dados empfricos, procurou-se apreender, quando possfvel, de que lugar falava a mulher: se de dentro do genero ou se a partir de seu exterior. Por esta razao, considerou-se necessario, alem das entrevistas comumente realizadas para a coleta de informac;6es objetivas e dos sentimentos e fatos que cercaram as ocorrencias de violencia, reconstituir as hist6rias de vida de uma parcela destas mu­ lheres. Antes de se partir para a analise, seja dos dados fomecidos pelas entrevistas, seja pela trajet6ria descrita por estas mulheres, convem explicitar as premissas te6ricas que se constitufram em diretrizes me­ todol6gicas basicas da presente investigac;ao.

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Capitulo 3

A Captura da Historia

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tema das relalSOes de genero vern adquirindo centralidade crescente nas esferas academicae politica lato sensu. As interlocUl;6es e influen­ cias reciprocas entre intelectuais e setores do movimento feminista tern favorecido a penetra¢o desse debate em diversas dimensoes da reali­ dade. Mais do que isso, intelectuais feministas vern contribuindo para erigir - a partir de instrumentos heuristicos - em indagalSoes e dile­ mas te6ricos, inquietudes por vezes difusas, que desafiam diferentes sujeitos coletivos, situados em distintos lugares socialmente constituf­ dos. Este trabalho participa, portanto, de urn movimento de crialSao coletiva, para 0 qual concorrem aportes heterogeneos, desiguais, que disputam a primazia do seu significado. r······,,­

\ Esses sujeitos constroeni narrativas que se institucionalizam, tendo cada qual seu locus privilegiado de enuncial;iio, embora pugnem por espalSos inter e extra-institucionais. Sao discursos com temporalidades e racionalidades diversas e forte materialidade. Determinado discurso s6 emerge e institucionaliza-se quando sao dadas as condi¢es hist6ri­ cas que the conferem significado. Nao se cre que 0 discurso preceda a constituilSao do sujeito, mas que ambos constroem-se reciprocamente, pois 0 sujeito reelabora e re-significa 0 discurso, 0 que teni repercussao hist6rica. Como afirma Orlandi (1988), " ... ha urna relalSao entre lin­ guagem e exterioridade que econstitutiva. Essa euma rela¢o orgaruca e nao meramente adjetiva. Nao se dim, assim, que se acrescentam dados hist6ricos para melhor delimitar a significalSao; dir-se-a que 0 processo de significalSao ehist6rico". E este eurn campo eminentemente ideol6­ gico - como afirma Bakhtin (1990, p. 36), "a palavra e 0 fenomeno

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VIOLENCIA DE GENERO

ideol6gico por excelencia" ~,ressaltando-se que e de natureza dialetica e, portanto, contradit6ria a relac;ao existente entre as forma¢es discur­ siva e ideol6gica.

~sim, este texto pretende estabelecer urn diaIogo com diferencia­ das correntes de pensamento, na expectativa decontribuir para 0 avanc;o da produ<;3o na area tematica de rela¢es de genero. Para tanto, produz o seu pr6prio discurso, 0 qual nao e mera forma de comunicac;ao e interac;ao, mas fruto de um trabalho. E, pois, urn trabalho materializado. (Para realiza-Io, estabeleceram-se dois anos de convivencia com rela¢es de violencia e poder, expressas em cenas de conflitos conjugais e em formas institucionais de mediac;ao, no dia-a-dia de delegacias policiais. Entrevistaram-se, nesse periodo, partfcipes de relac;oes de violencia· - 106 vitimas (destas entrevistas, consideraram-se 89 vali­ das) e 10 agressores - e os mediadores de tais rela¢es - 68 policiais e 10 assistentes sociais. ** j Ouviram-se seus relatos, observaram-se suas praticas, comparti­ lharam-se emoc;oes. A necessidade de se revisitarem continuamente • Parte-se do pressuposto de que se trata de rela<;oes e nao de a<;oes de violencia e, portanto, de I m fen6meno de mao dupla, no qual os envolvidos sao, de fato, partfcipes, nao existindo passividade absoluta nem anula<;iio da vontade do outro. Nao obstante, considera-se que se est aIidando com uma organiza<;iio social de genero fortemente hierarquizad I, com supremacia masculina, e que, tendencialmente, em se tratando de rela<;6es de Lenero, a violencia recai sobre mulheres. Corroboram esta afirma<;ao evidencias empfricas obtidas em delegacias policiais, em materia de denuncias efetua­ das. • ·0 servi<;o social foi implantado em delegacias policiais do Rio de Janeiro, como projeto experimental, em 1981, em decorrencia de convenio firmado entre a Universi­ dade Federal do Rio de Janeiro e a entao Secretaria de Seguran<;a Publica, atual Secretaria de Policia Civil. No decorrer de dez anos de existencia deste projeto, chegou-se aimplanta<;iio do Servic;o em quatorze delegacias policiais - convencionais e especializadas. 0 convenio foi extinto, por iniciativa da Universidade dado 0 entm­ dimento desta de que ja cumprira seu papel de produ<;iio de conhecimento e abertura de mercado de trabalho, bern como de que, a persistir 0 convenio, acabaria por legitimar a omissao do governo estadual no sentido de implantar uma poIftica publica efetiva, voltada para 0 combate 11violencia Para a preserva<;iio da linha tecnico-poIftica adotada para a condu<;iio do exercfcio profissional, nesse campo de pratica, negociou-se a realiza<;ao de concurso publico para assistentes sociais e a manuten<;iio de assessoria da Universidade para sele<;iio e treinamento de pessoal, como tambem, para implanta-

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paradoxos foi imperativa: trata-se de discursos e pniticas que se com­ plementam e antagonizam, alternada e simultaneamente, tendo implica­ c;oes evidentes sobre a dinamica institucional. Registraram-se falas, silencios, hesitac;oes, imprecisoes, a linguagem gestual, tentando-se identificar, sistematicamente, os interlocutores reais e virtuais. r-Dessa forma, ultrapassou-se a analise de discurso: embora seja esta uma dimensao privilegiada do trabalho, tomou-se como objeto tambem a discussao do habitus. Este conceito, elaborado por Bourdieu, mostra­ se bastante fecundo para estudos que tematizam as rela¢es individuo­ sociedade. Nas palavras do pr6prio autor, "... a sociedade existe sob duas formas inseparaveis: por urn lado, as instituic;oes que podem re­ vestir a forma de coisas ffsicas, monumentos, livros, instrumentos etc., por outro, as disposic;oes adquiridas, as maneiras duraveis de ser ou de fazer que se encamam nos corpos (e que eu chama de habitus). 0 corpo socializado (aquilo que chamamos de individuo ou pessoa) nao se opoe asociedade: ele e uma de suas formas de existencia." [...] "...0 coletivo esta dentro de cada individuo sob a forma de disposic;oes duraveis, cO~? as estruturas mentais" (Bourdieu, 1983, p. 2~j \ Bourdieu imprime ao seu conceito de habitus uma capacidade v criadora, ou, em seus pr6prios termos, uma "potencia geradora", con-0t1 ferindo-lhe historicidade: eo que foi sendo adquirido pelos individuos, I ao longo de suas trajet6rias, apresentando-se "sob a forma de disposi- -,/ c;oes germanentes". Chama atenc;ao para 0 fato de que assume a apa- i rencia de algo inato, embora, de fato, nao 0 seja. 0 habitus tern implan­ tac;ao hist6rica, mas guarda autonomia relativamente as suas determina­ c;oes imediatas. Sua necessidade continua de reatualizac;ao (leia-se ajustamento, adaptac;ao) pode engendrar mudanc;as duraveis, dentro de contomos bastante precisos. J r--" ---­ . Bourdieu (1983) constr6i tambem 0 conceito de habitus lingiiistico - uma dimensao particular do habitus, de interesse para este trabalho . no que tange a analise de discurso -, que consiste em urn discurso <;ao do Servic;o em todas as unidades policiais do Estado. Tendo-se obtido este compromisso do governo estadual, aguarda-se sua efetiva<;iio. No momento de reali­ za<;iio da coleta de dados nessa instituic;ao, 0 Servic;o funcionava em todas as unidades pesquisadas, tendo se constitufdo em ponto de referencia fundamental para os entre­ vistadores.


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E1justado a uma situac;ao - mercado ou campo. 0 aprendizado da Iinguagem, de acordo com este autor, nao se faz prescindir do co­ nhecimento das condic;oes de sua aceitabilidade em circunstancias de­ terminadas,o que configura 0 mercado lingiifstico.· As pessoas tendem a empregar 0 discurso que lhes faz auferir maior lucratividade no campo em gpe se situam. ,. / Encontra-se·tiresente, portanto, a perspectiva danegocia~iio, 0 que nao significa, no entanto, a inexistencia derela~6es de for~a lingiifstica, empregadas em condic;oes nas quais"... 0 locutor autorizado tem uma tal autoridade e tem a seu favor de tal forma a instituic;ao, as leis do mercado, todo 0 espac;o social, que pode falar para nao dizer nada, porque, de todas as maneiras, fala-se" (Bourdieu, 1983, p. 97). Esta situa<;flo privilegiada tem a seu favor aqueles que conseguem mobilizar maior parcela de poder, podendo utiliza-Ia, em determinado campo, para manipular informa<;6es, favorecer a realizac;ao de praticas discri­ cion~rias e minar a possibilidade de reivindica<;flo de direito~,j Trabalhando 0 conceitodecampo, este autor 0" ... define, entre outras coisas, atraves da defini<;flo dos objetos de disputase dos interes­ ses especfficos que sao irredutiveis aos objetos de disputas eaos interes­ ses proprios de outros campos ... e que nao sao percebidos pot quem nao foi formado para entrar neste campo" (p. 89).0 funcionamento de um campo esta, pois, condicionado a existencia de objetos a serem disputados, bem como de parceiros para 0 jogo. Tais parceiros, pos­ suidores de habitus que possibilita a identificac;ao das regras do jogo e dos objetos de disputa, constituem relac;oes de antagonismo/alianc;a, imprescindiveis agarantia da continuidade do jogo. Coloca-se, portan­ to, a convergencia de interesses de pessoas que estflo atuando em seu ambito - interesses fundamentais aexistencia do proprio campo. Seu corolario ea cumplicidade permeando os antagonismos, na medida em que a configurac;ao do campo elegitimada, mesmo de forma nao cons­ ciente, pois 0 proprio fate de se entrar nojogo implica 0 reconhecimento do seu valor./ Este cC)ll'ceito parece importante para se entender a delegacia poli­ cial - convencional ou especializada - como um campo para 0 qual

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• 0 rnercado lingiifstico caracteriza-se pela existencia de receptores capazes de avaIiar urn discurso e conferir-lhe urn prec;o.

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convergem antagonismos de diferenciados setores: da corpora~o poll­ cial, do partido politico que esmrepresentado no Governo Estadual, do meio academico, do Servic;o Social em particular, dos movimentos sociais, sobretudo os feministas, das mulheres vitimas de violencia, des agressores. Deve-se levar em conta, ainda, a heterogeneidade interna de cada um desses segmentos, e suas rela<;6es de alianc;a/luta, reatuali­ zadas conjunturalmente. Sao sujeitos que disputam 0 campo, tentando preserva-Io ou altera-Io do ponto de vista programatico, isto e, em sua factualidade, sem, contudo, colocar em xeque seus fundamentos e a importancia de se participar do jogo. o estudo da violencia conjugal PFrpetrada contra mulheres e de­ nunciada em delegacias policiais da margem, portanto, a dois tipos de estudo, que se entrecruzam: sobre violencia nas relac;oes de genero ­ seu contexto de produ<;flo e reprodu<;flo, tendo como locus privilegiado de investigac;ao a famllia; e sobre a instituic;ao policial -, enquanto campo de enunciac;ao e mediac;ao desta forma de violencia. Investiga­ <;6es nesse dominio devem levar em conta a configurac;ao deste campo, ou seja, seu locus de realiza<;flo a uma instituic;ao cuja fun<;flo precfpua consiste em coibir a exacerbac;ao de rela<;6es de forc;a ja capturadas, na letra da le~ como crimes, sem, no entanto, pretender alterar seusveto!es. Ainda que se esteja no plano do discurso - 0 legal -, sabe-se que este adquire materialidade na medida em que, por ser publico, epassivel de controle social e, portanto, exerce, no minimo simbolica e potencial­ mente, pressao sobre quem requer ou se ve compelido a submeter-se a sua media<;flo. r--~-"-N;imaginario social prevalece a concep<;flo de que a violencia I conjugal incidente sobre mulheres deve ser equacionada no ambito familiar, cabendo apolicia t~o-somente impor-lhe limites repressores, que nao firam esta pre~~.(Em se tratando de lesoes corporais, se esm diante de crime de ac;ao publica, reclamando, portanto, a interven<;flo policialsegundo parfun~s legais, independentemente da explicita<;flo da vontade da vitima{N~ entanto, 0 imaginario torna-se mais real do que a ordemjuridico-policial formalmente instituida, contribuindo para imprimir uma racionalidade propria as ac;oes pOliciais. e ~ relac;6es estabelecidas com protagonistas de relac;oes de violencia. Assim, a utilizac;ao de mecanismos informais para 0 enfrentamento da violencia conjugal adquire materialidade e passa a substituir, freqiientemente, 0


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Registro ou Boletim de Ocorrencia, com a aquiescencia dos envolvidos. 'i Areprodu<;ao, em larga escala, da media<;iio do conflito pela via infor­ \mal tende, por seu turno, a sedimentar tais concep<;oes presentes no j imaginario social. I ':- -Ait'era<;oesn-d plano dessas pniticas, com a cria<;iio de delegacias especializadas, sem a correspondente mudan<;a no imagimirio, condu­ zem it reapropria<;ao de sfmbolos, conferinpo-Ihes nova plasticidade, mas reproduzindo virtualmente seus efeito~) 0 lange excerto transcrito a seguir e elucidador do que se vem afmnando. "A institui<;iio e uma rede simb6lica, socialmente sancionada, onde se combinam em propor­ <;oes e em rela<;oes variaveis um componente funcional e um compo­ nente imaginario. A aliena<;ao e a autonomiza<;ao e a dOIninancia da institui<;ao relativa it sociedade. Esta autonomiza<;ao da institui<;ao ex­ prime-se e encarna-se na materialidade da vida social, mas sup6e sem­ pre tambem que a sociedade vive suas rela<;oes com suas institui<;oes it maneira do imaginario, ou seja, nao reconhece no imagimirio da ins>k-­ tUi<;ao seu pr6prio produto" (Castoriadis, 1982, pp. 159 e 160). \0 imaginario, portanto, possui uma fun<;ao social, na medida em que concorre para contornar determinados problemas colocados em dado contexto hist6ri~ Penetrou-se, dessa forma, em dois terrenos - fanu1ia e policia -, que se tomados de per si ja seriam arenosos, e em se tratando do estudo de suas interconexoes complexificam-se ainda mais, revelando como axial a defini<;ao estrategica da amostra e de tecnicas de pesquisa. 0 intento e 0 de capturar as duas institui<;oes em relevo em suas singula­ ridades e cotidianidade, sem permitir sua subsun<;iio a questoes,.!llil£!:Q,~ estruturais, embora estejam a estas decisivamente conectadas. [fransi-\ entre os discursos e 0 habitus - 0 habitus policial/institucional, ode classe/genero -, optando-se, freqiientemente, par utilizar 0 con­ ,~~jto_ge-fa/a, elaborado por Barthes (1993), para designar "...to'da'a unidade ou toda a sfntese significativa, quer seja verbal ou visual..." (p. 133). \

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'-... a inten<;iio de promover uma ruptura com 0 estilo investigativo que tem presidido estes temas na atualidade - sobretudo no que se refere a estudos sobre violencia e policia, nos quais se tem lan<;ado mao, freqiientemente, de fontes secundarias -, optou-se pela utiliza<;iio de fontes primanas, tao-somente, e pela imersao no dia-a-dia da institui<;iio

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policial, com vistas it aproxima<;ao com famflias que tornaram publica a violencia vivenciada.· Tratou-se de tarefa marcada por forte dose de ambigiiidade, compartilhada em grande parte pelas assistentes sociais que atuavam em delegacias: a tentativa de separar as a<;oes das equipes com fun<;ao academica daquelas tributarias do carater repressivo da institui<;ao, onde a pesquisa e a interven<;ao tecnica tinham lugar, ou seja, das a<;oes policiais. Em outros termos, dentre os referentes, antag6nicos e complemen­ tares disponfveis - a policia e 0 servi<;o social -, optou-se pela ostensiva identifica<;iio com este, de forma a nao gerar expectativas, par parte das(os) entrevistadas(os), em rela<;iio it possibilidade de ingerencia no curso do processamento das suas demandas.

A ambigiiidade, contudo, tinha varios vetores. Da 6ptica das(os) policiais, exibia-se 0 ineditismo do seu consentimento em se tornar objeto de investiga<;ao, habituados que estao a serem os agentes, por excelencia, das inquisi<;oes e diligencias - tanto das autorizadas e reclamadas socialmente (fala-se aqui, genericamente, do combate a criminalidade), quanta das suspeitadas, mas irrevelaveis (relativas it polfcia polftica) -, sempre transformando a materia-prima das suas a<;oes ordinarias de consumo publico - violencia - em motor a impulsionar suas pr6prias a<;oes. Este consentimento deve ser nuan<;ado. Realizando um trabalho complementar e, portanto, subsidiario aatividade-fim da institui<;ao, a( 0) assistente social passou a ser, elemento-chave no processo de reatualiza<;ao da imagem policial, legitimamente forjada enquanto an­ tfdoto aarbitrariedade institufda. As equipes de pesquisa suscitaram a representa<;ao de ser uma extensao do Servi<;o Social e, partanto, ine­ vitaveis,·· ao mesmo tempo em que postas em terreno, do ponto de vista polftico-ideoI6gico, antag6nico ao da polfcia. A divisao social e sexual do trabalho, que informava a configura<;ao desta arena, se, de

• Trata-se de urn processo investigativo substantivamente mais oneroso e moroso do que a consulta a fontes secundarias, mas que a este suplanta, no qU'e tange it possibilidade de aprofundamento do estudo do objeto proposto e de garantia de uma optica coerente com 0 referencial te6rico adotado. • •Ate porque previstas e asseguradas no convenio mencionado na nota da p. 58.


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certa forma, relativizava tal contradi<;ao, * nao era suficiente para neu­ traliza-Ia. Do lado das assistentes sociais, as pesquisadoras constituiam-se em possfveis aliadas em rela~ao as equipes policiais e, ademais, potencial­ mente geradoras de conhecimentos fundamentais ao seu exercfcio profissional, mas, paradoxalmente, observadoras do seu agir profis­ sional. Mediadoras do processo de pesquisa institucional e, simultanea­ mente, parte do objeto de investiga<;ao, apresentaram-se como interlo­ cutoras peculiares para alem do campo investigativo.·· No que tange as vftimas, a ambigiiidade integra sua forma de emersao no plano publico, enquanto sujeito expectante de direitos, mediatizadas que estao pela figura masculina. De fato, seu estatuto de esposa e mae sobrepuja 0 de cidada. Denunciar a violencia e ir as ultimas conseqiiencias no plano jurfdico-formal e manter-se como re­ ferencia familiar central, num contexte onde a baixa auto-estima e a culpabiliza<;ao sao prevalecentes, sao tarefas tendencialmenteinconci­ liaveis. Comparece a vftima hegemonicamente no papel de negociadora institucional a partir de dupla demanda: noticia a queixa, mas nem sempre a processa efetivamente, ou seja, representa a denuncia como capaz de coibir a violencia sofrida, evocando, para tanto, 0 poder e 0 autoritarismo policiais. Quanto aos agressores, estes vislurnbram 0 comparecimento ade­ legacia como urn momenta de hegemoniza<;ao doseu sentido a violen­ cia praticada, em circunstancias favorecedoras a produ~ao da sua fala, dado 0 canIter androcentrico da institui~aopolicial. *** Suas informa~6es sao recorrentes em dupla dimensao: no sentido de culpabilizarem as mulheres pela violencia por eles praticada e, como corolario, de se vitimizarem e, assim, obterem apoio institucional, com

• Por se privilegiar, como objeto de estudo, a violencia nas rela"oes de genera ­ problema secundarizado porque nao constitutivo da afirmac.<ilo da identidade profis­ sional do policial-, afigurava-se a existencia de urn olhar investigativo parcializado e direcionado a tais questoes, crescenternente canalizadas para 0 ambito do Servi"o Social. • ·Neste sentido, realizaram-se diversas reunioes com toda a equipe de assistentes sociais, objetivando-se definir estrategias de articula"ao dos trabalhos de pesquisa e intervenc.<ilo, na perspectivade realimentac.<ilo recfproca. • • ·Este aspecto sera desenvolvido no capitulo 6.

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a chancela da impunidade consentida. Revelar-se-ia, pois, falaciosa a tentativa de se superdimensionar a amostra deste segmento, na perspec­ tiva de se obterem de uma categoria dominante (do ponto de vista das rela~6es de poder) informa~6esreferentes aos mecanismos de explora­ ~ao-domina~ao utilizados. Antes, procurou-se conhecer como aqueles que protagonizam rela~6es de violencia cotidianamente, e sao detento­ res relativamente de maior parcela de poder do que seus contendores, exercitam a busca de justificativas ideol6gicas capazes de assegurar 0 desconhecimento dos mecanismos utilizados para a reprodu~ao grada­ tivamente ampliada de sua posi<;ao, pois e desse desconhecimento que retiram as bases de legitima~aodo seu poder (Mathieu, 1985). Utilizou-se, ao lange de todo 0 prod::sso investi~ativo, 0 conceito elaborado par Bertaux (1990) doponto de saturaqao como criterio de valida~ao dos dados. Embora se tenha estimado a amostra com a qual se trabalharia, quando da elabora<;ao do Projeto de Pesquisa, 0 desen­ rolar do processo, nessa perspectiva, foi determinante na defini<;ao de sua real dimensao. Nao se esta afirmando, contudo, que a defini~ao do ponto de saturaqao ocorre a partir da observa~ao empfrica, mas da analise das implica~6es que 0 movimento das evidencias indica. A desconstru~ao dos dados, ancorada nos instrumentos heurfsticos dispo­ nfveis, segue-se a reconstru~ao de representa~6esacerca do objeto de estudo (Bertaux, 1990). ­ /1 Procuraram diversificar-se, ao maximo, os informantes (Bertaux, 1990), mas dada a diferencia~ao entre as categorias pesquisadas no que se refere a sua vincula~aoao objeto de pesquisa, determinados grupos configuraram-se com maior grau de homogeneidade do que outros, atingindo, portanto, mais celeremente oponto de saturaqao menciona­ do. Houve preocupa~aocom a abordagem de casos Unicos, como, por exemplo, 0 de urna mulher que assassinou seu ex-marido, ap6s anos de agressaes denunciadas, mas nao coibidas pelas autoridades constitufdas. 1"1 o grupo de agressores foi, certamente, 0 mais homogeneo quanta aconstru~ao de urna fala peculiar, que reiterava 0 seu lugar de vftima e nao hesitava em fazer uso da for~a para reafirmar sua condi~ao de • A satura"ao eo fenomeno pelo qual, transcorrido urn certo numero de entrevistas (biognificas ou nao), 0 investigador ou a equipe tern a irnpressao de nao aprender mais nada de novo, pelo menos no que conceme ao objeto sociol6gico de pesquisa.


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superioridade na hierarquia de genero - condic;ao esta, da sua perspec­ tiva, freqiientemente minada pela mulher -, acarretando 0 alcance do ponto de satura~iio com uma amostra correspondente a apenas 10% do total de entrevistas efetuadas com mulheres. No que tange as vitimas, tern a unifica-las 0 fato de se tratar de mulheres que, mais do que outras - tern 0 medo como componente essencial de socializac;ao e de formac;ao de sua identidade. Sao mulheres violentadas eexploradas diutumamente, para quem a violencia factual e mais do que rotineira - e constitutiva da sua propria existencia. Nao se questiona que 0 medo paralisa nao so 0 corpo, mas embaralha 0 conhecimento do seu objeto (Mathieu, 1985). Nao se chega a afirmar, como 0 faz esta autora, que 0 medo engendra 0 nao<onhecimento, mas, certamente ele reduz a possibilidade de distanciamento do contexto que o produz, ofuscando a capacidade de reapropriac;ao e releitura do mes­ mo de uma perspectiva critica. E e esta a condic;ao que as unifica ­ todas passaram por situac;oes acentuadas de medo e isolamento. Mas foi tambem este elemento que, paradoxalmente, as impulsionou a bus­ car ajuda e a tomar publico mais do que fatos - sentimentos. A construc;ao das suas falas e permeada por baixa auto-estima e pela luta por reconstituirem 0 auto-respeito e, assim, nao se demitirem de si pr6prias (Mathieu, 1985). Este elemento unificador, no entanto, nao ofusca a singularidade e a riqueza das suas experiencias. o registro dos seus depoimentos representa momento Unico de tirar do anonimato a mem6ria de pessoas exploradas-dominadas ao longo de suas trajetorias e, portanto, historicamente silenciadas, no plano publi­ co, posta que, em 030 dispondo de poder (na linha dos eixos fundamen­ tais que estruturam a vida social: dasse, genero e rac;aletnia) e em nao estando, tendencialmente, organizadas do ponto de vista politico, essas mem6rias subtemineas expressam-se tao-somente em estruturas infor­ mais de comunicac;ao informais. (Pollak, 1989) Embora tenha sido 0 gropo mais heterogeneo, a diversidade que se procurou imprimir a tais informantes esta circunscrita a limites postos pelo locus de enunciac;ao das suas falas - a instituic;ao policial, a qual tern como publico-alvo, via de regra, os setores mais explorados e menos organizados (salvo em perfodos ditatoriais) da sociedade. Sob as perspectivas tecnica e polftico-ideol6gica, 0 grupo de as­ sistentes sociais tambem foi bastante homogeneo, fato facilmente ex­ plicavel. A selec;ao dessas profissionais se deu sob a chancela da aca­

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demia, a partir de urn perfil que informa 0 projeto de implantac;ao do Servic;o Social em delegacias policiais. Seu processo de capacitac;ao foi continuo e intensivo, com uma direc;ao impressa pela Escola de Servic;o Social da UFRJ. De fato, foi por esse angulo que buscaram construir sua identidade profissional e manifestar 0 sentimento de nao-pertence­ rem a corporac;ao policial, bern como de assumirem urn compromisso, sobretudo com os seus usuarios. Quanto as(aos) policiais, verificou-se a eficacia do processo corpo­ rativo de socializac;ao, posta que quanto maior 0 tempo de inserc;ao institucional, maior 0 sentimento de pertencerem ao grupo, ainda que conjugado a tentativa de dissimulac;ao da hist6ria submersa de repressao e de arbitrio policiais. Se a recorrencia de informac;oes sugeria ter-se atingido 0 ponto de satura~iio, a imersao da equipe de pesquisa, contudo, no cotidiano institucional revelava ambigiiidades entre discursos e praticas, e, por­ tanto, a necessidade de se perseguir 0 esquadrinhamento deste comple­ xo camp9-.Qe investigac;ao, diversificando-se as tecnicas de coleta de dados, Configura-se, assim, 0 contexto que justifica a opc;ao por crite­ ,,,~ rios sociol6gicos - e nao estatisticos - para 0 dimensionamento das amostras. Ufiliza~am-se, na primeira etapa, entrevistas semi-estruturadas, com roteiros diferenciados, contendo questoes padronizadas para os varios segmentos, deixando margem, entretanto, para a livre expressao das(os) entrevistadas(os). Instrumento complementar, mas fundamental a viabilizac;ao das entrevistas, foi a hist6ria de ficc;ao sobre violencia na relac;ao conjugal, produzida em duas versoes: com personagens que protagonizam relac;6es de violencia, oriundos de setores populares e das camadas medias, diferenciando-se as formas de manifestac;ao do con­ flito, e com assistentes sociais e policiais inseridos(as) diferencialmente na corporac;ao, alterando-se tamoom as formas de mediac;ao institucio­ naL o recurso as duas hist6rias foi utilizado comregularidade, introdu­ zindo-o no momento avaliado pela entrevistadora como 0 mais adequa­ do para relaxar resistencias e fazer fluir a narrativa. 0 movimento de distanciamento/aproximac;ao, identificac;ao/diferendac;ao com 0 relato ficcional foi recorrente, fazendo desencadear reflexoes sobre a propria trajet6ria de vida. Objetivando nao direcionar 0 olharda(0) entrevista­ da(0), mas suscitar questoes, as duas hist6rias utilizadas funcionararn


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jeitos relativamente ao campo tematico. Sem duvida, 0 potencial de empatia das entrevistadoras com mulheres vftimas de violencia e com assistentes sociais e tendencialmente maior do que com agressores e policiais. Com rela~o a este Ultimo segmento, ao mesmo tempo em que ele e percebido como vinculado a uma instituic;ao com carater eminente­ mente repressivo, verifica-se que em se tratando de policiais vinculadas as delegacias da mulher, se esta diante de urn projeto representado como renovador, posta que e capaz de canalizar sentimentos e aspirac;6es individuais e coletivos, ressignificando-os do ponto de vista etico-polf­ tieo e reordenando-os juridicamente.lida-se, simultaneamente, com tal expectativa e com observac;6es empfricas que indicam a permanencia e a reiterac;ao de praticas punitivas e arbitrarias tradicionais na cronica policial, embora potencialmente metamorfoseaveis, pelo menos na for­ ma

IQuanto aos agressores, a equipe de pesquisa negociou 0 campo, deslocando-o, eventualmente, para outro espac;o, fomecendo-lhe outro interlocutor, do sexo masculino, que contribufsse para minar parcial­ mente as resistencias oferecidas e favorecer a emergencia da empatia. Dessa forma, procurou-se nao utilizar categorias de acusat;iio totaliza­ doras (Velho, 1987, p. 60), que comprometessem a identidade dos entrevistados, notadamente dos agressores e policiais, como urn todo. Embora agressor nao seja categoria neutra, os homens que cometem violencia contra suas companheiras sao reconhecidos e enquadrados institucionalmente nessa condic;ao, e seria falacioso nao admiti-Io. No entanto, 0 fato de conceber-se a violencia como urna rela~o de sujeitos copartfcipes da margem anao-absolutiza~o e reificac;ao desta catego­ ria, possibilitando a analise do contexto de produc;ao da violencia e, sobretudo, a nao-matizac;ao do conhecimento por estereotipias. I

* A quase totalidade da equipe de coordena.,ao da pesquisa, antes de iniciar este projeto,

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como contra-referentes que permitiam matizar a tematica, da 6ptica da pesquisadora. No decorrer de 18 meses, lanc;ou-se mao da tecnica de observac;ao participante para analise do cotidiano das relac;6es institucionais. Pre­ tendia-se, assim, desvendar 0 contexto de produc;ao das falas, na inten­ c;ao de suplanta-Ias, re-construf-Ias e re-significa-Ias. Ha que se qualificarem a observac;ao e a participa~o. A primeira e sistematica, registrada cotidianamente e direcionada a partir de problematizac;6es que antecedem a entrada da entrevistadoralobserva­ dora em campo, mas que deriva da imersao inicial das pesquisadoras na realidade institucional.'\ Direc;ao que nao aprisiona 0 olhar , mas orienta-o a desvendar aspectos significativos, a ouvir a linguagem ges­ tual, os silencios, a descobrir os conflitos, os temas ausentes discursi­ vamente, mas presentes na media~o da relac;ao com as observadoras, enfun, a atribuir significados a urn universo ate entao intocado por observadores extemos. \ Na medida em que esse olhar e treinado para 0 exercfcio do estra­ nhamento, da duvida, da indaga~o, ele e criativo - e tambem intuiti­ vo -, mas nao empirista. Sendo registrado sistematicamente, ele e coletivizado, pois cotejado com outros olhares, que sao debatidos e compartilhados pela equipe de pesquisa A participac;ao ocorre estrategicamente a partir do Servic;o Social _ espac;o legitimado institucionalmente por movimentos organizados da sociedade civil, especialmente 0 feminista, e pela popula~o usuana. A inserc;ao da equipe de pesquisa nas delegacias e polarizada por concepc;6es e sentimentos antagonicos, informada pela analise dos su­

participou da implantal<ao do SeIVil<Q Social em delegacias policiais, em diferentes momentos: 12) como as primeiras assistentes sociais a implantarem este Servil<o nas delegacias e, portanto, pioneiras no desvendamento deste campo; 22)na qualidade de coordenadoras tecnicas e supeIVisoras das demais assistentes sociais que ingressaram posteriormente no projeto; 32) enquanto professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadoras do Projeto de Extensao e campo de estl'igio para a1unos da Escola de Servil<o Social constitufdos a partir dessa experiencia; e 42) como pesquisa­ doras individuais, que desenvolveram suas dissertal<0es de mestrado, tomando as delegacias policiais como campo investigativo. Ao definirem 0 objeto de estudo da pesquisa, ora finalizada, e ao problematizarem essa area tematica, 0 fizeram informadas por esselastro te6rico-pratico.

A CAPTURA DA HISTORIA

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)Neste processo investigativo, as dimens6es da observac;ao e da participac;ao sao substantivas e a intersubjetividade comparece como elemento indissociavel da produc;ao de conhecimentos, na medida em que interfere na direc;ao dos olhares, nas expressoes valorativas e nas mediaqoes simbOlicas. Este elemento nao s6 e reconhecido, mas objeto de analise sistematica, posta que, se e impensavel atingir-se a objetivi­ dade e neutralidade cientfficas, persegue-se 0 maximo de objetividade subjetivamente possfvel. (Goldmann, 198~)J


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o exercfcio de distanciamento e estranhamento, imprescindivel a postura investigativa, tern balizado a insen;ao em campo, por mais familiares que as rela<;oes travadas pelos atores institucionais possam parecer. "0 processo de estranhar 0 familiar toma-se possivel quando somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocional­ mente, diferentes visoes e interpreta<;6es existentes a respeito de fatos, situa<;oes" (Velho, 1987, p. 131). Tal confronto viabiliza-se pela quali­ fica<;ao permanente da equipe, atraves de estudos dirigidos, seminanos e aOlilises coletivas dos dados, bern como pela possibilidade de expres­ sao das percep<;oes e sentimentos dos membros da equipe no espa<;o das supervisoes. Na rela<;ao entre a equipe de pesquisa e (as/os) entrevistadas (os), confrontam-se visoes de mundo, projetos, formas de inser<.;ao nas rela­ <;6es de classe, genero e ra~etnia diferenciados. Trata-se, portanto, de rela<;6es assimetricas, nas quais podem reatualizar-se rela<;6es de for~ (Brioschi e Trigo, 1992, p. 34), mas que podem representar tambem momentos de encontro entre sujeitos diferentes, capazes de comparti­ lhar emo<;6es, sentimentos, reflex6es e reconstituir os fios de narrativas que ainda nao se impuseram a historiografia oficial. Parece relativamente claro 0 contexto no qual os sujeitos, que com suas hist6rias reais povoam e dao vida a este trabalho, produzem suas falas de convencimento sobre sua condi<;ao de vftima (tenhamsofrido, de fato, ou praticado a agressao). Lan<;am mao, sem duvida, do meca­ nismo de antecipat;ao, pelo qual se colocam no lugar do interlocutor e tentam responder as suas expectativas. Para tanto, analisam e intuem 0 campo no qual estflo intervindo, suas rela<;6es de for<;a, as possibilidades de alian<;a, as possiveis margens onde podem penetrar, os pontos de resistencia. Esta e uma atitude que s6i acontecer nas mais diferenciadas circunstancias, vividas pelos mais distintos sujeitos, nao sendo, pois, apanagio das vftimas e dos agressores. Em rela<;ao as primeiras, seria impensavel nao faze-Io, na medida em que se lida com uma institui<;ao hostil as suas demandas, em que ousam tentar conjugar emo<;ao e repressao, no locus privilegiado de enuncia<;ao da segunda. 0 campo e constitutivo das condi<;6es de produ<;ao da fala, marcando-a de forma indelevel. No que tange as mulheres, realizaram-se dois momentos distintos de aproxima<.;ao: 0 primeiro, em delegacias policiais, quando as entre~ vistas foram realizadas no calor da emo<;flo, no momento da efetiva<;ao

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da denuncia da agressao sofrida; 0 segundo, em suas residencias, em media, quatro anos ap6s a referida dent1ncia, quando se reconstituiram 15 hist6rias de vida. Altera-se nao s6 a temporalidade, mas 0 campo; mudam, radicalmente, as condi<;oes de produ<;ao discursiva. Enquanto a primeira aproxima¢o ocorre a partir da queixa formulada, recuando no tempo no sentido de se apreender sua hist6ria de violencia (fami­ liar/conjugal), a segunda abordagem da-se em termos biograficos, su­ plantando 0 tema da violencia que, contudo e de forma nao epis6dica, obstina-se em nao deixar acena. A primeira realiza-se em urn campo alheio; a segunda, no seu pr6prio campo. Na primeira, a entrevista tern canlter fundamentalmente instrumental para a mulher: representa 0 refor<;o a denuncia; eo registro do que foi,lanos a fio, silenciado; ea viola¢o do interdito; euma amea<;a a mais para 0 agressor. A iniciativa da procura da institui<;ao partira da mulher: ela decidira romper 0 isolamento. Na segunda, pode tambem a entrevista apresentar este mes­ mo carater, em circunstilOcias nas quais persiste a rela<;ao violenta originaria, representando, assim, uma pressao virtual sobre 0 agressor. Mas nao eeste 0 tom dominante; antes, eurn momenta de partilha, de valoriza<;ao do singular, de reconhecimento no coletivo, 0 que nao ocorre sem boa dose de medo (medo de que os filhos, 0 atual compa­ nheiro - ou 0 mesmo -, outros familiares e os vizinhos ou<;am 0 que desej'lsilenciar). ) Assim, as falas sobre rela<;oes de explora<;ao-domina<;ao sao dife­ rencialmente produzidas e apropriadas por pessoas, grupos, categorias e fra<;oes de classe, de acoro com sua inser<;ao no conjunto de for<;as em disputa na sociedade. Em ambos os casos, sao momentos de emergencia de (re)sentimen­ tos que por anos a fio se tentaram driblar e ofuscar; oportunidades em que, eventualmente, se romperam fronteiras erguidas, aparentemente de forma s6lida, entre 0 dizivel e 0 indizivel, por nao se conseguir deter, a tempo, 0 curso do pensamento e das emo<;6es. Permanecem certamen­ te, "zonas de silencio", de forma recorrente, notadamente no que tange a temas interditos, como a sexualidade, embora persista a sua evoca<;ao tangencialmente, porque fundantes e estruturadores de rela<;oes de vio­ lencia. Como observa Olievienstein (1988), "... a linguagem se condena a ser impotente porque organiza 0 distanciamento daquilo que nao pode ser posta a distancia. Eaf que intervem, com todo 0 poder, 0 discurso interior, 0 compromisso do nao-dito entre aquilo que 0 sujeito se confes­


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VIOLENCIA DE GENERO ~

sa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior" (Apud Pollak, 1989, p. 8). ~ Como nao se pretendem hipostasiar os dados, conferindo-lbes exis­ tencia propria, cabe aequipe de pesquisa 0 complexo trabalho de re­ constitui<;ao de significados, 0 que implica tomar 0 pensamento do outro e 0 contexto do qual emergiu sua produ<;ao materia-prima do pensamento do proprio analista, por sua vez situado em urn campo epistemologico, no qual se da a interlocu<;ao de diversas correntes de

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Ao reconstitufrem suas historias singulares, as mulheres empreen­ dem uma viagem de volta a domfnios longfnquos da sua memoria, retirando da experiencia vivida relatos permeados de dramaticidade, emo<;ao, fantasia, nostalgia - enfim, urn amaIgama de fatos e senti­ mentos que constroem a narrativa. Disp6em das suas historias e daque­ las vividas ou relatadas por pessoas com as quais privaram e que deixaram marcas em sua memoria. Obviamente, nao as exaurem. Ao revelar fragmentos significativos da sua trajetoria aentrevistadora, a mulher transgride, com aquela, a engrenagem contemporanea que levou aoesquecimento e aperda da arte de contar historias, isto e, de trocar experiencias (Benjamin, 1983)JNao se trata, entretanto, de reviver 0 passado no sentido bergsonian~* (Bergson, 1984). Trata-se de re-visi­ ta-Io e re-construf-Io com 0 olbar do presente, matizado por representa­ <;6es e experiencias acumuladas, inscritas em condi<;6es dadas. Vma historia, em especial a da propria vida (ou melbor, de seus fragmentos seletivamente apresentados e significados), e sempre recontada a partir de contornos postos por circunstancias detenninad~: 0 publico (pre­ sente de forma explfcita ou nao), 0 local, a epoca, e.!f:fara Halbwachs (1990), "a lembran<;a e em larga medida uma reconstru<;ao do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, alem disso, preparada • Bergson distingue dois tipos de mem6ria: a mem6ria-habito e a mem6ria-recorda~iio. A primeira, constitulda no e pelo processo de socializa~o, representa formas de manifesta~odo passado no presente e mescla-se com percep¢es atuais, condicionan­ do a reprodu~iio de automatismos adquiridos ao longo de uma trajet6ria de vida. A segunda, amemoire-souvenir ­ a verdadeira memoria, revive 0 passado, sob a forma de imagens, abstra~da-se do presente. Isto epasslvel porque 0 passada econservada por inteiro, sendo evocado sob a forma de lembranljas au sobrevivendo de forma inconsciente (Bergson, 1984; Basi, 1979).

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A CAPTURA DA HISTORIA

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por outras reconstru<;6es feitas em epocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se ja bern alterada" (p. 71). 0 passado nao e fIXo nem tampouco organizado; daf sua evoca<;ao fluida e prenhe de con­ temporaneidade para a narratiYa..rmo e, pois, a voz do passado emer­ gindo (Thompson, 1992), mas a do presente, que recodifica vivencias preteritas com lentes atuais, mesclando, portanto, diferentes dimens6es temporais. Ao deixarem fluir suas narrativas, que, por sua propria natureza, sao inconclusas, unicas e irretocaveis no ate de sua realiza<;ao (diferentemente de outras atividades), as mulheres restauram e reatua­ lizam estereotipos, ambigiiidades, desejos socialmente construfdos. Portanto, ocorre a superposi<;ao, no mesmoiCelato, de vanas narrativas, que se entrecruzam no imaginario social, embora o(a) narrador(a) 0 conceba de urn prisma meramente singular. Como afirma Halbwachs (1990, p. 52), "...do mesmo modo que a lembran<;a aparece pelo efeito de varias series de pensamentos coletivos em emaranhados, e que nao podemos atribuf-la exclusivamente a nenhuma dentre elas, nos supomos que ela seja independente, e opomos sua unidade a sua multiplicidade". E do contexto da experiencia ­ individual e coletiva ­ que as fanta­ sias, porventura existentes, tornam-se possfveis, os silencios e evasivas adquirem significados, imbufdos de forte simbolismo. E e este contexto e este simbolismo que importa reter, razao pela qual a veracidade dos relatos nao se constitui em preocupa<;ao metodologica deste trabalho. Neste sentido, nao se utiliza a distin<;ao proposta por Bertaux (1980) entre historia de vida e relata de vida,· termo este que designa a hist6ria de uma vida tal como a narrada pela pessoa que a vivencia, diferentemente do primeiro que a engloba, ultrapassando-o, posta que compreende tambem 0 estudo de outras fontes acerca da(s) pessoa(s) sobre a(s) qual(is) se empreende urn estudo de caso. Considera-se que se esta lidando sempre com a historia perspectivada, ainda que se utilizem documentos oficiais.

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• Kofes (1992:2) estabelece distin~iio entre hist6ria de vida e est6ria de vida, a qualniio se considera a mais apropriada Refere-se esta autora aclassifica~o estabelecida par Bertaux - histoire de vie e recit de vie -, que, por sua vez, inspira-se em Denzim (1970), que diferencialife history de life story. Atualmente, "recomenda-se apenas a grafia hist6ria, tanto no sentido de ciencia historica, quanto no de narrativa de fi~iio, conto popular e demais acep¢es." (FERREIRA, 1986).


A CAPTURA DA HISTORIA

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Trata-se, de fato, de requalificar a n~o de credibilidade dos dados. Importa reter a reapropria~o - com suas ambigilidades, (in)coeren­ cias, (in)certezas - das vivencias de acontecimentos significativos e sua tradw;ao sob a forma de reminiscencias. 0 que esta em questao e sua forc;a simb6lica, nao anulada - ou sequer reduzida - pela impre­ cisao do relato factual. Nao obstante, as contradi~oes identificadas nos relatos, ao inves de serem ignoradas, constituir-se-ao em indicadores a desafiarem a capacidade analftica das pesquisadoras. Isto porque estas tambem farao sua pr6pria mirrativa, tomando como materia-prima as falas e observac;oes recolhidas. Os dados nao tern, por si s6s, forc;a explicativa, devendo ser desconstruldos e reconstruldos, a partir de instrumental heuristico apropriado. Ao aceitar relatar sua hist6ria, a mulher consente em romper 0 isolamento e imergir em urn processo de reflexao sobre 0 passado e 0 presente, contribuindo para darvisibilidade aos contomos da violencia que grassa universalmente e ajudando a reescrever a cronica da fam{/ia (Bosi, 1983) - nao daquela idealizada e sacralizada, mas das famfiias reais, errantes, estilhac;adas, lugares de afeto/6dio, solidariedadelviolen­ cia. Re-significa, assim, sua condic;ao de ser hist6rico, posto que sua mem6riaadquirefunc;iio coletiva (Halbwachs, 1990). E este mesmo autor ainda quem afrrma que"... cada mem6ria individual e urn ponto de vista sobre a mem6ria coletiva, ( ) este ponto de vista muda conforme 0 lugar que ali eu ocupo e ( ) este lugar muda segundo as relac;6es que mantenho com outros meios" (p. 51). Sua exposi~o nao tern compromisso com a linearidade, passando ao largo da cronologia e apoiando-se, fundamentalmente, na primazia estabelecida por suas lembranc;as. A narrativa, contudo, tern forte temporalidade, cotejando padr6es comportamentais do passado com questoes contemporaneas, num fluxo constante entre passado e presente, cujas fronteiras embara­ lham-se, diluem-se, ou podem ser restabelecidas, na factualidade do relato. Entretanto, nem sempre conseguem incluir a dimensao do futuro nas suas hist6rias, pois nao conseguem mais sonhar, na perspectiva empregada por Benjamin: "No sonho, em que ante os olhos de cada epoca aparece em imagens aquela que a seguira, esta Ultima comparece conjugada a elementos da proto-hist6ria..." (1985, p. 32). Isto porque Benjamin refere-se aosonho coletivo, que sup6e a constrw;ao de sujei­ tos hist6ricos.

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Nao se ere, contudo, ser posslvel, como desejava Benjamin (1983, p. 66), estabelecer uma rela~o ingenua entre ouvinte e narrador, ba­ seada tao-somente no interesse em reter a narrativa, conseguindo 0 ouvinte desarmar-se totalmente no sentido de desprender-se de si mes­ mo e entregar-se apenas anarrativa (Ibid. p. 62). De fato, se esta diante de urn campo de interconexao de falas. Pensa-se que estas nao sao auto-referentes, como afirma Gregori (1989), ao analisar as falas das vftimas produzidas no ato da queixa da violencia: "A queixa e uma fala monologal, pronunciada para produzir escuta. Guarda essa semelhanc;a com a confissao. Ambas, tambem, sao falas auto-referentes e que trazem como tema a culpa" (p. 168). As falas sao construfdas num processo: toda fala toma outras como materia-pri­ ma e aponta para outras falas (Orlandi, 1988). No cenario em analise, confrontam-se pessoas situadas diferencialmente no eixo de relac;6es de classe, genero e rac;a!etnia, e, portanto, capazes de mobilizar parcelas desiguais de poder. Dessa forma, as falas de pessoas dotadas de determinado habitus sao formuladas a partir do investimento em urn campo dado. EBourdieu (1983) tambem quem define investimento: "... 6 a tendencia a ac;ao gerada na rela~o entre urn espac;o de jogo que coloca certas quest6es em evidencia (0 que chamo de campo) e urn sistema de disposic;6es ajustado a este jogo (0 que chama de haQitu,5), sentido do jogo e das questoes em jogo que implica ao mesmo tempo na tendencia e na aptidao para jogar, a ter interesse no jogo, e nele se envolver" (p. 28). /--E;pera-se que aquelas que sao, simultaneamente, objetos de disputa do campo em analise e vftimas das mais graves conseqiiencias desse jogo nao se restrinjam a acolher urn certo habitus ja consagrado (de classe, de genero, institucional etc.), mas possam negociar coletivamen­ te 0 campo, de forma a reelaborar regras e definir novas estrategias de! investimento, reconstruindo e publicizandofalas que impulsionem oj processo de construc;ao de relac;oes sociais igualitiirias. --...I

Bibliografia ARRUDA, M. A. do N. Mitologia da mineiridade: 0 imag;nario m;ne;ro na vida politica e cultural do Brasil. Sao Paulo, Brasiliense, 1990.

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PARTE II

A Vivencia Cotidiana da

Violencia

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Capitulo 4

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Trajetorias Pessoais, Destinos de Genero

Luisa, Rosa e Tania viveram experiencias semelhantes, na condi~ao de mulheres, ou seja, em sellS destinos de genero. Cada uma, entretanto, descreveu uma trajet6ria pessoal especifica, tendo chegado a urn porto mais ou menos (in)seguro. 0 exame de suas hist6rias de vida pretende dar conta destas duas dimens6es: as vivencias singulares de cada urna com rela¢o aviolencia conjugal e 0 fardo reservado as mulheres, como seres hurnanos socialmente inferiores aos homens e a eles subordinados em virtude da organiza~aosocial de genero. U rna importante caracte­ rfstica da sociedade brasileira, embora nao seja uma singularidade, funciona como ingrediente agravante desta situa~ao: a quase irrestrita impunidade dos criminosos. Em virtude disto, mesmo depois da sepa­ ra~ao do conjuge, e muito relativa a seguran~a destas mulheres com referenda ao "direito" do ex-companheiro de violar os novos territ6rios afetivos, economico-financeiros e ate mesmo geogrcHicos por elas cons­ truidos. Os homens sao socializados nao apenas para se conduzirem como 0 gala de seu pr6prio terreiro, mas tambem para se expandirem pelos espa\os tecidos por maos femininas e, mais do que isto, para disputarem outros territ6rios com seus iguais. Nestas circunsmncias, a separa~ao nem sequer retira definitivamente a violencia do interior das quatro paredes em que ela ocorria. 0 mesmo sujeito social pode voltar travestido de sogro, sogra ou de outras figuras, a tim de introduzir a desarmonia nas rela~6es de sua ex-companheira com os filhos e/ou outros familiares. Via de regra, a separa~ao produz a pen6ria ou introduz algum grau de escassez material na familia monoparental chefiada par mulheres, na medida em que estas dificilmente encontram emprego no perfodo de 79


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TRAJETORIAS PESSOAIS. DESTINOS DE GENERO

VIOLENCIA DE GENERO

gesta<;ao, assumem 0 encargo da cria<;ao dos filhos e ganham, em

media, cerca de 50% dos salarios masculinos. De acordo com dados da

PNAD 1990, enquanto os homens representavam 4,5% dos traba­

lhadores masculinos na faixa de ate 1/2 salario minimo, 11,6% das

trabalhadoras situavam-se nesta faixa de rendimentos. Situa<;ao inversa

e revelada para a faixa de mais de 20 salarios minimos, qual os

­ trabalhadores comparecem com 4,1%, contribuindo as mulher micamente ativas com apenas 1 6% de s u contingente. ra, face a

a paridade sa anal, e 6bvio que a separa<;ao conjugal acarreta,

no minimo, rebaixamento de nivel de vida para a mulher e seus filhos.

Nao se podem excetuar sequer todas as mulheres abastadas, pois muitas

delas passam a viver com pensoes irris6rias se comparadas a seus

dispendios anteriores. Mais uma vez, na~ se trata de nenhuma singula­

ridade brasileira, sendo 0 fenomeno univers.illJHii que se cOiiSiaer~

porenr,eomo especificidade nacional, de um lado, 0 agudo aprofunda­ mento dos mveis de carencia nesta ultima decada no Brasil e, de outro,

a progressiva amplia<;ao, quer em termos absolutos, quer em termos

relativos, dos contingentes populacionais submersos na pobreza. Neste

contexto, sao poucas as mulheres que, ao se separarem do marido,

conseguem escapar de uma queda em seu padrao de vida. 0 crescimento

da propor<;ao das famflias chefiadas por mulheres de 13%, em 1970,

para 15,6%, em 1980, e para 20,1 %, em 1987 (FLACSO, 1993), tern

colaborado para 0 fenomeno da feminiliza<;ao da miseria. A progressao

apresentada reflete a crise iniciada no infcio dos anos 80 e agravada nos

anos 90. No presente ano, quando se tern verificado algum crescimento

das atividades economicas, 0 myel de emprego permanece estacionario,

ou seja, continuam altos os niveis de desemprego. Em outros termos, 0

Brasil esta experimentando, embora incipientemente, 0 fenomeno ja

"conhecido das economias amadurecidas e denominado jobless growth.

Na crise atual, as mulheres vern sendo menos atingidas pelo desempre­

go do que nas anteriores. Com efeito, tern aumentado a participa<;ao

feminina na PEA: era de 31,3% em 1981, tendo passado para 35,5%

em 1990. Isto significa que a taxa de atividade feminina tern crescido

milis aceleradamente do que a masculina, tendo esta ultima aumentado

de 74,6% em 1981 para 75,3 em 199Q,enquanto a primeira passou de

32,9% para 39.2% no mesmo periodo CPNADs 19812 1990).

Ha evidencias de que as transforma<;oes em curso no capitalismo

representam uma certa prote<;ao para a mulher no que tange ao desem­

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prego. A substitui<;ao do trabalhador especializado pelo trabalhador polivalente favorece a mulher, na medida em que sua socializa<;ao a torna capaz de se ocupar de varias tarefas de natureza diversa er . slonal e ona- e-casa implica na~ apenas dupla jornada, mas tambem sobreposi<;ao de jornadas. Assim, mesmo as mulheres mais subprivilegiadas sao, em boa medida, polivalentes. Quando se exami­ nam as capacidades de mulheres de alto nivel de escolaridade, na~ obstante 0 fato de elas desfrutarem da prerrogativa de na~ se ocupar de tarefas domesticas, verifica-se a ausencia da especializa<;ao na maioria esmagadora dos casos. Como a maioria das mulheres dirige-se para as humanidades, desenvolve-se nelas uma cqnsideravel capacidade de rea­ liza<;ao de distintas atividades. Embora 0 Brasil esteja longe da univer­ saliza<;ao da educa<;ao de terceiro grau e ate de segundo, dadas as discrimina<;oes sofridas pela mulher no mercado de trabalho, a escola­ ridade das trabalhadoras e, em media, bern superior ados trabalhadores. Efetivamente, para uma taxa de atividade masculina global de 75,3%, a especifica daqueles que possuem nove ou mais anos de escolaridade atinge 87,5%. As cifras correspondentes para as mulheres sao de 39,2% e 63,9% (PNADs 1981, 1990). Adistancia absoluta entre estas ultimas duas percentagens ja revela uma presen<;a maci<;a de mulheres mais escolarizadas na PEA Atentando-se para 0 significado desta distfmcia entre as duas taxas de atividade feminina comparado adiferen<;a entre os dois percentuais masculinos, verificar-se-a uma importilncia relativa m1,Iito grande do comparecimento das mulheres com nove ou mais anos de escolariza<;ao na PEA. Everdade que, aparentemente, a escola de segundo grau, exce<;ao feita das profissionais, oferece 0 mesmo tipo de forma<;ao para meninas e meninos. Pelo menos, 0 curriculo eo mesmo. Todavia, a estimula<;ao dos estudantes pelos professores apresenta urn forte vies de genero. ," "-xeste-prop6sito, vale a pena relatar rapidamente 0 que se verifica, no momento, nos Estados Unidos. Nao obstante quase tres decadas de feminismo e a existencia de uma lei federal determinando a igualdade entre meninos e meninas nas escolas, observou-se, hii pouco tempo, que a educa<;ao sexualmente diferenciada incentiva os garotos e desestimula as garotas a se encaminharem ara a area das matematicas e ciencias duras. em de urn novo projeto de lei (Gender Equity in Education Act), que conta com ample apoio de deputados, a National Science Foundation (NSF) concebeu urn plano para atrair meninas para as areas


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do conhecimento consideradas masculinas. Afirma Jane Daniels, dire­ tora do mencionado plano: "Como podemos imaginar, neste mundo altamente tecnico, que nossa economia nao entrani em colapso, se deixarmos de desenvolver todo 0 potencial cerebral do nosso pais?" (0 Estado de S. Paulo, 22/08/93, p. 2). Schrof, que redigiu a materia para a imprensa norte-americana (U.S.News & World Report), transcrita pelo mencionado diario brasileiro, afirma: "0 futuro que aguarda as escola­ res de hoje sera nao somente falho, devido aos muitos trabalhos pouco especializados desempenhados por 60% das mulheres, como demanda­ ni um mlmero de cientistas mulheres tres vezes maior do que 0 atual, de acordo com as proje~6es da NSF" (0 Estado de S. Paulo, 22/08/93,

p.2).

E, no minimo, discutivel a ideia de se oferecer formal;ao profis­ sional especializada a mulher nurn momento ern que este tipo de traba­ lhador esta sendo descartado pelo mercado. Isto nao significa afirmar que, com a horizontaliza~o da empresa, desapare as tarefas na, e semiqualificadas, mon6tonas e aborrecidas. as fabricas toytotistas, permanecem organiza as segunoo 0 esquema fordista muitas tarefas, ue talvez nunca ou sO em futuro remoto ven1¥tJn a ser~izadas QQr robos. Nas monta oras, por exemplo, cerca de 40% dos postos de traba 0 sao ocupados por trabalhadores sem nenhuma ou com pouca qualifica~o(Guimaraes, 1993).0 fato marcante da economia con ­ pomnea e, contudo, a diferencia -o. Nao estaria, portanto, havendo urn escompasso en re 0 evemr hist6rico e a tomada de consciencia sobre as desvantagens das mulheres ao receberem educa~o nao_de' -- JIl~ de actosexualmentediferenciada? 0 er- -' gwraNSFsobresua inten~o cia ~ao as mulheres na area das matemati­ cas e ciencias naturais num momento em que se busca ampliar a capa­ cidade humana de trabalhar transdisciplinarmente; Do ponto de vista aqui esposado, defende-se 0 plano da NSF, sem se negarem a crescente necessidade e 0 desejo de tomar mais flexiveis as fronteiras entre os varios campos do conhecimento. Para que se instale 0 habito do trabalho multidisciplinar, e necessario, primeiro, a se conservar a estrutura vi­ gentedo ensino, ue f aonumaareaes ec'­ fica 0 men 0 0 projeto reside na tentativa de destruir 0 mito de que as mulheres sao bern dotadas para aslliimanidades e os homens, ara as ciencias duras. e muito lmpar nte formar 0 essor, visando a uma ed~ca~ao nao generizada (nao diferenciada por genero). E bem

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verdade que outros estere6tipos continuarao vigentes na sociedade em geral, na medida em que sao veiculados pela familia elas religioes e por outras instituil;oes sociais. Enquanto a ocilidade, 0 a rUlsmo e a . pa IVl ade forem valorizados como tra~os femininos, de urn lado, e a for~, a coragem e a independencia permanecerem ingredientes basicos a personalidade ideal masculina, de outro, a educa~o nao-generizada ferecida el escola encontrara di lculdades ara se alastrar. as a esco a publica constitm, sem duvida, urn locus extremamente relevante para a interven~ao do Estado, capaz, certamente, de desencadear um processo social de revisao das idees rer;ues. Da mesma maneira que nao mais se cultiva 0 desmaio das mulheres e se busca prepara-Ias para 0 desempenho de atividades remuneradas, a estereotipia que confere ao homem 0 direito de ser agressivo, exigindo da mulher 0 silencio, pode sofrer rachaduras. Sem duvida, uma escola publica que consiga efeti­ vamente dar iguais oportunidades a meninas e meninos introduzira varias cunhas nos estere6tipos vigentes, na medida em que nao apenas propiciara condi~oes para a mulher exercer profissoes consideradas masculinas, mas tamrem porque the infundira a auto-estima necessaria para que ela possa exigir relal;oes igualitarias com seu com anheir, demais homens, pelo menDs, de sua gera ao. medio prazo, prOjeto~s ~ como 0 da NSF poderao represen uros golpes contra a violencia de I genero, atualmente tao generalizada, segundo semostrou anteriormente. I Nao se pode esquec~contudo, que uma politica pt!blica isoladamente_ ~reaJiza mtIagres. Faz-se necessario conce.ber uma serie delas, vi­ ~ando a fechar 0 cerco em tome dos preconceltos contra a m~ mulheres cujas hist6rias de vida passam a ser examinadas vivem nurna sociedade impregnada de machismo e de multiplas modalidades de violencia. Aparentemente, se esta diante de urn bin6mio. A rigor, toda­ via, a falocracia se assenta na violencia. Pode-se, por conseguinte, afirmar: embora nem toda violencia seja de genero, todo machismo e violento. Luisa, Rosa e Tania realizaram cursos superiores (Servil;o Social;

Pedagogia; Hist6ria e Direito), havendo a ultima obtido 0 grau de

Mestre em Hist6ria em universidade publica. Todas tiveram varios

direitos humanos (de ir e vir, de conviver com os fillios, de preservar

sua integridade ffsica, emocional e intelectual, de reconstruir sua vida

afetiva etc.) violados par seus companheiros. Destes, apenas 0 de Rosa

nao tinha curso superior. Assim, nao se trata de mulheres pertencentes


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a estratos sociais de baixa renda e nenhuma ou pouca instru~ao, como se procura, ideologicamente, caracterizarvitimas de violencia conjugal. Todas lograram separar-se, nao obstante os percal~s vividos em algu­ rna instancia social: poHcia, judichirio, familia. Todas vivenciaram (ou vivenciam ate hoje) enormes dificuldades financeiras em virtude da separa~o. Todas foram machucadas. As feridas abertas em cada uma obtiveram graus diferentes de cicatriza~o, estando Rosa ainda em fase de reconstru~o da identidade perdida. Suas hist6rias serao contadas da maneira como elas as representam, porque foi assim que elas as vive­

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ram.

Submissoo e rebeldia: os amores de Luisa Luisa, atualmente com 39 anos, casou-se com cassio aos 23 anos, ap6s uma namoro de seis anos. Tratou-se de um namoro aantiga, pois seu pai era terrivelmente repressor. Embora na decada de 70 em seu drculo social ja fossem comuns as rela~6es sexuais entre namorados, ela casou-sevirgem. Nenhum dos dois tomou a iniciativa para transfor­ mar a natureza do namoro. Luisa suspeita que seu pai nao implicou com o namoro, exatamente porque ele decorreu sempre das 19 h as 22 h, na varanda de sua casa, com luz acesa e facil acesso a seus familiares. Ademais, e esta razao e apresentada com enfase, 0 rapaz estava bern en,carninhado na vida. cassio foi 0 primeiro namorado de Luisa. Quan­ do 0 namoro come~ou ela ia ingressar no curso cientffico e ele ja estava no 32 ana do curso de Medicina. Habituada a apanhar de cinta de seu pai, Luisa submeteu-se as vontades do namorado, MO reagindo quando, por exemplo, ele a humilhava ao dizer que nao era vantagem nenhuma ser primeira aluna em faculdade particular. Chamava-a de "bundona", menosprezando sua capacidade intelectual e de tomar iniciativa. Ela pontua haver sido ele a unica pessoa a lbe dizer que "em terra de cego, quem tern urn olbo e rei", referindo-se ao brilhantismo dela em univer­ sidade privada. Ela estudava Servi~o Social, faltando-lbe dois anos para terminar 0 curso quando se casou. >endo sete anos mais velho que Luisa, ele ja era medico, com consult6rio montado, e professor univer­ sitario. Ele sempre se dedicou obsessivamente aos estudos. Ela, desde o namoro, ajudava-o, seja levantando os dados de suas pesquisas me­ dicas, seja datilografando seus trabalbos escolares. Ja na fase donamoro

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se delineava 0 estilo de vida que ele tinha e que continuaria tendo depois de casado. Embora s6 namorassem nos fins de semana, porque ele fazia faculdade, estagio, plantao, ele levava para 0 encontro urn jogo de xadrez ou de batalha naval para jogar com ela. Ela abominava este tipo de atividade, pois preferia conversar com ele sobre 0 que lbes havia passado durante a semana. Ele a obrigava a raciocinar. Ela ate gostava de usar a razao para fazer os trabalhos dele, mas nao para namorar. Urn dia, disse-Ihe que nao jogaria mais. Rebelou-se. Luisa, alias, nunca foi integralmente submissa. Sujeitava-se a certas coisas, mas tambem, de vez em quando, se insurgia contra etas. Era muito espancada por seu pai por nao aceitar seus argumentos d~ autoridade e solicitar incansa­ velmente explica~6es. cassio ja se havia casado com os livros antes de propor casamento asua namorada. Segundo ela, nos seis anos de namoro, ele nunca falou em casamento. Aideia lbe veio quando sentiu a amea~ de perder Luisa Foi morar em casa desta uma colega de faculdade, que estava fazendo estagio de segunda a sexta-feira, subindo para Petr6polis, onde mora­ vam seus pais, no fIm de semana. Urn amigo desta mo~a passou a leva-la, junto com Luisa, da faculdade para casa. Cassio nao gostou, tendo chegado a brigar com sua namorada. Esta, contudo, nao podia abrir mao da carona, na medida em que the poupava dois onibus. Foi neste momento, sentindo-se amea~do, que cassio nao apenas lbe pro­ pOs casamento, como tambem agilizou todos os tramites para que a cerimonia ocorresse rapidamente. Embora os pais de Cassio fossem , contra 0 casamento, porque desejavam que ele esposasse uma ex-na­ morada, fomeceram uma casa para 0 novo casal,ja que sao proprietarios de mais de 60 im6veis no Municipio do Rio de Janeiro. Na epoca, Luisa nao atribuia importancia aoposi~ao de seus sogros, pensando: "Eu vou me casar com ele, nao vou me casar com 0 pai ou a mae dele." Mais tarde, percebeu que este fata... "... interferiu abega. Quando eu pleiteava alguma coisa mais moderna, eles sempre interferiam. Sempre que eu pleiteava alguma coisa, eles botavam uma barreira. Par exemplo, no natal, ano novo, eu falava: Cas­ sia, vamos passar 0 natal na casa da minha miie e 0 ano novo na casa dos seus pais ou vice-versa. Nao, tinha que passar 0 natal e 0 ano novo na casa do pai dele, porque ele era filho Unico e nao tinha fannlia. E eu tenho culpa disso?"


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Ela adoraria passar uma das festas de fim de ana com sua familia e seus amigos, pois seus pais moravam numa vila e todos os vizinhos festejavam juntos. Varias vezes propos que se levassem os pais dele para lao cassio, todavia, industriado pelos pais, recusava. Pouco mais de dois anos apos seu casamento, Luisa teve seu filho, Alexandre. A vida de cassio, que sempre estivera ausente, cuidando de seu consultorio e de suas atividades docentes, nao sofreu nenhuma altera¢o. Continuou a estudar durante 0 pouco tempo em que perma­ necia em casa. Trabalhava no consultorio ate aos sabados, voltando diariamente para casa entre 21 h e 22 h. Nunca tinha tempo para a esposa e 0 filho, pois 0 domingo era passado com seus pais. Chegava a dormir no sofa, trabalhando. Luisa solicitava sua aten~ao, mas se submetia aquelas condi¢es. Na ocasiao, nao percebia 0 quaD provedora ela era da optica afetiva. Hoje tem consciencia disto. Respondendo a pergunta do significado de cassio para ela, afirmou: "Sabe que eu nem sei mais? Eu gostava dele, fazia tudo por ele. Depois dele ja tive outras rela<$oes. Quando gosto de uma pessoa, acho que eu .pego muito, porque eu fa<$o tudo, 0 que eu puder fazer para ajudar eu fa<$o. Entao, ele sempre teve aquela confian<$a em mim, aquele porto segura: "eu sei que se eu fizer isso ela vai me ajudar." Ate deixava de fazer as minhas coisas para fazer para ele. Eu gostava muito dele e me separei gostando, foi muito diffcil, muito dificil mesmo. Agora, hoje, eu paro e penso: como e que eu pude gostar tanto de urn homem assim, se eu me dava muito mais do que recebia?... eu acho que eu fazia muito mais por ele do que ele por mim. Ele nunca deixou de fazer uma coisa dele para fazer a minha. Ele nunca cedeu em nada dele para fazer nada para mim e eu sempre cedendo."

Dada sua socializa¢o, as mulheres tendem a sermuito provedoras no campo afetivo. Isto nao significa deixar de lado tarefas de ordem material. Prover afetivamente envolve tambem 0 cuidar material. Tra­ ta-se de tarefas, muitas vezes penosas, que a mulher desenvolve para agradar, uma vez que the ensinaram a tentar agradar sempre. 0 cuidar feminino, isto e, realizar com carinho yma serie de fun~6es que bene­ ficiam 0 companheiro e/ou os filhos parece complementar 0 papel de provedor das necessidades efetivamente materiais da familia desempe­ nhado pelo homem. Como bem mostra Gilligan (1991), 0 homem e autocentrado, enquanto a mulher tece uma rede de rela¢es e vive nela

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e para ela, mais do que para si propria. E por isso que atualmente Luisa nao entende porque pooe gostar tanto de um homem tao narcisista e tao violento. Enquanto vivia com seu marido, cobrava, evidentemente, re­ ciprocidade, 0 que nunca chegou a obter. Hoje ela conclui que cassio nao foi feito para 0 casamento, nao somente porque, de fato, seu compromisso era com suas ocupa~6es, mas tambem porque seu interes­ se sexual era extremamente escasso. A primeira briga do casal ocorreu quando 0 casamento tinha 20 dias e porque 0 macho nao abdicava de seu "direito", socialmente legitimado, de exercer seu poder de forma absoluta. A festa do casa­ mento fora filmada. Quando voltaram da lua-de-mel, em Salvador, Luisa chamou 0 profissional de video para exibi-Io para a sua familia e a de seu marido. Quando cassio foi avisado por ela da data e da hora da reuniao em sua casa ficou furioso, dizendo que nao poderia assistir ao filme, uma vez que tinha um importante trabalho para fazer para a universidade (fez mestrado e doutorado). Ela argumentou que ele gas­ taria 15 minutos, no maximo 30, venda 0 filme e que poderia ficar estudando 0 resto do tempo, pois ela poderia fazer as honras da casa. cassio trancou-se no escrit6rio e nao apareceu na sala, seja para cum­ primentar os parentes, seja para assistir ao filme. Obviamente, se criou uma situa¢o constrangedora, mas todos assistiram ao video. Quando as visitas sairam, cassio dirigiu-se sua mulher nos seguintes termos:

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"Voce nunca mais fa<$a isso. Tudo que voce fizer, desde chamar alguem aqu~ voce tern que falar comigo primeiro."

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Luisa ficou perplexa com a rea¢o desproporcional de seu marido e tentou faze-Io perceber a pouca importincia daquele pormenor. Re­ cebeu 0 primeiro tapa no rosto. Nervosa, trope~u no fio do ventilador e este, que estava sobre urn movel, veio abaixo. Ela tentou apara-Io com as maos. Como 0 aparelho continuava ligado, ela teve os dedos de ambas as maos cortados, embora nao profundamente. Sangrando, foi ao banheiro lava-los. Fez um curativo desajeitado na mao esquerda, nao tendo conseguido realizar 0 mesmo na direita. Cassio, que, como me­ dico, tinha todo 0 preparo para auxilia-Ia, nao se moveu, quando a maioria esmagadora dos leigos socorrem os que se ferem, ainda que se trate de desconhecidos. A dor provocada por esta crueldade na alma de Lulsa foi muito aguda. No dia seguinte, quando ele retomou do trabalho,


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ela the participou que solicitaria anula~o do casamento. A isto respon­ deu cassio: •

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"Voce esta maluca? Eu estava com a cab~a cheia com meus problemas na faculdade, pelo amor de Deus! Nao e nada disso; se voce quiser eu me ajoelho aqui para te pedir perdao."

Diante da argumenta~ao de Luisa de que nao adiantava pedir des­ culpa depois de feita a grosseria, esbravejou: "Voce me deixa maluco! Todo mundo na faculdade esta me pres­ sionando!"

cassio era tao fanatico pelo estudo e pelo trabalho, atividades interpenetradas em seu caso, que considerava vadios todos os seus colegas e alunos. Durante uma prova a que submeteu seus alunos, ele os trancou na sala, impedindo-os de ir ao banheiro e tomar agua Houve reclama~ao e 0 professor recebeu uma suspensao. De acordo com 0 depoimento de Luisa, "... ele nao se relacionava com ninguem, arranjava encrenca com todo mundo.... eu fui fazer Servic;o Social e alguns colegas meus foram fazer Mf dicina e me falavam que os alunos nao gostavam dele, porque ele exigia demais dos alunos. (...)... ninguem era amigo dele, mas 0 pessoal tin Ia uma certa coisa com ele, porque ele sabia muito e se dessem urn tra 'Jalho para ele fazer ele fazia, ele nao rejeitava trabalho. Acredito que depois de formado, porque ele foi monitor na anatomia e depois foi contratado como auxiliar de ensino. Naquela epoca nao tinha concurso, hoje tern. E1e foi pelo mento, pela capacidade, porque ele era born, tanto que ele mantinha uma boa politica; ele era muito born aluno e muito born monitor; de ficar dissecando ate uma hora da manha, essas loucuras! (...) AI ele falou que estava mal na faculdade, me pediu desculpa, disse que nunca mais isso iria acontecer. Eu acreditei, ne? Mas quando se passaram os anos... as manias que ele tern, ate hoje ainda tern. Por exemplo, ele chegava em casa Ua tinha consult6rio) as 9:00, 10:00 horas da noite. Jantava, se trancava no escrit6ri.~Jjcava estudando ate 3:00 horas da manha. Dorme pouquissimo ele. E maniaco. Maniaco dorme pouco. Nao dava atenc;ao nenhuma; nao sentava para ver uma televisao junto, nao conversava, nada, nada. Tinha sempre coisa para fazer. au entao, dele ficar essas noites todas sem dormir; chegava cansado, sentava no sofa de sapato, de roupa, dormia sentado. Eu sal de casa, porqueja nao tinha uma

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companhia. Chego, me caso para ter uma companhia, urn amigo, urn companheiro, urn c6mplice ou sei hi 0 que, 0 homem vai nesse neg6cio. Nao me dava aten<tao nenhuma, mas nenhuma. Dizia: "Eu tenho que trabalhar, minha vida e assim. Em primeiro lugar sempre foi minha carreira."

Luisa tinha razao ao afrrmar que 0 estilo de vida de Cassio era incompativel com 0 casamento. Ele s6 se interessava pelo estudo e pelo trabalho, 0 que revela uma enorme ambi~o de poder e uma personali­ dade extremamente competitiva. Ela cobrava dele, nas freqiientes bri­ gas, a faIta de aviso de que sua carreira ~stava em primeiro lugar. Nao foi poupada nem mesmo durante a gravidez. Luisa nem se lembra porque apanhou durante a gravidez. Conta que estava se preparando para ir ao cardiologista com 0 marido, quando aconteceu. Ficou tao nervosa que sua pressao subiu exageradamente. 0 medico, que era conhecido de cassio, quis saber se havia acontecido algo de anormal. Ela the sugeriu que perguntasse ao marido. Este disse ao medico que haviam tido urna briguinha. A covardia e companheira inseparavel da violencia. A inseguran~ tambem 0 e. Cassio investiu muito no desen­ volvimento da razao, deixando de adubar 0 campo dos afetos, onde tambem se encontra satisfa~o e realiza~ao. Era metade de urn homem; nao estava inteiro. Certo dia, Luisa encontrou 0 que supos fosse blush na jaqueta de seu marido. Brigou com ele. Nao podia tolerar aquilo, na medida em que fazia tudo, sendo, na sua linguagem, 0 homem e a mulher da casa. Como poderia tolerar a trai~ao? Foi muito ofendida verbalmente por seu marido, que alegava ser giz vermelho. Nao interessa se havia ou nao outra mulher na vida de cassio. As evidencias caminham no sentido do nao, uma vez que seus sentimentos pareciam embotados. Ele apa­ rentava ter olhos somente para a ciencia. Embora persista a duvida, porque objetivamente nada se provou, Luisa viveu este epis6dio como trai~ao:ele nao tinha tempojustamente para ela que fazia tudo por ele, mas tinha para outra. Luisa era impelida pela lei da reciprocidade a se sentir vitimizada. Ficaram dias sem trocar palavra. Ele nao dava di­ nheiro para as compras. Ela fez urn emprestimo junto aos sogros e aos pais. Nao poderia, contudo, seguir este caminho para sempre. Sua rebeldia inventou uma nova forma de enfrentar 0 marido na questao da falta absoluta de dinheiro.


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"Primeiro, eu deixei acabar tudo. Acabou tudo, nao tinha mais nada. Ai, ele veio para comer, botei 0 prato, as travessas todas na mesa, vazias. Ele se sentou para comer e disse: 'De, cade a comida?' Eu: Acabou, voce nao fala para eu nao gastar? Entao voce nao come, porque assim nao gasta. Ai ele ficou mais revoltado ainda. Deixou passar e depois andou deixando dinheiro, sempre assim, tudo contadinho. Passou, quando foi no dia 3de agosto (1982, 5 anos de casamento), estava sentado ill na sala, me sentei do lado dele: Olha, cassio, acho que ja deu tempo para a poeira assentar. Eu ja estou mais calma, voce tambern, vamos conversar. Dessejeito nao pode ficar, pensei bern e quero me separar de voce. 'Voce esta maluca! Esta com 0 diabo no corpo!', ele falou. Dizendo que eu era 0 diabo, comel$ou me dando tapa. Dessa veze que apanhei mesmo. Ele fazia curso de judo. Ele me agrediu com 0 pe no rosto, no ombro, na barriga. E eu fiquei perplexa porque nao esperava essa real$ao dele. Ja tinha passado urn mes e taI,ja tinha passado aquela fase da briga, da confusao. Era para ele ter assentado urn pouco e pensar. Ele disse: 'Tenho urn monte de trabalho para entregar amanha na faculdade e voce vern com esses pro­ bleminhas domesticos!' Isso depois que ele me bateu abel$a. Pensei: meu Deus do ceu, 0 que que eu YOU fazer agora? Chegou urn ponto quenao da mais mesmo. Ai ele passou e falou: 'Desculpe pelo diabo que te chamei.' Ele quase me mata e vern me pedir desculpa assim, minutos depois pelo diabo que ele me chamou. Eu pensei: este homem esta completamente maluco, esta transtornado. Eu falei: e agora ou nunca. Li ~ei para uma colega minha, advogada. Ela falou: 'Voce tern que fazer is! 0, isso e isso. Vai ao hospital, la eles vao te encaminhar para a dele­ gada. Tern urn policial de plantao la'."

Convencida da impossibilidade de reverter a situac;ao, sobretudo porque cassio a espancara a sangue frio, Luisa observou rigorosamente as instruc;6es da advogada. Registrou a ocorrencia, submeteu-se ao exame de corpo de delito. No IML, teve 0 cuidado de omitir que seu marido era medico. Como urn medico faria 0 laudo, imaginou que pudesse proteger seu colega. Declarou que seu marido era professor, portanto, nao mentiu. 0 medico perguntou-Ihe se estava gravida, pois o hematoma de sua barriga tinha 8 cm de diametro. Efetivamente, os homens procuram agredir, fundamentafinente, duas partes do corpo da mulher: 0 rosto e a barriga. 0 rosto feminino tern urn significado especial, na medidaem que a beleza e muito valorizada. Ademais, ficar desfigurada representa, de certa forma, perder a identidade. Quanto a barriga, ela contem os 6rgaos reprodutores, que tornam a mulher apta

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a dar aluz filhos, capacidade extremamente invejada pelos homenl, embora raramente eles tenham consciencia disto ou admitam. C4ss10 revelou-se demasiadamenteviolento, pais, comoja havia passado muito tempo da briga, ele nao estava sob 0 efeito de nenhuma emOC;ao capaz de priva-Io de discernimento. Embora Luisa se submetesse ao poder discricionariamente exercido por seu marido, sua vontade nao deixava de tentar afirmar-se, vez por outra. Ele insistia em quebrar esta vontade, em anular a identidade da esposa. Para sujeita-Ia asua tirania, lanc;ava mao de duas estrategias: a indiferenc;a e a violencia. Nenhurna das duas condutas Ihe era penosa. A primeira era uma decorrencia de seu fana­ tismo pelo saber ou ambi~o pelo poder, 0 que, no fundo, tern 0 mesmo significado; a segunda era seu modo de defender seus privilegios de macho. Outra violencia merece comentario: a interrup~o do fluxo do nu­ merario para suprir as necessidades alimentares da fanulia. A privac;ao propositadamente provocada significa uma afirmac;iio de poder. "0 dinheiro, em sua qualidade de maeda, apresenta a particularidade fun­ damental de ser urn valor de troca, que tern existencia independente das coisas. Eo representante material da riqueza Ua que 'encama a pos­ sibilidade de todos os prazeres e de todas as mercadorias possiveis') e gera poder. Segundo Marx, com a introduc;ao do dinheiro nasce uma pulsao indeterminada que nao se dirige para os objetos concretos. Esta pulsao e 0 poder e esta relacionada com 0 dinheiro e encarnada nele" (Coria, 1991, pp. 60-70). A disseminac;ao deste tipo de analise contri­ buiria, sem dl1vida, para desconstruir categorias hist6ricas que vinculam a raziio ao homem e 0 afeto amulher, independentemente da constru~o social da masculinidade e da feminilidade. Obviamente, comportamen­ tos menos nobres, como 0 egoismo e a especula~o, nao utilizam apenas o dinheiro, mas tambem os fenomenos afetivos como meios. Logo, homens e mulheres podem ser seus protagonistas. Por outro lado, po­ der-se-ia, atraves de uma analise percuciente do dinheiro, chegar a conclusao de que ele envolve, muito provavelmente, a area emocional. A Psicanaliseja indicou os vinculos do dinheiro com 0 sexo, 0 que nao deixa de ser urna demonstrac;ao de seu comprometimento afetivo. Rigorosamente, porem, enquanto nao se divuIgarem estas vincula­ c;6es, as mulheres continuarao sendo desestimuladas a aprender a lidar com grandes somas de dinheiro, uma vez que, segundo 0 imaginario social, a racionalidade exigida por esta atividade contraria 0 ideal de


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personalidade maternal. Ora, a dificuldade das mulheres com 0 dinheiro mio deriva de sua suposta incapacidade de raciocinar, mas de urn con­ flito entre normas intemalizadas. De urn lado, ela devemanter-se afas­ tada do dinheiro para poder desenvolver as qualidades afetivas requisi­ tadas por seu papel de mae; de outro, circunstfmcias concretas da vida cotidiana obrigam-na a encarar 0 desafio de nao apenas aprender a ganhar dinheiro, mas tambem geri-Io com competencia. Denominar 0 dinheiro como masculino e sua manipula~ocomo masculinizante re­ vela-se urna estrategia de grande eficaciapara afastar a mulher do pader. Com efeito, 0 dinheiro constitui urn instrumento altamente eficiente para a conquista do poder; Assim, a falocracia pode transformar em suditos, no minimo, metade da humanidade. Ha que se considerar tambem urna outra vertente da ideologia que alija a mulher do dinheiro e, por conseguinte, do poder: cobrar por servi<$O prestado evoca prosti­ tuic;ao. Tradicionalmente, as atividades remuneradas eram destinadas aos homens, excec;ao feita a prostituic;ao. Ainda que as mulheres te­ nham, ao longo da hist6ria, ampliado enormemente 0 raio de suas atividades remuneradas, 0 apego ao dinheiro e ainda assimilado apros­ tituic;ao. Estes comentarios servem para identificar 0 segundo conflito vivido pela mulher no que diz respeito ao dinheiro ou, em outros termos, para demonstrar a verdadeira amplitude do primeiro. Da 6ptica da ideologia machista, a personalidade ideal da mae op6e-se vigorosamen­ te apersonalidade ideal da prostituta. Embora esta dicotomia nao resista a uma analise cientifica (Saffioti, 1980), tern tido uma gigantesca efi­ cacia polftica. Obviamente, as ideias expostas encaminham a discussao para a dependencia econ6mica da mulher em reIac;ao ao homem. A pos­ sibilidade de ganhar dinheiro e dele dispor coloca a mulher em condi­ c;6es de transgredir interdic;6es ancestrais. Ora, quase todos os interditos situam-se na area da independencia, do uso da liberdade. Como 0 dinheiro constitui talvez 0 maior facilitador de condutas transgressoras e grande parte das proibic;6es representam 0 controle que os homens exercem sobre a sexualidade feminina (Tabet, 1985), nao somente as mulheres associam-no com sexo como;de fato, existe este nexo. "Por isso, amanutenc;ao da dependencia (neste caso aecon6mica) diminuiria a tensao provocada peIo conflito frente liberdade vivida como transgressora. Esta diminuic;ao de tensao a preserva da angustia e se constitui no beneficio primario da dependencia econ6mica (...)... e mais

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pertinente avaliar 0 grau de independencia de uma pessoa por sua capacidade de usar 0 dinheiro com autonomia do que por sua capaci­ dade para ganha-Io. Ganha-Io nao implica, necessariamente, usa-Io com autonomia. (...) ... quem administrao dinheiro acaba administrando, real ou simbolicamente, a mobilidade do outro e a de si mesmo" (Coria, 1991, pp. 48 , 49 e 52). A associac;ao do dinheiro com 0 sexo nao existe somente para a mulher, mas tambem para 0 homem. A vivencia deste nexo, todavia, e completamente distinta para urn e para outro. Enquanto 0 homem 0 vive em termos de liberdade sexual, altamente incentivado pela sociedade, inclusive a conquistar mulheres muito m,ais jovens, a mulher 0 vivencia com muita culpa. 0 empresario paulista Olacyr de Moraes, com idade superior a 60 anos, tao logo desfez seu casamento, passou a circular com garotas de 20 e poucos anos. Sua imagem em festas e restaurantes, sempre acompanhado de namoradas com aproximadamente urn terc;o de sua idade, e exibida na televisao e obtem 0 aplauso de quase toda a sociedade. Uma situac;ao inversa - urna mulher de mais de 60 anos com urn rapaz de pouco mais de 20 - e amplamente ridicularizada. Em outros termos, 0 homem tern 0 beneplacito da sociedade para comprar sexo, para comprar a mulher, ao passo que esta nao pode proceder da mesma maneira com 0 homem. Amesma conduta e con­ siderada positiva no homem e transgressora, portanto, negativa, na mulher. Luisa, nos dois primeiros anos de casamento, ocupava-se 0 dia todo com a faculdade, 0 estagio, a casa, 0 marido. Quando ela terminou seu curso universitario, nasceu Alexandre, aumentando seus afazeres do­ mesticos. Ademais, sempre ajudou 0 marido em seus trabalhos. Era economicamente dependente. Logo, tinha seu tempo e sua vida toda administrados por Cassio, dono do dinheiro e do poder. Luisa era inferior a cassio, na medida em que a dependencia econ6mica subor­ dinava-a a urn estilo de vida para ela desagradavel e cerceava seus movimentos. Embora trabalhasse para toda a familia, especialmente para 0 marido, estas tarefas nao the asseguravam nem remunerac;ao, nem reconhecimento. Como a dependencia econ6mica s6i ser apreciada desvinculadamente de seu contexto gerador, e bastante freqiiente a percepc;ao, por parte das mulheres, de seus beneffcios secundarios, como dispor de mais tempo, eximir-se de responsabilidade no que tange atuac;ao publica, estar protegida. Na verdade, esta visao ilus6ria.

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Luisa viveu 0 oposto da prote~o, na medida em que era espancada por seu marido. Assumiu, sim, muitas responsabilidades publicas, pois era "a mulher e 0 homem da casa". Nao dispunha de mais tempo, posta que a administra~ao deste item de sua vida ficava a cargo de Cassio, com seus trabalhos intelectuais, primeiro como estudante e depois como professor. Coria faz uma incursao bastante sugestiva na vida das mulheres economicamente dependentes, propondo a refiexao sobre 0 tripe: "di­ nheiro pequeno, espa~o restrito e tempo indiscriminado" (p. 56). Efeti­ vamente, Luisa administrava 0 dinheiro da escassez, enquanto cassio administrava 0 da abundc1ncia E1a nao podia sequer comprar uma roupa para si. Quando gostava de uma, seu marido the dizia que era muito cara, que comprasse outra, muito mais barata. Esta, porem, nao lhe agradava Conclusao: acabava nao comprando nada Quanto ao dinheiro para suprir a casa de alimentos, cassio deixava "tudo contadinho". Tratava-se, pois, do dinheiro da carencia, como 0 chama Coria. Neste sentido, e interessante verificar como 0 destine do dinheiro pequeno muda de uma classe social para outra. Nas camadas abastadas, este tipo de dinheiro paga 0 superfiuo. Trata-se do dinheiro para os alfinetes ou o batom da mulher. Nas camadas medias, este dinheiro dirige-se para a satisfa~ao das necessidades de consumo de bens nao-duraveis e ser­ vi~os da fanulia. Nas camadas mais pobres, 0 dinheiro todo e pequeno, cabendo, muitas vezes, a mulher administrar este escasso or~amento domestico. A decisao de comprar um sofa ou uma televisao, entretanto, raramente e da mulher. No maximo, ela participa da decisao, nunca ou rarissimamente a toma sozinha. No caso de Luisa, a rebeldia emergiu nao na exigiiidade e contigilidade do espa~ em que se movia, nem na continuidade e indiscrimina~o do tempo destinado as tarefas domesti­ cas e da maternagem, mas no espa~o especffico do dinheiro. Como se mostrou, ela cessou de fazer emprestimos e colocou travessas vazias na mesa. Ou seja, serviu urn jantar do nada para cassio. Estava nas traves­ sas exatamente aquilo que 0 dinheiro que ele nao dava a ela permitiu comprar: nada. Levanta-se a hip6tese de 0 nexo entre dinheiro e sexo ser bastante forte para Luisa. Embonrela nao se tenha queixado de insatisfa~osexual durante os cinco anos que durou 0 casamento, per­ guntada sobre sua vida intima, respondeu que sexo com Cassio era "esporadico, mais ou menos uma vez por mes". Este "estilo" instalou-s~ desde 0 inicio do casamento, 0 que nao e usual para casais jovens. E

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preciso considerar, entretanto, que Cassio e especial: ignora as neces­ sidades do corpo, porque s6 (re)conhece (em ambos os sentidos: de ser capaz de identificar e de respeitar) as da razao. Ao colocar as travessas vazias sobre a mesa, ao servir 0 jantar do

nada, Luisa estava tentando romper com a dependencia generallzada, gerada pela heteronomia economica. Acabava de tomar uma decisao: enfrentar 0 detentor do dinheiro, ou seja, do macropoder, com seu micropoder (Guattari, 1981, 1986). Este passe deve ter sido decisivo para a delibera~o de, efetivamente, se separar do marido. "... a inclusao do dinheiro - que a meu ver esta culturalmente sexuado - vai esti­ mular a concep~o de outros espa~s e outros tempos que transcendem o limite do privado, introduzindo outra medida e outra qualidade no agir. Por isso a maneira de participar do dinheiro nao e in6cua" (Coria, 1991, p. 59). A dependencia economica acaba, portanto, afetando os demais dominios da vida. Talvez em fun~ao disto s6 e rompida com 0 advento de uma crise. A crise pode ser caracterizada pela perda do companheiro, por uma catastrofe financeira em fanulia, pela ruptura de la~s afetivos provocada por fatos, como a violencia, que destr6i espa­ ~os psiquicos intra-subjetivos, transubjetivos e intersubjetivos (Puget, 1990). Embora Luisa ja houvesse trabalhado fora, alem de ganhar muito menos que cassio, estava desempregada quando da separa~o.Desta sorte, foi preciso promover, senao uma ruptura, pelo menos uma fenda na dependencia generalizada para poder procurar emprego e adquirir, pelo menos por algum tempo, autonomia economica. Tern razao Lau­ 'retis (1987) ao afirmar que 0 sujeito do feminismo vive, simultanea­ mente, no interior do genero e fora dele. A hist6ria de Luisa mostra sua capacidade de transitar nestes dois espa~os. Submissao e rebeldia nao somente se alternam como, as vezes, convivem. Entretanto, ela nao consegue redimensionar e re-significar 0 genero a partir da posi~ao de fora do genero. Eis porque suas rela¢es amorosas sao uma sucessao de violencias ffsicas e emocionais. Luisa nao comunicou ao marido que havia registrado a ocorrencia e feito exame de corpo de delito no IML Como nao se estavam falando, ela ficou aguardando a chegada da intima~opara 0 agressor. Alguns dias depois, efetivamente, chegou 0 "convite". cassio nao suspeitou de nada com rela~ao a violencia que cometera contra a esposa, porque imaginou que a intima~ao estivesse vinculada ao fate de ele ter estado


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trabalhando na clinica onde prestava servic;os medicos exatamente no dia em que houve la urn assalto. "Pegou 0 convite e, no dia marcado, foi. Ouando ele chega da delegacia, entra transtomado. as olhos pareciam que iam saltar do £Osto. Disse: "Ouer dizer que voce foi fazer isso, voce quer manchar a minha vida com o artigo 129."* Ai, eu estava sentada no sofa, ele me deu urn chute na canela e disse: "Agora voce vai Iii e da queixa de novo."

A necessidade de reafirmar seu poder levou cassio nao somente a repetir aviolencia, mas tambem a tomar outras providencias. Constituiu advogado e conseguiu acautelar 0 inquerito policial. Isto e, nao se deu prosseguimento ao inquerito, como era freqiiente ocorrer nas delegacias distritais. Luisa nao registrou nova ocorrencia, quando levou 0 chute. Alega que, nao tendo deixado marcas, nao havia como comprovar a violencia. Nao desistiu, contudo, de seu projeto de romper aquela rela­ c;ao de violencia rotinizada (Saffioti, Canc;ado e Almeida, 1992). Voltou adelegacia para se informar sobre 0 andamento do inquerito, tendo descoberto seu acautelamento. Eu falei: Como que acautelararn? Por que? Fui falar com 0 delegado, nao gostei do delegado. Me charnou lei na sala dele, ele come~u a conversar comigo. Achei que ele levou a coisa... Perguntou: "Por que voce briga com seu marido?" Eu falei do temperamento dele. Ele disse: "Porque sao duas pessoas de urn myel cultural, voces deviam se entender. Estou achando que 0 problema de voces erelacionado a problema sexual." Ouis levar para esse lado, mas de uma forma tao vulgar! Se ele colocou que eu tinha urna certa compreensao, eu achei que ele usou uns termos de urn modo muito vulgar, com umas conversas esquisitas. "Nao... por que ele nao te satisfaz, por que?" Entrou em certos detalhes que acho que nao caberiam ali naquela hora. Eu falei que nao, que queria levar adiante. "Entao ta, you dar prosseguimento, porque foi acautelado." Foi 0 termo. Nesse meio, peguei a xerox da ocorrencia, xerox do laudo do IML e dei entrada na separa~o judicial. Para dar entrada na separa~o judicial tena que ter urn motivo."

* "Lesiio corporal" Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saude de outreQl: Pena -

tres meses a urn ano" (COdigo Penal).

deten~o, de

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Como s6i acontecer nas delegacias distritais, a vitima de violencia conjugal acaba sendo vitima de assedio sexual por parte da autoridade policial. LUisa, apesar de irritada com 0 delegado, tratou de munir-se dos documentos necessarios arealizac;ao de seu plano. Antes, porem, de entrar com a aC;ao de separaC;ao, propos ao marido a separaC;ao amigavel. cassio recusou a proposta, alegando nao desejar separar-se da esposa. 0 juiz decretou a pensao alimentfcia em 45% dos rendimen­ tos dele, somando ganhos do consult6rio com os da universidade. No dia da audiencia, "ele ent£Ou no Forum lei de baixo, oferecendo uma pensao de 25%, tentando emolar 0 neg6cio.... tentando dizer que era born marido, ele alegou (...) que nao me agrediu, que eu mejoguei contra os m6veis dentro de casa. Sou algurna doida para fazer urn neg6cio desses dent£O de casa? Me machucar? Auto-flagela~ao? Ficar me batendo contra os m6veis todos? Nesse dia da audiencia, ele disse que pagava 0 aluguel do pai dele, com isso ele reduziria a pensao. Ai 0 juiz disse que era mais urn motivo para manter essa pensao: "Porque assim voce nao vai pagar 0 aluguel de seu pai, entao ela vai precisar de mais dinheiro para pagar." (...) Da universidade eu sempre recebi, porque levei offcio lei e nflO tern como tirar, deposita direto na minha conta. Agora, do consult6rio ele nunca me pagou. Como continuei morando na casa (do sogro), falei: nao YOU pleitear essa do consult6rio, nao. Ja que YOU ficar morando na casa, nao YOU querer os 45% do consult6rio, voce fica com eles para voce."

A pauperizac;ao abrupta de Luisa teve infcio naquele momento. Ele depenou a casa, levando 0 que nela havia de mais valioso, inclusive 0 telefone. Obviamente, conhecendo seu marido, ela preferiu abrir mao do percentual do consult6rio, renda sonegavel e efetivamente sonegada, retendo a casa, a fim de nao pagar aluguel, e os 45% dos vencimentos de professor. Em atualizaC;ao de entrevista realizada em outubro do corrente ano (1993), Luisa declarou que recebe CR$ 56.000,00 por mes, ou seja, cerca de US$ 373.00. Ora, como ele tern 0 titulo de doutor e muitos anos de servic;o na universidade, deve ter mudado de regime de trabalho, reduzindo sua carga horaria para pagar menos aex-esposa e ao filho. Com a diminuiC;ao das horas dedicadas auniversidade, sobra mais tempo para 0 consult6rio, onde se ganha mais e se declara quase nada. Alem disto, ele mudou de consult6rio. Como trabalha com urn colega, tudo esta em nome deste, nada constando no catalogo telefonico


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em seu proprio nome. Ja seria muito dificil descobrir 0 endere~ de seu consult6rio. Impossivel seria chegar a renda nele obtida. Nem com os cuidados medicos do fIlho ele se preocupa. Como ele e medico, enquan­ to durou 0 casamento, nao se necessitava de convenio de saude, posta que os medicos nao cobram consultas de colegas e seus familiares. Apos a separaC;ao, Luisa se foi distanciando paulatinamente dos colegas de Cassio. Assim, e muito raro utilizar servic;os medicos de conhecidos. Ela e Alexandre fieam inteiramente a descoberto em termos de saude, ja que ela esta sem trabalhar. Com os US$ 373.00 que recebe por mes deve fazer face a toda sorte de imprevistos. Enquanto Luisa estava empregada (arranjou trabalho logo em se­ guida a separaC;ao), saia as 5 h de casa e voltava as 20 h. Jantava, acompanhava as tarefas escolares do filho e tinha que repousar para comec;ar urn novo dia logo ao amanhecer. Ha seis anos, entretanto, ela esta desempregada. Ja tentou ate atividades informais, como vender roupa, mas nao se adaptou ao trabalho, pois nao temjeito para cobrar e as pessoas nao pagavam suas compras. Sua situac;ao atual e bastante diffcil. Alem de ter de pagar absolutamente tudo que diga respeito a si propria"e a Alexandre, agora com 14 anos, seu sogro esta movendo contra ela uma aC;ao de despejo. Houve urn dialogo pungente entre 0 garoto e seu avo. 0 primeiro, chorando, perguntou ao segundo porque ele queria a casa de volta (lembra-se que 0 avo e proprietario de mais de 60 imoveis na cidade do Rio de Janeiro), urna vez que isto significava deixar 0 neto sem casa. 0 avo respondeu que jamais seu unico neto ficaria sem casa, na medida em que ele e sua esposa estavam dispostos a recebe-Io para morar com eles. Foi, assim, verbalizada a intenc;ao de retirar 0 teto de LuIsa A persegui¢o nfro e feita, portanto, somente pelo ex-companheiro; ha urna verdadeira conspira¢o contra a ex-esposa por todos os membros da fanulla. Neste caso, a fanu1ia emuito pequena e ha consenso em torno dos designios do filho unico. Ora, Luisa abriu mao de 45% dos rendimentos do ex-companheiro na profissao de me­ dico em troca de morar com seu filho gratuitamente na casa de seu sogro. 0 acordo esta sendo rompido nurn momenta em que a auto-es­ tima de Luisa esta baixa por vir tentando encontrar emprego ha anos e continuardesempregada Suspeita-se de qu.e ela nao seja muito bern dotada para tomar iniciativas e persistir na busea de trabalho. Alem disto, nao obstante a necessidade de dinheiro, da-se ao luxo de nao se adaptar a certas

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atividades, como foi 0 easo da venda de confecc;6es. E verdade que, de acordo com a lei brasileira, seu ex-marido, membro da popula¢o eco­ nomicamente ativa (PEA), deve-lhe assistencia fmanceira, consideran­ do-se seu prolongado desemprego. Quanto ao filho, e obvia a rieces­ sidade, amparada pela legisla¢o, da prestac;ao de assistencia. A impu­ nidade dos homens que sonegam rendimentos, ja em si urn crime, para pagar menor pensao a ex-mulheres e filhos e praticamente total. Nem nisto 0 Brasil esta sendo original, pois se trata de fenomeno extrema­ mente disseminado pelo mundo. Luisa, alem de revelar pouco alento na busca de soluc;6es para sua dependencia economica, nao toma ini­ ciativas no sentido de pressionar 0 ex-marido, seja no sentido de lhe destinar uma parte dos garihos do consultorio, seja para cessar a aC;ao de despejo que the move seu sogro. A pensao alimenticia esta perene­ mente sujeita a revisao. Desta forma, basta provocar a manifesta¢o do juiz face as circunstancias atuais. Se residir na casa sem pagar aluguel fazia parte do acordo, cabe, obviamente, recurso ao juiz. Com 0 jantar do nada, Luisa ancorou-se no diriheiro escasso para promover a ruptura da relaC;ao de violencia mantida durante cinco anos com Cassio. Sem duvida, sua atitude foi positiva. Todavia, as evidencias caminham no sentido de tomar patente sua dependencia generalizada. Ja nao se trata, e evidente, de urna dependencia estrita em rela¢o ao ex-marido ou aos proventos que dele vern. Sua dependencia tern maior alcance. Quando casada, conseguia ser "0 homem e a mulher da casa". Embora Cassio nunea estivesse realmente presente, porque 0 pouco tempo que passava em casa tambem era destinado ao refor~ e incremento do saber/poder, por certo, representava para ela urn esteio de ordem emocional. Afinal, ela fora habituada a repressao e a violencia de seu pai que, provavel­ mente, the dava, nao obstante, seguran<;a. A rigor, ela casou-se com seu paL Da mesma forma como nao conseguiu libertar-se desta figura atraves do casamento, nao logrou alean<;ar autonomia com a separa¢o de Cassio. Sua rebeldia foi suficiente para solucionar a questcio da violencia ffsica; nao, contudo, para par fun a violencia emocional, produzida em sua propriapsique, com a introjec;ao da figura do macho poderoso: primeiro 0 pai, depois 0 marido. Desta sorte, mesmo geogra­ ficamente distante destas figuras, continua administrando 0 dinheiro miudo, vivendo nurn espac;o restrito e nao discriminando seu tempo. Cassio passou a viver com uma psicologa. A uniao, porem, durou apenas urn ano. Ha urn mes, a mo<;a abandonou-o por nao suportar seus


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maus-tratos. Quando come~ou a namoni-lo, falou por telefone com

Lufsa, marcando urn encontro para conversarem sobre condutas dele

que ela considerava esquisitas e Ihe fazer perguntas. Luisa contou-lhe

como fora sua rela~ao com 0 ex-marido, mas tendo sempre 0 cuidado

de reiterar que, embora com ela a rela~ao tivesse sido violenta, nao 0

seria necessariamente com outra companheira. Esta opiniao, a rigor,

constitui uma meia verdade. Ainda que se trate de uma rela~ao a dois,

sendo preciso considerar a contribui~o de cada urn para a rotiniza~ao

da violencia, ha uma pronunciada tendencia de recidiva Alem da orga­

niza~o social de genero tomar a sociedade extremamente complacente

no julgamento moral dos crimes cometidos por homens contra mu­

lheres, Cassio reune outros f~tores propfcios ao desenvolvimento de

rela~6es afetivas violentas. E filho unico de urn casal que sempre 0

auxiliou no cerceamento da liberdade da ex-esposa, na tentativa de

mante-la sob 0 jugo do macho. E excessivamente ambicioso no que

tange ao saber. Ora, 0 saber constitui urna via privilegiada de conquista do poder, chegando mesmo a se confundir com este ultimo (Foucault, 1976,1977,1981). "A investiga~ao do saber nao deve remeter a urn sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a rela¢es de poder que the constituem. Nao ha saber neutro. Todo saber e politico. E isso nao porque cai nas malhas do Estado, e apropriado por ele, que dele se serve como instrurnento de domina~ao,descaracterizando seu nucleo essencial. Mas porque todo saber tern sua genese em rela¢es de poder. o fundamental da analise eque saber e.poder se implicam mutuamente: nao ha rela~ao de poder sem constitui~o de urn campo de saber, como tamoom, reciprocamente, todo saber constitui novas rela~6es de poder. Todo ponto de exercfcio do poder e, ao mesmo tempo, urn lugar de forma~ode saber" (Machado, 1981, p. XXIII). Desta forma, cassio, a rigor, nao investia suas energias e seu tempo senao no saber/poder. E freqiientemente exorbitava, seja trancafiando estudantes nurna sala de aula, seja violando os direitos hurrlanos de Luisa. 0 dinheiro, outro instrumento privilegiado de acesso ao exercfcio do poder, corrobora suas tentativas alucinadas de manter sua ex-mulher nurn inferno seme­

lhante ao que lhe proporcionava antes daSepara~o. Tendo sido aban­

donado tambem pela segunda mulher, pode, doravante, intensificar a

persegui~ao a primeira sob 0 pretexto de que seu filho vive com ela.

Sua rela~ao com Alexandre, alias, e quase inexistente. Na verdade, este

garoto nunca teve importancia para ele. Estreitmnente centrado no po_

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der, amparado, por urn lado, pelo saber e, por outro, pelo dinheiro, cassio nem tern espa~o para esta rela~o. Nao se esta pensando exclu­ sivamente em espa~o como lapso de tempo, mas em territorios psiqui­ cos. Ele esta fechado para isto. No entanto, usa 0 filho para impedir que sua ex-mulher viva em paz. Sua inabilidade de desenvolver rela~6es sociais capazes de construir espa~os psiquicos toma-o pauperrimo como ser hurnano. Sem 0 saber e 0 dinheiro que Ihe garantem a sujei~o de outras pessoas a seu despotismo, Cassio seria reduzido a nada, porque e incapaz de amar. Luisa demorou a se recompor como mulher. "Foi muito dificil, muito dificiI. Em rela~o a outra pessoa, fiquei uns dois anos sem pensar em ter qualquer tipo de relacionamento com ho­ memo Me disseram que fazia falta, para mim nunca fez falta nenhuma. Eu estava tao traumatizada com aquela situa~o, que nao queria saber de ninguem. Eu queria ficar na minha casa, cuidando do meu mho."

Foi so depois de dois anos da separa~aoque come~ou a namorar.

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"A primeira vez que entrei num motel com esse eara, levei 0 maior susto e disse: Nao! Ai ele falou: "Voce virou adolescente de 15 anos?" (...) Naquela epoca eu estava com 30 anos. C...) Engra~ado, ate hoje, ja tenho 11 anos de separada, eu tive muitas rela~6es em rela~o a outras colegas, ate solteiras liberadas. as relacionamentos em geral nao duram muito tempo. as meus duram; elas dizem que eu aturo tudo, que eu tenho urn grau de tolerancia grande. (...) A primeira vez no motel foi urn desastre; "Com~ou aquela coisa na minhacabel;<l: agora you destrambelhar. a que nos passam pai e mae e que 0 cara saiu, conseguiu e ja nao quer mais. Nao foi nada disso, foi uma rela~ao que durou uma ana e meio. (...) Depois eu conheci urn outro, acho que foi 0 maior erro da minha vida. (...) Ele disse: "Sou separado, tenho quatro filhos." C...) Depois eu vim a descobrir que ele nao era separado, era casado, morava com a mulher. Depois que ele me apresentou airma dele, ela colocou. Ai eu ja estava super envolvida e apaixonada. Depois ele foi revelando que era uma pessoa que nao parava em emprego nenhum, nlio gostava de trabalhar. A mulher dele e que se mataYa, quando ele estava desempregado, para sustentar os quatro filhos. C...) Foi um relacionamento horrfvel, aquele neg6cio na rninha cabe~a dos fjlhos dele, deixava os filhos, a mulher. C...) Sei que ainda durou dois anos, mas com muita briga e vai embora e volta. Acho que foi piordo que 0 meu relacionamento com 0 cassio, porque no meu relacionamento com 0 cassio eu nao tinha culpa de nao estar indo


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bern, porque nao dependia de mim; eu fazia tudo certo e ali nao, eu acho que ali eu era climplice daquela situacrao. Gracras a Deus, tomei uma atitude: acabou, chega, nao quero mais!"

Este namorado de Luisa, Floriano, mio era senao urn maIandro, urn bon vivant que, no inicio, pagava as contas, mas que, logo em seguida, passou a depender da bolsa da namorada. Segundo esta, ele nao e muito inteligente, mas sim muito esperto. Alem disto, era portador de pouca cultura. Trabalhava em uma fabrica de oculos, fazendo controle de qualidade do produto. Embora ela jamais tivesse tido a expectativa de viver com ele, a conviv~ncia em fins de semana era penosa. As carac­ teristicas deste namorado aqui expostas sao suficientes para mostrar que ele era exatamente 0 opasto de cassio: irresponsavel, embusteiro, vadio. Nao teria ele side urna necessidade para Luisa? Nao teria ela precisado . viver a experiencia contraria avivenciada com Cissio? Urn forte indicio de que a viol~ncia ocorre no interior de uma relac;ao, e apenas espora­ dicamente constitui urn ate isolado de urna pessoa, consiste nas condu­ tas diferenciadas que Luisa desenvolveu na relac;ao com 0 ex-marido e cqm este namorado. Segundo ela, seu comportamento na relac;ao com Cassio era correto e por esta razao nao houve vivencia de culpa, 0 mesmo nao tendo acontecido com 0 segundo namorado ap6s a separa­ c;ao. Alem disto, ela considerou pior esta relac;ao com 0 malandro do que a relac;ao com 0 espancador. Em principio, nao ser alvo de agressao e mais aprazivel do que se-Io. Tambem em principio, a convivencia com urn malandro e, pelo menos, mais divertida do que com urn homem violento. Como ela nao tinha nenhuma pretensao de coabitar com ele, nao importava sua instabilidade economica. Mesmo porque, enquooto casada com Cassio, nao tinha liberdade sequer para comprar a roupa que the agradava. Nem mesmo deveria ter grande significado 0 fate de ele ser namorador. 0 filtro de Luisa, porem, era outro. Apesar de violento, cassio aproximava-se mais do modelo de homem aceito pela ideologia de classe media: "Bern encaminhado na vida." 0 saber, 0 prestigio das duas ocupa¢es por ele desempenhadas, os rendimentos, certamente, contavam a favor de CasmNo caso de Floriano, todos estes atributos - cultura,status, classe social - eram negativos. Ela poderia ter vivido prazerosamente esta experiencia, ja que era apaixo­ nada por ele, nao fora sua ideologia pequenO-burguesa e sua socializa­ c;ao de mulher-fiel, mUlher-mae, mulher quase assexuada. Agregue-se

o fato de que Luisa continua nao sabendo administrar 0 dinheiro da abundancia, pois deve ter-se privado de muitas satisfac;6es, assim como a Alexandre, para comprar urn carro para 0 namorado. Ela nem sequer sabe dirigir;o carro foi adquirido por e1a para uso de Flariano. Rec1a­ maya de Cassio porque ele deixava 0 "dinheiro contadinho" para as despesas imprescindiveis da casa e nao the dava 0 direito de comprar uma roupa mais cara. A paixao por Floriano obnubilou de tal maneira sua inteligencia, que ela passou a sustentar seus caprichos. Esta cons­ tituia, obviamente, embora ela propria nao se tenha referido a isto, urna enorme fonte de culpa. Ela mencionou a forma culpabilizada de sua vivencia desta uniao, referindo-se ao arduo trabalho da mulher de Flo­ riano para sustentar seus quatro filhos. Tinha consciencia do quae erroneos eram os comportamentos de seu namorado. Nao obstante, esteve ligada a este homem durante dois anos, sendo par ele financei­ ramente explorada. De uma parte, Floriano era 0 oposto de cassio, mas, de outra, ambos partilhavam a caracteristica de violar, com freqiiencia, direitos humanos de Luisa. Assim, estoodo aberta a relacionar-se com parceiros cujos atributos nao apenas eram diferentes, mas opostos aos de cassio, esta mulher viveu a experiencia de novas formas de violen­ cia. No fundo e ainda que travestida, continuava presente a tendencia a repetic;ao.

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Presentemente, Luisa namora Marcos, 37 ooos, detetive da Policia Civil. 0 caso teve inicio com 0 relata da vida de cada urn. Ele namorou

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urna adolescente quando era jovem e ela engravidou. Marcos e espirita kardecista e, portanto, radicalmente contra 0 aborto. A garota queria abortar, mas Marcos tomou a decisao de se casar com ela, a fim de evitar a interrupc;ao de uma vida que, segundo sua religiao, comec;ara no momenta da concep;ao. Na verdade, parem, nao havia envolvimento afetivo entre eles. A adolescente de 17 anos resolveu 0 impasse atraves da composic;ao politica: teria 0 filho que ele nao queria que abortasse, mas nao se casaria com Marcos. Ele tern, assim, uma filha de 8 anos, a quem sempre proporcionou toda assistencia. Registrou-a em seu nome, contribui fmanceiramente para sua manutenc;ao e vai busca-la religiosamente em fms de semooa altemados. Procede, pois, muito corretamente com a filha. Todavia, sua conduta nao e ditada pela etica laica e sim pela moral religiosa. Trata-se, portanto, da obediencia a urn mandato divino. Ele nao e politicamente correto, mas religiosamente


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correto. Talvez ate em fun!!ao de princfpios religiosos, tern urn estilo de vida excessivamente ascetico para os gostos de Luisa.

foi a trajetoria de Luisa. De acordo com sua aprecia~ao, Ploriano era muito bonito. Todavia, nao soube ou nao p6de provocar a dissocia~o entre a vitalidade da namorada e a repressao que elaja havia introjetado desde crian~. No processo que os psicanalistas chamam de repeti«ito, Luisaja se casou mais,de uma vez com seu pai. Embora tenha percebido o jogo vigilante-repressor que Marcos vern fazendo com ela, muitas vezes, cede. Alias, ela atua, precipuamente, de forma conciliadora. Atribui a longa dura~ao de seus relacionamentos amorosos, se compa­ rados aos de suas amigas, ao fato de ceder. As proprias mulheres com quem ela mantem rela~oes de amizade rotularam-na de excessivamente tolerante em rela~ao a seus namorados. Cede sim, mas nao consente (Mathieu, 1985), porquanto nao detem 0 dominic das principais coor­ denadas de sua rela~ao amorosa. Nao e socialmente igual ao compa­ nheiro; e inferior. Nao se submete inteiramente ao poder do macho. Trata-se de uma sujei«;i'io pontuadapor rebeldias, na medida em que nao abdica de viver, pelo menos parcialmente, 0 mito de Dionisio. A figura de seu pai, por ela intemalizada, sai, ao tim e ao cabo, vitoriosa,ja que consegue conduzi-Ia para os tipos masculinos apollneos; impede-a de viver prazerosamente sua sexualidade - pulsao de vida - impelindo-a para a vida ascetica govemada pela racionalidade-pulsao de morte. A quase totalidade das personagens masculinas da vida de Luisa (incluin­ do seu filho que, como 0 pai, s6 pensa em estudar) nao fizeram senao tentar l'Q"aisonner. * Tais tentativas nao foram tao bem-sucedidas, na medida em que Luisa rno se entregou a Thanatos. Conseguiu separar-se de cassio, em cujas maos corria risco de morrer, e esta desatiando, pelo menos de vez em quando, a resistencia de Marcos em suas numerosas tentativas para controla-Ia Mas a persistencia dos homens no seu arraisonnement nao deixou ge perturba-Ia, porque ela tampouco foi capaz de se entregar a Eros. E verdade que numa sodedade tao helica, qualquer ser humane oscila entre Eros e Thanatos, pelo menos em certos momentos da vida. Para as vitimas de violencia, entretanto, ja

"Ele nao sai para lugarnenhum. Diz que nao tern dinheiro, que 0 dinheiro esta curto, que esta fazendo faculdade, que nao esta para ficar tomando chopinho, fumando cigarrinho, isso nao leva a nada, assim que ele fala. Tern vezes que ele liga para mim numa sexta-feira, dizendo que ele nao vern aqui, que quer ficar em casa estudando ou la 0 que seja. Diz: 'Daqui a pouco eu te ligo.' Liga quando sao 8 horas, af Iiga as 10 horas, dizendo: 'Daqui a pouco eu te ligo.' Ai ele da urn tempo que epara nao dar mais tempo de eu sair, liga e fala: 'Acho que nao vou ai nao.' Ai todo mundo ja saiu e eu fico dentro de casa. Entendeu a jogada? Ele diz que nao, que e da minha cabe~a. A pessoa que se acha esperta acha que todo mundo e otario e fica nessa. As vezes, saio; quando tenho que sair, eu saio, nao quero nem saber! Nao posso ficar assim prisioneira nessa casa, nao ir a lugar nenhum! A semana inteira eu fico COm 0 garoto (filho); as vezes, saio com 0 garoto, tudo bern, mas preciso sair com uma colega, bater urn papo. Nao quer ir? Eu vou. Nao vai e nao deixa ninguem ir?"

.0 grau de vitalidade de Luisa e muito maior do que 0 de Marcos. Embora sua situac;ao econ6mico-financeira nao seja nada invejavel e seu moral nao esteja alto em virtude da prolongada e infrutifera "busca" de emprego, deseja viver certas dimensoes dionisiacas da vida, enquan­ to Marcos optou, segundo as evidencias, por seus aspectos apollneos. Curiosamente, Luisa desperdi!!ou a unica oportunidade que teve de expandir Eros com seu namorado malandro, inculto e bon vivant. As personagens masculinas as quais tem-se vinculado afetivamente, espe­ cialmente seu ex-marido e Marcos, revelam acentuada tendencia tana­ tica. No fundo, ela teve medo de se entregar a Dionisio. Quando, em seu depoimento sobre 0 namoro com Plorlano, revelou receio de trans­ formar-se numa mulher livre, estava, a rigor, coibindo 0 desenrolar espontaneo das atividades da femea que, com pouca consciencia, ela e. o medo fe-Ia vivenciar uma rela~ao apcu;entemente alegre com muita culpa Ora, a culpabilizac;ao constitui umaforma de puni!!ao. 0 proprio fato de piivar-se a si mesma e a Alexandre de urn mais alto nivel de consumo parapoder comprar 0 carro para 0 namorado representa, sem duvida, uma puni!!ao. Por que mereceria ela punic;ao? Obviamente, por experimentar viver livremente, caminho que the fora interditadoja por seu pai. Pai repressor, ex-marido repressor, namorado repressor: esta

..

,'

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'

* A"aisonner uma pessoa significa, em frances arcaico, persuadi-Ia, argumentar no sentido de leva-Ia a compreender a razao. Na linguagem da marinha e da Polfcia Sanitaria, a"aisonner un navio significa inspeciona-lo. A"aisonner une femme abran­ ge, assim, duas dimensoes: amaterial eamental. E nestes dois terrenos que transcorrem o controle e a manipul~ das mulheres pelos homens e suas prepostas.


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TRAJETORIAS PESSOAIS, DESTINOS DE GENERO

nao se trata apenas de urn balan~o, de urn movimento do qual podem derivar rela~6es amorosas aprazfveis. Tampouco parece ser simples­ mente 0 conflito entre a pulsao de vida e a pulsao de morte, comum a todos os socii. 0 fenomeno produzido pela violencia lembra mais uma cisao, uma dissocia~ao entre vida e morte. Ora, a morte constitui urn momento da vida, nao esta separada dela. Isto equivale a dizer que a pulsao de morte integra a pulsao de vida, 0 que nao constitui empecilho necessario ao desfrute do prazer. Luisa vive 0 prazer com culpa, 0 que significa a nega~o do prazer. Nao se tern mais, portanto, a morte como parte da vida, mas a morte anulando a vida. E e contra esta anula~ao que ela continua a lutar. Ase confiar nas evidencias, precisara de muita energia para seguir nesta luta. A frente que se the op6e e integrada, atualmente, por varias pessoas: Cassio, Marcos, sogro, sogra e ate mesmo Alexandre, 0 filho que the saiu apolfneo, embora sellS contactos com seu pai sejam esporadicos. "Nunca veio. 0 juiz estipulou que ele viesse; nao estipulou dias nao, ele poderia buscar 0 garoto sempre que isto nao atrapalbasse 0 estudo ou ele nao estivesse doente. Que natal passava com urn; ana novo com outro. Mas ele nunca veio. Ele fala para os outros que eu eque nao leva 0 garoto la para ele ver. Ah! Ainda fala para os outros que eu proibo do garoto ter contacto com ele. Agora, voce pensa bern, mesmo se isso ocorresse, que nao ocorre, se ele tivesse vontade de ver 0 fIlho, ele ia ao juiz e pedia. Por que ele nunca pediu? Porque nao tern empecilho nenhum. Nao vern porque niio quer. (Depois da separ~o), viu porque a madrinha dogaroto, que e parente dele, umas vezes veio aqui pegar ele e levava ele la na casa dele. Mas ele nunca veio aqui. (...) Meu irmao levou, ele andou indo. Isso tern pouco tempo. (...) Alexandre e nervoso com 0 trabalho dele, quando nao consegue fazer as coisas. (...) Alguma pesquisa que ele esta fazendo, ele nao encontra, enquanto niiovirar a casa de cabe!«l para baixo, procurar em tudo que elugar, nao sossega, nem dorme. 0 mesmo com 0 trabalbo da escola. ". 0 Alexandre esta passando agora por esta fase de adolescen­ cia, ficando com voz grossa, tern peloso E quando YOU conversar com ele esse assunto, ele diz: "Mae, nao fica fa~ndo!" Ele nao quer conversar esses assuntos comigo, porque esta com vergonha. (...) Ai e que eu estou achando falta de urn homem para conversar com ele. Agora, ele reclama muito de miril para 0 Cassio. Diz que eu sou super-protetora, porque prendo ele muito, porque nao deixo ele ir aqui, nao deixo ele ir ali. Sei que YOU terqu'e soltar, esta na hora de soltar. (...) Mas ehora de soltar? Eo drama que voce fica! Se eu tivesse uma pessoa com quem eu pudesse

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compartilhar... Na idade dele, eu ia para tudo quanta elugar sozinha. Mas era outra hist6ria. No Rio de Janeiro tern arrastao. (...) Fico com medo. (...) Ate minha mae fala isso para mim: "Vore tern que largar esse menino porque ele e homem". Ela ja fala porque ele e homem. (...) Mulher etao reprimidaL Como la em casa sempre fui muito controlada e acaba que eu estou controlando tambem. Ate preferi que fosse homem por isso.... e cuidadoso com as coisas dele. Agora, nao gosta de fazer muitas coisas. (...) Esta igual ao pai dele, agora. Quando ele esta aqui em casa, esta sempre estudando. S6 quando nao tern nada para fazer ve uma televisao. Esta sempre envolvido com neg6cio de estudo. (...) Acho que egenetico. Ele quase nao conviveu com ele, s6 tres anos. Ele tern uns habitos que nao tenho, umas coisas esquisitas. (...) Me assusta urn pouco. 0 Alexan­ dre nao e urn garoto meloso. Vou dar urn beijo nele, ele diz: Ih, mae! Para com isso! Nas ferias ele quase nao esta. Diz que nao vai ficar aqui preso nesta casa... Ai vai para a casa da avo (materna). (...) Eu nem gosto, fico muito sozinha. (...) Eu nao fa<,<o muita questao, porque la e melbor para ele: joga bola, corre, anda de bicicleta, coisa que ele nao pode fazer aqui. Estou sempre la e ele liga todos os dias."

,,- .

Este depoimento fala por si so. Luisa vive solitariamente durante toda a semana. No perfodo de ferias escolares, a vida solitaria e literal, na medida em que Alexandre nao esta. No perfodo de aulas, 0 menino esta sempre estudando, como 0 pai. Por que teria seguido 0 caminho de Cassio, se nao conviveu com ele? A hipotese que se pode levantar e a da compara~o das figuras materna e paterna. Amae,ja socialmente inferiorizada por ser mulher, e assistente social, profissao de baixo prestfgio em rela~ao amedicina e adocencia universitaria, ocupa~6es do pai. Alem do mais, esta desempregada Manos, devendo deixar transparecer seu desalento com a situa~o do mercado de trabalho. Isto redunda, obviamente, em frustra~6es, com variadas manifesta~6es. Vma delas e a doen~a Embora Luisa esteja longe de ser hipocondrfaca, houve momenta em que se dizia doente e foi arrancada desta enfermi­ dade psfquica por uma amiga muito divertida. Que perspectiva de vida pode esta mae oferecer a seu filho? Ademais, tomada pelo panico da violencia no Rio de Janeiro, cerceia os movimentos de Alexandre, ja com 14 anos. Ela propria tern consciencia do quao repressora estasendo em rela~ao a seu filho. Ela sabe que esUi repetindo seu pai. Nao sabe que 0 repetiu tambern na rela~ao com cassio e com Marcos, como nao sabe que esta repetindo estas duas rela~6es com seu filho. Seu pretexto e a ausencia da figura masculina dentro de casa. De fato, a referenda


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maSCiJlina e muito importante. Nao somente faz falta a crianc;a de qualquer sexo a patemagem (Comeau, 1991), como tambem a presenc;a do modelo masculino ganha urn grande significado na construc;ao da identidade de genero (Chodorow, 1978). Como os pais, via de regra, nao paternam e tampouco permanecem em casa, 0 fate de os pais de Alexandre viverem separados nao modifica muito 0 modelo consagrado de fanuna em que a mulher realiza a tarefa da matemagem. A reclama­ c;ao de que falta alguem para trocar ideias a respeito da educac;ao do fiIbo nao encontra amparo na vida de Luisa, parecendo mais urn pre­ texto. Ela tern amigos e amigas com quem partilhar suas duvidas e discutir propostas de educac;ao. Tambem tern dois irmaos, cuja contri­ buic;ao na socializac;ao de Alexandre poderia ser inestimavel. Mesmo que ela nao houvesse se separado de cassio, ele seria urn etemo ausente. Pai social nao precisa ser marido da mae, pode ser 0 tio, 0 avo, 0 irmao, o amigo e ate 0 vizinho. Luisa deseja urn companheiro, nao urn pai para Alexandre, porquanto se sente solitaIja e insegura para tomar medidas com relac;ao a educac;ao de seu filho. E nesta trilha que 0 sentimento de falta de urn homem no lar ganha sentido; nao para ser pai do "garoto", mas.para ser companheiro desta mulher indecisa. Entretanto, neste c6digo, sua pretensao nao alcanc;a legitimidade social. Daf sua verbali­ zac;ao fazer-se em termos da necessidade de urn companheiro que a auxilie a educar Alexandre. Nao foi dela mesma a afirmac;ao de que, durante os cinco anos de casamento com cassio, ela era "a mulher e 0 homem da casa"? "Quando 0 nenem nasceu, ele acompanhou direitinho. Foi a primeira vez que ele me deu flores na minha vida. Mas depois... Era tudo eu: problema de medico, de vacina, tudo era ell, ele nao participava de nada. (...) Eu ficava danada com isso, achava que ele devia de participar. Ele quase nem via 0 garoto."

Porventura deixou de ser mae e pai de ~exandre ap6s a separac;ao? Obviamente, nao. Ela nao pode, contudo, se pelJIlitir a manifestac;ao do desejo de ter urn companheiro ao seu lado. E bern verdade que na questao sexual a conversa fluiria melbor se Alexandre tivesse acesso (emocional e racional; nao ffsico) ao pai. Mas, na exigiiidade (em todos os sentidos) desta relac;ao nao ha lugar para muitas conversas e, sobre­ tudo, para uma tao delicada como esta. No entanto, nem tudo esta

TRAJET6RIAS PESSOAIS, DESTINOS DE G~NERO

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perdido. Qualquer homem adulto, que tenha uma boa relac;ao afetiva com Alexandre, podera incumbir-se desta tarefa de maneira satisfat6ria E Luisa tern conhecimento disto. Nao ha, porem, espac;o psiquico nao­ racional para admitir este conhecimento. Mas ela podera construir este territ6rio. Seu maior desafio nem reside mais em cessar a repetic;ao da traurnatica experiencia de se ligar emocionalmente a homens tanaticos. Mesmo porque talvez nao haja remedio para este mal, uma vez que ela amava intensamente Cassio, apesar das violencias que ele the infligia; era provedora, cuidava dele, acatava muitas de suas determinac;oes. A maior provocac;ao que a vida ja lbe fez foi lbe dar urn filho parecido com 0 paL Desenvolver multiplas modalidades de relac;oes com Ale­ xandre, propiciando a ele, assim como a si pr6pria, a construc;ao de espac;os psiquicos importantes, parece ser a tarefa mais urgente de Luisa. Como femea, ela vern trilbando 0 caminho da repetic;ao. Resta­ lhe provar que pode romper este mecanisme no papel de mae. Com certeza, enrno, abandonara 0 caminho dareproduc;ao da primeira expe­ riencia. E Luisa tern urn referencial importante para descrever esta trajet6ria. Admira profundamente urn membro de sua familia, ja fale­ cido: seu avo paterno. Qual era 0 perfil deste homem? Era avesso as convenc;6es sociais e nutria intenso respeito par seu corpo, recusando-se a comprim!-lo dentro de roupas e sapatos nao-confortaveis. TrabaIbava para ganhar a vida, mas sem fanatismos que 0 obrigassem a abdicar do principio do prazer. Amava e se deixava amar. Era querido e respeitado por todos que 0 conheciam. Suas opinioes eram solicitadas e adotadas. Tinha urna tendencia anarquista generalizada, sem agredir sequer leve­ mente as atitudes e crenc;as dos demais socii. Gostava da vida. Vivia prazerosamente, sem ignorar 0 principio de realidade. Tambem e pre­ ciso considentr que pelo menos uma parte da realidade pode ser criada com astucia e arte por quem deseja vivenciar 0 prazer. Assim vivia 0 avo de Luisa, ou melbor, e assim que ele ainda vive em seu imaginano. S6 ha uma diferenc;a, e nao-pequena, com a qual Lufsa tera de lidar: seu avo era homem e, portanto, gozava dos privilegios conferidos pe1a organizac;ao social de genero. Na condic;ao de mulher, e1a tera de por a prova seu poder de lutar contra as iniqiiidades que oprimem as mu­ lberes. Ela tern sido capaz de romper relac;oes repressoras/violentas e, portanto, de escapar, dentro de certos limites e por curtos lapsos de tempo, de seu destine de genero. Ela ainda nao tern 40 anos. Nao completou sua trajet6ria pessoal. Ainda ha tempo e espa<;o social para


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dela eliminar as determinac;6es de genero ou, pelo menos, reduzir seus efeitos.

A violencia

e aprendida: a grande paixoo de Rosa

Rosa nasceu em Belt~m ha 36 anos, filha de pai comerciante de peles e mae enfermeira do Exercito. Ea ultima de quatro filhos, dos quais os dois mais velhos sao homens. Urn de seus irmaos e advogado crimina­ lista. Como, entretanto, nao gosta de sua profissao, trabalha na Polfcia Civil como detetive inspetor. 0 outro ecomissario de bordo. Sua irma edona-de-casa e ela e professora de primeiro grau. Seus pais separa­ ram-se quando ela estava com dois anos. Sua mae mudou-se para 0 Rio de Janeiro com os quatro filhos. Como s6i acontecer nas separac;6es, sobretudo quando a prole e numerosa e de pouca idade, a luta pam criar os filhos e muito grande. Embora Rosa tenha voltado a Belem varias vezes, raramente se avistava com seu pai. Como ele vivia com outra mulher e sempre tinha algumas namoradas, a menina era proibida pela mae de visita-Io. Quanto asua mae, afrrma Rosa: "Meu relacionamento com ela sempre foi muito dificil. Por eu ser a cac;ula, era privada de tudo que acontecia. Entao, nunca podia nada, minha irma podia tudo e eu nao podia nada. Eu nao podia expor meus pensamentos, porque minha irma pensava de uma outra forma. Era muito escancarada e eu ja era 0 inverso dela. Sempre foi assim, existia aquela coisa "fulana de tal eassim, mas sicrana..."Sempre a sicrana era eu. Com isso, a minha identidade ficou meio conturbada, porque voce nunca pode ser aquilo que voce gostaria de ser, aquilo que voce erealmente, porque voce nao e aceita daquela forma. Entao, voce se molda para que as pessoas te aceitem melhor, te tratem da rnelhor forma possfve!. Daf comec;a a minha nao-identidade, minha troca de identidade. Nunca pude sereu, porque rno era aceita. (...) Minha irma era louqufssima, tirava fotos nua, bebia pra caramba, tudo ela fazia em excesso. E eu nao podia nada nunca. Minha mae nao aceitava isso\ de jeito nenhum. Foram brigas hOITorosas Iii em casa. Minha casa sellipre foi rodeada de desarmonia, desuniao, nao-compreensao. Aquela coisa de "uma faculdade de como mentir". Eu fiquei fera em como mentir. Aprendi com minha mae como mentir, porque era rnais facil, mais cornodo, era melhor. Eu falava uma coisa e ela: "Nao, que nada! Isso oao aconteceu!" AI eu falava uma mentira e ela aceitava. Ela me ensinou assim."

TRAJETORIAS PESSOAIS. DESTINOS DE GENERO

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Rosa viveu, de forma muito aguda, 0 sentimento de rejeic;ao expli­ citado em sua fala e isto imprimiu-lhe a marca da carencia afetiva. Por si s6, este trac;o envolve varios perigos, porque a pessoa, a tim de obter afeto ou, no minimo, atenc;ao, sujeita-se ao desempenho de papeis humilhantes. Se a isto se agregar a questao especffica de genero, pode­ se verificar que a situac;ao assume proporc;6es muito mais serias nas mulheres do que nos homens. A carencia afetiva, com efeito, constitui uma porta aberta para a vitimizac;ao, trac;o, alias, presente no depoimen­ to de Rosa. Sua fala situa-se no lugar do patinho feio. Era 0 oposto da irma "escancarada". Se, por urn lado, sua mae fazia urn sem-numero de restric;6es afilha mais velha, por outro, era sempre esta que conseguia se expressar. A cac;ula s6 podia exprimir-se pela mentira, na medida em que esta, e apenas esta, the dava passagem. Ora, sua expressao, ao inves de ser uma afirmac;ao, constituia uma negac;ao de si pr6pria. Para so­ breviver em uma fanulia tao conflituosa, Rosa aprendeu, desde peque­ na, a mentir. Passou, assim, a ter duas identidades subjetivas. Na medida em que uma se objetivava, a outra sucumbia no campo da objetivac;ao. * A primeira representava uma casca dentro da qual a menina, depois a adolescente e, mais tarde, a mulher se escondiam. De uma parte, isto significa correr de si mesma e, ate certo ponto, odiar-se, porque s6 a casca era socialmente aceita, nao seu interior. De outra parte, significa possuir urn segredo absoluto e protege-lo do mundo extemo. Esta iden­ tidade oculta e, evidentemente, quando entra no mundo da objetivac;ao, uma flor de estufa. Como nunca participou dos embates da vida, nao foi treinada para se relacionar com outras pessoas. Tampouco tern discernimento para discriminar entre 0 outro que a ama e 0 outro que a destr6i, a pretexto de ama-la Como sempre, a medida protetoramostra sua outra cara: a capacidade de manter a protegida na condic;ao de subordinada, de incapaz, de incompleta. Aos rigores da educac;ao proporcionada pela mae, atribuidos por Rosa ao fato de ela nao ter marido com quem compartilhar duvidas e valores, agregam-se as diticuldades financeiras. Obviamen~e, 0 salario da mae era insuficiente para a manutenc;ao de fanulia tao numerosa. Os dois ftlhos, ja adolescentes quando da mudanc;a para 0 Rio de Janeiro, * Niio se lrata, neste momento, de discutir as identidades sociais, mas as identidades

subjetivas.As primeiras foram discutidas por Saffioli, Canc;ado eAlmeida (1992).


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TRAJETORIAS PESSOAIS, DESTINOS DE GENERO

sempre trabaIharam para complementar 0 orc;amento domestico. Mes­

mo assim, havia numerosas dificuldades. A mae recebeu urna heran~a

que lhe permitiu comprar urn apartamento. Depois, com muito sacrifi­

cio, comprou urn teIefone. Nao foi facil criar os quatro filhos. Referin­

do-se asua mae, afirma Rosa:

~o para este offcio. A gota d'agua, entretanto, veio do comportamento do marido, que teve seu namoro com sua futura companheira descoberto por sua esposa. Separaram-se, tendo a mae conservado as filhas. Dois anos depois, ela conheceu Alceu, solteiro, mais novo do que ela, bom­ beiro. Passaram a viver juntos. Foram seis anos de uniao muito contur­ bada, af inclusas as nurnerosas separa~6es. Ele aprendera com seu pai a ser violento, useiro e vezeiro em surrar sua esposa, que considerava normal apanhar do marido. Assim,ja era habitual Alceu surrar Rosa. Urn dia, fe-Io diante das enteadas, que relataram os fatos ao paL Este entrou com uma a~ao na Justi<;a, visando a retirar a guarda das meninas da mae. 0 juiz expediu urn mandado de busca e apreensao das garotas.

"Ela se deixou irritar demais, em termos de educa¢o, em termos devida Ela viveu para os filhos. Ela cObrava isso a todo instante. Eu tinha bronquite asmatica e ela falava: "Ficava a noite toda com voce e agora..." Como quem diz: "Agora voce tern que me dar 0 troco."

Ora, com todas as desvantagens que ja levava face airma, a prota­

gonista desta hist6ria tinha que enfrentar a cobran~ de sua mae, porque

lhe havia dado trabalho em virtude de sua bronquite asmatica. Era,

efetivamente, urn fardo excessivamente pesado. Ademais, nao lhe agra­

dava aquele ambiente domestico desarmonioso. Tratou de estudar, qua­

lificando-se para exercer urna ocupa~o remunerada. Desejava construir

sua autonornia. Fazia esmgio, visando a obter a carga horana necessaria

para 0 desempenho da fun~ao docente, dava aulas particulares, enfJm,

COQl~va a trilhar 0 caminho da independencia econornica. Formou-se

com 21 anos, come~ou a namorar urn engenheiro aos 22 e casou-se com

ele aos 23, tendo tido duas filhas deste casamento, que durou quatro

anos. Em sua opiniao, casou-se imatura para assurnir todas as respon­

sabilidades que implicam ter casa, crian~, cachorro, empregada. Mas

isto teria sido contornado. A crise na rela~ao amorosa teve infcio com

urn novo trabalho de seu marido. Ele, que trabalhava numa firma de

constru~ao civil, passou a trabalhar na TV Globo.

"Elas eram pequenas. Foi terrfvel! Foi hornvel! No dia da audiencia eu me senti num supermercado de crian~s: quem vai comprar, quem vai ticar? Num leilao de crian~as! Foi hornvel! Coo.) Foi uma etapa diffcil; eu nao conseguia entiar na cabe~a que as minhas fiIhas, a partir daquele momento, nao eram mais minhas, que eu ia ter que dividir com a minha sogra, a mae do meu ex-marido."

"Foi lUna loucura, porque, realmente, 0 pique eglobal. Ou a mUlher entra no pique ou realmente existe separa¢o. La nao tern horaTio e as pessoas sao muito loucas, e quem nao tern a cabe~a em Cima do pesco~o, pira. E foi 0 que aconteceu com meu marido. Ai come~aram as brigas. Ele me afastava de tUdo. Eu nao fazia pl![te da vida dele. Ele ia para barzinho. Lan~ado urn show que ele tinha trabalhado no evento, ele ia, mas eu nao ia. E eu naquela vidinha bern pequenininha, bern droga mesmo: casa, cachorro, crian~, empregada. Nao agiientei."

Rosa havia parado de trabalhar para cuidar das fiIhas. Pensava que, sendo especialista em crian~a e tendo cuidado de outras, deveria cuidar das meninas. Transformou-se, portanto, em dona-de-easa sem ter voca-

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I·'

A ideologia da maternagem (Badinter, 1980) estabelece para a mae a necessidade social e emocional de, em caso de separa~o, arcar com a guarda dos filhos e, conseqiientemente, responsabilizar-se por sua socializa~ao. Tambem 0 poder judiciario esta impregnado desta ideo­ logia, raramente concedendo a guarda dos filhos a outras pessoas que nao a mae. Aparentemente, este processo tern apenas uma cam, e bonita. A rigor, contudo, tambem apresenta uma outra face, que e feia, pois representa urn fardd: trabalbar muito para fazer face ao empobrecimento decorrente da separa~o e, simultaneamente, incumbir-se de todas as tarefas referentes a casa e a familia. Se as mulheres abdicassem do direito/dever de manter os filhos com elas, atribuindo-o aos homens, estes, seguramente, pensariam bern antes de cometer qualquer abuso em rela~ao as companheiras. 0 filme Kramer versus Kramer mostra com maestria 0 desespero de urn pai abandonado pela muIher. Se esta houvesse levado 0 filho do casal, provavelmente 0 marido abandonado nao se teria desesperado tanto, pais ele 080 tinha 0 menor conhecimento da vida do menino. Assim, precisou aprender, muitas vezes com 0 pr6prio filho, a como cuidar dele. Eo horario da escola, nem sempre coincidente com 0 de seu trabalho, nao Ihe criava transtornos? E quando


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a crian<;a adoecia e 0 pai perdia urna reuniao importante no trabalho, perdendo prestfgio e saIario? As vicissitudes ocorridas na carreira deste pai decorriam, todas, do fate de haver ele assumido a responsabilidade integral pela crian<;a. Seu salario sofreu redu~ao, ja nao Ihe atribuiam tarefas importantes, culminando a historia de sua carreira com 0 desem­ prego. Na vida real, a assun~ao integral da paternagem e rarfssima, pois sempre ha mulheres na familia de orienta~ao do homem - mae, tia, irma etc. - responsabilizando-se pela maternagem das crian~. Quan­ do urn casal se separa, nem se discute, via de regra, com quem ficarao os filhos menores. Esta completamente naturalizado 0 costume de en­ trega-los a mulher. Mais do que isto, considera-se tambem natural que o homem lute, inclusive na Justi<;a, per pagar urna baixa pensao alimen­ ticia e ate que se exima da obriga~ao de pagar, sobretudo, se a mulher constituiu nova fanu1ia. Mesmo a mulher tendo as mesmas obriga¢es que 0 homem, tambem no que tange ao pagamento de pensao alimen­ ticia, urn sem-n6mero de pais continua nao curnprindo as determina¢es do juiz, enquanto a mulher que assim procede e ate detida, mesmo sem ter como saldar 0 debito, como ocorreu recentemente em Sao Paulo.' ]'fao haveria presidios suficientes neste pais para deter os pais devedores em rela~ao a seus filhos. Se isto nao prejudicasse as crian~as, a pena de deten~ao deveria ser convertida em obrigatoriedade para 0 pai de cuidar dos filhos. Mais do que isto, esta pena seria ideal para maridos • Pela primeira vez na hist6ria da justi<;a paulista, urn juiz de uma Vara de Famflia determinou a prisao da ajudante de costureira desempregada, Antonia Imicio dos Santos Lima, de 25 anos, que havia nove meses nlio pagava a pensao alimentfcia para 0 ex-marido, Sergio de Souza Lima, de 27 anos. Separaram-se ap6s nove anos de casamento e com seis filhos. Ele conseguiu a guarda das crian<;as, alegando que ela abandonara 0 lar. Como 0 salario dela era maior que 0 dele, 0 acordo foi feito em termos do pagamento, por parte dela, de 40% de seus rendimentos para auxiliar na manuten<;ao dos filhos. Antonia sempre cumpriu 0 acordo, s6 deixando de faze-Io a partir do come<;o deste ano, quando perde~eu emprego de arrematadeira. Na prisao, ela declarou nlio ter dinheiro sequer para se manter. Nao obstante, por determina<;ao judicial, devera ficar detida 30 dias, devendo ser solta s6 na hip6tese de pagar a pensao em atraso. "0 juiz disse ainda que nao vai relaxar a prisao e que para ser solta ela precisara entrar com recurso ou conseguir um habeas-corpus" (Fonseca, 1993). Se nlio tern dinheiro para se manter, como podera pagar advogado? Se esta desempregada, como podera atualizar 0 pagamento da pensao? 0 carater profundamente machista da justi<;a brasileira e exemplarmente explicitado na determina<;lio do juiz. Fora a re homem, nunea teria pago a pensao e nooea tena side presa.

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violentos, caso nao implicasse prejuizos emocionais para as crian~as. Apesar de tudo, esta ideia merece reflexao, na medida em que ha homens violentos com suas mulheres, mas nao com seus filhos. Com acompanhamento psicologico, poder-se-ia pensar nesta pena ate para aqueles que apresentam 0 habito de espancar crian~as. Rosa perdeu a guarda das filhas, mas nao em beneficio de seu ex-marido. Aguarda foi concedida aavo paterna das crian<;as. Indepen­ dentemente de sua idade, os homens sao quase sempre maternados por alguma mulher. Pode ser a mae, como neste caso, assumindo as res­ ponsabilidades do filho junto as netas, mas muitas vezes e uma outra parenta ou ate mesmo uma amiga. A questflo aqui em pauta nao e 0 merito da medida de retirar as meninas do seio de urna fanu1ia violenta, providencia nao s6 justa como necessaria. Trata-se de verificar em que rarfssimas circunstimcias os homens se encarregam de cuidar direta­ mente dos mhos e em que medida a assun~ao mais do que freqiiente desta tarefa per parte das mulheres nao representa para elas urn fardo excessivamente pesado. Amatemagem precisa, portanto, ser partilhada, inclusive para se melhorarem as condi~6es da constru~o das identida­ des sociais dos fIlhos, particularmente a de genero. Rosa sofreu barba­ ramente com a separa~o das fiIhas, uma das maiores violencias dentre as muitas que sofreu, e investiu muita energia na luta para recupero-las. Cerca de seis meses depois que passou a viver com Alceu, ela engravidou. Sentou-se para conversar com ele sobre 0 que the parecia loucura: ter aquele filho. Argumentava que ele era muito novo, que ela ja tinha duas fiIhas e nao estava propensa a lidar com crian<;a novamente e que, alem do mais, a rela~ao deles era muito recente. Urn enorme soco, que provocou edema em seu rosto, foi a contra-argumenta~ao de Alceu. "Ele sempre foi agressivo; nlio admitia perder. A palavra PERDA para ele tinha urn significado brabissimo. Ele se sentia amea~ado, partia para a ignorancia... Foi horrivel, porque foi aquela ooisa toda de delegacia: nflO YOU, fico, nlio fico. Comecei a chorar, ele tambem chorou muito, pediu desculpa, disse que nlio ia fazer mais aquelas coisas, ne? Mas quem da 0 primeiro sooo, d<i 0 segundo, a terceiro e ai por diante. E as agressOes foram aumentando, espa~ndo. volume era em espa~smaiores, demo­ ravam mais tempo, mas quando vinham eram de urn tear maior, peso maior. E eu sempre acreditava: agora ele vai mudar; isso a1 nlio vai

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acontecer nunca mais. Nada disso. Acontecia, e as coisas iam aumentan­ do. 0 respeito nao existia mais. Ele abria a boca erne arrasava."

o treino na fun~o de mae e seu desempenho quase permanente infunde na mulher urn sentimento muito forte de onipatencia. Como ser mae significa modelar, normatizar os ftlhos, as maes sentem-se com for~ e capacidade para transformar outras pessoas. Triste e dolorosa ilusao! Primeiro, porque ninguem tem 0 poder de mudar outrem, se este nao investir emocionalmente em sua transforma~ao. Segundo, mesmo havendo esta modalidade de investimento, nem sempre a pessoa e capaz de operar as mudan~ desejadas sem a ajuda de urn terapeuta. Deixan­ do de lado os varios tipos de psicoterapias que podem ser realizados por homens violentos, lembram-se, aqui, outras experiencias de que se tern noticia. No Canada, na Fran~a, no Mexico e no Chile, faz-se urn trabalho interessante com homens de hcibitos agressivos. Nao se trata, propriamente, de psicoterapia, mas do que se poderia chamar de grupos operativos, nos quais sao discutidos os motivos da violencia, seus ob­ jetivos, os sentimentos que ela provoca em seu agente, as conseqiiencias que produz na rela~ao conjugal, seus efeitos sobre a prole, etc. (Wel­ zer-Lang, 1991). Sem passar por revis6es semelhantes, nao ha mudan~ possivel. Por pensarem de forma contrciria, inumeras mulheres foram vitimizadas durante anos por maridos violentos, tendo muitas perdido a propria vida Ecurioso averiguar a conformidade da mulher com a convivencia, sobretudo se for mae, da onipotencia e da impotencia. Com efeito, considera-se capaz de transformar 0 carrasco em ser humano afavel, mas conforma-se com sua incapacidade de faze-Io, permanecendo anos a fio na rela~ao violenta e ate contribuindo para sua manifesta~ao (Gregori, 1989). Cada mulher da urn colorido particular ao seu destino de genero: ceder, ceder, ceder aos caprichos do companheiro. Como ceder e diferente de consentir, urn dete~ado evento pode propiciar a ruptura da rela~o, numa manifesta~ao, fmalmente possivel, do nao­ consentimento sufocado. Antes disto, parem, ha muita remlncia, inclu­ sive de direitos hurnanos. "Todas asveres que ele me batia, eu nunca gritei por socorro. Eu achava que era tao vergonhoso 0 que eu estava passando, que eu nao gostaria... Ouer dizer, as pessoas ouviam alguma coisa bater na parede, mas eu nlio

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dizia que era a minha cabe~a que batia na parede. Eu nao dizia nada. Entao, as pessoas achavam que a gente formava urn casal super-bern, porque nao viam eu discutir. (...) Agora, eclaro que tinha vezes que nao dava para guardar. Por exemplo, urn dia, ele me deu um soco, uns dois socos, e ficou tao inchado e tao roxo depois que nao tinha como nao direr. Eu falei com a mae dele, porque eu me dava super-bern com a mae dele, com os pais dele. Ela me deu uma pomada de hirudoid e disse: "Usa que passa 0 machucado". Depois eu vim a saber que ela tambem teve esse quadro com 0 marido e hoje eles vivem felizes para sempre. (...) Ela achava normalissimo. Eu arrumava as minhas coisas e ela: "De jeito nenhum! Ouando ele chegar voce vaiver, tudo vai se resolver. Desarrume suas malas e fica quietinha, faz de conta como se nada tivesse aconteci­ do."

Sua sogra havia cumprido seu destino de genera, sem se rebelar. Sua paciencia a transformara, pelo menos em seu imaginario, em uma vitoriosa, pois deixara de ser espancada. (Teria mesmo este caso tido este final feliz?) Par que haveria Rosa de se impacientar com Alceu, jei que ele reconhecia seu erro depois de espanca-Ia, pedia-Ihe desculpas, solicitava-lhe compreensao e prometia mudar? Assim, a trajetoria pes­ 8001 de Rosa foi, durante seis anos, conduzida par seu destino de genera. Embora Alceu tivesse sido a causa da perda da guarda de suas filhas, processo que ela viveu de maneira muito traumeitica, ela continuava amanda aquele homem. Ate hoje, CO-ill ele morto ha mais de tres anos, ela 0 ama. Com efeito, perder ?,::.:onvivencia cotidiana com as filhas foi muito dificil. Al€m de este fato te-la feito sentir agudamente a rejei~ao, pois a sociedade crucifica qualquer mae nestas circunstancias, trouxe de volta as querelas de sua faffi11ia de orienta~ao contra ela, 0 que so intensificava aquele sentimento. Ela conta que sua advogada trocou favores com seu irmao, vendendo-se, portanto, a este, que desejava prejudicar Rosa. 0 irmao, detetive inspetor da PoHcia Civil, tinha boas rela~oes com a PoHcia Federal, com a qual 0 marido da advogada tinha uma pendencia. 0 detetive abriu caminho para que a questao fosse solucionada na PF e, em troca, a advogada fez acordo com 0 pai das meninas, a fim de retirar da mae sua guarda. lei que Rosa insistia em viver com Alceu contra a vontade de sua familia, esta the declarau guerra. A familia de orienta~o das mulheres raramente as apoia, seja na separa~ao, seja na reconstitui~ao de sua vida amorosa. Havia, obvia­ mente, dezenas de razoes para ela se separar do bombeiro violento.


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Apesar de seu silencio, os espancamentos haviam subido atona com a perda da guarda das filhas. Sua familia havia, por conseguinte, se inteirado dos eventos. Dado seu penoso eonvivio anterior com seus familiares, especialmente com sua mae, esta abordagem dos fatos so eomplicava a situa~ao. Rosa precisava de afeto, nao de crfticas, para se re-situar e poder deliberar sobre sua vida. Continuava a apanhar e a amar aquele homem. As meninas ja moravam, havia tempo, com a avo e estavam passando 0 tim de semana com a mae, quando aconteeeu urn novo desentendimento entre esta e seu pareeiro. "Vma das ultimas brigas nossas foi assim. Elas pediam: 'Alceu, pelo amor de Deus! Deixa minha mae. Nao bate na minha mae, por favor.' E ele: 'Cala a boca. Cala a boca.' Foi no dia das maes do ana retrasado

(1990)."

A entrega das meninas aavo nao as afastou da violencia de Aleeu, que espancava Rosa ate no dia das maes! Esta mae, de fato, nao poderia conservar consigo suas filhas. Amava-as, mas nao podia prescindir da conviv~ncia com Aleeu. Fizera urna op~o nao-passfvel de cumprimen­ to. Uma vez mae, nao podia mais voltar a ser femea. Sua familia a exeerava. Ela foi se isolando. Conta que parou de ler e de se informar sobre os acontecimentos do pafs e do mundo, tentando reduzir a distan· cia cultural entre ela e seu eompanheiro. Este havia, realmente, apren­ dido a maltratar mulher. Tivera escola em sua propria fanulia. Espan­ eava-a mesmo durante a gravidez. Sim, ela resolvera ter urn filho dele nao porque acreditasse que urna crian~ fosse capaz de pOrum paradeiro naquela violencia, mas porque queria ter uma lembran~a dele.

"E, urn filho nao poderia resolver nao, mas urn filho poderia amenizar aquela situa¢o e era uma recorda¢o que eu ia ter dele eterna, porque eu gostava tanto dele que eu queria alguma coisa concreta do nosso relacio­ namento. Apesar de ter sido uma merda, eu queria e urn filho etudo isso, nunca mais esquece, e urn elo eterno.'~

Naseeu Leda e as violencias eontinuaram contra Rosa da mesma forma como nao haviam eessado durante a gesta~o. A crian~ partici­ pava de tudo. Seus primeiros tres anos de vida transeorreram neste ambiente de desamor. Desamor, alias, que tanto Aleeu quanta sua companheira traziam de suas familias de origem. Ambos souberam

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reproduzir para sua filha 0 cllma de desafeto em que haviam vivido. Urn dos irmaos de Rosa e sua irma sao alcoolatras. 0 outro, como ja se mencionou, foi ser detetive da Polfcia Civil, em vez de ser advogado criminalista. Ela abdicara de sua proftssao para cuidar adequadamente das primeiras duas filhas. Percebeu, quando seu primeiro casamento desmoronou, que cometera urn erro, que se "bitolou". Ja nao havia universo comurn de discurso entre ela e seu ex-marido, e ele foi procurar em outra 0 que nao possufa em casa. Com Aleeu, a vida foi ainda mais sofrida. A partir de certo momenta, come~ou a freqiientar delegacias de polfcia. Sofreu humilha~6es. "Eu nao aguentava mais. Eu achava que a gente ia para uma delegacia e que ia ficar resguardada, porque ali era urn lugar onde a gente pedia prote<;iio e ficava protegida. J ustamente 0 contnirio, nao era nada daquilo, principalmente em delegacias onde s6 tern homens. A desvalia e muito grande. Voce chega 1<i, as p~imeiras coisas que eles falam: 'Minha filha, voce apanhou? Voce gosta de apanhar, ne? Esta foi a primeira vezque voce apanhou?' Nao. 'Ah, enHio voce gosta de apanhar, ne? Ja nao e a primeira vez, 0 quee que voce esta fazendo aqui? Voce quer que eu fa~ o que com voce?' (...) Mas mesmo assim deixei a minha queixa registra­ da, fiz exame de corpo de delito..."

Varias vezes, Rosa abandonou Alceu. Tentou, portanto, romper aquela rela~o que ja the fazia, reconhecidamente, mal. A paixao era, contudo, incontroIavel. Ou elavoltava espontaneamente ou nao resistia aos apelos de seu companheiro. Certa vez, foi para bern longe, Forta­ leza, tentando esquece-lo. As saudades foram demasiadamente fortes e ela voltou para 0 Rio de Janeiro para sejuntar de novo a ele. Sua atitude na delegacia distrital, porem, foi firme. Nao obstante as chacotas do delegado, curnpriu seu proposito. E nao e facil, fragilizada pela violen­ cia sofrida, insistir na denuncia do homem amado e ainda ser humi­ lhada. De fato, se a mulher procura urna delegacia logo apos 0 primeiro ato de violencia do companheiro, e aconselhada a tentar urna recompo­ si~ao com este, ja que ele nao e um espaneador contumaz. Este tipo de raciocfnio nao constitui apanagio de delegados homens. Hi delegadas que procedem da mesma maneira, porque, sem forma~ao feminista, acreditam que se possa deixar passar a primeira violencia, a segunda, a terceira e so denunciar 0 companheiro quando ele se revela urn espancador habitual. No outro extremo, esmo os policiais homens, cuja


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estrategia para se verem livres das brigas de casal, consideradas sem nenhurna importiincia,• consiste em afrrmar que a queixosa gosta de apanhar, na medida em que nao recorreu a polfcia quando sofreu a primeira agressao. Desta sorte, a vitima de violencia esta sempre encur­ ralada por uma ou por outra destas posi~6es. Tratada com menosprezo na delegacia distrital, mas decidida a separar-se de Alceu, Rosa dirigiu-se a urna Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher (DEAM), onde, eIa propria reconhece, recebeu tratamento de boa qualidade. Chegou a mudar-se para Cabo Frio, pri­ meiro porque ja havia decidido a nao mais continuar vivendo naquele inferno, segundo, para se proteger da tenta~ao de voltar para 0 palco das violencias. Foi morar com a irma. Ele foi atras dela. Exigia seu retorno a casa de ambos. Diante de sua recusa, exigiu que the entregasse Leda, com tres anos, naquele momento. A famflia de Rosa nao queria que ela levasse Leda para Cabo Frio. Previa 0 que ocorreria. Rosa reconhece que estava emocionalmente mal, pois, nao fora este seu estado, nao se teria permitido viver em ambiente de tamanha violencia. Mas nega haver levado Leda como isca. 0 fate e que entregou a menina ao pai, permanecendo tres meses sem ve-Ia, por proibi~o dele. 0 filho e, de fato, urn elo, mas nao necessariamente de amor. Pode ser 0 elo do odio eo vp.fculo da chantagem, como ocorreu neste caso. Rosa com~u a trabalh 1f num hotel em Cabo Frio, como chefe da recep~ao. Entre­ gou-se in :ensamente ao trabalho. Depois de tres meses, desesperada de saudade de Leda, passou a ve-Ia, as escondidas, na escola. Naquele

• A 06/10/93, participei de uma mesa sobre violencia contra crianc;as e adolescentes, parte do curso 0 Estado, a Crianr;a e Adolescente, promovido pelo Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de Sao Paulo. 0 coordenador dos trabalhos naquele dia era urn procurador do Estado que, tentando expliear a morosidade dajustic;a, disse: "Os jufzes perdem muito tempo com a briguinha da Dona Maria com seu marido, niio podendo cuidar dos problemas importantes". S6 este fato ja e suficientementelamen­ tavel. Asituac;iio, contudo, eainda mais grave, pois este procurador emembro de uma importante, seniio a mais importante, instituic;iio de estudos da violencia. Afalta de urn recorte de genero nas pesquisas realizadas pela referida instituic;iio alimentarn este tipo de raciocfnio, extremamente comum no meio forense. 0 caso nao e, porem, sem esperanc;as. Ao contriirio, 0 procurador ejovem eao meu veemente protesto respondeu, primeiro com explicact>es e, posteriormente, admitindo 0 deslize, com desculpas. Tudo isto ocorreu em publico, 0 que depoe a favor do jovem procurador. (H.I.B.S.)

°

momenta era Alceu que usava a filha como isca. A separa~o entre mae e filha ja havia sido traumatica: ambas em prantos. Rosa alega ter cntregue Leda porque precisava de urn momento de paz. Mas a meDina era 0 "elo eterno" com 0 companheiro, que ela amava. Ja que se tornara impossfvel viver junto deste, era absolutamente imprescindfvel ter a filha perto. "Depois eu liguei para ele varias vezes. Pedia pelo amor de Deus. E ele: 'Nao, voce abandonou sua filha.' E urn dia ele falou: 'S6 se voce vier ao Rio. Quero te ver.' Ai eu vim, peguei a Leda e fui embora para Cabo Frio. Depois devolvi a Leda no dia das criangas. Ai ele foi la em Cabo Frio conhecer minha casa, dormiu hi, no dia seguinte veio embora. Ai comegou a ir a Cabo Frio e eu comecei a vir aqui no Rio. A gente se encontrava. Eu gostava dele, eu me dava muito bern na cama com ele. Isso me levava a me encontrar com ele sempre. E nesse dia ele resolveu: 'Nao, voce vai ter que voltar para 0 Rio, porque esse neg6cio de Cabo Frio... A gente vai ter que criar a nossa filha juntos. Naojuntos na mesma casa, mas eu em contacto com ela.' Realmente, ele tinha ramo. Ell, enta~, consegui esse apartamentinho aqui, ja estava com 0 contrato na mao, assinado e tudo, e ele falou: 'Vamos acabar de acertar isso, como que vai ser a nossa vida.' Eu ia entrar no apartamento na terga-feira, isso aconte· ceu na segunda. Na terga, minha vidaja mudou, euja estava presa. (...) E, por eu ter demais, tantas tentativas de volta, de reconciliagao. Na ultima, ele me espancou, quebrou meu brago em tres lugares e estava armado. E estavamos num quarto de motel. Ele mejogou no chao. Bati a cabega no aparelho de ar condicionado. Quando olhei, vi 0 rev61ver. Peguei a arma dele, atirei e matei ele. Respondi a urn processo criminal. Fui absolvida liminarmente."

Quando viviam juntos, Rosa sabia que Alceu fumava maconha. Diz haver descoberto ap6s sua morte que ele cheirava cocafna. Varias vezes ele a amea~ara de morte. As amea~as, entretanto, nao constitufam 0 fator mais importante de seus retornos para ele. Tinha verdadeira fixa­ ~ao nele. 0 born relacionamento sexual nao explica tudo. Havia uma brutal necessidade em ambos de repetir a violencia. Eram parceiros ideais: ele era manifestamente violento; ela precisava inconscientemen­ te daquele inferno. Para ele, ela nao precisava mentir. Despiu-se da casca e deixou Ouir sua subjetividade. Viveu plenamente sua sexuali­ dade. Havia feito urn aborto quando namorava seu ex-marido. Nao abortaria urn embriao de Alceu, ainda que sua razao apontasse, como


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era 0 caso, para esta necessidade. Nao queria mais crian<;a em casa e, no entanto, teve a filha,justiticando esta atitude pelo desejo de ter uma lembran<;a permanente do companheiro. Vivo ou morto, ele seria ama­ do. A pulsao de vida esta, pelo menos neste tipo de sociedade, permea­ da pela pulsao de morte. Evidentemente, isto ocorre em diferentes graus. Quando se rotinizam rela<;6es violentas, 0 prazer passa a se alimentar do sofrimento. Na escalada da violencia chega-se, muitas vezes, a urn ponto de nao retorno. A historia de Rosa e Alceu indica exatamente isto: ja nao podiam viver juntos, mas nao conseguiam viver separados. Thanatos vencera varias batalhas contra Eros e acabaria por ganhar a guerra. Talvez a rela¢o so pudesse ser rompida com a morte de urn deles. "Agora existem outras prioridades na minha vida; por isso e que eu niio tenho ninguem do meu lado. Niio tenho companheiro, niio tenho namoradinho bonitinho, niio tenho urn parceiro sexual, niio tenho nada. Tenho eu s6. Por isso, porque eu tenho coisas muito mais importantes do que eu me dividir com outra pessoa. No momento, niio estou nem poden­ do me dividir. Estou me resgatando, estou colando com Super Bonder os pedae:;os em que me deixei quebrar. Porque e s6 voce que faz essa sacanagem com voce mesma. Voce e que permite todo tipo de violencia. Vore e dona de tudo ao seu redor e tern responsabilidade. Entiio, e coisa pi,ra voce parar e meditar. Parar e resgatar tudo aquilo que voce deixou as pessoas fazerem e acontecerem. Niio, voce permitiu. Voce deu entrada e das entraram de gaiatas no navio. Te fizeram de gato, sapato, cachorro."

Rosa esta em pleno processo de reconstru¢o de sua identidade subjetiva. Tern uma aguda consciencia de sua participa<;ao na rela<;iio violenta que a vinculava tao profundamente a Alceu. Sabe que nunca foi urna vitima passiva, pois esta sempre desempenha urn papel impor­ tante na rela<;ao de violencia (Saffioti, Can<;ado e Almeida, 1992). Isto e de extrema importancia para a redetini¢o de seu eu, para que ela se re-insira no mundo dos vivos. Refletiu sobre suas experiencias, reco­ lheu-se para meditar. Situou-se fora do genero para examinar de que forma cumpriu seu destino de mulher. Nao esta, obviamente, preparada para come<;ar nova rela<;ao, pois esta colando os peda<;os em que se partiu. Conta, com bastante liberdade e fluidez, sua historia, inclusive analisando certos fatos. Reconhece ter sido impotente para eliminar a

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violencia de sua rela¢o com Alceu. Do ponto de vista aqui esposado, seu ponto mais alto de impotencia traduziu-se pelo tiro que desfechou contra 0 companheiro. Isto equivale a dizer que "a violencia e a expres­ sao da impotencia" (May, 1981, p. 20). Ora, se isto e valida para Rosa, nao deixa de se-Io para Alceu e os demais homens violentos. 0 poder que atravessa a rela<;ao afetiva nao deixa de ser urn nao-poder, portanto, impotencia Comoja foi referido, esta sofrida mulher discorre com desenvoltura sobre seus infortunios. Ha urn ponto, todavia, que nao esclarece bern, deixando-o numa nebulosa. Mirma que matou Alceu. Efetivamente, disparou 0 revolver contra ele e 0 atingiu. Feriu-o, mas nao 0 matou. Ele estava drogado e, no hospital, foi anestesiado para a retirada do projetil. A anestesia possivelmente entrou em choque com a cocaina, potenciando seus efeitos e ele teve urna parada cardiaca, em conseqiien­ cia da qual veio a falecer. Rosa insiste, no entanto, na tese do homicidio. Chegou a dizer, numa situa<;ao distinta da entrevista, que havia se convertido em urna criminosa. Ora, ela obteve absolvi¢o liminar. Nao foi a juri popular, julgamento previsto para os crimes contra a vida. Portanto, nao 0 matou. Sua necessidade de atirmar que 0 assassinou deriva, certamente, do desejo de mata-Io dentro de si, onde jamais ele esteve tao vivo. Isto nao e necessariamente negativo, podendo ser muito positivo. No processo de reconstru<;ao do seu eu, ela precisa da parti­ cipa<;ao de Alceu. A morte deste interrompeu a escalada da violencia, nao a rela¢o entre eles, posta que os seres humanos se relacionam com seus fantasmas. Morto, ele podera ter grande utilidade. Seguramente, Rosa nao mais se sentira impotente para por tim a violencia, sem terminar a rela<;ao atraves da elimina<;ao fisica do companheiro. E, assim, pelo menos no plano da fantasia, Pro; podeni rena-;cer de Thanatos e ostentar a Ultima vitoria.

A determinacrao personificada: a historia de Tania Neta de latifundiarios nordestinos, Tania nasceu no alto sertao pernam­ bucano, tendo se mudado para 0 Rio de Janeiro quando contava com urn ano e pouco. Seus avos paternos morreram durante a infancia de seu pai, tendo ela tido convivencia com seus avos maternos sempre que visitava Pernambuco. Seu avo materno era chefe de parentel2, e tinha


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currais eleitorais na Bahia, no Piauf e em Pernambuco, convivendo muito com altas figuras do Governo. Ela conta que ele era grande proprietario de terras, grande comerciante e sub-coronel, reservando 0 tftulo de coronel a seu tio-avo. De sua av6 diz que, embora dona-de­ casa, nao era figura apagada, pois tinha voz no seio da familia e sabia o que queria. Foi informada, recentemente, por seu pai, de que sua avo paterna morreu de desgosto, muito cedo. Seu avo era policial (Tania manifesta ojeriza pela polfcia) e deu 0 golpe do bau, pois sua avo era uma rica proprietana de terras. Logo em seguida amorte da av6, 0 avo casou-se com urna senhora, cujos filhos de uniao anterior malbarataram todos os bens deixados pela primeira. 0 pai da entrevistada transferiu-se para 0 Rio de Janeiro ainda adolescente, a fim de tentar a vida. Como seu cartucho polftico falhou, passou dificuldades, tendo chegado a dormir na rua, embrnlhado em jornais. No entanto, conseguiu terminar 0 pri­ meiro grau, qualificou-se como aviador e tornou-se radioperador de aviao. Estudou ingles para trabalhar em agencia de turismo, tendo-se aposentado nesta ocupa~o. Em fun~ao dela, viajava muito. Durante a guerra, trabalhando como radioperador de aviao, ficou baseado em Petrolina, PE, onde conheceu a mae de Tania e com ela se casou. Em 1964, ele estava em grandes dificuldades financeiras, tendo sido aco­ lhido por seu sogro, em Pernambuco, que muito 0 auxiliou. Assim, alem de urn perfodo de aproximadamente ana e meio durante a guerra, moraram la mais dois anos. Reergueu-se financeiramente a familia e voltou a morar no Rio de Janeiro. "Minha mae foi educada em colegio de freiras, professora primaria, nunca exerceu a profissao. Poi criada para se casar, ter filhos. Saiu do controle do pai, entrou para 0 controle do marido. (...) A figura do meu pai era a figura da repressao. Meu pai era urn cara meio ausente, pOI"que em fun¢o da profissao vivia viajando e quando chegava era par~primir. Tive uma cria¢o ultra-cerceada, ultra-vigiada: "Nao pode fazer isso, nao pode Cazer aquilo. Nao pode se dar com fulano, nao pode se dar com sicrano. Nao, nao pode, fim de papo. Nao tern por que, niio pode. Crian~anaopode saber porque e que nao pode. Nao pode e pronto."

Tania tern aversao a qualquer ato de outrem que limite sua liber­ dade. Face a toda repressao que sofreu, construiu urn eu forte e desbra-

vador. Nao obstante todo 0 sofrimento que esta atitude diante da vida lhe causou, logrou abrirvanos e importantes caminhos. Repudia tanto o padrao de conduta do pai quanta 0 da mae. Esta sempre foi 0 vefculo da repressao do marido sobre os filhos. Como ele viajava muito, cabia a ela criar os filhos segundo as ordens do marido e prestar contas a ele, quando de seu retorno a casa. Ela 0 temia e, por isso, nao apenas cumpria seus designios, como tambem incutia medo nos filhos. Este foi o modelo de familia recebido por Tania. Sua educa~ao foi feita, ate 0 segundo grau, em colegios de freiras com clientela da alta burguesia. Era semi-interna e adorava 0 colegio, na medida em que podia brincar com outras crian~s de sua idade. Em sua casa a situa~o de isolamento era insupormvel para uma crian~a: a casa era grande, mas nao Ihe permitiam brincar com as crian~as que moravam na mesma rna por serem de condi~ao social inferior, e sua irma era tres anos mais nova do que ela. Como ela apresentava idade mental superior a sua idade cronol6gica, a diferen~a com rela~ao airma crescia. No colegio, podia interagir com seus pares. Quando a situa~ao financeira de seu pai nao mais permitiu 0 semi­ internato, ela passou a estudar de manha. 0 controle por parte do pai continuava intenso. Com a ajuda de uma amiga, porem, ela come~u, quando tinha 13 ou 14 anos, a furar 0 cerco. A amiga cearense tambem pertencia a urna fanu1ia de educa~orfgida e de pai repressor. Sua mae, contudo, era sua aliada, levando-a a festas. Amenina, muito diplomata, cativou 0 pai de Tania, 0 qual passou a permitir que sua filha safsse com a amiga e a mae desta. Tania foi, assim, sucessivamente, valendo­ se da colabora~aode amigas para ampliar seu raio de a~ao. Nao tinha afinidade com as irmiis, sobretudo depois que entrou na faculdade para cursar Historia. Comec;ou a participar de movimento estudantil, nao tolerando as conversas de suas irmiis, que nao liam e so pensavam em cabeleireiro e coisas assim. Embora tivesse identidade ideol6gica com seu irmao, distanciou-se dele por preconceito, como reconhece hoje, em virtude de seu homossexualismo. Com as duas irmas nunca teve uni­ verso comum de discurso, posta que sempre gostou de ler. Desde 0 infcio do curso ginasial, Tania tomava livros emprestados da biblioteca do colegio para ler no fun de semana. Permitia-se 0 emprestimo de dois livros por semana. Como ela os lia rapidamente no tim de semana, ficava contando os dias ate que Ihe fosse possfvel fazer novo empres­ timo. Na sua fanulia de orienta~ao s6 havia urna tia com habito da


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leitura, criticada pelos demais membros do grupo. Quando morou em Pernambuco, discutia os assuntos tratados nos livros com suas primas, pois estas tambem gostavam de ler. Fizeram amizade com a bibliote­ caria da cidade e, mesmo sendo proibido, esta lhes emprestava livros. Tania foi, desta forma, desenvolvendo 0 habito da leitura. Queria fazer jornalismo, mas tambem gostava muito de hist6ria. Como teve um excelente professor desta disciplina, dirigiu-se para este campo no ter­ ceiro grau. Antes disto, porem, face asua indecisao, submeteu-se a urn teste vocacional. "Fiz uma bateria de testes para defmir qual era a carreira a escolher. Ai, deu quatro carreiras:'Historia, Direito, Jomalismo e uma que as psicolo­ gas so podiam estar malucas para chegar a uma conclusao dessas: Diplo­ macia. Se ha uma coisa que nao sou e nem urn pouquinho diplomata. Cabelo na venta para trepar nas tamancas, rodar a baiana e arrumar confuslio estou sozinha. Nunquinha eu poderia ser uma diplomata. Acho que por intluencia de M.M. (professor de historia), optei por Historia."

A leitura continua a ser uma das grandes paix6es de Tania, que sempre gostou tambem muito de dan~ar. Fugia de casa para pular 0 carnaval. Inventava urna trama: dizia que ia acasa de urna tia, e la dizia que ia para a casa de outra etc., ate que a perdessem de vista. "Urn dia meu pai me pegou no meio do c1ube. A1em do mais era proibido freqiientaraquele c1ube. 'Ja para casa', ele disse. Se apanhava dele? Hul E como! Levei surras homericas. (...) Minha irma, que vinha logo depois, era manteiga derretida. Quando se falava que se estava pensando na hipotese de dar uma surra nela, ela ja estava chorando. Agora, eu nao. Era daquela que enfrentava calada, nariz empinado, apanhava so. En­ quanta eu nao chorasse, meu pai nao parava, e eu nlio chorava. (...)Ficava cheia de hematoma. Agiientava ate ele desistir." '-........

Com muita vitalidade, Tania gostava de desfrutar dos prazeres proporcionados pelavida. Logo, repudiava tanto 0 estilo de vida de sua mae, quanta aquele prescrito por seu pai para ela. Definitivamente, ela construia seu pr6prio projeto de vida. Foi, neste processo, amplamente auxiliada pelo estudo da Hist6ria. Colocava tudo em xeque: desde 0 moralismo que presidia a vida de sua familia de orienta~o, passando pelas posi~6es da Igreja Cat6lica, ate o status quo s6cio-politico.

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"... jamais eu botaria minha filha em colegio de freiras. 0 complexo de culpa que elas botam em voce... Eculpa de todos os lados. Culpa de ser mulher, culpa de paquerar, de querer beijar, de querer trepar, tudo isso. Principalmente em rela"ao a sexo a repressao e muito grande. Fora isso, outras culpas: culpa porque mentiu, porque escapuliu de casa, porque contou mentira para 0 pai. (oo.) Olha, a repressao foi tao grande, 0 com­ plexo de culpa foi tao grande, que eu nao me lembro dessa hist6ria da descoberta do corpo. Eu me lembro ja com 20 anos, dai eu resolvi, eu tinha urn namorado que eu gostava muito, resolvi ter rela"oes com ele. Eu tomei a iniciativa, mas s6 comecei a me masturbar depois da minha primeira rela"ao. Nao sabia 0 que era masturba"ao. Fui descobrir a mas­ turba"ao depois da primeira rela"ao. (...)Ja tinha namorado desde os 15 anos. Eu era namoradeira. Conforme 0 namorado, 0 pessoalla de casa ou fingia que nao sabia ou caia de pau em cima de mim. Diziam: 'Tern que terminar.' Faziam conselho de fanulia, era urn Deus nos acuda! Razoes: nivel social diferente, cor diferente, eram racistas. Segregavam negros, mesti"os, mamelucos, cafuzos, queriam que fossem brancos."

Tania nao apenas e avessa a todas as formas de repressao como as enfrenta. Da mesma maneira como naochorava quando apanhava de seu pai, passou a ler sobre a Inquisi~o e a questionar tudo que dissesse respeito ainstitui~ao Igreja Cat6lica. Comparava 0 tratamento que re­ cebera em colegios de freiras com 0 dispensado aftlha da faxineira e concluia que a Igreja estava aliada aos poderosos. Combatia as varias modalidades de culpa que as freiras the incutiram. Enfrentou a culpa criada em torno do exerdcio da sexualidade, tomando a iniciativa de propor a seu namorado uma rela~ao sexual. "Ele ouviu... Claro que eu sabia que ele estava a fim, mas ele nao se impressionou. Mas eu decidi a hora que eu queria, 0 momenta que eu queria. Foi uma rea"ao legal. Tenho uma boa recorda"ao da minha ini­ cia"ao. Minha fanulia era contra. Ele era pobre, nivel social diferente e, alem disso, de esquerda. Era Iider sindicaI. Veio de Sao Paulo para eel corrido, porque era Iider da COSlPA (oo.) Ficamosjuntos uns dois anos."

Amedida que seus horizontes iam se ampliando, mais crftica se tornava Tania. Amparada neste senso crftico, procurava viver segundo o principio do prazer. Isto significa que nao tentava viver 0 prazer alucinatoriamente, isto e, de forma pura, tendo sempre em conta 0 principio de realidade. Sabia, pois, fazer "a composi<;ao possivel entre


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as demandas do prazer e as imposi~oes da realidade externa" (Kehl, 1990, p. 367). Nao enfrentava apenas os falsos moralistas, mas sentia prazer em desconstruir categorias preconceituosas que, se aceitas, tor­ nariam seu mundo demasiadamente restrito. Ora, para alargar seu uni­ verso, nao deixava de experimentar. A prop6sito, vale a pena relatar uma de suas vivencias amorosas. Entre os 15 e 16 anos, morou em Petrolina. La teve sua primeira paixao e seu primeiro beijo. 0 costume ditava 0 seguinte: as meninas estudavam na cidadezinha, enquanto os garotos iam fazer 0 segundo grau em Salvador, a fim de se prepararem para 0 vestibular. Era este 0 caso de Anesio. Estipulava ainda 0 costume que as garotas fossem fieis durante a ausencia do namorado, sendo a fidelidade concebida em teimos bastante conservadores: deviam ficar trancafiadas dentro de casa. Ora, Tania gostava de dan~, de ir a festas, desrespeitando, portanto, 0 c6digo social. 0 namoro acabava. Mas, nas ferias, Anesio retornava a Petrolina eo namoro recome~ava. Vma vez, conversaram sobre seus projetos de vida. Ele pretendiil estudar Admi­ nistra~o de Empresas, a fim de dirigir as industrias dos tios, situadas em Petrolina. Tania abominava a ideia de viver para sempre no sertao pema!Dbucano. Voltou para 0 Rio de Janeiro, casou-se e separou-se. Ele tambem se casou, obviamente com uma m~ de sua cidade. Casada ou separada, todas as vezes que Tania ia a Petrolina, era assediada por ele. Depois que de se separou de sua esposa - 20 anos ap6s 0 namoro com Tania - propas-lhe casamento. "Af, resolvemos trepar. Foi urna merda. Olha, deu vontade de sair. 0

cuecao ate aqui. Ele querendo que fosse com a luz apagada e eu querendo acender a Iuz, ele querendo apagar a luz. Foi urn quiproqu6, urn horror! Ele resolvendo toda a minha vida. Eu estava estudando aqui no Rio, fazendo Direito, estava separada, com uma fIlha que estudava aqui, t~ o meu trabalho aqui como funciomiria publica. Ele dizia: "Nao, isto nao eproblema! Ligo para 0 fulano de tal, transfuo a sua matricula para ca. A faculdade niio tern problema. Sou diretor da faculdade, voce entra aqui tambem!" Entao, estavam todos os problemas solucionados: "Acabei de comprar urn apartamento. Voce vern para ca em novembro, porque voce vai decorar. Em novembro ele vai estar pronto. Em janeiro a gente sai, vai para a Europa." Todos os problemas resolvidos. Eu, hem! Voce acha que eu ia entrarnuma daquela? Nem mortal (...) 0 machiio ali, resolvendo toda a minha Vida, bonitmho, para eu ir para hi ficar com ele. (...) A trepada nao era tesao de 20 anos. Eu fui confenr, a prova dos nove, nao

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dava, nao deu. Era curiosidade de 20 anos. Nao foi urn nao incisivo na ocasiao, embora eu estivesse morrendo de vontade de rir da situa~ao, porque aquele earn com aqueles cuec6es quase nojoelho, querendo trepar de luz apagada! Dar urn nao para ele, ele nao ia aceitar nunquinha. Era mais facil dar 0 nao aqui do Rio pelo telefone."

Tania nunca havia aberto mao de sua capacidade de autodetermi­ nar-se. Nao 0 faria, portanto, na idade madura, quando Anesio Ihe propos casamento. Das tres mulheres cujas hist6rias de vida estao sob enfoque, esta e, sem duvida, e talvez sempre tenha sido, a mais apta a situar-se fora do genero, visando a critica-lo e a modifica-lo. Sua repre­ senta~ao de si mesma e da mulher em geral emuito mais avan~ada ate mesmo das representa~6es de um segmento das feministas. Em rela~o ao ex-namorado de Petrolina, situa-se anos-luz a frente. Representa, certamente, a consciencia avan~ada da situa~ao da mulher (Lukacs, 1960). Na rela~o com 0 homem, poe-se como igual, como sujeito, nao admitindo ser tratada como nao-sujeito e chegando mesmo a escarnecer do tradicionalismo do parceiro sexual. De certo angulo, seria redundan­ te afirmar que ela se poe como sujeito desejante, na medida em que "todo sujeito e sujeito de urn desejo, ou melhor, todo sujeito e sujeito porque e desejante" (Kehl, 1990, p. 368, grifos no original). A socia­ liza~ao das mulheres e tao repressora que seguramente a maioria delas ignora ser portadora de urn desejo ou abdica do direito da buscada realiza~aodo principio do prazer. Obviamente, 0 principio de realldade frustra a realiza~o do principio do prazer, significando esta interven~o o nascimento do pr6prio sujeito, assim como da realidade e do desejo (Kehl, 1990). A plenitude nao esta, pois, no prazer, mas fora dele, ou seja, num estado de vacuo existente apenas no imaginario. Todavia, a busca do prazer, a procura de Eros proporciona uma vida muito menos tanatica. A energia vital de Tania sempre a encaminhou para Eros, para a vida, para 0 prazer. Sua autodetennina~o pernlitiu-lhe romper nume­ rosas barreiras de genero, de dasse, de ra~etnia. Possibilitou-lhe en­ carar a violencia que permeia as rela~oes atravessadas pelas contradi­ ~6es mencionadas. Sua hist6ria e riquissima em enfrentamentos com superiores hierarquicos na fannua, na profissao, na Igreja etc. Seria muito lange 0 exame de todos os eventos significativos de que ela foi protagonista, relatados nas entrevistas. Consideram-se suficientes os


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elementos analisados para fornecer ao leitor urn esbo~ do retrato desta mulher, cuja caracterfstica mais preeminente e, indubitavelmente, a autodetermina~o. Por esta razao, deixar-se-ao de lado muitos aconte­ cimentos que s6 refor~riam esta convic~o. Ja se mencionou 0 carater tremendamente repressor da educa~ao que the ofereceu seu pai, tendo chegado a expulsa-Ia de casa pelo fato de ela haver voltado de madrugada. E verdade que depois recuou, solicitando-lhe que permanecesse. Para atingir este ponto, porem, foi necessario que a mo~, embora sem nenhurn dinheiro e, por conseguin­ te, sem nenhuma condi~ao de viver fora da casa de seus pais, representasse, com todos os requintes teatrais, sua partida. Arrumou malas, telefonou para muitas amigas, revelando sua decisao, enfim, desempenhou 0 papel de quem obedeceria, talvez pela primeira vez, a uma ordem paterna. Com 0 recuo de seu pai, saboreou mais urna vit6ria Nem tudo em sua vida, entretanto, foi raseo. Ao contrario, foi preciso lutar muito para vencer 0 sofrimento. Enesta parte de sua vida que se penetraraagora A transgressao constitui urn tra~o marcante da personalidade de Tania Convem mencionar 0 carater subversivo das transgress6es femi­ ninas. 0 homem, quando transgride, descurnpre a gramatica sexual que ele proprio instituiu. Ora, a lei nao vige para quem a faz, mas para seus subordinados. Assim, ultrapassar os limites flXados pelo genero repre­ senta para 0 homem uma reafirma~aode seu poder. Se a ordem social e falocentrica, a transgressao masculina refor~a 0 falo-Iogo-centrismo (Feral, 1990). E, por via de conseqiiencia, conservadora. A transgressa,o da mulher, ao contrapo, contesta a ordem social que a subalterniza. E, portanto, subversiva. Tania nao se contenta com argumentos de auto~ dade, exigindo explica~s racionais. Como quem exerce 0 poder recu­ sa-se, via de regra, a explicar suas atitudes, ela conduziu sua vida pela contesta~ao. Nao apenas revelou sempre uma enorme irreverencia, como tambem propunha solu~6es para os embates que travava. Ou seja, desempenhou, a vida toda, 0 papel de transformadora das rela~6es sociais. Vale a pena mencionar urna transgressao condenada, mais uma vez e em quaisquer circunstancias, pela enciclica Veritatis Splendor, de autoria do Papa Jooo Paulo IT: 0 aborto. Depois de separada do primeiro companheiro, a informante provocou dois abortos. Como s6i acontecer, ela sempre teve que se encarregar da contracep~ao,uma vez que seu ex-companheiro e seus namorados nunca 0 fizeram. Seu atual compa­

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nheiro, Flavio, com quem esta ha tres anos, e vasectomizado, tendo cinco filhos dos dois casamentos anteriores. Ele tern 50 anos e e pro­ curador da Justi~a; ela tern 44, fez os cursos de Hist6ria e de Direito. Trabalhou como professora de primeiro grau em escola municipal e estaduaL Atualmente, desempenha a fun~o de tecnica na Pfocuradoria de Justi~a do Estado do Rio de Janeiro. Em 1974, Tania prestou concurso para lecionar. Seu objetivo, po­ rem, era muito distinto de ser professora de primeiro grau. Jamais desejou descrever esta'trajet6ria, inteiramente enquadrada em seu des­ tina de genero. Tolerou ser professora, mas gostava mesmo de pesquisa Come~ou 0 Mestrado em Hist6ria em 1975. Namorava urn desquitado, Amadeu, tambem historiador. Este foi fazer 0 Mestrado em Campinas. A universidade na qual estudavaTania, no Rio de Janeiro, era deficitaria na tematica por ela escolhida para sua disserta~o.Em Campinas, podia reparar esta falha. Ela e 0 namorado decidiram, assim, viver juntos, temporariamente, naquela cidade. Morar em Campinas era uma circuns­ tancia vinculada arealiza~ao do Mestrado para ele e ao curnprimento de alguns creditos para ela. Nao havia urn projeto de vida em comuril naquela cidade. Ele obteve os creditos necessarios para defender sua disserta~ao de Mestrado e ela fez os cursos que desejava. Ela, entao, explicitou 0 desejo de voltar para 0 Rio, encontrando oposi~o da parte dele, que queria continuar em Campinas. Fazia, naquele momento, urn ano e meio que estavamjuntos. Ela nao teve duvida nenhurna em voltar para 0 Rio, independentemente da decisao de Amadeu. Quando ele percebeu que ela voltaria de qualquer maneira, resolveu acompanha-Ia Em mais urn semestre de uniao no Rio, ela terminou a reda<;ao de sua disserta~o. Como nao conseguira afastamento de seus cargos publicos para estudar em Campinas, exonerou-se, vivendo de bolsa do CNPq. Ambos tinham bolsa. Quando ela entregou 0 trabalho e terminou a bolsa, descobriu que estava gravida. Assim, encontrava-se em situa~o diflcil, posta que desempregada e esperando bebe. Ademais, sua rela~ao com Amadeu esfriara. "0 tesao eu fui perdendo aos pouquinhos, nao foi de uma hora para outra. Nao houve uma causa, foram fatos pequenininhos que vao... tipo voce chegar para fazer urn carinho e ele dizer: "Sai que agora estou traba­ lhando, sai que estou estudando". Esse tipo de rejeic;ao que voce vai se fechando, fui me fechando, me trancafiando aos poucos. Foi urn processo


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racionalidade desta mulher, ela sucurnbiu a este desejo. E a rela~ao com seu companheiro estava em franco processo de deteriora~ao. Logo, nao poderia ter futuro. .

gradativo. Ele se achava 0 supra-sumo dos maximos. Depois de Marx, seu Amadeu. 0 herdeiro de Marx e ele. 0 genio da par6quia e 0 que ele se acha. E de vez em quando eu tinha que dar uma parada na pflula. Foi num desses intervalos que engravidei."

"Nao que eu tivesse urn plano a curto prazo de me separar de Amadeu. Mas, sempre na minha cabe~, uma coisa que era vital para mim era minha independencia, e independencia sem independencia econdmica nlio era independencia. Tambem tinha a hist6ria da minha vida com meu pai. S6 comecei a obter a minha independencia a partir do momento em que eu tinha condi~6es de me sustentar. Era uma coisa que eu ja tinha enquanto adolescente, que eu tinha que trabalhar, me sustentar para poder ter minha independencia e nada de ficar dependente de marido, nunca, jamais, em tempo algum. Na hora que me danar, trepar nas tamancas, meta a trowca debaixo do bra~o e saio porta afora sem esta de estar dependente de homem. Jabasta a dependencia do meu pai durante tanto tempo! Para mirn era vital voItar a trabalhar. Acho que foi 0 unico periodo que vivi sustentada depois dos 20 anos. Vivi sustentada na epoca que estava gravida, desesperada."

Reconhece que, embora nao tivesse planejado aquela gravidez, da qual nasceu Gisela, estava desejando ter urn filho, pois ja tinha entre 30 e 31 anos. Conhecendo as discrimina¢es contra a mulher, sabia que, estando gravida, 080 encontraria emprego. Embora desejasse a crian<;a, especialmente se fosse urna meDina, foi urn periodo diffcil, dependendo economicamente do companheiro. Por estas raz6es, nao abortou. Ad­ mite que era aquele 0 momento de ser mae. Em outras ocasi6es, nao hesitava em provocar aborto. Isto ocorreu quando namorava, mas nao tinha urna rela~o amorosa s6lida Embora tivesse side socializada para recusar esta pratica, pensava que seria ainda pior pOr urn filho no mundo sem ter condic.i>es de sustenta-Io. Perguntada sobre 0 sentimento de culpa provocado pelo ato voluntario de interromper uma gravidez, respondeu: "Pinta, porque voce e criada num ambiente, principalrnente eu, cat6lico, imagine abortar! Epecado, crime! Entlio, essas duas repress6es ai, pinta tudo. Pinta, nao tern problema, depois ela passa." • I

Prezando enormemente sua autonomia, al inclulda, neces­ sariamente, sua independencia economica, precisou sermae. Sentiu que o tempo estava passando, sua idade avan<;ando e suas possibilidades de ter urn filho diminuindo. Rigorosamente, do angulo financeiro e do est<igio de sua rela~ao com Amadeu, nao se tratava de momento ade-/ quado para realizar a maternidade. Dentro de toda coerencia apresenta­ da por Tania ha tambem contradi~6es.Ela sabia que Gisela seria criada somente por ela e que isto representava gigantescos sacriffcios. No entanto, decidiu te-Ia. Outras vezes, abortara exatamente porque teria de ser mae e pai. E bern verdade que os abortos faram posteriores ao nascimento de sua filha e que ela ja experimentara as agruras de ser chefe de urna familia monoparental, enfrentando, ainda, as violencias praticadas por Amadeu, tentando lhe tomar a meDina Isto pode, por urn lado, ter side decisive para a delibera~ao de abortar. Por outro lado, contudo, ha, na vida de quase todas as mulheres, urn momenta em que o desejo de ser mae se toma inadiavel. Nao obstante 0 alto grau de

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A protagonista desta hist6ria trabalhou intensamente para construir sua autonomia. Nao se tratava apenas de ser economicamente indepen­ dente, embora esta fosse conditio sine qua non para a constitui~ao do sujeito hist6rico que ela sempre quis ser. A for~a de sua autonomia generalizada nao permitiu que, durante 0 referido periodo de dependen­ cia economica, se deixasse dominar pelos caprichos do macho ao qual estava ligada, nao mais par urn grande afeto, mas pela crian~a que carregava no ventre. Quando estava terminando de redigir sua dis­ serta~ao de Mestrado, nao obteve de seu companheiro a compreensao suficiente para uma divisao eqiiitativa do trabalho domestico. Naquele momento, foi obrigada a ceder. Assim que a oportunidade se apresen­ tou, todavia, mostrou a Amadeu sua repulsa pelo machismo. "Esse final de tese, naqueles dias quevoce esta naquele pique e voce sabe que seu tempo esta ali, marcado; que voce tern que entregar senao voce dan~a. Sao quatro anos jogados pela janela abaixo. Ou voce recome~ tudo de novo. Voce esta naquele pique e voce pede a ele: Vai, faz 0 alrn~ hoje. Os dois estudantes: ele na sala lendo 0 jomal e eu estudando. Diz ele: 'Hoje nao da, porque quero estudar. Nao, vai voce.' Ah! Nao vai? Estou estudando e voce esta lendo 0 jomal! Quando me casei com ele, eu nao sabia fazer urn cafe e ele cozinhava tranqiiilamente. Depois


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que aprendi, nunca mais ele entrou na cozinha. Ele nao movia uma pallia. Nesse dia eu me danei: pedi para ele fazer a comida e ele nao fez. Ai eu disse: Tudo bern, estou com fome, YOU fazer. Agora, se voce precisar que eu mova uma palha para sua tese, pode ficar sabendo que nao YOU fazer. E cumpri 0 que prometi. E eu nao movi. Eu fiz, batalhei, e quando eu ja tinha defendido, estava gravida, fui para Campinas com ele. Ele foi fazer investigaC$ao de campo e tinha pouco tempo, ele estava fazendo pesquisa sobre acidente de trabalho e precisava da pesquisa,jogo rapido. Teve que pagar a uma pesquisadora, porque eu passava 0 dia inteiro em casa, de perna para cima, lendo Agatha Christie. Nao movi uma palha. Pagou a Deus e ao mundo para fazer a pesquisa e eu bern serelepe, fazia que nem era comigo."

Esta mulher nao combatia a gramatica sexual hegemonica apenas do ponto de vista da orat6ria Instituia praticas feministas em sua rela~o amorosa, atualizando uma nova gramatica de genero. Obviamente, se tratava de praticas subversivas e, portanto, em competi~ocom a matriz dominante de inteligibilidade cultural do genero. "Generos inteligfveis sao aqueles que, em certo sentido, instituem e mantem rela¢es de coerencia e continuidade entre sexo, genero, pratica sexual e desejo" (Butler, 1990). As inova¢es podem ocorrer em qualquer destes quatro elementos. Tania, indubitavelmente, transformava 0 genero, do qual a divisao sexual do trabalho constitui um suporte basilar. Para lembrar Lauretis, a capacidade da protagonista desta hist6ria para situar-se fora do genera, fazer-lhe a critica e inova-Io foi e continua sendo incomum. Neste processo, ela nao apenas ampliou a inteligibilidade cultural do genero, mas buscou instituir uma nova 16gica nesta gramatica sexual. Isto envolveu muito trabalho e muito sofrimento, ambos implfcitos em toda tentativa de se construirem rela~6es amorosas igualitarias, a come­ ~ar pelo exercfcio da sexualidade. "A gravidez foi urn dos periodos que fiquei mais excitada, eu vivia excitada. Queria trepar e 0 outro (Amadeu) nao queria de jeito nenhum, porque eu estava gravida. Eu vivia desesperadamente excitada. Me mas­ turbava adoidado! Ai, quando chegou na maternidade, ela (Gisela) tinha acabado de nascer, 0 outro queria trepar. Nem morta, santinha! Nem mortal Sai da maternidade direto para a casa de mama. Fiquei 13 40 dias numa nice. Aqui ninguem me pega e depois usava que estava cansada, que Gisela precisava mimi, que nao sei que, que tinha que amamentar. Usava Gisela de todo jeito para fugir da relaC$ao que eu nao estava mais

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a fim. 0 neg6cio comeC$ou a degringolar fazia urn tempao, antes da gravidez. E uma das coisas que acho que marcou bastante foi 0 fato de eu querer ter rela¢o e ele nao. Acredito que fosse por causa de traumas de infiincia dele. Porque ele tern uma irma, doze anos mais nova que ele. E ele me contou varias vezes... bern, a mae dele vivia dizendo a Deus e ao mundo, para quem quisesse ouvir, que tinha feito dez abortos e se arrependia de nao terfeito doze. (...) E ele me dizia que quando a mae dele estava gravida (ele ja tinha 11 para 12 anos) que cansou de ver a mae (...) chorando e esmurrando a barriga. Eu nao conseguia conversar com ele sobre isso. Nao tinha dialogo possivel, ele distorcia tudo que eu falava. (...) Ainda levei cinco anos aquela relaC$ao, porque, na minha politica, morro tesa, mas nao perco a pose. Eu tinhajuntado os trapos contra a familia e ai eu tinha que sair daquela tendo condiC$oes de me sustentar e aGisela."

Tania punha-se como femea parela~o e como sujeito (desejante). De acordo com a matriz hegemonica de inteligibilidade de genera, deveria aguardar a iniciativa do macho para a realiza~ao da c6pula. Segundo a matriz altemativa de 16gica de genera que pracurava insti­ tuir, ela era sujeito e, par conseguinte, portadara de desejo, no caso, sexual. Identificava os traumas de infancia de Amadeu, chamado atual­ mente por ela de "falecido" (a rela~o morreu), tentava transformar este homem em seu interlocutor, mas nao havia universo comum de discurso entre os dois, cada um operando num c6digo distinto. Ele poderia, se tivesse havido disposi~ao intema para tanto, re-simbolizar 0 c6digo em que estavam registrados os abortos de sua mae. No entanto, estava fechado para as re-significa~6es. Contrariamente a esta atitude, Tania ja havia re-simbolizado parcela ponderavel da repressao que sofrera por parte do pai, continuando aberta ao processo de re-significa~ode, em princfpio, toda sua vida. Nesta dire~ao, nao havia futuro para a convi­ vencia de ambos. Tania, assim, come~ou a preparar sua vida s6 com Gisela. Voltou a dar aulas num dos colegios em que trabalhara antes, mas seu salario era insuficiente para permitir-lhe uma existencia autonoma. Fez outro concurso e, enquanto esperava 0 resultado, precipitou-se a separa~o. Como nao tinha recursos para alugar apartamento sozinha, passou a dividir urn com uma amiga, tendo Gisela consigo. Foram dois anos de frutifera partilha com Lucia, que the deu grande apoio. Dando aulas em um colegio municipal e em outra particular, Tania conseguiu, atraves


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de concurso, lecionar em colegio do Estado. Acumulava muito trabalho, porque precisava provar ganhar 0 suficiente para criar Gisela, uma vez que Amadeu a pressionava para retirar-lhe a filha. Nao recorria aJustic;a porque, segundo a informante, nao queria gastar dinheiro com isto, mas infernizava a vida da ex-companheira. :I , I

o homem, via de regra, jii se comporta desta forma quando nao e

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"E 0 pai dela (Gisela), enquanto isso, me fazendo 500 ameac;as de tudo quanta erajeito. Fez todo 0 posslvel para eu perder meus empregos. Ele ia onde ele sentia que eu era mais fraca, ou seja, no meu emprego municipal ele nao ia. Ele sabia que lei ele podia berrar, espernear (eu chamaria seguranc;a para botar ele para fora) que ali comigo nao ia acontecer nada. Mas, num colegio de classe media, eu corria 0 risco de ir para 0 olbo da rna cOm uma pessoa dando escandalo dentro do colegio. Ai, ele vivia indo no... (colegio particular), onde eu dava aula. Na Secre­ taria Municipal da EducaC$iio, onde eu trabalhava nessa epoca (fora requi­ sitada), no Arquivo da Cidade, ele s6 apareceu uma vez. Eu botei ele para correr aos berros, ameacei chamar seguranc;a, ele nunca mais apareceu. Ele dizia entre dentes, sempre sem testemunha, que ia me matar, que ia fazer e acontecer. Sempre ameac;ando me matar. (...) Urn dia, eu estava dando aula para a 5~ serie,para aquelas pestes encapetadas. Ele entrava no colegio, alegando que era pai de aluno, porque Gisela estudava no colegio. E1e entrava e ia para minha sala de aula. s6 que Gisela estudava de tarde e ele aparecia de manha, quando eu estava dando aula. Batia no vidro e comec;ava a me ameac;ar. Eu voltava para dar aula, os nervos tinham ido para 0 espac;o. Eu voava no gog6 das crianc;as. Vinha pai reclamar, voava no gog6 do pai. Minha cabec;a esteve a premio, quase fui

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despedida."

Embora aviolencia domestica ocorra, preferencialmente no espa~ privado da residencia, extrapola, com freqiiencia, estes limites. 0 local de trabalho da mulher e priorizado pelo homem, nas suas pniticas violentas, sobretudo depois da separa~ao, visando a desmoralizar a ex-companheira. Nao so agress6es verbais ocorrem quando a mulher esta saindo do trabalho (raramente 0 homem tern acesso ao interior do predio) com os colegas, mas tambem les6es corporais. A meta do homem consiste em, numa re-afrrma"ao de seu poder (mais provavel­ mente de sua impotencia), destruir 0 moral da ex-mulher, humilha-Ia frenteaos colegas, provocar-lhe a perda do emprego. No caso em pauta, Amadeu visava a destruir a capacidade financeira de Tania para manter sua filha. Usava, desta forma, Gisela, para agredir a ex-companheira.

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abandonado pela mulher. No caso sob exame foi a mulher que rompeu a rela"ao, atingindo, assim, em cheio, 0 orgulho do macho. Para fazer face a esta pressao, e obvio que Tania precisava trabalhar demasiadamente, provando ter renda suficiente para se encarregar da cria~ao de Gisela. Tinha duas matrfculas: uma no Estado e outra no Municipio, trabalhando tambem num terceiro colegio, privado, onde suafIlha tinha bolsa de estudos. Lecionando de manha, atarde e anoite, esta mulher nem sequer tinha tempo de ver sua filha. De segunda-feira de manha, so ia reve-la na quinta-feira anoite. Amadeu, enta~, encon­ trou nova forma de infemizar a vida de Tania. Queria que ela lhe entregasse Gisela por nao ter tempo de cuidar dela, colocando a ex-mu­ lher num verdadeiro impasse. Ela, entretanto, nao esmoreceu. Conquis­ tara seus postos de trabalho por concurso e precisava daquele dinheiro para poder sustentar sua filha, nao podendo, portanto, abandonar ne­ nhum de seus tres empregos. Precisou lan~ar mao de outro metodo, a tim de encontrar solu~ao para 0 problema. Procurou a secretaria da Educa~o, que havia sido examinadora de sua disserta¢o de Mestrado, explicando-Ihe sua delicada situa~ao. A autoridade juntou suas duas mamculas, 0 que the permitiu deixar de trabalhar anoite. A medida que conseguia resolver uma questao, surgia outra, pois Amadeu nao lhe dava tregua. "Nesse meio tempo,.o pau rolando por causa de pensao, por causa disso, daquilo. Argumentava comigo que eu tinha que entregar Gisela para ele. Ele ia pagar advogado? Nuncal Ele era pao-duro que s6 0 cao! Entao, ele vivia alegando isso para mim. (...) Depois veio advogado daqui, advoga­ do de Ia e eu sempre que pagava os advogados, porque ele nunca entrava com advogado nenhum. Ele pentelbava os meus advogados. 0 acordo da gente e urn acordo de nao sei quantas formas, que estabelecia tudo, tintim por tintim, inclusive que ele nao podia passar do hall de entrada do predio. (...) ... agora 0 neg6cio esta tranqililo. Nao vejo grilo de ele entrar. o que ele fazia na epoca era 0 seguinte: simplesmente ia lei em casa na hora em que eu nao estava (0 hobby dele e tirar fotos). Tirava fotos de Gisela dentro da casa toda. Depois me mandava as fotos. Tinha medo dele e muito. Cansei de passar fmal de semana (...) com a luz apagada do apartamento inteiro, sem poder ligar televisiio, sem nada (dava reflexo e o apartamento era de frente para a rna) para ele pensar que eu naoestava em casa. Ele vinha. tocava a campainha. E6bvio que eu nao abria a porta.


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Tocava a campainha hi embaixo, nao tinha interfone, mas tocava a campainha la embaixo... Como eu nao abria, ele tocava de todos os vizinhos, ate que urn dos vizinhos se irritava e ia 1<'i abrir a porta de baixo. Ai, ele entrava na minha porta. Vma vez que ele quebrou aquelevidrinho ali, noutro apartamento igualzinho, aquelajanelinha. Chamei a policia, fui parar na 9! DP, foi aquele escarceu. Cheguei la e contei 0 que tinha acontecido. Ai, ele fez urn discurso de uns 40 minutos: «Imagine se eu, urn professor universitario, ia fazer urn negocio desse que essa senhora esta dizendo". E ficavam todos aqueles babacas assim... ouvindo 0 dis­ curso dele."

Nunca se conseguiu tra~ar 0 perfil do agressor ffsico, sexual ou emocional de mulheres. Do ponto de vista sociol6gico, eles sao cida­ daos comuns nao sO na medida em que tern, via de regra, uma ocupa¢o e desempenham corretamente outros papeis sociais, mas tamoom por­ que praticam diferentes modalidades de uma mesma violencia estrutu­ ra/. Se nao apenas as classes sociais sao constitutivas das rela~6es sociais, estando neste caso tambem 0 genero e a ra~etnia, naoha razao para se buscarem caracterfsticas especfficas dos agressores, pelo menos . da p<::rspectiva aqui assumida. A Psicologia fez numerosas tentativas de detectar as especificidades do agressor, com resultado negativo. Ou seus instrumentos de mensura¢o do que considera anonnalidade sao insu­ ficientes para alcan~ este objetivo ou 0 agressor e nonnal. Do angulo sociol6gico aqui esposado, nao faz sentido procurar caracterfsticas in­ dividuais no agressor, quando a transfonna¢o de sua agressividade em agressao e socialmente estimulada. Cabe ressaltar que a violencia conjugal nao precisa assumir as formas ffsica e sexual. Nos Ultimos tempos de sua rela¢o com Amadeu, Tania sentia-se "estuprada emocionalmente". Ele literalmente torturava a mulher atraves de amea~as de toda sorte, atingindo sobretudo as fragilidades desta, quando tomava atitudes no sentido de arrebatar-lhe a filha. Alias, esta fragilidade e comum a praticamente todas as mu­ lheres. 0 medo de perder os filhos leva-as a ceder em numerosos pontos e muitas vezes. Convem lembrar que a ideologia da maternagem foi formulada por homens (Badinter, 1980) e logrou colocar a mulher a seu servi~o. Se para torturar uma mulher nao e necessario agredi-Ia fisica ou sexualmente, seria utilpensar que a descarga da agressividade pode dar-se contra objetoS que pertencem acompanheira. Muitas vezes, sao objetos pessoais das mulheres que 0 homem destr6i. Simbolicamente,

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se trata da destrui~ao delas pr6prias. No caso em apre~o, Amadeu quebrou 0 vidro da porta do apartamento da ex-companheira, ou seja, devassou seu territ6rio penosamente conquistado, invadiu sua privaci­ dade. Tania, ja furiosa com a atitude dos policiais e com 0 farisaico discurso do "intelectual acima de qualquer suspeita", solicitou ao PM que atendera aocorrencia em sua casa para testemunhar sobre a quebra do vidro. 0 poHcial recusou-se, alegando nada ter visto. A vftima explicou-se que se do lado de fora da porta estava seu ex-companheiro e os cacos de vidro cafram do lado de dentro de seu apartamento, 0 vidro s6 podia ter sido quebrado por ele. Nao teve exito. Na delegacia... "Eu quis registrar a ocorrencia, 0 raio do escriviio nao deixou, marquei touca. Eu disse: Nao saio daqui sem 0 dinheiro do vidro. Quero 0 dinheiro do vidro. Bern em fren te a9! DP tern uma vidra~ria. Eu disse: 0 senhor vai segurar ele aqui, porque eu you la saber quanto custa. Fui Ia, descrevi para 0 homem como era 0 vidro para repor... 0 cara disse quanta era, eu voltei: 0 dinheiro, eu quero 0 dinheiro do vidro. E ele deu."

Alem de sofrer uma violencia em seu espa~o privado, Tania deve­ ria, segundo 0 PM que se recusou a testemunhar os fatos, arcar com os prejufzos. Ela, todavia, foi esperta e teve sorte de encontrar uma vidra­ ~aria tao perto. Mas, houve outra violencia, indesculpavel tambem: a recusa da autoridade poHcial em registrar os fatos. Embora esta pratica ainda exista em delegacias da mulher, sua incidencia e menor. Se, de uma parte, e preciso melhorar os servi~s por elas prestados, de outra, nao se pode minimizar a importancia deste espalio inteiramente ou quase inteiramente feminino. Se se tratasse de uma Delegacia da Mu­ lher, possivelmente teria recebido outro tipo de tratamento. A tortura planejada e praticada por Amadeu ia mais longe. Prome­ tera que impediria a ex-companheira de namorar, alegando nao querer homem perto de sua filha. Acabava sempre fazendo escfmdalo e, desta forma, amedrontando os namorados de Tania. Foram muito poucos, segundo 0 relata desta, que 0 enfrentaram. Obviamente, este fato era extremamente incomodo e tirava da protagonista desta hist6ria sua liberdade de ir e vir, garantida, ha muito, neste pais. E a poHcia nao solucionava 0 problema. "Assim que eu comecei a controlar a invasao dentro de casa, procurei 0 SOS Mulher.A safda que 0 SOS me deu foi que eu devia mudar de


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apartamento e trocar de telefone. Eu disse: Emuito interessante! Como se fossem duas coisas facflimas de fazer. Acontece que tenho uma filha que estuda em determinado coh~gio e ele tern acesso afilha, tern visita estipulada emjufzo. (...) Ele pegava ela na sexta-feira... No que ele vai pegar, e so ele seguir a menina ate em casa e sabe onde estou morando. (...) Dar, para pegar telefone era urn pulo. Duas solu~6es ridfculas!"

De fato, alem das "solu<;6es" serem praticamente inexeqiifveis por parte de quem vivia com pouco dinheiro, teriam vida muito curta. Rigorosamente, Tania tinha razao: eram ridiculas. A pendencia deveria ser resolvida via policia. Entretanto, dadas a ma-formac;iio profissional dos policiais e a ideologia machistavigente na sociedade como urn todo e em particular na mencionada corporac;iio, Amadeu continuava a im­ partunar a ex-companheira e a impedir que ela reconstitufsse seu espa~ amoroso. Tania, no entanto, nao desistiu nem de viver a vida, nem de encontrar formas de afastar 0 ex-companheiro. Tendo-se separado em 1983, tratou de conceber urn novo projeto de vida que, simultaneamente, elevasse seus rendimentos e lhe permitis­ se encontrar solu<;6es legais para 0 inferno criado parAmadeu. Embora tivesse 0 tftulo de mestre e gostasse de fazer pesquisa, isto nao lhe assegurava aurnento de renda. De outra parte, nao entendia de Direito de Famflia, ficando sujeita as determina<;6es do juiz, sem saber como se livrar de Amadeu. Resolveu, assim, estudar Direito. Acabou nao somente mudando de profissao, como tambem encontrando seu segun­ do marido. Flavio foi seu professor de Direito Penal e sua uniao de tres anos com Tania esta sendo muito positiva. Como ele nao e apenas advogado e professor, mas tambem procurador, provocou medo em Amadeu, que deixou de aborrecer sua ex-companheira e partiu para urn novo casamento, do qual nasceu sua segunda filha. Muito bern dotada em termos de quociente de inteligencia, Tania, ja enquanto estudante de Direito penetrou nos meandros'da legisla<;ao e passou a descobrir brechas nunca antes notadas por profissionais do ramo. Trabalhava, nesta epoca, na Procuradoria Geral do Municipio, tendo iniciado suas atividades nesta institui<;ao em 1988, quando cur­ sava 0 terceiro ano de Direito. Atualmente, como T6cnica da Procura­ doria de Justi<;a do Estado, onde seu atual companheiro e procurador, tern tide muito sucesso profissional. Ainda leciona nurn colegio muni­ cipal, mas pretende exonerar-se. Parece ter-se casado definitivamente

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com 0 Direito: enquanto profissao e enquanto vfnculo afetivo. Aflnal, o Direito proporciona-lhe vivencias muito positivas: mais dinheiro, mais prestigio, mais tranqililidade, na medida em que afastou Amadeu de seu caminho, e a reconstitui<;ao de urn importante espa<;o afetivo com Flavio. Tania nunca foi vftima de violencia ffsica por parte de Amadeu. Vma unica vez ele preparou-se para desfechar-lhe urn soco em publico e diante de sua filha, mas foi impedido de faze-lo por urn amigo da ex-companheira. Nao obstante, tornou a vida dela extremamente desa­ gradavel depois da separa<;ao. A rigor, ja a perturbava muito antes mesmo de ela engravidar. "Ele ia entrando em casa, entrando e espalhando e eu que fosse atnis catando. Eu largava aquilo la, mas me fazia maL Ate que urn dia eu disse: Vou pegar. E comecei ajuntar, pegava 0 sapato, a meia, a camisa, a cal~ fazia aquele bolinho. Juntava tudinho com 0 sapato. Abria 0 armario dele e PUM! la dentro. No dia seguinte, fazia a mesma coisa. Ate que chegou o dia que ele nlio tinha uma meia, uma cueca. AI ele resolveu jogar dentro do cesto de roupa suja a roupinha dele. Ele nlio tinha mais uma roupinha limpa. Aquela guerra dentro de casa, eclaro que faz mal agente. Eu me irritava, masia levando nessa base de guerra dentro de casa. (...) Hoje? Vivo numa mordomia daquelas! Flavio nlio sabia cozinhar de jeito ne­ nhum. Era expert em sandufche. Que fiz eu? No primeiro Natal, 0 que eu dei de presente para Flavio? Urn livro da Dona Benta. Ele gostou da ideia e resolveu aprender a cozinhar pelo Dona Benta. A gente equilibra: ou congelado ou a cozinha dele. 0 dia que ele nlio tern tempo, e congelado, mas quem cozinha e ele. (...) Outro detalhe: nlio so de cozinha, como curte. Ele decora a comida, vern toda decoradinha, bonitinha, super­ transadinha!"

Tania viveu urn inferno com Amadeu e ap6s a separa<;ao dele. Tentou enquactra-lo, sem exito. Enfrentou a repressao do pai devariadas formas, tendo conseguido livrar-se num grau bastante elevado ate da figura repressiva que havia internalizado. Profissionalizou-se como pode para tornar-se economicamente indep~ndente e usar esta autono­ mia para ser livre. Nao gosta de lecionar. A medida que foi se enfro­ nhando no Direito, foi abandonando seus cargos no magisterio. Logrou obter urn emprego que the da mais gratifica<;ao emocional e pecuniaria. Casou-se com Flavio, com quem tern excelente convivencia. 0 trabalho domestico e dividido pelos tres, pois Gisela tambem participa. As duas


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ex-companheiras de Flavio residem em im6veis pr6prios. Tania e Fla­ vio estao pensando em comprar urn para eles. Depois de muita luta, esta mulher conquistou a felicidade. Entretanto, urn novo fato perturbou a paz desta familia. Gisela foi vitima de uma tentativa de estupro por parte de urn desconhecido que, certamente mancomunado com 0 porteiro, penetrou no ediffcio. Treinada em lidar com violencia masculina, e muito provavel que ela tenha encontrado mecanismos adequados para proteger sua mha. Se ainda nao 0 fez, com toda certeza esta lutando para faze-Io.

Urn s6 destino de genero. tres vivencias distintas Luisa, Rosa e Tania foram alvo, na condi¢o de mulheres, das maiores violencias masculinas. Duas figuras merecem realce: 0 pai e 0 marido. 0 pai, mesmo ausente, como nos casos da segunda e da terceira, consegue impor a ordem falocratica atraves da mae. Tern, pois, razao Welzer-Lang (1991, p. 278) quando afirma: "A violencia domestica tern urn genero: 0 masculino, qualquer que seja 0 sexo fisico do/da domi­ nante". Ter urn pai repressor foi, para estas tres mulheres, uma expe­ riencia marcante. Rigorosamente, todas tiveram necessidade de ter urn homem semelhante como parceiro sexual. Neste sentido, casaram-se com a figura paterna. Desvencilharam-se dela concretamente, porque se separaram. Emocionalmente, contudo, estao em diferentes estagios de exorciza<;ao destes fantasmas. Luisa foi bastante submissa, embora, vez por outra, tomasse atitu­ des rebeldes. A rigor, nao conseguiu se livrar de seus torturadores, nem logrou avan<;ar muito em seu processo de individua<;ao. Sequer con­ qU;istou sua independencia economica, conditio sine qua non de sua autonomia. Alem do mais, esta reprimindo excessivamente seu mho, reproduzindo, pelo menos parcialmente, a experiencia vivida. Ainda tern urn longo caminho a percorrer. Rosa amou desesperadamente seu algoz. Afirma ama-Io ainda, dois anos ap6s sua morte. Nunca atirara antes do epis6dio do motel. Fora amea<;ada de morte pelo companheiro muitas vezes. Teve 0 rev6lver encostado em sua cabe<;a em varias ocasioes. Tivera escola em sua familia de orienta¢o em materia de violencia emocional. Continuou a aprender pnlticas violentas, desta vez fisicas. Exercitou este co-

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nhecimento, everdade que em legitima defesa. Atirou no companheiro para nao morrer. Sabe que nao 0 matou, mas afirma t~-lo feito. Simbo­ licamente, nao 0 matou, mas esta tentando faze-Io. Vive a tentativa de reconstru<;ao de varios espa<;os psiquicos. Tania, indubitavelmente, tern mais elevado grau de autodetermina­ <;ao. Desde sua infancia, nao aceitava argumentos de autoridade, exi­ gindo explica<;oes. Transgrediu boa parte das normas emanadas da falocracia. Nao obstante, vinculou-se a urn companheiro que tentou, de varias maneiras, impedir sua realiza¢o como pessoa. Como, porem, ela havia iniciado seu processo de individua<;ao muito cedo, foi-lhe possivel continuar rejeitando a subordina¢o a urn homem. Lutou desesperada e coerentemente para construir e preservar sua autonomia. Apropriou-se de seu destino de genero e 0 transformou, vivendo uma rela<;ao iguali­ taria com Flavio. Nenhurna das tres foi vitima passiva. Todas elas lutaram, cada urna a seu modo, contra a violencia masculina. Quantas lutas semelhantes serao necessanas para 0 estabelecimento de rela<;6es pares entre homens e mulheres? Certamente, milhoes de Luisas, Rosas e Tanias, porque ainda e muito grande 0 numero de mulheres que, "por razoes que a pr6pria razao desconhece" ou nem sempre explica, continuam a nutrir rela<;6es violentas com seus companheiros. Ao alimentarem-nas, estao, no fundo, colaborando no processo de sua pr6pria destrui¢o. Estao, no minimo, refor<;ando a ordem social falocratica.

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Capitulo 5

Cidade Maravilhosa:

A Outra Face

"Do que se tern medo? Da morte, foi sempre a resposta, e de todos os males que possam simboliza-Ia, antecipa-Ia, recorda-la aos mor­ tais. Da morte violenta, completaria Hobbes. De todos os entes reais e imaginarios que sabemos ou cremos dotados de poder de vida e de exterminio: da natureza desacorrentada, da calera de Deus, da manha do Diabo, da crueldade do tirano, da multidao enfurecida..." (Chaul, 1987, p. 36).

Nao e diffcil, nos dias de hoje, identificar e narrar epis6dios de violencia protagonizados por policiais e por criminosos confessos (duas catego­ rips, alias, cada vez menos exc1udentes). Crescentemente tem-se obser­ vado tambem cenas de violencia desencadeadas por populares, adultos, anonimos, jovens, crian~, de diferentes fra¢es de classe. Publicizam­ se conflitos intraclasses e intrageracionais. Tern a particulariza-Ios seu carater estarrecedor, impactante e espetacular, tao bern explorado pelos meios de comunica<;ao. Surpreende, ainda, a efemeridade dos seus efeitos: logo se vao esmaecendo, para desaguar no campo comum da (des)mem6ria/ (des)razao nacional. "Temos medo do grito e do silencio, do vazio e do infinito; do para sempre e do nunca mais. (...) Temos medo do esquecimento e de nao mais poder lembrar. Da ins6nia e de nao mais despertar. Do irreparavel. Do inominavel..." (idem, pp. 36 e 37).

Selecionou-se ao acaso urna dessas cenas inominaveis e ir­ reparaveis. A cozinheira Patricia Bueno (33 anos) participou, com cerca de 40 pessoas, do linchamento de um cortador de papel (da mesma idade), suspeito de ter causado urn incendio que destruiu urn barraco e 147

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......

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matou urn hebe na Baixada Fluminense. Eis alguns dos fragmentos de seu depoimento: " Antes de tocar fogo, fiquei com pena. Pensei 'sera que foi ele mesmo?' Mas todo mundo estava dizendo que foL Entao achei mesmo que ele tinha que morrer. (...) Eu coloquei lenha na fogueira, abanei 0 fogo, joguei pedra nele, cuspi, xinguei. Ele gritava pra mim: 'Ai, loura, socorro!' Eu dizia: 'Que socorro que nada, vai morref(~ agora, safado!' (...) Primeiro deram umas pauladas nele, depois botaram fogo nos documentos dele. Entao ele rolou no chao para apa­ gar, mas af vieram os galoes de gasolina. (...) Tinha gente que gritava: 'Vai pegar a cerveja que 0 churrasco esta queimando!' Eu faleL 'A coxa e minha!' Outro respondeu: 'Eu quero a asa!' (...) A polfcia chegou quando ele nao estava ainda todo queimado. Mas eles nao deixaram ninguem socorrer. Teve urn tenente que disse: 'Deixa morrer esse desgra<;ado.' Botaram mais fogo nele na frente dos policiais. (...) Me senti bern, me ~enti legal porque conseguimos pega-lo. Senti que flZ justi<;a". (Isto E, 26/09 a 02/10/93, pp. 16 e 17) A cultura da violencia - que ultrapassa, conquanto nao ignore as clivagens de classe, - introduz doses crescentes de requinte de cruel­ dade nas a<;6es/rela<;6es que encarna. Compensa-se (repara-se) a perda de uma vida com a elimina<;iio de outra, utilizando simbolos que mate­ rializam a correspondencia direta entre os fatos. Acusado de ter causado o incendio, 0 catador de papel acaba por ser incendiado, queimado vivo. Tendo-lhe sido imputada a morte do hebe, termina par perder a propria vida. Sob 0 signo da valoriza<;ao da vida (que foi perdida) e dajusti<;a (inatingivel), banalizam-se ambos os termos. 0 territ6rio dajusti<;a e a rua - espa<;o publico, que favorece a descarga de pulsOes destrutivas sem media<;ao, com c6digos e ritos pr6prios: 0 julgamento e sumario, unilateral, sem dar ao reu direito de defesa Ele e condenado, inobstante a persistencia da duvida (logo dilufda pelo furor popular) e a pena maxima Ihe e aplicada. 0 pedido de clemencia e desconsiderado. A divisao do trabalho, instaurada no calor do conflito, favorece sua ren­ tabilidade e confere-lhe elevado grau de eficacia. Diversificam-se os instrumentos - pedra e pau para a agressao ffsica, gasolina, madeira para a fogueira, fogo! 0 processo de elimina<;ao do reu encerra uma 16gica linear: ele e destituido do unico simbolo de poder que the resta - 0 falo - expressao de virilidade, para entao the ser retirada a humanidade. E animalizado e simbolicamente esquartejado, sendo transformado em objeto pronto a ser consumido, ingerido, enfim, apto

CIDADE MARAVILHOSA: A OUTRA FACE

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II Nllcinr a fome da multidao. Obtido 0 feito, com exito, deve-se feste­ jr\·lo. Tragam a cerveja! Mas de que fome e sede se trata? Esta-se diante de urn ato insano, epis6dico, desencadeado por pessoas dementes? Acredita-se podervoltar, neste ponto, ao tema da (des)razao. Seguindo a trilha tra<;ada por Rouanet (1987), dir-se-a que nao se esl6 diante da "loucura inocente da demencia involuntaria", mas de uma forma de expressao da ramo - a razao louca, porque continua sendo rnzt\o e julga-se sensata, em pleno delirio. Ela esta subsumida apaixiio, nlio sendo capaz de elabora-la de forma reflexiva. De acordo com este mllor, a defini<;ao da razao da-se pelo modo como se relaciona (cogni­ liva ou moralmente) com as paixoes, trate-se daquelas fundadas na ngressividade ou no amor. No domfnio da cogni<;ao, este tipo de razao produz a falsa consciencia; no terreno da moral, leva aheteronomia. A razao louca, em intera<;ao com a paixao, "... distorce ou bloqueia 0 conhecimento, e reprime ou libera a vida passional de urn modo des­ trutivo..." (p. 449). Esta dimensao da razao pode prescrever e levar a "... libera<;ao pulsional dirigida, no interesse do poder" (p. 456). Retomando 0 epis6dio do linchamento, considera-se que, mesmo na hip6tese de se estar sob 0 signa da contesta<;ao da ausencia efetiva ( de urn Estado de Direito, da incapacidade do Estado, que detem 0 monop6lio legitimo do uso da for<;a ffsica, mediar democraticamente, a partir de regras inequivocamente definidas e observadas, situa<;oes de conflito, se esm lidando com uma (ir)racionalidade essencialmente con­ formista.

"Temos medo do 6dio que devora e da c61era que corr6i, mas tam bern da resignac;:ao sem esperanc;:a, da dor sem fim e da desonra. Da mutilac;:ao dos corpos e dos esplritos..." ((haul, 1987, p. 37).

A tal ponto interioriza-se 0 padrao de Estado de Policia, no qual 0 uso arbitrario do poder e facultado aos setores que dele se apropriam, sem se dar possibilidade de defesa aos setores desprivilegiados, que ocorre urn verdadeiro processo de antropofagia em dupla acep<;iio ­ da justi<;a (que acaba por ser literalmente engolida em nome de seu pr6prio ideario) e do catador de papel que, simbolicamente, se converte em materia-prima para fazer 0 churrasco da grande confraterniza<;iio.


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Alias, e bastante elucidativa a articula~o de setores conservadores com vistas agarantia institucional da pena de morte, substituindo, de facto e de jure, a a~o de grupos de exterminio, compostos, sobretudo - embora nao exclusivamente -, por policiais e para policiais (infor­ mantes, x-9). As mais recentes elei~oes (1992) corroboram a ideia de que nao se esta tematizando uma situa~o isolada, na medida em que setores expressivos da sociedade civil parecem legitimar a pena capital: no Rio de Janeiro, dois candidatos acamara Federal que tinham como ponto central da sua plataforma a pena de morte foram eleitos com vota~ao significativa. Urn deles, delegado e ex-homem de ouro, tinha como slogan "bandido born e bandido morto". Se a cultura da violencia impregna as rela~oes sociais, pode-se afirmar que as formas de violencia perpetradas contra algumas catego­ rias sociais - como 0 genero feminino - e uma particulariza~ao da violencia societaria? Em outros termos, aviolencia domestica esrn sub­ sumida aviolencia em geral? E ainda: e este urn fenomeno homogeneo, que pode ser explicado a partir de uma s616gica? Ou haveria algumas det€rmina~oes gerais e particulares que, a partir de diferentes combina­ ~oes, contradit6rias e ambiguas, produziriam rela¢es conjugais violen­ tas? Se for afirmativa a resposta a esta ultima questao, resvalar-se-a para urn relativismo incontrolavel? Ou poder-se-iam apreender alguns invariantes do problema? Procurar-se-a responder, pelo menos parcial­ mente, a algumas destas indaga~oes. Finalmente, e este urn objeto de estudo relevante? Se 0 e - e e esta a hip6tese deste trabalho -, desvenda-Io consti­ tui-se em desafio imensuravel, pelo menos, por duas razoes basicas: a sub-denUncia e a ausencia total de dados globais. Publica~o recente da FIBGE (1990) sobre Justi~ e Vitimiza~ao ignora solenemente este fenomeno. Etao-somente da vontade polftica e do reconhecimento do estatuto academico do problema que se erige 0 desejo de realizar incursoes por dados aridos que aludem apenas tangencialmente ao fenomeno. Retomar-se-ao alguns indicadores globais sobre violencia ffsica, particularizando-se aqueles referentes aRegiao Sudeste, para, entao, se analisarem dados levantados em delegacias policiais do Rio de Janeiro sobre violencia domestica. No conjunto de dados coligidos pela FIBGE, duas variaveis permi­ tern realizar inferencias a respeito deste tema: autoria e local de ocor­

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rencia da agressao fisica. 0 trabalho eainda possfvel pelo fato de os dados terem sido desagregados por sexo, 0 que ja eurn grande passo, posta que significa admitir a existencia de uma organizac;ao social de genero no Brasil. No que se refere aautoria da agressao, as altemativas de respostas oferecidas pela FIBGE sao limitadas. Para analise da tendencia dos dados relativos aviolencia domestica, podem-se aventar duas hip6teses: 1) que 0 c6njuge tenha sido considerado parente; 2) que 0 mesmo tenha sido classificado como conhecido. Considerando-se a maior probabilidade de que a primeira resposta seja a mais usual, dada a associa~ao famflia/parentesco, optou-se por analisar os dados referentes a agressoes ffsicas praticadas por parentes, embora se considere possivel tambem, ainda que em menor escala, a ocorrencia da segunda hip6tese. Analisar-se-ao dados obtidos por pesquisadores em Delegacias Po­ liciais - especializadas e distritais, no Rio de Janeiro, nos anos de 1991 e 1992. Optou-se por nao se trabalhar com dados policiais, com 0 intuito de se ter maior possibilidade de controle - com todos os riscos que este tipo de pesquisa sugere, conforme problematiza~ao contida no capitulo 3 - sobre a qualidade das informa~oes. Nao se pretende tra~ar os perfis das vftimas da violencia e dos agressores, ate porque se considera esta tarefa irrealizavel. Parte-se da premissa de que a organiza~ao social de genero, que se traduz por rela~oes hierarquizadas e desiguais, modeladas a partir da diferencia~o social dos sexos, embora murnveis e reatualizadas continuamente, encerra em si mesma uma dimensao de violencia. Sua expressao sob a forma de agressao ffsica representa 0 apice, a exacerba~o do exercfcio do poder do qual se revestem tais rela~oes. Assim, nao epreciso que cada mulher deper si tenha sofrido esta forma de violencia. A existencia . do fenomeno em larga escala, bern como os mecanismos modeladores da identidade de genero hegemonicos, amplamente difundidos por toda a sociedade, exercem pressao virtual sobre 0 conjunto das mulheres ­ em que pesem as possibilidades e as ocorrencias, de fato, de transgres­ soes. Dados da FIBGE para 1988 referentes a"vitimiza~ao" indicam que da popula~ao adulta que sofre agressao fisica, a maior incidencia de vftimas, em ambito nacional assim como na area urbana da Regiao


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Sudeste, recaiu sobre a faixa etaria de 18 a 29 anos (32,2% e 45,7%, respectivamente). Se for ampliada esta faixa ernria para aquela compreendida entre 18 e 49 anos, visando aabrang~ncia da popula~ao adulta em sua fase reprodutiva, verificar-se-a que, no Brasil, as mulheres representam 74,3% das vitimas, e os homens, 68,1 %. Na area urbana da Regiao Sudeste, 0 mesmo padrao se mantem: 74,2% de mulheres e 68,5% de homens sofrem agress6es ffsicas na referida faixa etaria. Os dados nao apresentam, portanto, diferen~s significativas, em fun~ao do sexo da vitima. No entanto, se for analisada a autoria da agressao, verificar-se-a que a tend~ncia dos dados sofrera altera¢es substanciais. Das mulheres que declararam agressoes fisicas, 32,4% foram vitimas de parentes, no Brasil, e 33% na Regiao Sudeste. Na mesma situa~ao encontravam-se 10,7% de homens no Brasil e 11,7% na Regiao Sudeste. Do total de informantes do sexo masculino agredidos par parentes, 59,2% tinham entre 18 e 49 anos de idade, no Brasil, e 57,8%, na Regiao Sudeste. No tocante a mulheres vitimizadas por parentes no pais, 82% estavanl na mesma faixa etaria, mantendo-se padrao id~ntico na Regiao Sudeste (83,1%). No minimo, duas infer~ncias padem ser extrafdas desses dados: 1) a familia e 1 rna institui~ao, indubitavelmente, violenta; 2) consideran­ do-se a pop ula~o adulta, a viol~ncia e notadamente de g~nero, vitimi­ zando mulheres. Corrot oram esta assertiva os dados sobre 0 local das agressoes. Se se tomarem dados assexuados, constatar-se-a que 29,9% das agress6es ocorreram nas resid~ncias das vitimas. Contudo, ao serem desagregados por sexo, revelam outra tend~ncia. Considerando-se os homens agredidos na faixa etaria de 18 a 49 anos, em ambito nacional, 17% 0 foram em suas resid~ncias. Na RegiflO Sudeste 0 indice e de 17,1%. As mulheres foram agredidas em suas casas na mesma faixa etaria, em 51,9% dos casos no Brasil e 54,5% ria Regiao Sudeste. Ate 0 momenta, a tend~ncia dos dados revela que os indices obtidos para a Regiao Sudeste sao aplicaveis ao restante do pais. Atraves da pesquisa realizada em Delegacias Policiais do Rio de Janeiro, se obti­ veram dados, coletados diariamente em todas as Delegacias Especiali­ zadas do Estado, no unico Nucleo Especializado no Atendimento a

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Mulher, funcionando em delegacia distrital e em uma delegacia ordina­ ria representativa da Baixada Fluminense. Considera-se, portanto, qJ.le, em se tendo coberto 0 espectro de todo 0 Estado, os dados coIigiqos permitem infer~ncias mais globais, no que tange aviolencia denuncia­

da. Dentre as denuncias recebidas de violencia fisica familiar contra mulheres, em idade adulta, estima-se que mais de 95% referiam-se a viol~ncia conjugal. Eeste, pois, 0 territ6rio no qual se movem.os dados emapre~.

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Das mulheres que denunciaram viol~ncia domestica em delegacias policiais, 29,8% encontravam-se na faixa etaria de 18 a 29 anos e 65,3% tinham entre 30 a 49 anos de idade. Ha correspondencia, assim, com os dados globais sobre violencia sofrida. A maior incidencia concen­ trou-se entre 30 e 39 anos de idade. Dentre as pessoas agredidas por parentes ao nivel do pais, 8,3% eram negros, 42,8% pardos e 48,4% brancos. Os indices para a Regiijo Sudeste sao de, respectivamente, 9,5%, 38,3% e 51,4%. Tais dados sao divergentes daqueles obtidos pelas autoras deste trabalho. Dentre as denunciantes, 28% eram negros, 42% pardos e 30% brancos. Podem-se levantar duas hip6teses para este fato: 1) utilizaram-se metodosdife­ rentes para a coleta deste dado. Embora se tenha partido, em ambos os casos, da declara~aodo(a) informante, na pesquisa realizada em dele­ gacias policiais, esta informa~aofoi prestada no bojo de urn processo de reflexao sobre a quesUio da viol~ncia domestica, 0 que pode ter, em alguma medida, favorecido a emergencia da critica, inclusive sobre 0 ideario de "branqueamento" vigente; 2) as mulheres negras epardas pertencentes as camadas sociais que constituem 0 publico-alvo das delegacias policiais sofrem tripla discrimina~ao: de classe, de genero e de ra~a/etniaE possivel que a combina~o destas tr~s c.ontradi¢es leve ao excessivo recrudescimento das rela~6es de podere de tensao, tor­ nando mais diffcil suporta-Ias em sil~ncio. Trata-se de urn problema, contudo, que nao se tern a pretensao de resolver neste trabalho, uma vez que exigiria outro tipo de investiga~ao. Quanto adenuncia da viol~ncia sofrida, verifica-se que 61 % dos entrevistados, em ambito nacional, e 58,1% na Regiao Sudeste nao recorreram polfcia. Desagregando-se este dado por sexo, constata-se que dentre os informantes do sexo rnasculino agredidos, 37,5% recor­ reram apolfcia, no Brasil, e 41%, na Regmo Sudeste, enquanto 62,4%

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no pais e 58,9% na Regiao Sudeste nao 0 fIzeram. Os indices para as mulheres sao de, respectivamente, 41,1% no Brasil e 42,3% na Regiao Sudeste (denunciaram apolfcia) e 58,5% no Brasil e 57% na Regiao Sudeste (nao denunciaram). 0 mesmo padrao e observado quando se trata da violencia familiar: em ambito nacional, 36,6% de homens e 41,5% de mulheres recorreram apolfcia, enquanto 63,3% de homens e 58,5% de mulheres nao 0 fIzeram. Na Regiao Sudeste, ha pequena varia~o nos indices referentes a homens: sao 45,5% os que denuncia­ ram a agressao a polfcia, e 54,5% os que nao 0 flZeram. As mulheres mantem a mesma tendencia na Regiao SUdeste: 43,4% recorreram a polfcia e 56,5% nao 0 fIzeram. Nao se verifIcam, portanto, diferen~ substanciais, por sexo, quan­ to adentincia apolfcia. Como na epoca da pesquisa da FIBGE, ainda nao havia ocorrido a implantac;ao macic;a de Delegacias da Mulher no pais, nao e possivel, com os dados disponiveis, se avaliar 0 impacto da criac;ao dessas delegacias nos indices de denuncias efetuadas por mu­ lheres. Investigac;oes futuras poderao permitir este tipo de avalia~o. Das mulheres vftimas de agressao ffsica que nao recorreram a polfcia,.23,2% percebiam ate 1sahirio minimo e 16,6%, ate 2 salarios minimos. Destas, 35,4% nao acreditavam na polfcia ou nao queriam envolve-Ia no conflito, enquanto 14,2% temiam represalia. Quando se trata de vftimas do sexo masculino, os percentuais de nao-denunciantes sao os segu ntes: 21,3% percebiam ate 1 salario minima; 20,3%, ate 2 salarios; e~2,3%, entre 2 a 5 saffirios minimos. Dentre os homens, 32,3% nao acreditavam na polfcia ou nao queriam envolvimento com a mesma e ~O% temiam represaIias. Na Regiao Sudeste, verifIca-se pequena varia~o nos indices, 0 que pode ser explicado pelas diferenc;as regionais relativas aos nfveis sala­ riais da popula~o: 17,5% das nao-denunciantes percebiam ate 1salario minimo e 16,8%, entre 1 e 2 salarios mfnimos. Dos homens, 18,9% percebiam entre 1 e 2 salarios mfnimos e 31,4%, entre 2 e 5 salarios mfnimos. Quanto ao nfvel de escolaridade das pessoas que nao recorreram a polfcia, 37% tinham de 1 a 4 anos de estudo, no Brasil, e 38,6%, no Sudeste, seguindo-se a faixa de 5 a 8 anos de estudo, no Brasil, e de 31,4% no Sudeste. Este dado nao se encontra desagregado por sexo. Nao se dispoe de dados sobre faixas salariais e anos de estudo das pessoas que recorreram apolfcia. Dessa forma, sO e passivel se proceder

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aanalise dos dados relativos as que nao 0 flZeram. Os maiores percen­

tuais para as mulheres concentram-se na faixa de ate 2samnos mrnimos. Parece indiear este dado que mesmo em se tratando da Unica institui¢o pr6xima (geografIcamente) apopula~o, que funciona diuturnamente, o indice de rejei~o e elevado, sobretudo par parte daquele segmento que nao dispoe de recursos privados para acionar a instanciajurfdica. Nao e menos significativo que seja esta a camada social que tern se constitufdo em alvo privilegiado da polfcia em materia de violencia e d.iscrimina~o.

Quanto aos homens, hli tambem incidencia signifIcativa na faixa de mais de 2 a 5 salarios minimos, 0 que pode estar associado as diferenc;as salariais existentes entre os dois sexos. Retomando os dados das delegacias especializadas, observa-se que dentre as mulheres que denunciaram violencia domestica, 31,8% tinham de 1 a 4 anos de estudo e 24,3%, de 5 a menos de 8 anos. Ou seja, 56,1% das mulheres nao tinham 0 primeiro grau completo. Quanto a ocupac;ao, 35,4% eram donas-de-casa, 25,5% inseriam-se no setor de servic;os (excluindo-se 0 trabalho domestico) e 17,6% prestavam servi­ C;OS domesticos. No que tange a faixa salarial, 45,5% das mulheres percebiam menos de 1 salario minimo. Quanto aos agressores das denunciantes, as maiores incidencias recaem sobre as faixas de menos de 1 salario minimo e de 2 a 3 sallirios minimos (27,5% cada), sendo tambem signifIcativa a faixa de mais de 3 a 5 salarios minimos (200%). Observa-se que denunciam violencia domestica em delegacias po­ liciais, majoritariamente, mulheres que enfrentam condi<t>es de subsis­ tencia as mais adversas: baixa escolaridade, ausencia de qualifIca<;ao profIssional, salarios abaixo do legalmente permitido. Este conjunto de dados, aparentemente contradit6rios com os da FIBGE, nao pode ser lido linearmente. Einteressante registrar que dentre os informantes da FIBGE, 73,2% de homens e 76,5% de mulheres declaram ter sofrido agressao ffsica uma s6 vez. Raramente, entretanto, uma mulher denun­ cia apalfcia a primeira violencia sofrida por parte do marido. Epossivel que este segmento da populac;ao, pesquisado no Rio de Janeiro, embora recuse a alternativa policial em primeira insmncia, acabe por lan<;ar mao deste recurso - na impossibilidade de acesso a outros - haja vista a tendencia acronifIca<;ao da relac;ao de violencia. (SaffIoti, Can<;ado e Almeida, 1992)


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Analisando-se dados relativos a este fenomeno - cronifica<t3o da violencia -~ verifica-se que 60~4% das mulheres entrevistadas apresen­ tam rela~ao de violencia rotinizada~ ou seja~ sofrem violencia por parte do c6njuge ha pelo menos tres anos. Observa-se que nao ha conexao direta entre este fenomeno eo fato de terem vivellciado hist6rias de violencia fi'sica. em suas familias de orienta~ao. Quase metade das informantes (47~9% ) afirmou nao ter presenciado violencia ffsica entre os pais~ contra apenas 10,4% que 0 fizeram. Isto nao significa~ entre­ tanto~ que nao tenham partilhado outras formas de violencia Registra-se que a maior incidencia de rotiniza<t3o da violencia recai sobre mulheres que exercem atividade remunerada (41~3%). Dentre as donas-de-casa~ o fndice de rotiniza~ao e de 15~9% dos casos. A cronificac;ao da violencia e maior entre as mulheres negras ou pardas. Dentre as mulheres entrevistadas~ 42~9% estao nestas categorias de cor e apresentam rela~oes de violencia rotinizadas. Menos de 1/3 (25~7%)~ tambem negras ou pardas~ sofrem violencia ha menos de tres anos.. Dentre as brancas~ ha equilibrio entre atos de violencia recentes e rela~oes cronificadas de violencia. Considera-se que 0 trabalho remunerado da mulher e suas implica­ ~6es - as possibilidades de maior autonomia~ a constituic;ao de novas relac;6es~ a ausencia prolongada do lar~ as expectativas familiares frus­ tradas relativas as tarefas domesticas nao realizadas - constituem fatores de recrudescimento das tensOes na rela<t3o conjugal. A par disso~ as djscrimina~oes raciais tao impregnadas/dissimuladas no imaginario brasileiro~ ajudam a cimentar 0 terreno das paix6es destrutivas. Quanto a reproduc;ao da violencia com os fllhos~ 68~2% das infor­ mantes admitem aplicar castigo nos mesmos. Destas~ 83~9% afirmam castiga-los fisicamente e 16~1 %~ priva-los de atividades de lazer. Mais de 2/3 afirmam que 0 fazem para educa-los (76~ 7%). Metade das entre­ vistadas que se encontram nesta situac;ao exerce atividade remunerada versus 26~7% de donas-de-casa. Das mulheres entrevistadas~ 23~3% afrrmam que~ ao aplicarem castigos nos filhos~ sao movidas pela perda de controle~ mas se arrependem. Nesse caso, estao 16~ 7% de mulheres que trabalham fora de casa e 6~6% de donas-de-casa Apenas 11~5% das mulheres afirmam que castigam seus fllhos freqiientemente. Amaior incidencla concentra-se nas que dizem castiga-los ocasionalmente (57 ~7% )~ seguida de raramente (30~8% ). Ha ligeira predominancia nas duas categorias de mulheres que exercem atividade remunerada: 30,8%

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e 19~3%~ respectivamente~ contra 26~9% e 11~5% de mulheres que nao trabalham. Estes dados reiteram a hip6tese de que 0 trabalho remunerado da mulher tensiona ainda mais as rela~6es familiares. Ademais~ demons­ tram a ado~ao deliberada pelas mulheres da pedagogia da violencia~ ao considerarem que 0 castigo ffsico e recurso educativo. Nao M relaC;ao de causalidade entre relac;6es violentas anteriores~ relac;ao de violencia rotinizada e aplicac;aode castigo nos filhos: 45~2% das entrevistadas nao tiveram uni6es anteriores~ nao tern relac;ao de violencia rotinizada e aplicam castigos ffsicos nos filhos. Mais de 2/3 das mulheres entre­ vistadas (77 ~5% ) nao tiveram unioes anteriores. No que tange a pratica de violencia das mulheres contra seus companheiros~ 96~ 7% das mulheres entrevistadas admitem te-Io feito~ sendo que 9O~1 %justificam seus atos como forma de rea<t3o aagressbes anteriormente sofridas. Dentre as mulheres que utilizaram algum ins­ trumento para a agressao~ 2/31an~am mao de utensilios domesticos e 1/3 de armas brancas. Parece suficientemente claro que se esta lidando com relac;oes e nao com ac;6es unilaterais de violencia~ sendo a mulher sujeito (inter)ati­ vo na modelagem de praticas familiares tensionadas~ nas quais mate­ rializam uma dimensao expressiva do seu ser - ao mobilizarem slm­ bolos que mediam sua inserc;ao no espac;o familiar. Os utensflios do­ mesticos como instrumentos de agressao expressam bem esta assertiva. No que se refere as formas de agressao sofrida pelas mulheres~ 61~4% das entrevismdas declaram ter sido atingidos na cabec;a ou rosto quando sofreram a agressao que as levaram a recorrer a Delegacia Policial. Dentre as denunciantes~ 76,6% relacionam a violencia a exis­ tencia de algum fato diferente na vida do casal (uso de bebida alco6lica pelo companheiro, desemprego, entre outros). Os sentimentos expres­ sos apOs a agressao oscilam entre raiva e vergonha/humilha<t3o. A tendencia destes dados apresenta varia~ao quando se analisa a primeira violencia sofrida. A cabe~a e 0 rosto sao tambem as areas do corpo mais atingidas (62,5% dos casos); 87,5% dos informantes as­ sociam aviolencia a existencia de fato diferente na vida do casal, porem o sentimento predominante e de raiva (50% dos casos). A raiva que pode mobilizar doses expressivas de agressividade, necessarias a auto­ defesa e a sobrevivencia individual, euma importante pulsao de vida. Nesse sentido, se contrap6e a vergonha/humilha<t3o, que matizam ter­


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ritorio distinto de paix6es - de cristaliza~ao da violencia, de ausencia de perspectivas, detonando outro vetor de puls6es (Thanatos) que con­ duz 0 sujeito a acomoda~ao, ou seja, amorte. Como os instintos nao sao compartimentalizados, a rela~o dialetica Eros-Thanatos pode mo­ bilizar energias que favore~am a ruptura do pacto do silencio, sendo capaz de impelir as rela¢es outra dire~ao. Ate 0 momento, transitou-se pelo dominio da problematiza~ode evidencias empfricas, a partir de balizas te6ricas que permitem avan~ a reflexao para alem do dado imediato. Tentar-se-a adentrar mais 0 problema, analisando-se, para tanto, falas de sujeitos que protagonizam rela~6es de violencia domestica. Ha alguns mitos que permeiam 0 imaginario coletivo a respeito da violencia domestica, no que conceme ao seu autor: 1) A rela~ao reifi­ cada e alienada que 0 agressor desenvolve com sua mulher (esta e urn objeto extensivo ao seu ser) e urna particulariza~ao de sua consciencia historicamente forjada Em outros termos, sua rela~o familiar, permea­ da por clivagens de genero e gera~o, esta subsumida asua rela~o com o mundo, a qual, por sua vez, esta informada por sua visao de mundo. Deste mito, pode-se inferir que existe urn perfil do agressor - difuso, fragmeI1tario e ambfguo -, com tendencia a monopolizar doses expres­ sivas de poder, sobretudo mas nao exclusivamente, na esfera familiar, poder este ofuscador e contrastante de/com a possibilidade de elabora­ ~ao crftica do conjunto de rela~6es sociais que partilha. 2) A violencia domestica e fundada numa conce~o anacronica de etica e de estetica na rela~o homem-mulher, posto que dissonante do estatuto politico­ cientffico que 0 fenomeno das rela~6es de genero vern alcan~ando mundialmente. 0 corolario desta assertiva e a existencia de urn perfIl de vftima, simultaneamente contrastivo e identitario com 0 de agressor - mobiliza pequena ou nenhuma parcela de poder e contnbui ou (0 que e mais grave) provoca tais rela¢es anacronicas, revelando-se, dessa forma, pseudovftima Tematizando a rela~o violencia-praxis social, Vazquez afirma que o objeto ou materia daviolencia e constitufdo(a) por seres concretos ou por rela~6es humanas. Portanto, "... as a¢es humanas que se exercem sobre eles nao se dirigem tanto ao que tern de seres corporeos, ffsicos e sim a seu ser social; ou seja, asua condi~ao de sujeitos de determi­ nadas rela~6es sociais, economicas, politicas, que se encamam e cris­ talizam em determinadas institui~6es; institui~6es e rela~6es que nao

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existem, portanto, a margem dos indivfduos concretos. (...) A praxis esbarra no limite oferecido por indivfduos e grupos humanos. A vio­ lencia se insere na praxis na medida em que se faz uso da forc;a, pois a a~ao violenta e exatamente a que tende a vencer ou a saltar urn limite atraves da for~. (...) 0 corpo e 0 objeto primeiro e direto da violencia, mesmo que esta, a rigor, nao se dirija em ultima instancia ao homem como ser meramente natural, e sim como ser social e consciente. A violenciavisa dobrar a consciencia, obter seu reconhecimento, e a a~o que se exerce sobre 0 corpo dirige-se, por isso, a ela" (1977, pp. 379 e 380). Nesta acep~ao, utiliza-se da for~a para se mobilizar parcelas de poder, que nao poderiam ser obtidas legitimamente atraves do consen­ timento do outro. Objetiva-se, assim, instituir e reproduzir rela~6es heteronomas, subjugando 0 antagonista que, na aparencia, e exces­ sivamente mais fragil. Ora, se assim 0 fosse, prescindir-se-ia do uso continuo da for~a, posto que a domina~ao-explora~ao estaria as­ segurada, nao havendo lugar/sentido para embates continuos e sistema­ ticos. Ademais, a violencia nao tern carater absoluto, pois e insustenta­ vel sem base legitimadora para seu exercfcio. Se este raciocfnio e correto, no que tange arela~ao de genera, a violencia apresenta as seguintes caracterfsticas: 1) visa apreserva~ao da organiza~o social de genero, fundadana hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizamo genero feminino; 2) amplia-se e reatualiza-se na propor~o direta em que 0 poder masculino e amea~ado; 3) e mesclada com outras paix6es com carater positivo, como jogos de sedu~o, afeto, desejo, esperan<;a que, em Ultima insrnn­ cia, nao visam abolir a violencia, mas a alimenta-Ia, como forma de mediatiza~o de rela¢es de explora~ao-domina~o; 4) denuncia a fra­ gilizada auto-estima de ambos os conjuges, que tendem a se negar reciprocamente 0 direito aautonomia nas mfnimas a¢es. Retomando a discussao do mito, Barthes afirma que este e "...urn sistema de comunica~o, e umamensagem. (...) e urn modo designifi­ ca~o, urna forma (1993, p. 131). E nao se trata de qualquer fala: "... 0 mito e uma fala escolhida pela historia: nao poderia de modo algum surgir da 'natureza' das coisa( (p. 132). Acrescenta ainda:" 0 mito possui urn carater imperativo, interpelatorio: tendo surgido de urn con­ ceito historico, vindo diretamente da contingencia (...), e amim que ele se dirige: esta voltado para mim, imp6e-me a sua for~a intencional; obriga-me a acolher a sua ambigiiidade expansiva. (...) Pois esta fala


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interpelativa e simultaneamente uma fala petrificada: no momenta em que me atinge, suspende-se, gira sobre si propria, e recupera uma generalidade: fica transida, pura, inocente. (...) omito e uma falarau­ bada e restituida. Simplesmente, a fala que se restitui nao e exatamente a mesma que foi roubada: trazida de volta, nao foi colocada no seu lugar exato. E esse breve roubo, esse momento furtivo de falsifica~ao, que constitui 0 aspecto transido da fala mitica" (pp. 145-147) (grifos no original). Nao seria a concep~o do carater desviante e anacr6nico daviolen­ cia domestica urn poderoso mito capaz de rouba-Ia da sua dimensao historica e polftica e de restitui-la ao plano das rela~6es e patologias interpessoais? E mais: com eficacia para roubar seu carater jurfdico, restituindo-o para 0 terreno familiar e, apenas subsidiariamente, pas­ sivel de regu1a~o pelo Estado (no sentido estrito de normatiz~o,com vistas conten~o dos seus excessos)? Seu carater interpelador comu­ nica aos protagonistas de rela~6es de violencia mensagens ambiguas: vivenciam uma situa~ao existenciallimite, cabendo-lhes enfrenta-Iae resolve-Ia; no entanto, devem preservar a institui~o familiar como lugar sacralizado de desenvolvimento de rela~6es de solidariedade e afetD. Tentar-se-ao examinar os dois mitos enunciados, a partir das falas dos protagonistas de rela¢es de violencia.

homem, quando se unem pra viver juntos, as responsabilidades sl\o iguais, quanta aeduca~o dos filhos, quanta aparte fmanceira, do traba­ Iho, tudo deve ser iguaI. Atualmente, na sociedade em que vivemos, 0 homem pega a responsabilidade de levar 0 dinheiro pra casa e a mulher fica com a responsabilidade da casa e dos filhos. Acho que queira ou nao, a responsabilidade colocada e essa. Talvez eu estarei enquadrado, parque acho que, atualmente, tenho melhores condic;6es de ganhar dinheiro que a mulher. Atualmente, a mulher nao e colocada no mercado de trabalho com as mesmas igualdades dos homens. A igualdade de condic;6es seria boa pra melhorar 0 relacionamento entre os dois; a mulher nunca ficaria submissa ao homem."

Sobre a violencia do homem contra a mulher: "Acho uma atitude impensada, urna atitude de uma pessoa que se sente menor do que a outra e acho que isso nlio pode acontecer porque acho que entre urn casal.... (...)Se par acaso ele bateu nela, foi porqueja vinha se sentindo... e foi criado naquele rancor e chegou a esse ponto, estava precisando apenas de urn motivo pra acontecer isso."

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1. A rela~ao reificada e alienada que 0 agressor desenvolve com sua mulher e uma particulariza~aode sua consciencia histori­ camente forjada. Reproduzir-se-ao alguns excertos da fala de urn mergulhador de uma grande estatal e fotografo, militante historico de urn importante partido de esquerda e dirigente de urn sindicato do Rio de Janeiro: Sobre a divisao sexual do trabalho: "0 trabalho domestico tern que ser enfrentado pelo homem e pela mulher. Se 0 homem, por exemplo, trabalhar fora e a mulher nao trabalhar, 0 setvic;o fica pra mulher. 0 sabado e 0 domingo, quando os dois estiio em casa, eles dividem 0 servic;o." "0 homem na' sociedade de hoje tern se colocado como respansavel pela falD11ia, ao que sou totalmente contra. Acho que tanto a mulher quanto 0

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Sobre poder: ',--

"Se acontecesse da minha mulher ter urn cargo mais alto, se ela tivesse ganhando bern, acho que 0 homem nunca deve ficar por baixo mesmo. Isso nao tern nada aver."

Sobre violencia: "A violencia, eu acho, e mais urna questao de miseria. Atualmente, as pessoas nao tern condic;6es de estudar, as pessoas tern problemas finan­ ceiros. Nao sei os problemas que acontecem especfficos. -Acho que 0 problema real e a miseria do povo."

Cena de violencia: "Eu dei uns tapas nela e ela tentou me agredir com urn pedac;o de pau; inclusive me agrediu par duas vezes. 0 mesmo pedac;o de pau que ela me agrediu, tomei e agredi ela tambem."

Sobre sentimento ap6s violencia: "No dia seguinte, me senti ate realizado porque eu ja vinha sofrendo muitas agress6es aminha moral ha bastante tempo, dela me xingar. Mas depois comecei a pensar que foi umato que eu nao deveria ter cometido."


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"Qui alors, qui coupe la parole? Qui instaure Ie dlvorci dt II parole et du silence, de I'homme et de la femme, sinon II 111.111 parole qui demeure en place, celie de I'homme? Verbe brl.', plralt divorcee, sectionee, sexuee, et plus encore, inventrlce du IIICI, ell la virilite qui parle, de la feminite qui tail" (Idem, p.ll).

Sobre a polfcia: II'

"A policia atualmente esta como opressora da sociedade. Acho que foi criada para defender a sociedade e esta como opressora da sociedade."

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Sobre a demlncia da violencia: "(...) A pessoa que ecolocada como mais fragil ea mulher. Entao tern uma certa prote~o maior pra mulher. Porque sempre quem faz a queixa ea mulher, 0 homem na sociedade que vivemos ainda emuito machista, entao ele recebe urn tapa, urn bofemo de uma mulher, ele Dunca vai dar queixa, ele revida. Dificilmente 0 homem vai dar queixa numa delegacia contra a mulher." .

Parafraseando Meszaros, pensa-se que nao se pode conceber 0 ser social como uma totalidade inerte hornogenea (1981, p. 162). Enquanto o discurso generico e abstrato e critico, ao tomar-se auto-referente, e reelaborado, num ate continuo, de forma ambfgua. 0 tema que 0 inter­ pela e, portanto, particulariza e da concre~ao ao discurso e aquele do qU~1 nao consegue se distanciar. Sua concep~ao sobre 0 movimento feminista ebastante elucidativa: " Acho que nao tern sentido, af vai se criar 0 movimento rnachista, pra poder se conseguir rnais direitos do que a mu1her. Nao tern nada aver isso.Acho que tern que estar la na constitui~ao, 0 born senso de colocar na constitui~ao, os direitos sao iguais. As pessoas sao iguais, nao tern nada de diferente entre hornem e mulher, apenas 0 sexo." Embora sua militincia polftica tenha se originado quando secundarista e persista ate os dias atuais, 0 informante em questao nega a importancia de urn movimento social que tern se afirmado enquanto ator politico re1evante nas duas ultimas decadas. Nao consegue visualizar a legisla~ao enquanto expressao e cristaliza~o do embate das for~ em disputa em determinada conjuntura social. Antes, a ve como instituidora da ordem social, posto que a fetichiza, conferin­ do-Ihe vida propria. Ademais, naturaliza diferen~s soCialmente cons­ trufdas. "L'homme s'est fait homme d'une parole coupee, coupante et re­ ductrice. Et la parole s'est fait homme. Parole du pouvoir, reduisant I'infinite du. verbe, ecartant la femme dans Ie silence, parole OU s'enonce la propriete: mon bien est ce que n'est pas ton bien; puis Ie pouvoir nouveau qui en decoule" (Leclerc, 1976, p. 11).

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Analisando-se fragmentos do depoimento anterior registrado, pc­ dem-se fazer algumas ila¢es. Ernbora considere que 0 trabalho dom"­ tico deve ser assumido por ambos os c6njuges, ao exemplificar, enuncll apenas a possibilidade de 0 homem trabalhar e de a mulher arcar com sua responsabilidade exclusiva. Ainda que ensaie uma critica sobre a injusta divisao sexual do trabalho, tentando atnbuirsuas causasa sociedade ern abstrato, e afirme considerar a igualdade desejavel, flagra-se em contradi~o e acaba per admitir estar enquadrado, por sua inser~ao privilegiada no rnercado de trabalho, em rela~ao asua mulher. Tenta trabalhar com a hipotese de receber menor sa1mo do que a mulher, para, em seguida, declarar que o homem nao deve se suba1ternizar e, enfim, conduir, ensejando 0 autoconvencimento (e do[a] interlocutor[a] de que se trata de fato se· cundario. Quando se refere avio1encia contra a mulher, esbo~a a tese da irracionalidade ou da impulsividade para, em seguida, recoloca-Ia sob o dominio da razao: "... foi porque ja vinha se sentindo...". Apresenta concep~o reducionista daviolencia, remetendo-a aos embates de clas­ se. Quando se refere arela~ao de violencia com sua esposa, ainda que mencione, em primeiro lugar, seu ato de violencia, 0 abranda (deu urn tapa). Foi a mulher quem tensionou a agressao, pois, a1em de ter-1he agredido com urn pau (no inicio, falou da tentativa de agressao, para entao agregar sua efetividade, associando a expressao "inclusive"), 0 fez duas vezes, portanto, seu ate foi mais grave intensiva e extensiva­ mente. Sua agressao mais forte, conquanto menor do que a praticada por sua esposa, ocorreu ao se reapropriar do pau (ou do falo) - 0 mesmo anteriormente erguido contra si proprio. Admite ter sentido prazer, dimensao associada amoral atingida, solapada, mas, finalmente, honrada. Logo, entretanto, recupera 0 dis­ cursodaracionalidade Quanto ao aparelho coercitivo estatal, identifica seu caniter opres­ sor, tomando, entretanto, como objeto de sua a~o a sociedade generica,


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CIDADE MARAVILHOSA: A OUTRA FACE

sem aludir a clivagens de classe ou de outra natureza. Contrap6e a esta a¢o uma visao romantica e idflica de polfcia, veiculada pelo discurso

oficial. Referindo-se a queixa da violencia, tenta estabelecer a as­

socia<tao violencia sofrida-violencia denunciada, argumentando que 0

primeiro dos tennos e comum a ambos os sexos e 0 segundo e proemi­

nente para as mulheres, do que se pode depreender que 0 homem e

duplamente vitima da violencia - por sofre-Ia e por nao denuncia-Ia,

enredado queesta em sua pr6pria armadilha (mais uma vez remetida a

sociedade generica, que emuito machista). Deixa implfcito, ainda, que

a violencia masculina euma rea¢o aquela praticada pela mulher.

Nas falas dos agressores, constitui invariante 0 recurso a delegacia como antecipa¢o aqueixa aser prestada pela mulher. Para a fonnula­

¢o de sua autodefesa, 0 agressor insiste na culpabiliza<tao da mulher,

fundada na quebrada contrato matrimonial, expressa, notadamente, na

ruptura da tradicional divisao sexual do trabalho. 0 fragmento a seguir eemblematico do carater antecipat6rio da queixa apresentada apolfcia pelo agressor: "Eu vim preparado... Eu vim preparado, porque se ela chegasse af, porque ela pra inventar... pra inventar, pra armar, ta em primeiro lugar. Eu esperava dela chegar af e fazer uma queixa a voces af, dizer que eu tentei matar afaea, apaulada ou Ili 0 que fosse. Eu sinceramente vim displicente e tranqliilo, porque se as agress6es que eu flZesse , vamos dizer, fizesse uma.. ~ marcasse ela de hematoma no corpo dela, algum ferimento atapa ou a pau, Ili 0 que for, algum aparelho, arma branca, ai eu ja vinha mais preocupado." (mecfullco de armamento/datiloscopista da polfcia tecniea - aposentado, primeiro grau completo).

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"Sou casado, desquitado, vivi com uma mulher hci oito anos que era considerada urn bicho-do-mato, urn bicho-do-mato tern mais raciocfnlo do que ela, porque urn bicho-do-mato (...), urn leao a gente consegue domar e ela, em oito anos, nao conseguiu ser domada. 0 resto agora, abandonou 0 lar, foi embora com outro cidadao e agora nao quer que eu veja 0 filho." (marceneiro autonomo, primeiro grau incompleto)

Cenas de violencia: "...ela partia pra cima de mim, eu tinha que me defender. Se ela tivesse faea, pau, picareta, partia pra cirna de mim. Agora, como eu nao you mais apanharde mulher..." (marceneiro autonomo, primeiro grau incompleto)

Sobre a divisao sexual do trabalho:

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"...a mulher sempre faz 0 servic;;o domestico, desde que ela nao trabalhe fora. Mesmo que trabalhe, a obrigaC;;ao da mulher e: quando chegar, se tiver prato sujo, lavar, se tiver uma roupa suja, ela lava. Eu nao dava essa ousadia pra ela porque eu mesmo fazia a coisa em casa porque naquele tempo eu nem estava fazendo biscate, ficava s6 em casa. Quando ela chegava estava tudo prontinho e ela nao merecia isso". (marceneiro autonomo, primeiro grau incompleto). A mulher sempre faz 0 servic;;o de casa Eu pelo menos estou lavando a minha roupa agora. Se eu tivesse uma mulher, ela lavaria....depois que eIa comec;;ou essa presepada toda ela nem minha roupa queria lavar, eu mesmo que lavava. Agora, mo e nenhuma desonra 0 homem lavar roupa, nem lavar prato." (marceneiro autonomo, primeiro grau incompleto)

Sobre a eficacia da violencia:

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Trata-se de urn policial que conhece bern os mecanismos da cor­ pora<tao que 0 contrata e que compartilha com outros agressores da mesma estrategia. Enuncia 0 prepare de sua defesa, admite a pratica de agress6es, mas enaltece sua sabedoria: sabe agredir sem oferecer agra­ vantes para 0 enquadramento institucional do seu ato, derivando, dai, sua displicencia e tranqiiilidade. Seguem alguns trechos de depoimentos de urn marceneiro autono­

mo, militante de movimento de bairro.

Sobre poder:

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"A minha mae me deu duas surras, foi 0 bastante." (marceneiro autono­ mo, primeiro grau incompleto). "Quando puxei a orelba dela, eu realmente me arrependi, porque MO adiantou nada. Ela continuou com a mesma bagunc;;a dela." (marceneiro autonomo, primeiro grau incompleto).

Sobre a rela<tao com os mhos: "Ela quando falava qualquercoisa com ele, ele respondia de ma-cria«ao. AI eu chamava:" voc~ nao pode fazer isso com a sua mae. Sua mae nao vale nada pro seu pai, mas sua mae e sua mae." (marceneiro autonomo, primeiro grau incompleto).


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CIDADE MARAVILHOSA: A OUTRA FACE

- ao negar a desonra ensejada por sua ruptura, de fato, reafirma que a honra se inscreve no quadro da organiza~ao social de genero. Defende a violencia desde que apresente eficcicia. Rigorosamente, indica que esta depende da capacidade de aprendizagemlenquadramen­ to do objeto da violencia, figurando, mais uma vez, a representa~o do objeto-sujeito. No mesmo movimento, atribui ao objeto da violencia a responsabilidade por dar-lhe limites. 0 arrependimento expresso porter puxado a orelha da mulher 6 inversamente proporcional ao grau de eficacia da violencia praticada, nao guardando rela~o com a reelabo­ ra~ao do seu ato. Quanto arela~ao mae-mho, deseja mostrar que a mae nao e res­ peitada pelo filho, isto e, al6m de nao desempenhar a contento seus papeis de dona-de-casa e esposa, nao consegue impor a autoridade materna. Esta deve ser institufda pelo patriarca, que detem 0 poder familias. Portanto, eele quem possui 0 monop6lio da autoridade, con­ cedendo-a amulher. Assim, a autoridade da mulher e institufda atrav6s do outro, como extensao que e deste.

A imagem que este depoente veicula de sua ex-esposa a despoja de sua hurnanidade e racionalidade, inserindo-a no reino da natureza, ao real~ar seu carater selvagem, sua incapacidade de ser domada. A civi­ lidade esta associada acapacidade de enquadramento na organiza~o social de genero, de permitir a modelagem e transforma~o da natureza. Nesta ace~o, a natureza encontra-se destituida de passividade. Para 0 agressor, portanto, 0 homem e 0 sujeito capaz de operarsua transfor­ ma~ao. Amulher, emboraobjeto que sofrera sua a~o, e responsabili­ zada por nao ter permitido que esta se efetivasse. Assim, considera a mulher 0 sujeito da nao-a~ao civilizat6ria, portanto, 0 nao-sujeito. Nas cenas de violencia, amulher erecorrentemente colocada como ser ativo, capaz de desencadear 0 episOdio, utilizando-se, para tanto, de instrumentos falioos, como pau e picareta. 0 ~omem aceita contracenar, a partir do "argumento" criado pela mulher. E urn ator que, embora sob sua dire~o, rouba a cena e da 0 seu desfecho! De acordo com Barthes (1991), a cena e urna "trocade contesta¢es

reciprocas", e 0 exercicio de urn direito, a partilha de uma linguagem

da qual se e co-proprietario. A cena e interminavel, nao visa a urn

acordo, mas a se dar a ultima palavra, ou seja, a definir 0 seu desfecho,

o que equivale a atribuir urn sentido, a liquidar 0 adverscirio. Nesse sentido, a cena encerra, simultanea e paradoxalmente, dimens6es de racionalidade e irracionalidade. A razao e mobilizada na constrUl;ao de argumentos, na cria~ao de justificativas para 0 seu de­ senrolar. Eurnjogo de poder que reafirma modelos, que deseja derrotar,

mas nao eliminar 0 adverscirio, liquidar a partida, mas nao encerrar 0

jogo. Novos lances, cada vez mais ousados, devem ser dados. 0 carater

irracional da cena consiste na sua ausencia de sentido, na medida em

que nao avan~ para a negocia~ao, com vistas a se produzirem mudan­

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No tocante adivisiio sexual do trabalho, sua reitera~o e inequfvo­ ca. A tentativa inicial de condicionar a aloca~o da mulher no trabalho dom6stico aausencia de atividade remunerada tern vida curta. Logo passa a defender a dupla jornada de trabalho para a mulher desde que haja tarefa domestica a se fazer, como se esta algum dia se esgotasse. Para 0 homem, admite apenas umajornada - quando nao desempenha seu papel principal pode substituira mulher, como ate de generosidade. Na sua fala, a divisao sexual do trabalho encerra urna dimensao moral

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"Desde cedo, em toda parte, tem-se medo do feminino, do misterio da fecundidade, e da maternidade, 'santuario estranho', fonte de tabus, ritos e terrores. 'Mal magnifico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher e acusada pelo outro sexo de haver trazido sobre a terra 0 pecado, a infelicidade e a morte' " ((haUl, 1987, p. 38).

Os depoimentos ate enta~ examinados, corroboram a hip6tese de que os embates fundamentais travados na sociedade, a partir de interes­ ses antag6nicos, dentre os quais os de classe e genero - que adquirem proeminencia nesta parte do trabalho - MO ocorrem de forma linear e unlvoca. Da mesma forma, os nlveis de consciencia que os contendo­ res vao adquirindo dos processos sociais inscrevem-se na forma e natureza da sua inser~o no conjunto complexo e contradit6rio de re1a­ ~6es e na possibilidade de integrar sujeitos coletivos, capazes de des­ venda-los. 2. A violencia domestica e fundada numa concep~iio anacronica de etica e estetica oa rela~iio homem-mulher. "Temos medo da fala mansa do inimigo, mas muito mais, quaD mais do inesperado punhal a saltar na mao ha pouco amiga para trespas­

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"(...) Se me agredir, eu me defendo. Nao bato, pego pe10 bra~o, se voltBr de novo, vai levar outro empurrao. Agora, empurrao pode pegar no rosto, ' no ombro, omoplata, peito. Na segunda vez, como Ihe falei, no meu momento. Nao YOU dizer que nao bato, e 0 momento. Primeiro ~ 0 empurrao, essa eu estou em mim ainda. Se voItar a empurrar de novo, eu tiro afaca. Ela vai pega a tesoura, entao elaja esta voltando com convic­ ~o" (operario de olaria, primeiro grau incompleto).

sar nosso aberto peito ou pelas costas nos aniquilar. E entao, quem sabe, nesse medo que esteriliza os abrac;os que descobrimos nao termos medo disto ou daquilo, de algo ou de alguem, jii nem mesmo medo de nossa propria sombra, somente medo do medonho. Susto, espanto, pavor. Angustia, medo metaffsico sem objeto, tudo e nada Ihe servindo para consumar-se ate alc;ar-se ao apice: medo do medo. Juntamente com 0 odio, 0 medo, escreveu Espinosa, e a mais triste das paixoes tristes, caminho de toda servidao" ehaU!, 1987, p. 39).

Vma das formas mais contundentes de medo, capaz de mobilizar fortes conteudos passionais, e a que se forja cotidiana e sub-repticia­ mente e ofusca a nomina'1ao do inimigo. " naquele abra~ que ele me cia, ele for~ omeu pesco~ com 0 bra~o..." ( ) "...eu ja acordei com ele me estrangulando, acordar de madrugada com ele, ele ta apertando 0 meu pesco~o ..." (38 anos, vendedora ambu­ lante, primeiro grau incompleto) ',I 1'1

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Esti se lidando com uma expressao peculiar de violencia, posta que

conformada por urn amaIgama de paix6es extremamente ambfguas,

silenciadas - por vezes nao admitidas pelo pr6prio sujeito que as

vivencia. No fenomeno em apre'1O, ganham relevo determinadas moda­

lidades de paixao que encerram suas antfteses e sao reeditadas conti­

nuamente e de forma crescentemente ambfgua: amor X 6dio, culpabi­

liza'1ao X vitimiza'1ao, desejo X repulsa, agressividade X resigna'1ao,

entre outras formas. "Isso foi que ela partiu com palavras agressivas, eu estava deitado, ela veio nas minhas partes, agarrada, me agrediu. Ela pegou urn espelho, quebrou 0 espelho e veio me enfiar 0 espelho. 0 espelho bateu aqui na barriga e cortou aqui no dedo, tenho marcas ate hoje. Dei-lhe urna pan­ cada, nao yOU dizer que nao. Eu assumi, dei mesmo. Agora, eu fui agredido" (operano de olaria, primeiro grauincompleto).

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"(...) eu fui agredido, eu me defendi. Ela veio dizer que eu dei, eu te mostrei, foi marca de faca, tenho marca de tesoura. Ela so vern com faca, eu me defendo; agora, so nao me defendo batendo, me defendo empur­ rando 0 bra~o dela contra a parede. Se ela voltar, ai sou obrigado a dar uma nela pi-a ver se ela acorda urn pouco" (operario de olaria, primeiro grau incompleto).

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As cenas sao interminaveis e independem de uma razao imediata. Neste jogo de tautologias, as paix6es prescindem de objetos ou, em outros termos, as paix6es se transformam nos seus pr6prios objetos. Minai, 0 que passa a ser disputado e 0 processo, e a disputa em si. Teme-se antes a perda da rela'1ao do que 0 objeto da perda. Tem-se medo do pr6prio medo. 0 que adquire centralidade. e 0 desejo de subjugar, que emediatizado pelo uso da for'1a ffsica e pela realidade corp6rea do outro. Subjacente aviolencia ffsica esta a comunica'1ao simb6lica que da a plasticidade ao ato, que erotiza a agressao: "Ela veio nas minhas partes, agarrada..." "Ela pegou urn espelho." - Alem de objeto cortante, 0 espelho e instrumento de aferi¢o estetica, e vefculo que retlete a imagem, podendo desnuda-la, mas tambem, ao promover sua inversao, mitifica-Ia. A rela¢o violenta e informada por uma erica, que prescreve, nor­ matiza e ritualiza condutas. A agressao legftima e reativa, fundada em motivo ilegftimo fomecido pela vftima, devendo possuir grada'1oes e ser, invariavelmente, mais branda em rela'1ao ao ato sofrido - seja ele ffsico ou simb6lico. 0 tensionamento da rela¢o provocado pelo outro justifica a nao-razao: "... Eu estou em mim ainda". Em rela'1ao ao antagonista, porem, a representa¢o e diametralmenteoposta: 0 grau de tensao no relacionamento varia em propor¢o direta ao uso da razao ­ "... Entao ela ja esta voltando com convie<;ao". "Eu tava sentindo vergonha, revolta, entende? Porque eu tive ate a imi­ nencia na hora de ir la pegar ela, mas ai procurei mecontrolar 0 maximo, entendeu? Eu me controlei, mas, quando eu cheguei em casa, tambem controlado, ela al come~ou a falar: "Ah, porque nao sei 0 que, aquelas suas piranhas e nao sei 0 que - e eu to quieto, e ela ta instigando, ta instigando, ta instigando. Chegou urn ponto que eu ia me descontrolar, al eu fui pra ela, agarrei ela pelos cabelos, assim, sacudi, e ai 0 garoto


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-, para, em seguida, desqualificar e liquidar 0 contendor - "... Porque ela emaluca." Segundo Barthes, loucura e desrealidade, que aprisiona e congela 0 sonho, 0 imagimirio e 0 real. Enquanto tal eindizivel. 0 agressor, ao roubar a realidade/razao da vitima e restitui-Ia a outro Lugar de forma contra-argumentativa, constr6i 0 mito do homem cor­ dial, ao mesmo tempo em que nega it mulher 0 direito de ser sujeito. Sua unica certeza e instituida atraves da nao-positividade, que eabso­ lutizada: "... Eu nunca fiz isso. C...) Nunca, peLo contrario. C...) Eu nunca dei dinheiro, nunca deixei..." Ao falar sobre a genese da agressao, no entanto, e impreciso, por se tratar de seu ato, sendo fundamental, pro­ ceder, de imediato, a nova inversao.

ehegou - 'Pa~ pai, para com isso.' AI eu ouvi 0 gamto. (...) Me satisfIz naquela rea~o de nervos" (41 anos, acsougueiro).

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"... a eriatura com quem convivo, ja bati muito nela, nao nego, aeabei de

dizer isso la dentro, porque quando vim a descobrir que ela era mentirosa,

isso foi que aeabou com 0 nosso relacionamento e estou vivendo esse

tempo todo em fun!Sao do mho. Aminha mae diz: 'Ab, meu filho ! 0 teu mho etao pequeno!' E venho agiientando isso tudo, comeeei a nao mais acreditar nela e dar, (...) bali nela muito..." (41 anos, acsougueiro).

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" (...) Ela mente muito, dizendo que ela esta esperando neneme que bati nela. Eu nao fiz isso, nunea fiz isso nela esperando nenem, nunea mesmo, em nenhurn dos tres, porque ela emaluca, ela diz pras crian!Sas que bati nela, ela esperando nenem, diz pras crianCSas que eu mandei deixar as erian!Sas na maternidade. Eu nunea fiz isso(...), muito pelo contrano, todos tres ela sempre quis tirar, eu nunea dei dinheiro, nunea deixei. Nao tenho lembranCSa de quando eomeeei a bater nela. S6 sei que comeeei a bater nelaquando comecei a sentir que ela estava mentindo(...), nao tinha uma coisa que ela dissesse que eu fosse constatar que realmente fosse aquilo. Eu nao sentia que ela fosse assim, isso pra mim foi urn choque" (41 anos, acsougueiro).

o conceito de honra e, recorrentemente, tematizado pelo homem. Este, representado como ser racional, por excelencia, ve minada esta sua condi<;ao pela mulher - ser que, no imagimlrio social, e dotado predominantemente de emo<;fio. Esta concep<;fio dual, que permeia a constru<;fio dos generos masculino e feminino, einvertida pelo agressor, que, imerso na irrealidade Cdiz a realidade de outra forma) - na con­ cep<;fio bartheana -, pode, assim, se tomar vitima, ou seja, assumir 0 lugar socialmente destinado amulher. E assim 0 fazendo, restitui sua honra. o valor etico daverdadee freqiientemente aludido, sobretudo como contraponto da ausencia deste valor relativo aparceira: niio nega que a agrediu quando descobriu que ela era mentirosa. E desta mulher ­ nao-sincera e, por isso, culpada pelo Hm do relacionamento - a res­

ponsabilidade pela agressao sofrida - "... E dai C...) batinelamuito."

- por parte do homem, que encama 0 altruismo.

A vitimiza<;ao masculina e dramatizada e real~ada atraves do re­ curso a argumentos que reiteram e enfatizam sua condi<;ao - "... Eu niio Hz isso, nunca fiz isso C...). NUllal mesmo, em nenhum dos tres..."

"... quando, reaImente eu batia nela, ela ja deu parte de rnim vanas vezes, urnas duas ou tr~s vezes, mas nunca foi nada (...). Chegava l<i na delega­ cia, 0 delegado mandava eu e ela embora e aeabou, nunea foi nada assim, esta entendendo? Entao, jamais esperava que ela viesse aqui por livre e esponffi.nea vontade (...)" (41 anos, a!Sougueim). " Mas eu nao agrido ela, ja disse pra vod, ja bati muito nela e quando eu fazia isso, no momento eu me sentia realizado, mas nao fa!So mais isso, nunea mais fiz..." (41 anos, a!Sougueiro) " (...) Nesse mundo existe... existe mulher que se vira pra, seja onde for, baixo meretricio, pra sustentar homem e ele bate nela(...) existe gosto pra tudo. Aeredito sim que existe urna grande maioria que gosta de apanhar (...). Eu penso, nao estou dizendo isso dentro da delegacia (...), nem penso mais em bater na Silvia, nao penso mais fazer nada, disse isso pra ela mesma. Se tiver que fazer alguma eoisa com a Silvia amanhii ou depois, YOU fazer de vez; ai, assim, YOU pra tras das grades, mas tiro ela de eireula¢o geral. Nao YOU mais dar tapinha nela, nem arranhar ela, nem ela me arranhar, eu YOU fazer, YOU assumir. Isso que nao quero que aeonte~." (41 anos, acsougueiro).

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Se a nega<;fio da responsabilidade pela agressao e absolutizada, sua ocorrencia, que nao pode ser negada porque denunciada, erelativizada no que eonceme a sua extensao: "... Varias vezes" sao reduzidas a "umas duas ou tres vezes" e, finalmente, a "nunea" Cern termos de gravidade). Na seqUencia, entretanto, transfere 0 problema para 0 pas­ sado, quebrando a temporalidade: no reino do inatingfvel, pode-se afi­ gurar sua responsabilidade - 0 que e uma contradi<;ao nos termos, pois


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sozinha, dizia pra ela dizer que caiu, ou inventava qualquer hist6ria, ou nao ia tentar levar ela" C41 anos, a~ugueiro).

estaja esm, por defmi~o, prescrita, tomando-se 0 agressor inimput<ivel. Pode, entao, ate admitir urna rela~o sadomasoquista: ambos sentiam prazer com a dor reciproca ; ele se sentia realizado e ela, por nao ser exce~ao, provavelmente gosta de apanhar, como a maioria das mu­ lheres, na sua concep~o. No jogo de temporalidade, remete ao futuro a possibilidade de aniquilar a rela~ao atraves da elirnina~aofisica da adversaria - ainda que contrariamente ao seu desejo explicito ("isso que nao quero que aconte~") ou como mecanismo de afirma~o do desejo nao verbaliza­ do, mas vivido como habitus (Bourdieu, 1983). Desejo significa "an­

seio, aspira~ao", mas tambem "vontade de possuir ou de gozar" (Fer­

reira, 1975). 0 desejo de possuir com exclusividade sua companheira

e representado de forma tao absoluta que pensa ter sobre ela direito de

vida e de morte: "Tiro ela de circula~ogeral" .De acordo com Barthes,

"as safdas vislurnbradas para as rela¢es afetivas sao solu¢es engano­

sas, quaisquer que sejam, que dao ao sujeito apaixonado urn repouso

passageiro, apesar de seu carater quase sempre catastrofico; manipula­

~6€?s fantasiosas das safdas possfveis da crise amorosa" (1991, p. 176).

Este autor argurnenta que ocorre a teatraliza<;iio da ideia de solu~ao, que

eo instante pleno do drama burgues. As safdas sao intemas e extemas

ao sistema amoroso, ocorrendo identidade entre problema (nao poder

mais viver a paixao) e solu~ao (tomar definitiva a impossibilidade da

paixao), 0 que configura a armadilha: 'Caio na arrnadilha porque nao

estti ao meu alcance mudar de sistema: sou feito duas vezes no interior

do meu proprio sistema e porque nao posso substituf-Io por outro.'

o proprio ato de agressao tambem contem forte dose de teatralida­

de, observando-se a desproporcionalidade entre aquele e seus efeitos.

"... A primeira quesUio que tive com ela, realmente peguei a orelha dela e puxei e ela foi dar parte na Delegacia de Queimados. La, 0 agente que me atendeu, que atendeu ela, viu que ela nao tinha nada, mandou ela fazer urn corpo de delito. Ela quando ficava nervosa, ficava com umas man­ chinhas na pele, entao, 0 legista que fez 0 exame nela, falou que aquilo tinha sido eu que tinha batido, sem eu nunca ter batido nela; entao ela foi hi e, mulher em delegacia, com toda mentira dela, e sempre verdadeira" Cmarceneiro aut6nomo, primeiro grau incompleto).

Na primeira situa~ao, a unha do agressor atingiu "sem qualquer inten~o", portanto, "sem dolo", a mulher de forma tao profunda que

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"... Nisso eu estou falando pra ela, com 0 copo na mao, ela veio com 0 copo... que estava na minha mao. AI eu rebati 0 copo, a minha unha pegou aqui nela e cortou. Nao e que tenha agredido ela, realmente nao 6z, nao. Nao yOU dizer que nflO fui eu que fiz porque foi a minha unha que... mas que eu chegasse pegando ela e nao fazendo nada. No mesmo dia fiquei com ela ate quatro horas da manha, querendo pegar urn taxi ou coisa parecida pra levar ela no Hospital e 0 taxi nao parava e ela cheia de sangue. Onibus nao tinha e deixamos e quando amanheceu ela veio para 0 hospital e de h1 veio dar queixa; deu lei, nao sei. Se eu tivesse feito alguma coisa, jamais deixaria ela vir do hospital C...)

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lhe provocou sangramento, a ponto de faze-la ir de madrugada ao hospital. Alem da falta de dolo, 0 agressor prestou socorro avftima, 0 que configura duplo atenuante. Por conceber a mulher como seu apen­ dice e, por conseguinte, nao dotada de vontade propria, argurnenta que poderia ter-lhe impedido de denunciar 0 fato se por ele fosse responsa­ vel. Utiliza-se, mais urna vez, de categorias duais - mentiraXverdade - produzindo 0 que Barthes denomina de embara~. Voltar-se-a a este tema adiante. A segunda situa~o segue a mesma logica. A demmcia apresentada pela mulher, contrariando todas as evidencias, e banalizada. Ern primei­ ro lugar, pela falta de gravidade da a~ao sofrida - puxao de orelha e, em sentido simbolico, urna forma de repreensao, urn castigo corretivo aplicado a crian~s e a seres tutelados. 0 policial, embora tenha diag­ nosticado a nao-gravidade referida, a encaminha a exame de corpo de delito. Trata-se de urn procedirnento negligenciado pela polfcia, ainda quando ha les6es expostas. Alude, entao, acurnplicidade da polfcia com as mulheres, 0 que, tambem, a historia da cronica polidal relativa a violencia domestica tern contestado. A logica de sua argumenta~aoindica, ainda, que a mulher obteve solidariedade e curnplicidade do medico legista, que confundiu "umas manchinhas na pele" com hematomas. Parece querer dotar a mulher de urn poder extraordinario de persuasao ou de ruse (astucia), habilidade atribufda mulher. Atraves desse pseudopoder (delegado e corn valor negativo), reafirma 0 seu pader de facto.

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dos peitos dele e quebrou. 0 chao da cozinha virou urn mar de cacos de vidro; a1 quando ele me viu naquela doideira, que eu passei a mao no gargalo de garrafa que eu ia acertar nele, que ele me enforcando contra o armario, eu fui perdendo as forc;as e as crianc;as comec;ou a gritar, ficaram desesperadas, ne? Comec;aram a gritar, a gritar. AI ele me jogou no chao, em cima dos cacos de vidros, eu nao dei urn corte, em cima daqueles cacos de vidro, fazendo forC;a, ele me segurando e eu empur­ rando ele com 0 pe, andando de costas no meio daqueles cacos de vidro. Quando eu levantei tava tudo agarrado na minha roupa, mas nenhum me cortou". (30 anos, ajudante de cozinha, desempregada, primeiro grau incompleto; ex-marido: desempregado)

Retomando 0 tema do embaralfO, a partir da trilha tra~ada por Barthes, este caracteriza-se pelo saber coletivo silencioso, posta que nao e dito: "... obselVo, decifro, gozo de urn texto que explode de lisibilidadepelo pr6prio fato de niio dizer. (...) Daf 0 mal-estar - ou para alguns, pelVersos, 0 gozo" (1991, p. 83) (grifo no original). Ou, ainda, a combina~o de ambos. I

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o sentido que os homens tentam imprimir as suas falas esm infor­ mado por uma concep~o de masculinidade que legitima a domina~o­ explora~o exercida sobre a mulher. Sabe que omercado lingiifstico no qual esm atuando efavonivel a este sentido, lan~do mao do mecanis­ mo de antecipal;ao que Ihe permita partilhar, em posil;ao privilegiada, de rela~Oes lingiifsticas de forr;a (Bourdieu, 1983, Capitulo 3). Demons­ tra identificar a natureza dos seus interlocutores - a policia, 0 Servil;O Social, a pesquisadora -, indicando 0 reconhecimento de que estes apresentam conce~oes dispares acerca do fen6meno da violencia do­ mestica. Portanto, ele necessita fazer umjogo ambiguo, terreno favo­ ravel a manipula~o das categorias de ~ulpabilizal;ao X vitimizal;ao, posta que assumir tout court a violencia e insustenmvel. Assim,o modelo de masculinidade forjado pelos depoentes parece assentar-se nas no¢es de horna, verdade, razao, altruismo, generosida­ de, enfim, conceitos contemporaneos difundidos pela moral burguesa. Tentam afirmar sua identidade de genero, por contraste com a ausencia das mesmas caracteristicas na mulher. Negam, portanto, 0 carater ana­ cronico de suas relaepes. Ousa-se afirmar, ultrapassando-se a conce~o de Mathieu, 1985 (Capitulo 3), que os homens revelam, em tentando negar, os mecanismos de domina~o dos quais sevalem. Para entende­ los, ha que se ir alem do seu discurso imediato e identificar as mediaepes por eles utilizadas, penetrando-se, portanto, em suas falas (Barthes, 1993), repletas designificados. As falas de mulheres contrastam com os depoimentos ate entao analisados: ricas em detalhes, com precisao de dados, admitem a autoria e a iniciativa das agressoes como valores positivos e contraposi«;ao simbOIica e de facto ao modelo de masculinidade com o qua! convivem. "Teve uma briga da gente Iii dentro de casa, ele tinha bebido, come~u a falar urn monte de besteiras pra mim, eu perdi a paciencia, distnbuf garrafada pra tudo que foi !ado; umas quatro eu sei que acertou pra dentro

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"(...) Ele come~u a me seguir. Eu fiquei com raiva, unhei ele, chutei ele, peguei urn cinzeiro pesado de louc;a pra tacar em cima dele; ele me segurou. Quando ele viu que fiquei alucinada, mesmo, que comecei a bater nele, fiquei com raiva, comecei a chorar par causa do que ele estava fazendo comigo, sem ter motivo e a ponto de me xingar, querer me agredir, ele me segurando: "Para com isso! Para com isso!" Eu comecei a suar, a minha mao escorregava da mao dele, arranhei a cara dele toda, maior desespero. Ele quando se viu doido, viu que eu nao parava, pulou o muro e foi chamar a vizinha (...) Ele, quando viu essa minha vizinha e o marido dela 1<1 dentro de casa e eu comecei a chorar porque estava nervosa, ele comec;ou a me xingar na frente deles". (27 anos, lavadeira, prlmeiro grau incompleto)

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Ao contnirio dos agressores, as mulheres dao mais enfase as cenas do que aos motivos desencadeadores das mesmas. Utilizam, para a agressao, os objetos disponiveis, conferindo plasticidade as cenas ­ "... um mar de cacos de vidro..." - e narrando os movimentos: dos objetos, dos corpos, dos sentimentos. Mais importante do que a propria cena sao as emol;oes que mobiliza. As lcigrlmas, por exemplo, "sao signos e nao expressoes" (Barthes, 1991:42), tornando-se mais impor­ tante do que as palavras. De fata, trata-se da linguagem do corpa, como sugere este autor, atraves da qual se canta uma historia, se transmite ao interlocutor a mensagem do sofrimento. 0 choro e recurso empregado, em larga escala, pelas mulheres nas cenas, obviamente par terem sido treinadas para expressar suas emo«;oes. Mesmo os epis6dios de violen­ cia fisica sao vividos e narradas par elas com mais paixflo, diferente­ mente dos homens, que buscam enunciar as razoes para a ocorrencia dascenas.


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"(...) Depois dessa primeira vez, passou a acontecer sempre, porque resolvi nao agiientar mais caJada como agiientava antes. Percebi (...) que podia reagir aaltura. Nao ia ficar mais sendo humilhada, desprezada, maltratada por ele e calada. Ai comecei a reagir; nisso que comecei a reagir, ele come~ou a mudar mais ainda. Porque estava acostumado com uma... (pessoa) que agiientava tudo calada, que nao reclamava, que rara­ mente ele via chorando, porque as vezes eu nao podia nem chorar porque sentia muita dor no peito, nao podia nem chorar. Entao eleacostumou com aquela... (pessoa). De repente, depois daquela opera~ao e tudo (re­ fere-se a uma cirurgia cardiaca a qual se submeteu), ele conheceu uma outra... (pessoa) que ele nao pensava em ter que conhecer, a... (pessoa) que reagia a altura. Quando me xingava, quando levantava a mao pra mim, eu agredia ele tambem, porque eu achava 0 cfunulo, apanhar sem estarfazendo nada, ficar apanhando igual mulher de malandro. Eu reagia a tudo e ele come~ou ... (...) E, vai indo, vai indo, eu nao agiiento mais e ele fica debochando da minha cara, fica rindo. Quando ele ve que eu estou come~ando a ficar verde de raiva, come~a a rir. 'Nao esta gostando, nao, de ouvir as verdades? Esta com raiva? Me ba te, me mata.!' Fico olhando pra cara dele, e doente! (...) Parto sim (...) 0 que esta na mao, ele e mais alto (...) ele e mais alto do que eu, e magro, mas e mais alto do que eu e por ser homem tern mais for~a. Eu agrido ele com 0 que tiver na frente, eujogo em cima. (...) Ja dei urn corte no bra~o dele com urn facao (...) Ele nao parte pra agressao fisica, e muito dificil ele come~ar a agressao fisica. Eleja fazia aquilo sabendo que eu ia partir pra cima dele, que eu nao ia aturar. Depois, quando ele me ve no auge da coisa mesmo, ele se intimida, demonstra que tern medo de mim e me segura. (...) Quantas vezes ele gritou 0 meu vizinho! (...) umas duas vezes ele saiu correndo de dentro de casa (...) que eu estava maluca." (27 anos, Javadeira, primeiro grau incompleto).

a sentimento de nao agiientar mais e uma importante pulsao de vida, posta que a resigna~ao, como assinala Caruso (1989) e uma capitula~ao diante da morte. "Reagir altura" significa responder com o mesmo teor de agressividade, objetivando promover mudan~s com­ portamentais no outro. Portanto, as ideias de solucjlo mostram-se cir­ culares, intemas pr6pria relacjlo. a que se questiona, entretanto, nao e a violencia, mas a falta de motivo para 0 seu desencadeamento por parte do homem: "... eu achava o cumulo apanhar sem estar fazendo nada...." Esta afirma~o sugere que a violencia e ilegitima, posta que nao fundada na quebra de normas, de acordos, isto e, em rupturas contratuais. As cores do drama sao

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real~adas

literalmente ("... ficar verde de raiva...") e simbolicamente ("Me bate, me mata!"). De fato, nao se expressa 0 desejo da morte, mas a luta contra ela, pois s6 na medida em que se consegue pronuncia-Ia e que se the colocam antfteses, se possibilita 0 distanciamento daquela e a emersao para a vida. Caruso (1989) lembra que "Por estar oprimida, a mulher e uma pessoa 'inferior' (numa sociedade competitiva, quem sucumbe einfe­ rior) e perigosa (quem sucumbe, um dia, pode reviver os motivos e as causas de sua derrota). Alem disso, 0 criador dos valores e sustentaculo da ordem nao pode encarar 0 inferior e 0 perigoso senao com descon­ fian~a" (p. 327). A depoente acima mo s6 percebe 0 medo que desperta no agressor, como sabe manipular bem esta e outras emo~6es. Parece relativamente claro que a familia constitui um campo no sentido empregado por Bourdieu (1993), no qual se partilham regras com vistas a reproduzir e legitimar nao s6 0 jogo mas 0 pr6priocanqJo. Estas regras sao reeditadas em circunstancias diversas, e extensivas ao conjunto de membros das farrn1ias, ultrapassando gera~6es. "Meu pai (...) enquanto a gente era pequeno, eu so presenciei uma vez eles brigaram assim, da minha mae jogar as coisas, mas ato de violencia eu sO presenciei depois de grande (...) meu pm chegou a puxar a faca pra minhamae. Meu pai puxava faca, batia (...) Meu pai me batia. Nao batia muito, ne? Uma vez meu pai me puxou a orelha (...). Meu pai, ele era muito bruto. Era nao, e muito bruto para bater. Urn beliscao dele em mim, ficava roxo" (30 anos, atendente, segundo grau incompleto).

"E isso que vai acontecer. Eles vao casar, eles vao crescer, arruma urna mulher: Ab, meu pai faz isso com minha mae, entao eu fa~o com ela tambem. (...) Agora, ate me xingar as crian~s tao me xingando. (...) Eles brigam muito urn com 0 outro (...) eles come~am a bater urn no outro (...) aI, eu bato. Ai, eu dou uns tapas bern firme neles (...)," (32 anos, domes­ tica, primeiro grau incompleto).

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"(...) minha maeja tentou matar ele (0 marido) (...) AvioJencia 1<1 em casa partia mais de minha mae, porque 0 papai nao tinha assim for~as pra enfrentar ela, sabe? Entao, quando ele agredia mamae, almamae acabava sempre batendonele. (...)Minha mae batia nagente, muito" (...) Mamae batia de vara de marmelo, de pe de goiaba, vara... mamiie enforcava a


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gente na parede..." (38 anos, vendedora arnbulante, primeiro grau incom­ pleto).

Observe-se que os vetores da violencia sao multiplos, inter e intra­ geracionais, apresentando requintes de crueldade, e indicandoque a banaliza~ao da vida e urn forte ingrediente nos processos de constru~o de sociabilidades e de modelagem de subjetividades. Estes processos, alem de reproduzirem, em escala ampliada, a organiza~ao social de genero, alimentam outros antagonismos sociais basicos: de ra~etnia e classe. "Antes de eu ficar com ele, eu tinha tido urn companheiro e ele era urn rapazfino, e... urn tecnico de informatica, era uma pessoa muito educada, sabe? (...) Ai eu falei pra ele: 'Olha, fulano era preto, mas tinha muita educa\<ao, muita educa\<ao, ate pra falar comigo ele era muito educado (...) Ele era tres vezes melhor do que voce, mesmo sendo preto" (38 anos, vendedora arnbulante, primeiro grau incompleto). "... tern muita famflia de rico ai que a mulher tambem apanha, nao e s6 pobre nao. (...) Por toda classe tern homem violento. Nao tern esse neg6cio: 'Ah, porque e pobre nem rico, nao. (...) Ele foi Ia, botou a melhor roupa dele, chegou Iii todo serio, todo arrumado pra dizer que era boa gente, ne? (...) qualquer caso que ele tenha que resolver em delegacia ele bota logo 0 temo... pra parecer apresentiiveI... Ai ele falou que fez isso porque eu ofendi ele" (53 anos, manicure, primeiro grau incompleto).

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No primeiro depoimento, a mulher condiciona a educa~o a cate­ goria racial a qual 0 sujeito pertence, mostrando, no entanto, a excep­ cionalidade da situa~o do seu ex-companheiro que, embora pertencen­ do a uma ra~a discriminada, conseguiu superar esta condi~ao no que tange ao seu processo educativo. No mesmo movimento em que enal­ tece seu ex-companheiro, embora revele todo seu preconceito, se su­ bestima ("... ate pra falar comigo, ele era muito educado..,1') e desqua­ lifica 0 atual conjuge, que acaba sendo reduzido ater~a parte de urn outro homem negro, 0 que, em urna sociedade racista, potencializa a ofensa. o depoimento seguinte indica que a informante identifica a trans­ versalidade do fenomeno da violencia, para alem da inser~o de classe dos envolvidos, ao mesmo tempo em que questiona 0 fato do compa­ nheiro tentar fazer face as clivagens de classe que este, ao que tudo

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indica, reconhece na polfcia Ao se inserir neste campo, portanto, 0 companheiro da depoente aceita e se vale de seus c6digos, contribuindo para sua preserva~o. o conjunto de falas tomadas ate enta~ permite refutar 0 "possivel retrato da familia nas camadas populares" construido por Bilac (1991:80): "Nesta fanu1ia, as uni6es legitimadas juridicamente sao pre­ ferenciais e 0 casamento deve durarpara sempre. As uni6es dificilmente sao rompidas e, quando isto ocorre, deve-se fundamentalmente, ao alcoolismo ou a outro 'desvio' que impede que 0 pai curnpra a sua tarefa de pai-provedor. (...) Em surna, urna fanu1ia sempre preocupada com 0 equihbrio entre provedores e consumidores no nueleo familiar, amea­ ~da que e, continuamente, pelos saIarios arrochados e pelo desemprego e que, por isso mesmo, for~a e refor~ a solidariedade entre seus mem­ bros e valoriza ao extremo a casa e a propriedade da casa. Por tudo isso, urna familia que continuamente se organiza e se reorganiza, urna fanu1ia que se estrutura e reestrutura..." (Apud Bilac, 1993, pp. 94 e 95). Esta autora conclui que as rela~6es familiares nas camadas populares sao or~nadas segundo a "16gica da solidariedade" em contraposi~ao as camadas medias, que sao regidas pela "16gica do individualismo." Entende-se que 0 campo familiar e essencialmente marcado por antagonismos (Capitulo 3), num entrejogo de paix6es construtivas e destrutivas, qualquer que seja a camada social em questao. Em que pesem as amea~ constantes dessa institui~o em rela~ao ao desenvol­ vimento das potencialidades dos seus membros de per si e a cria~o de espa~ de liberdade e autonomia para e entre seus componentes, e uma instfulcia societaria que contribui, simultaneamente, para a reprodu~ao individual e das rela~6es sociais. Neste plano, 0 jogo da preserva~o da vida e da enuncia~o da morte ganha proeminencia, quando as paixoes destrutivas passam a ser hegemonicas. Nao obstante se constituir em instfmcia de media~o indivfduo-sociedade, a familia pode ser tambem urna agencia prisional que segrega 0 indivfduo desta mesma sociedade. Rigorosamente, este aprisionamento e dirigido a urn genero: 0 feminiho. E, nesse sentido, contrariando as aparencias, e, de facto, uma forma de media~o eficaz. "Eu tinha safdo pra buscar 0 meu titulo (...) como eu fui num lugar e meu titulo nao estava naquele lugar, me encaminharam pra mim ir em outro lugar (...) porque eu demorei, quando cheguei em casa ele... ele tentou


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uma agressao, sim (...) porque ele achou que eu nao tinha ido apanhar 0 tftulo, que eu tinha ido bater perna" (30 anos, atendente, segundo grau incompleto).

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galinhaja ta cansada de homem...' (...) ele me agredia, sempre me agre­ diu, nesse tipo de palavras, sem eu merecer. Se eu you procurar urn dentista, pra arrancar urn dente (...) basta eu me vestir urn pouquinho melhor..." (36 anos, vendedora, primeiro grau incompleto)

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"As agress6es da parte dele eram mais cifune, sabe? Ciume de outros homens,... de que eu largasse ele, sabe? (...) Ele nao queria que eu tivesse amizade com mulher, que ele tinha medo que, por meio de outra mulher, eu conhecesse outro homem" (Na epoca, ele tinha 17 e ela 13 anos) (38 anos, vendedora ambulante, primeiro grau incompleto)

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A analise imediata deste dado sugere tratar-se de uma forma de controle onipresente, que revela a onipotencia de quem 0 exerce, assim como a mobiliza~ao pelo mesmo de elevada parcela de poder. Se se indaga, no entanto, 0 sentido do comportamento figurado, pode-se admitir a existencia de baixa auto-estima do homem, que pratica vio­ lencia contra sua companheira, e do medo como dimensao modeladora de sua identidade de genero. Se esta hip6tese for correta, ela sugere a existencia de poros significativos no processo de domina~o-explora~o da mulher, que possivelmente estao sendo construidos por pequenos e contiQ.uos movimentos de rebeldia (Capitulo 4), ao largo das malhas do poder masculino (conquanto se originando no seu interior e tambem 0 realimentando) e instituintes de contra e micropoderes. A inser~o da mulher em espa~s publicos, por mais intermitente e efemera que seja, amplia esses poros. "Urna vez eu saf pra trabalhar; so porque eu passei um pouco do hOflirio (...) af ele come~ou a reclamar e me agrediu, partiu pra agressao, porque ele achou que eu nao estava indo trabalhar. Ele achou (...) que eu tava indo pro hospital pra farrear, ne? Porque ele diz 0 seguinte: que no hospital nunca tern mulher certa. Que toda mulher que trabalha em hos­ pital e... essas coisas (00')" (30 anos, atendente, segundo grau incompleto). "Ele deixou de ir trabalhar pra andar atnis de mim. Porque eu fui numa . num comfcio com meu tio, que 0 meu tio se candidatou a vereador ( ) Fui eu, minhas primas, as crian~as, minhas tias; af teve urn colega dele leI que falou que eu fui atnis de homem" (39 anos, demonstradora, pri­ meiro grau incompleto). "Eu procura~ dormir em quarto separado, quando ele come~ava a me ofender dizer que eu tinha homem (...) eu ficava no quarto com meus filhos; af de noite ele levantava e dizia assim: 'Ab, e isso af mesmo, essa

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o trabalho da mulher, sua participa~o politica, a recusa em "servir sexualmente" ao marido, a ado~o de medidas de cuidados pessoais sao ingredientes que, ao configurarem a existencia de urn lugar social para a mulher como sujeito, fazem remissao a perda do monop6lio pelo c6njuge do exercfcio da sexualidade daquela. De fato, 0 poder mascu­ lino e exercido, fundamentalmente, atraves do controle da sexualidade da mulher, para a qual confluem outras formas de domina~o/submis­ sao.

"Eu tenho pra mim que... se... a gente brigar, ele quer ter rela~ao sexual. Mas nao para satisfazer. Impor, eu acho, pra se impor, ce entende? (...) Ele diz pra mim assim: "Eu quero foder hoje, ta? Voce nao demora muito... que eu quero" (39 anos, demonstradora, primeiro grau incomple­

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"Ja flZ muitas vezes (...) sexo com ele, sem querer (...); uma vez ele quis ( ) que eu abrisse as pernas, porque ele queria que eu enfiasse um pine ( ); ele falou assim: 'Olha, eu acho que voce ta achando meu sexo muito pequeno (...) esse aqui t£1 born pra voce'?" (...) (38 anos, vendedora ambulante, primeiro grau incompleto). "Ele foi e teve rela~6es sexuais na mesma cama que elas estavam (as filhas) com a minha empregada (...)" (39 anos, demonstradora, primeiro grau incompleto). "Logo no princfpio, no come~o do casamento, come~ou a aparecer os problemas, que logo, assim, ele levou mulher... eu tava gravida, da minha filha mais velha, tava com seis meses de gravidez, ele levou uma mulher pra dentro de casa e fez com que eu dormisse na cama junto com a mulher, tivesse rela~ao sexual junto com ele e na frente da mulher (...) "Ele... quando ela chegou, logo, na minha casa, cedo, ele fez eu... ir fazer almo~ pra ela, sabe? Eu... fui pro tanque lavar roupa, quando eu cheguei peguei eles de beijo e abra~ dentro do quarto, mas ele falou pra mim que ela era prima dele, sabe? Eu tratei ela bern (00')' Eu morava junto com a minha sogra, a minha sogra falou, com medo, talvez, ne, ela falou: '"8 prima, sim.' Mas, quando chegou anoite, aconteceu isso. No outro dill,


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eles me largaram dentro de casa trancada e saiu minha sogra, ela e ele." (37 anos, camelO, primeiro grau incompleto).

Os fragmentos acima permitem assinalar que a forma encontrada pelo homem para comunicarsua supremacia, no terreno da sexualidade, consiste na negac;ao da possibilidade de se relacionar com a mulher em sua alteridade, ou seja, em seu "ser-outro", independente e autonomo, embora influenchivel. (Caruso, 1989, p. 284) Esta mensagem, extensiva as outras mulheres da casa (filhas, empregada, mae) e as de fora (como a "prima"), convocadas a animar a cena, reitera a morte da relac;ao sujeito desejante-objeto de desejo, permeando cada urn dos membros do casal e seus elos. 0 carater sadomasoquista das relac;oes emerge reiteradamente nos depoimentos. 0 controle do homem sobre a sexua­ lidade feminina supoe nao so a apropriac;ao do desejo da mulher, mas do prazer/desprazer (que deve ser resolvido no interior da relac;ao com os meios instituidos por aquele), sendo tanto mais efetivo quanto melhor souber contribuir para a fixac;ao de lugares de genero na familia. A reproduc;ao de violencia entre as mulheres e sua conivencia com esta organiza<;iio social de genero ecomponente axial do poder masculino e nao sua causa. Kehl (1987), ao analisar os destinos possfveis das paixoes, lembra que urn deles ea transforma<;iio em seu contrario, 0 que constitui a base para a hipocrisia:

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"0 6dio que amea!;a 0 pr6prio sujeito do 6dio (que pode ser punido, ser odiado em igual medida, ou, 0 que e pior, pode destruir 0 objeto de seu amor que frequentemente e 0 mesmo objeto de sua agres­ sividade) nao pode ter sua energia eliminada, mas pode ter seu conteudo invertido, e enta~ se transforma nesse tipo de amor exces­ sivo, obsessivo, extremam'ente ativo que precisa de toda esta ativi­ dade para impedir que irrompa sua verdadeira face. Eclaro que as pessoas que 'amam' segundo esta modalidade sao capazes das formas de crueldade rnais refinadas e mais sutis, assim como os ascetas reativos em rela!;ao a seus desejos considerados perversos sao capazes das formas mais elaboradas e sutis de perversao" (p. 481).

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Talvez porque 0 jogo seja partilhado de forma tao intensa - com doses tao expressivas de solidariedade -, a ponto de, no apice da crise,

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o interesse pela perda, pela disputa, tornar-se maior do que 0 interesse pelo objeto perdido (ou em vias de se-Io) e disputado, adquire sentido a letra de urna das nurnerosas musicas de Chico Buarque que tematizam as relac;oes homem-mulher: "Te perdoo Por fazeres mil perguntas Que em vidas que andam juntas Ninguem faz Te perd60 Por pedires perdao Por me amares demais Te perdoo Te perd60 por Iigares Pra todos os lugares De onde eu vim Te perd60 Por ergueres a mao Por ~,ilterts em mim Te perd6~ Quando anseio pelo instante de sair E rodar exuberante E me perder de ti Te perd60 Por quereres me ver Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir) Te perd60 Por contares minhas horas Nas minhas demoras por ai Te perd60 Te perd60 porque choras Quando eu choro de rir Te perd60

Por te trair."

Eis a poesia da rela<;iio heteronoma. Enredado (a) na armadilha da propria inseguranc;a e obsessao, a pessoa torna-se, simultaneamente, violenta e submissa, ensejando no outro 0 desejo aliberdade, que, no entanto, capturada pela culpabilizac;ao/vitimizac;ao, transforma-se em sua antftese - a hipocrisia.

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"Mas falar deste lugar de onde se fala quando se mulher, for!;a dominada pelo silencio, urn empreendimento tao louco, tao vio­

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lento e pretensioso, que possivel que esta palavra jamais atinja ao que ela visa: fazer com que 0 jubilo de viver seja dito, e se difunda ao ser dito. Que 0 jubilo de viver impregne nossas lutas de forc;a, de tanto ser dito." (Leclerc, 1976, p. 10)

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"Falar a fim de que se viva 0 que falar quer dizer, 0 que falar quer viver, 0 que ler e dizer querem dizer. Saber, enfim, e viver 0 que luta contra 0 poder quer viver. Ouvir a forc;a em luta e aumenta-Ia sempre rnais, dizendo: nao a negac;ao do poder, mas a firmac;ao da forc;a que subverte 0 poder". (Idem)

o entendimento desse complexo campo de constitui~ode rela~s de pader, heteronomas, e fundamental para que 0 olhar doea) pesquisa­ dor(a) ou do(a) agente executor(a) de polfticas publicas dirigidas a mulher nao se fixe no imediatismo do relate das cenas. Ha que se desvendarem as falas, as formas de vivencia do habitus e suas interco­ nexoes. E imprescindivel a concep<;ao de que se trata de violencia estrutural, com forte potencial para construir formas de sociabilidade propicias areprodu<;ao de novas rela<;oes ainda mais violentas. Desvendar as contradi¢es dessa rela~o de pader constitutivas da organiza<;ao social de genero e fundamental para que se formulem estrategias de polftica publica, capazes nao s6 de oferecer servi<;os adequados a vftimas de violencia, mas tambem de contribuir para a constru<;ao de rela¢es mais igualitarias. Para tanto, devem se forjar contextos qualitativamente novos para (re)produ<;ao de subjetividades das gera¢es imaturas e dos educadores lato sensu. Urn programa de forma<;ao polftica em rela<;ao de genero, classe e ra<;a!etnia, destinado a formuladores e executores de polfticas publicas e a membros de organiza<;oes da sociedade civil - e basilar para a des-re-constru<;ao destas rela¢es. Neste sentido, as imbrica¢es entre teoria e polftica sao evidentes. Colocar 0 fenomeno da desigualdade nas rela<;oes de genero na ordem do dia - como objeto de reflexao, crftica e estimulo a res­ significa<;ao de vivencias - reveste-se de especial importancia numa sociedade marcada por urn caldo de cultura extremamente autoritario, em que as diferen<;as - pessoais ou sociais - sao apropriadas e repostas como desigualdades, estabelecendo-se rela¢es hierarquizadas. Este quadro configura-se em rela<;oes familiares e em institui¢es so­ ciais, no ambito das rela¢es interpessoais e da cultura, numa sociedade em que a esfera publica e definida em fun~o de interesses privados, e

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a esfera privada sofre continua interferencia do poder publico (Chauf, 1986). A luta pela supera~o das desigualdades nas rela¢es de genero, no bojo das quais a supremacia masculina evidencia-se, requer que se forjem instrumentos pedag6gicos a partir de urn ponto de vista femi­ nista, que contemple uma dimensao polftico-cientffica (Saffioti, 1991; Stanley & Wise, 1990). Pedagogia que permita ouvir as falas das mu­ lheres e inseri-Ias numa reflexao que ultrapasse sua realidade imediata - conquanto desta partindo -, ao buscar suas determina<;oes mais gerais, e que a ela retome, procurando entender seus nexos, sua com­ plexidade. . Necessario se faz romper a ideologia do vitimismo e discutir como mulheres e homens participam da defini~odos seus lugares e compac­ tuam com a diferencia~o e hierarquiza<;ao de papeis que se constroem em multiplos espa<;os sociemrios; e, ao mesmo tempo, como lhes e possivel romper este esquema estratificado e de sujei~o. A ideologia nao e absorVKla de forma monolftica e a consciencia das classes e categorias exploradas/dominadas e mesclada por elemen­ tos contradit6rios. Da mesma forma, 0 processo de reifica~o,difundido atraves da ideologia dominante, permeia as esferas mais intimas da vida das pessoas, fazendo-as ter uma visao instrumental (coisificada) das outras pessoas e fragmentada das rela<;oes e dos problemas que as circundam. A ideologia dominante tern por fun~o mutilar e falsear a realidade, visando a perpetuci-Ia; deve ser assimilada por todos, ignorando, por­ tanto,fronteiras de classe, genero e ra<;a!etnia; deve ser percebida como uma visao de mundo pr6pria, configurando urn conjunto de ideias e significados capaz de ter relativo efeito unificador de experiencias in­ dividuais, interferindo tanto nas avalia<;oes do real quanta nas interven­ <;oes que nele se faz; e, em conseqiiencia, deve ser capaz de estancar a forma<;ao de uma consciencia pr6pria da classe e das categorias sociais subalternizadas, que as unifique em tome dos seus interesses. Por outro lado, se a ideologia eimportante para a reprodu<;ao das rela<;oes sociais dominantes, ela efundamental para a transforma<;ao destas rela<;oes, sendo possivel a luta pela constru~o de uma contra­ ideologia quando as classes e categorias sociais oprimidas conseguem explicitar contradi<;oes entre 0 projeto de sociedade que se pretende legitimar e a realidade vivida pelas mesmas. Sua eficacia se expressa


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na medida em que pennite oquestionamento e conhecimento do proces­ so de dominac;ao-explorac;ao, a formac;ao de urna nova concepc;ao de mundo e a coerencia entre pensamento e ac;ao, sendo, portanto, urn decisivo instrumento de resistencia e luta. A transformal$iio ideologica nao se da independentemente de mudanc;as estruturais, mas nao esta inteiramente condicionada pelas mesmas. * Eatraves da reflexao sobre a pratica vivenciada, do confronto com relac;6es de dominac;ao-explorac;ao que a mulher se vai apropriando, negando e reelaborando suas representac;6es, 0 que Ihe toma possivel intervir no contexto em que sao produzidas tais relal;6es. Desta forma, lhe e possivel acumular forc;as para reorganizar suas experiencias de vida e interferir, efetivamente, em sua historia. o apoio as mulheres nao se expressa substituindo-se sua al$iio, mas se traduz pela quebra da tutela e possibilidade de que, sobretudo aquelas habituadas a relac;6es informais, aprendam a lidar com relac;6es com­ plexas e formais, dispondo de informac;6es seguras sobre seus direitos e forjando estrategias para conquista-Ios; habituadas ao autoritarismo das suas relac;6es familiares, aprendam a enfrentar 0 autoritarismo e a omissao das instituiC;6es. Chaui observa que, na sociedade brasileira, "...a esfera publica nunca chega a constituir-se como publica, definida sempre e imediata­ mente pelas exigendas de espac;o privado, de sorte que a vontade e 0 arbitrio sao as m21fcas do govemo e das instituiC;6es 'publicas'" (1986, p. 55). Dessa forma, importa mais 0 confronto de forc;as que se estabe­ Ieee no interior das instituic;6es publicas do que 0 reconhecimento dos mfnimos direitos de cidadania. Assim, ef1;:1damental que sejam construfdas formas de encontro,

retlexao e gestao de solidariedade entre mulheres que vivem problemas comuns. Dada a diversidade das suas demandas e as multiplas arenas de luta, eimportante que lhes seja possibilitado acesso a informac;6es quanta a direitos e mecanismos institucionais, como, tambem, espac;o para pensar sua propria existencia e tomar decis6es, consciente de suas implicac;6es. Esta e uma expressa recusa a reificac;aoembutida nas

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* Considera-se 0 trabalhode Cardoso (1978) referencia importante para 0 aprofunda­ mento da discussao sobre ideologia, enquanto instrumento de dominac;ao (sentido negativo) e de luta para a transformac;ao (sentido positivo).

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relac;6es formais e burocraticas, em que os problemas sao vistos gene­ ricamente e tratados como coisas, que sao classificadas e enquadradas em tal ou qual situac;ao. Discutir a cidadania das frac;6es de classe e categorias sociais dis­ criminadas nao significa defender um sistema de direitos e igualdades abstratos, que urn discurso liberal faria supor ser possivel, em uma sociedade que se funda na supressao (nos perfodos ditatoriais) ou res­ tric;ao (nos perfodos ditos democraticos) da liberdade de lutar por direi­ tos e em urn modelo que cristaliza a desigualdade e explorac;ao. Antes, trata-se de analisar asilificuldades que tais grupos encontram nessa luta e propor altemativas efetivas. Como afirma Koury, "...discutir a questao da cidadania dos setores oprimidos no Estado capitalista no Brasil e discutir a questao da violencia do capital e a violencia institucionalizada do Estado burgues a seu servic;o" (1982, pp. 2e 3). Aigualdade perante a lei OC0J:Te apenas no plano formal, posto que prevalecem desigualdades rem(que se expressam a partir dos antago­ nismos fundantes da sociedade brasileira. No que tange as relac;6es de classe, Goldmann assim se refere: Ii Ao criticar a liberdade e a igualdade formais do mundo capitalista (0 mesmo direito concedido ao mendigo e ao milionario de dormir num palacio ou de baixo das pontes, ao operario e ao industrial de editar um jomal, ao universitario e ao iletrado de escrever um livro, etc:) os pensadores socialistas lutavam por uma liberdade e uma igualdade reais que deviam em seu espfrito conservar, desenvolver e superar a liberdade e a igualdade juridicas, transformando-as em liberdade e igualdade efrcazes e universais" (1979, p. 151).

o ideal de que a alterac;ao da ordem jurfdico-formal tern como corolario a produc;ao de mudanc;as reais encerra urna concepc;ao de justic;a distributiva, sem a devida problematizac;ao. Embora a questao distributiva seja fundamental a implementac;ao da justic;a - sobretudo em um pais no qual os direitos sociais sao constantemente desrespeitados -, a redul$iio do problema ao paradigma distributivo e falseadora das contradi<;6es bcisicas da sociedade. De fato, sao as estruturas sociais, conformadas por tais antagonismos, que de­ terminam os padr6es distributivos, seja de bens materiais ou nao-mate­ riais (direitos, poder, etc.). Esta concepc;ao de justiC;a, em nao inserindo a ordem legal e as instituic;6es responsaveis por implementa-Ia nos processos e relac;6es sociais que lhes sao constitutivos, termina por


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conferir arealidade uma visao estitica e atomizada (Young, 1990). E como se cada individuo de per si tivesse acesso a determinados bene­ ficios pre-definidos na letra da lei, sem considerar suas formas de inser~ao nas rela¢es de classe, de genero e etnico-raciais e as tensoes delas derivadas. Estas rela¢es, rigorosamente, presidem a defini~o de direitos, dos seus padroes distributivos e da propria ordem juridico-ins­ titucional.

Da mesma forma, para que sejam consubstanciados direitos reais,

nao se pode prescindir da expressao dos anseios e necessidades das

classes e categorias sociais subaltemas, a partir do seu real engajamento e participa~ao decis6ria, sem tutela, nas discussoes que se travam hoje sobre a sociedade que almejam e da cria~ao de canais efetivos de controle sobre as institui~6es.

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Hoje, no Brasil, seguramente, nao se pode falar em transforma¢es sociais sem que se pense no estabelecimento de alian~as entre fra~6es de classe, categorias e grupos sociais, que sofrem discrimina~oes de diversos matizes, entre os quais se inclui urn imenso contingente de mulheres que se vern organizando em movimentos feministas, associa­ ~oes de bairro, partidos polfticos, sindicatos, centrais sindicais, enfun,

nas mais diferenciadas frentes de luta. Mas e preciso, tambem, que se

esteja alerta e se saibam perceber as mulheres que vern lutando, embora

de forma nao organizada, contra uma domina~o que vai alem das suas

condi~oes de classe e ra~a/etnia, mas que passa necessariamente por

elas, e refor~ os indicativos, por menores que possam parecer, de uma possivel consciencia critica, de forma a buscar a amplia~ao, atraves da organiza~o,das for~ que estiio construindo a historia. Mulheres que, embora nao fa~ parte de urn movimento estruturado, nao esrno fora da luta das mulheres da sociedade brasileira; na realidade, com seus relatos individuais, revelam as dificuldades de se constitufrem enquanto movimento, mas, ao mesmo tempo, mostram formas especfficas e par­ ticulares de resistencia, * deixando entrever, assim, 0 seu potencial de luta. .

• Lukacs afirma que" E da essencia da hist6ria engendrar sempre 0 novo. Esse novo

nao pode ser antecipadamente avaliado por nenhuma teoria infalfvel: ele deve ser

reconhecido na luta, em seus primeiros germes, e trazido laboriosamente II consciencia" (apudKonder, 1980,p.143).

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Os embates que a mulher trava pelo direito ainser~ao no mercado de trabalho, pela nao discrimina~ao da sua for~ de trabalho, pela cria~o de equipamentos coletivos, para que se libere das suas "naturais atribui~oes domesticas," entre outras demandas, embora se situem no quadro da cidadania liberitl, e imprescindivel anega~ao da sua subor­ dina~o. Em urn pais como 0 Brasil, onde a questao social foi sempre entendida enquanto questiio de polfcia, lutar pardireitos representa para as fra~6es de classes e categorias discriminadas urn significativo passe a frente, na medida em que se reapropriam de parte dos frutos do trabalho coletivo, que e reinvestida de a~o com os interesses da ordem burguesa falocratica. ' Tais conquistas, portanto, requerem urna dire~o polftica coerente e unitiria, sendo a no~o de polftica relacionada ao conceito de socie­ dade civil e a ideia-for~a do coletivo. "A fun~ao de dire~ao polftica" designa uma situa~ao estruturada de tal modo que a sociedade civil (como lugar de cren~as solidificadas e como manifesta~ao pratica do conhecimento e da critica destas) toma-se 0 lugar de matura~ao de trovos germes de liberdade a institucionalizar" (Badaloni, 1978, p. 20). Assim, as lutas pela amplia~o de direitos e pela consolida~ao de uma nova hegemonia estao intimamente imbricadas. Estas notas apontam para a necessidade de se realizar uma solida a~ao educativa, de largo alcance e ao nivel da sociedade civil, 0 que requer que se superem 0 espontaneismo e a concep~o de que grupos isolados podem provocar mudan~s profundas. Nao se pode conceber, tambern, que urn trabalho tenha amplo alcance se a reflexao em gropo ou a conquista de uma reivindica~aopassa a ser urn fim em si mesma e cujos efeitos se espera que sejam traduzidos ao nivel da a~ao indivi­ dual ou de pequenos grupos. Considera-se, pois, importante reter duas questoes, que merecem aprofundamento, quais sejam: ha, pelo menos, duas dimensoes pos­ siveis e necessariamente articuladas da luta das mulheres - sua orga­ niza~ao para reivindicar a cria~o de condi~6es concretas que lhes permitam romper todas as formas de tutela, que refor~ e reproduzem sua dependencia, aliada aconstru~o de urn movimento pela difusao de urn novo senso comum, uma nova cultura, na concep~aogramsciana, capaz de contemplar rela~oes de genero igualitarias. o senso comurn nao e imutavel, mas se altera constantemente e se enriquece com a absor~ao de no~oes diversas, que se incorporam ao


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costume. Gramsci estabelece uma distinc;ao entre 0 senso comum cris­ talizado, que expressa 0 real, e 0 novo senso comum, ou seta, uma nova cultura necessaria a consolida<;iio de uma nova sociedade. E necessario, portanto, que se elabore uma filosofia que tenha ligac;ao direta com a vida pnltica e que, como tal, possa ser difundida, de forma que se tome um senso comum renovado e coerente. Sobre a ressignificac;ao da cultura, Paoli assim se expressa:

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"Quando 0 marxismo hoje, redescobre a hist6ria concreta dos do­ minados, revalida a no~ao de experiencia vivida das condi~6es reais de existencia, como suporte da reprodu~ao e da luta de classes ­ e com isso nao apenas enterra uma no¢o de ideologia como sistema cristalizado de ideias, como a reintroduz na forma de representa~6es culturais com significado real. Quando a sociologia redescobre e recupera a no¢o de sentido, quando a ciencia politica se encanta com a no~ao de hegemonia, quando as ciencias sociais incorporam a ideia de discursos que disciplinam a singularidade, quando enfim se reconhece que os sujeitos hist6ricos tern emo~6es, experiencias, tradi~6es e valores pr6prios que 0 colocam numa rela~ao consigo mesmo, diferenciada e se projetando no tempo, h:i uma redescoberta do cultural como central ao entendimento da domina~ao - alga que nao se esgota na ideologia, ou nas 16gicas e necessidades da produ~ao e do poder, embora as suponham" (sid, p.20).

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A supera<;iio das desigualdades nas relac;6es de genero nao pode prescindir, portanto, de urn intenso trabalho de critica a urn senso comum cristalizado e da elaborac;ao e difusao de uma nova cultura, que leve a supera<;iio dos diferentes mecanismos utilizados para explorar e discriminar a mulher. Nas ac;6es das mulheresesta implicita sua concepc;ao de mundo, sendo importante que no momento em que elas tentam colocar seus problemas, aparentemente particulares e pessoais, no plano publico, tenham oportunidade de pensar sabre a pr6pria concepc;ao de mundo, que, no sentido aqui empregado, nao se traduz apenas enquanto ativi­ dade intelectual, mas tambem enquanto ac;ao. Como afirma Gramsci, "0 infcio da elaborac;ao crftica e a consciencia daquilo que somos realmente, isto e, um 'conhece-te a ti mesmo' como produto do processo hist6rico ate hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de

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trac;os recebidos sem beneficio no inventario. Deve-se fazer, inicialmen­ te, este inventario" (1981, p.12). Este e 0 ponto de partida para a mulher desvendar a forma como esta organizando sua experiencia de vida, apropriar-se dos seus medos, inquietac;6es e esperan<;as. E, na medida em que a concep<;iio de mundo, as consciencias nao sao individuais, mas refletem relac;6es sociais di­ versas, pensar-se a si mesma significa pensar, tambem e sobretudo, estas relac;6es; modificar-se significa, da mesma forma, mudar a natu­ reza destas relac;6es. Nesta direc;ao, considera-se relevante a tentativa de envolver homens n~ocesso de reflexiio, para que as diferenc;as se explicitem e possam ser refletidas e enfrentadas; ate porque, para que sejam criadas novas relac;6es de genero, epreciso que as concepc;6es de mundo dos homens tambem se transformem em objeto de crftica e reelabora<;iio. Autocriticar uma concep<;iio de mundo permite desnudar contradi­ c;6es entre desejos e ac;6es, ambivalencias que permeiam os pr6prios desejos, sistematizar 0 que ainda e intuitivo e fragmentado. Este e, sem duvida, urn lento e doloroso processo que, na linguagem gramsciana, pode ser traduzido como "luta de hegemonias", e que requer, de prin­ cipio, que se rompa 0 isolamento, que se busque organizac;ao, em sentido lato. Enecessario, pois, que mulheres e homens aprendam aviver novas formas de relac;ao, lidando com suas diferenc;as sem que estas se trans­ formem em pretexto de dominac;ao. Eurgente buscar a unifica~ao das frac;6es de classes, categorias e grupos sociais oprimidos e procurar 0 aprofundamento, cada vez maior, do conhecimento do real. Gramsci lembra que na atividade real"...tambem esta contido 0 'conhecimento' que s6 na atividade pratica e'conhecimento real' e nao escolasticismo" (Apud Badaloni, 1978, p. 19). Na sua acepc;ao, se 0 conceito de hege­ monia incide sobre a estrutura economica e a organizac;ao politica da sociedade, ele refere-se tambem, fundamentalmente, ao modo de pen­ sar, as orienta<;6es id~016gicas e ao modo de conhecer (Gruppi, 1978). Na constru<;iio de uma nova cultura, que contemple novas rela<;6es de genero, efundamental a realizac;ao de profundos estudos sobre 0 material ideol6gico (livros, revistas,jomais, filmes, programas de radio e televisao e outros), que difunde a imagem da mulher submissa, con­ tribuindo para 0 estfmulo a cria<;iio de novas formas de resistencia, luta e organiza~ao. Como afirma Gramsci, "criar uma nova cultura nao

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significa apenas fazer individualmente descobertas 'originais'; significa tambem, e sobretudo, 'socializa-Ia' por assim dizer; transforma-Ias, portanto, em base de a~6es vitais, em elemento de coordena~aoe de ordem intelectual e moral" (1981, p. 13). Entende-se que a a~o educativa deve ser abrangente e interdisci­ plinar, capaz de superar as barreiras artificiais de urn academicismo alienante, as amarras de urn saber formal tao distante da realidade das fra~6es de classe, categorias e grupos sociais subaltemizados. Ha que se reconhecer que a divisao do trabalho cientifico nao significa que se tenha urna realidade recortada em tantas partes quantas sejam as areas de conhecimento; ao contrario, os recortes academicos que se fazem da realidade nao devem ser entendidos como totalidades aut6nomas, mas devem ser inseridos em totalidades dialeticas. A este respeito, Lukacs afirma: "Com efeito, ao estabelecer a distin~ao metodol6gica entre a teoria e a hist6ria, ao separar os problemas particulares uns dos outros por principio e por metodo, ao eliminar, portanto, 0 problema da tota­ lidade por raz6es de exatidao cientffica, a ciencia burguesa faz da hist6ria, do problema, urn peso morto na exposi~ao e no estudo do pr6prio problema, algo que s6 pode ter interesse para os especialistas e cujo carater indefinidamente extensivo asfixia cada vez mais 0 sentido verdadeiro dos problemas reais, favorecendo 0 desenvolvimento de urna especializa~ao vazia de espfrito" (Lukacs, 1974, pp. 49 e 50). Deve-se, sem d6.vid 1, buscar metodos de pesquisa e trabalho que possibilitem contribuir para desvendar as contradi~6es sociais fundamentais - de classe, geTlero e ra~a/etnia -, a partir dos embates cotidianos das mulheres '!ftimas de violencia e de outras formas de discrimina~o.

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CIDADE MARAVILHOSA: A OUTRA FACE


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Capitulo 6

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Estado e Politicas

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Numa sociedade com cliYagens de genero, ral;3/etnia e classe social, as relactJes humanas sao permeadas pelo poder. Adotar-se-a, aqui, 0 con­ ceito foucaultiano de poder (E.uuc.awt, 19811E.m virtude de sua flexi- _ ~--un;-crpotfur1:iaO consiste Urn uIDa riquezaapropn~i I urn bern congelado, mas em urn fenomeno que flui em cadeia, que ' W I, transita pelos sujeitos sociais segundo a correla~ao de for~as do moI Imento. Esta concep~o de poder reYela-se bastante uti! nos estudos de ' j, (' rela~6es de gener,O, na medida em que permite descartar, a, POSi~, ao, \ t vit~ista, segundo a qua~e~~~!I!j~~~~r,fl~'IIlulheF n,a9__

~\~ ~etem nenhum",ropoaer, na acep~ao foucaultiana, Vlabiliza um pensa­

~\B / mento dinfunico das relactJes de genero e da tensao permanente que as

/~'\f; anima. Nao se ignora, por outro lado, que, dada a destina~o primordial (i I:f'X \C das mulheres aprodu~o antroponomica (Bertaux, 1979), elas se inse­ , 1'/" rem, majoritariamente, na rede dos micropoderes ou, em outras pala­ ~ V'I vras, noplano molecular{Gllaftan (YfRoliiiK;1986).ns homens, dife­ rentemente.e'm virtude de sua presen~ maci~ no mundo da produ~o , de bens e servi~s, transitam, com mais freqiiencia e familiaridade, na !Dal~~~pooe1"es, ou seja, no myel molar. Desta sorte, ainda que as mulheres possam, em razao sobretudodos \ micropoderes que exercem, manipular e controlar os homens, sao, en­ \ 9uanto categoria social, enquanto genero feminino, manipuladas e con­ troladas pelos homens, tambem na qualidade de categoria social, de ;enero, desta feita masculino. Assim, quando se afirma que as mulheres ao dominadas pelos homens, nao se exclui a luta das primeiras peJa plia~o de sua pequena fatia de macropoderes, nem tampouco suas ,talhas cotidianas pelo exercfcio constante de micropoderes. Com isto nsa-se excluir a hip6tese do entendimento de que somente os micro­

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deres circulam pelas mulheres, ficando claro que os macropoderes

tambem 0 fazem, embora em medida bem mais acanhada.

Da mesma forma como a rac;aletnia e a classe socia~ 0 genero

constitui um eixo ao lange do qual 0 poder e distribuido-exercido.

Sobretudo quando se fala em termos de categorias sociais de genero

masculino e feminino, convem lembrar que a busca do exercfcio do poder trava uma luta permanente com a distribuic;ao desigual de suas

oportunidades. Isto constitui urn importante elemento da categoria ge­

nero (Scott, 1988). Genero diz respeito aconstruc;ao social do masculino

e do feminino, modelos difundidos ideologicamente como opostos e,

portanto, como complementares.

Feministas combatentes na frente anticartesiana (Whitbeck, 1983;

Bordo, 1986, 1989; Berman, 1989; King, 1989; Jaggar, 1989; Farganis, 1989; Linton, 1989; Saffioti, 1991) tem mostrado como as categorias binarias de analise sao altamente inadequadas para 0 estudo das relac;6es de genero, ia que, de uma 6ptica feminista p..Qliticamente radicaL~~ mulher nao e 0 contrario do homem, mas allerente del~. A defesa da dIfur~a constltuT,]ioji;iiaos6unitema atuarmastarnbem candente, na medida em que fracassaram as utopias da igualdade entendida me~~ ramente no plano formal, isto e, abstratamente. Ora, neste nivel, a _'.;s:; u mulher jamais sera igual ao homem, erigido em modele da humanidade. \\)­ ~'Concebemos a igualdade ~eito e QSeconh..e.cimento das~ 0:'""\ f( d!ferenc;as, 0 como~o~~ibili~e de}e~s}_gl:l_~~~!~!_para9igma '\~ dO-humano" (Facio, 1991, p. 121). 0 que se deseja, portanto, e a \ liminac;ao do exercfcio discricionario do poder nas relac;6es de genero. ) Para que se possa aceitar 0 poder permeando tais relac;oes eprecise .--/ preencher, no rnlnimo, duas condic;oes: 1. ser exercido democratica­ mente, possibilidade que 0 toma positivo (Foucault, 1981); 2. fluir, livre do eixo de genero, do homem para a mulher e vice-versa. Na medida, entretanto, em que esta lirtaapenas com~u, imp6e-se a escolha de construtos mentais capazes de apreender a realidade do genero, nao da maneira como ela e apresentada pela ideologia, mas de forma heuristica. Isto equivale a dizer que 0 conceito de genero deve permitir a apreensao da dimensao genero em todos os processos sociais atraves dos quais homens e mulheres se relacionam enquanto categorias sociais e enquanto membros individuais destas categorias. Desta ma­ neira, urn conceito heurfstico nao concebera 0 genero como urn leito de

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de relac;oes sociais, para referir-se a uma movente configurac;ao de processos so .. historicamente variaveisGenero, tanto como uma pro sso social, erelacional. Ou . /rca egona analftica quan c 0 ~ seja, relac;6es de genero sao processos complexos e instaveis (...) cons­ titufdos por e atraves de partes interrelacionadas. (...) Atraves das rela­ , c;oes de genero, dois tipos de pessoas sao criados: homem e mulher. 1l}~m.em e mulher sao postos como categorias excludentes" (Flax, 1987, ~28). Se e verdade que 0 homem possui urna anima e a mulher, um animus (Jung, 1984, 1985), nenhurn deles pode-se desenvolver integral­ mente enquanto forem "prisioneiros de genero" (Flax, 1987, p. 629). Nas e atrav6s das relacoes.sociais sao construidas as identidades de genero (Saffioti, 1992; Saffioti, Canc;ado, Almeida, 1992). 0 sexo ana­ 'tomico constitui apenas urna referencia para a construc;ao deste tipo de identidade. Embora esta referencia seja estatisticamente muito impor­ tante, mo representa conditio sine qua non para a aprendizagem do ser homem e do ser mulher. Em outros termos, mo existe, necessariamente, correspondencia entre 0 sexo e 0 genero: Obviamente, os generos apre­ sentam inteligibilidade. "Generos inteligfveis sao aqueles que, em al­ gum sentido, instituem e mantem relac;oes de coerencia e continuidade entre sexo, genero, pratica sexual e desejo" (Butler, 1990, p. 17). E exatamente Eor referencia a este paradigma inteligfvel qu~ti~ sgcialm...ente re~Vl~ em rela<;ao aos quaIS a socledade manifesta is do que mostrar a ausencia ou presenc;a de tao pouca to eranCIa. correspondencia entre sexo e genero, cabe ressaltar a dinfunica entre este ultimo e a sexualidade. Esta nao pode ser pensada em termos da conformac;ao anatomica da genitalia, mas "como um fenomeno social bem mais amplo, ou seja, nada menos que a dimlmica do sexo como hierarquia social e seu prazer como experiencia de poder em suas formas de genero" (MacKinnon, 1989, p. XIII). Isto significa que a sexualidade nao eposta, em definitivo, pela anatomia, mas modelada pelo genero nas suas mais distintas manifestac;oes. Trata-se, nao da sexualidade genital, mas da realizac;ao de Eros.

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a id6ia, ja expressa, de que a dimensao genero esta presente em todas as rela<;6es sociais, 0 que nao significa, de modo algum, reduzir tudo a genero. "Sexualidade, enta~, e uma forma de poder. Genero, enquanto socialmente construfdo, corporifica-a, nao 0 inverso. Mulheres e ho­ mens sao divididos pelo genero, separados em categorias de sexo como as conhecemos, pelos requisitos sociais de sua forma dominante, a heterossexualidade, 0 que institucionaliza a domina<;ao sexual mascu­ lina e a submissao sexual feminina. Se isto e verdade, a sexualidade e o contrae~~~da ct~~ig!1aldfl_g~~"]~!1_er<?: 0 feminismo tern uma teona do poder: a sexualidade tern genero da mesma forma que 0 genero e sexuado. Homem e mulher sao criados atraves da erotiza<;ao da domi­ na<;iio e da submissao. A diferen<;a homemlmulher e a dinfunica domi­ nancia/submissao definem cada urn. Este e 0 significado social do sexo eo balan<;o especificamente feminista da desigualdade de genero. A objetiva<;iio sexua~ processo cen dentro desta ~ca, e, ao mesmo tempo, epistemol6gica e politica' A teorfureniImsta do conlleCiffiento J 'einSePaniVeIaa cntiea femirnsla do poder, porque 0 ponto de vista ' mascqlino impOe-se sabre 0 mundo como sua maneira de apreende-Io" --' (MacKinnon, 1989, pp. 113 e 114):

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Os homensconstIUfiaIiluma realidade sem genero, daqual resultou uma 6ptica sem genero. A pretensa objetividade retlete, assim, 0 ponto , de vista dominante, ou seja, masculino. Sob 0 pretexto de se tratar de '\' uma perspectiva nao-situada ou de urn prisma universal, os homens ..imQ6em uma "objetividade" que nega, em afirmando, sua dominancia. Rigorosamente, se trata de urn movimento circular: a instancia episte­ mol6gica chamada de objetividade erige em realidade aquilo que apreende e considera conhecimento aquila que cria. Na mesma medida

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! • Mackinnon nao esta fazendo a apologia do ho~exualismo,

pois nao tern esta posic;ao. Conhece sobejamente, presumem as autoras deste trabalho, 0 fenomeno da , reprodue;ao das desigualdades entre membros de casais homossexuais. 0 que importa, entretanto, no momento, nao sao as deriva<;6es ou "desvios" da forma hegemonica de sexualidade, mas esta pr6pria, porquanto foi nela que, ao longo da hist6ria das dife­ rentes sociedades, se inscreveu a inferioridade feminina em relac;ao ao homem. 0 mito , de Ulith mostra que a rebeldia contra este modelo de domina,<ao masculina - ela recusa-se a deitar-se por baixo de Adlio na relac;ao sexual - condena-a a parir monstros e a devora-los urn a urn. Isto equivale a dizer que ela pr6pria e transformada em monstro, por desobediencia ~ ordem social falocrcitica.

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Explicando, apresenta-se como geral urna perspectiva parcial; apre­ senta-se como de interesse comum de todos - homens e mulheres ­ aquilo que nao consulta senao os interesses masculinos. Reside na base deste fenomeno a retensao de ue a rodu<;iio de conhecimenfos mde­ ende ndi atemlls de existencta, assun como a 0 a<;iio de sellS su·· s na e a social. Desta forma, a aparenCIa ill 'ca que as 1 etas nao sao produzidas por seres humanos situados quanta a enero, ra<;a/etnia e classe social, mas que elas sao geradas no seio do r6prio pensamento. As ideias parecem, assim, independentes das ondi<;6es hist6ricas de sua produ<;ao. Ora, deste modo, na ideologia" "as ideias se apresentam como aquilo que elas nao sao e nao se apre­ sentam como aquilo que elas sao" (Saffioti, 1992a, p. 72). Este feno-' meno da inversiio constitui caracterfstico fundamental da ideologia.

Da mesma forma como a hegemonia burguesa nao consiste apenas no domfnio econ6mico e politico, mas tambem ideol6gico (Gramsci, 1968, 1975; Gruppi, 1978), a domina<;ao masculina sobre a mulher expande-se, com muito vigor, no terreno da ideologia, sendo este con­ junto mais ou menos coerente de ideias a resentado como a v,

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que 0 conhecimento atingido a partir deste prisma e apresentado cotm!J objetivo e universal, seu carater ideol6gico toma-se patentee

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ltigar em que elas ~s~em~SJ te.c:.i~Q~9£!~}. Assim ocorre tambem com ~ as explica<;6es ideol6gicas de qualquer fen6meno social: suas origens ~' .~ r sao sempre postas fora da sociedade, 9~Q[einodana111I~z.a9U ~ (~ f"~ ~o lano divino. Ora, no que tange as meres, to as as re glOe S ~ ~~ Justificam sua explora<;ao-domina<;ao. Por outro lado, nao apenas 0 (~ '\~\ ~ conhecimento de senso comum, mas tambem a ciencia, naturaliza sua 'X-\ .'! inferioridade. Haja vista a maxima freudiana: a anatomia eo destino. f ~,J Sem penis, 6rgao que simboliza 0 poder, as mulheres nao podem asPir~ I'" aigualdade com os homens, mas devem sujeitar-se ao domfnio destes. "'d Desta sorte, a cienciaparticipa, e muito freqiientemente, da constitui<;iio .( de i?eologiAas, cuja fun<;iio precfpua consiste em preservar a organiza<;ii ~. \"of SOCIal de genera. 'J ~l .';1r t

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pendentemente do equipamento genetico de cada urn, todos sao consi@ derados iguais perante a lei. Esta igualdade geraria, supostamente, a ~ mesmas condic;6es para 0 desenvolvimento de todos, no caso, homens e mulheres. Ja que 0 Estado liberal garante esta "igualdade de condi­ c;oes", a responsabilidade pelo exito e pe16 fracasso e imputada a cada ser singular. Isto significa a naturalizaqiio de urn conceito instalado no imo do liberalismo, processo onipresente nesta perspectiva politico­ ideologica. Assim, as mulheres experimentam fracassos muito frequentes em virtude de serem mulheres e nao em virtude da organizaC;ao social de genera.

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Movimentos feministas tern assumido posturas distintas e, muitas vezes, ambfguas face ao Estado liberal burgues. Simplesmente como ilustrac;ao, lembra-se que varios movimentos de mulheres foram radi­ 1(Ii calmente contranos acria -0 do Canselho Estadual da Candi - 0 Femi­ nina em Sao Paulo, em abn e . Setores 0 mOVlIDeIlto de mu­ )11' lheres que se opuseram a esta demanda feminista reviram, posterior­ l .!!le~, Sll~ opinioes e, hoje, nao apenas apoiam aquele organismo l:i!,i.I,.I,'r ; ( } como'colaboram, seja com ele, seja com a Coordenadoria Especial da Mulher do Municipio de Sao Paulo. 0 feminismo nao contem urn norte a este respeito, na medida em que nao elaborou urna teoria do Estado, isto e, nao examinou 0 quaD determinante e 0 genera para a organizaC;ao 'Ii l \' politico-institucional da sociedade. 1

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Ainda que se possam fazer reparas ateoria marxista do Estado, ela teve 0 merito de estudar a re1aC;ao de determinac;ao da classe para com izada or feminist no ue tan e ao o Estado, tarefa ainda na genera Embora incomple13 por nao ter prapriamente chegado a elabo- ~, rar uma teoria feminista do Estado, a tentativa de MacKinnon (1989, pp. 157-170) de analisar 0 Estado bm-gues revela-se percuciente e instigante, abrindo caminho nao apenas para novas e mais completas construc;oes te6ricas, mas tambem para mais bem-sucedidas interven­ Des de mulheres a ' el de legislac;ao e de olfticas soci~ece-se, em con- sequencia desta acuna teorica, de junsprudencia sobre as relac;oes da sociedade civil com 0 Estado ou, em outras termos, sobre as relac;oes entre 0 plano de jure e 0 de facto no terreno do genero. Milhoes de mulheres sabem, atraves de vivencias pessoais e/ou coleti­ vas, que uma enorme distfmcia media entre os dois niveis. Todavia,

nunca se estudaram os mediadores sociais que permitem nao somente a manutenc;ao deste hiato, como tambem a ratificac;ao das relac;oes de genera de facto por leis aparentemente pratetoras das mulheres. , MacKinnon t e n t ' ento entre 0 marxismo e 0 f:'J. (feminismo, retendo do primdra a riqueza de su etodolo~ , J(!) tando criticamente sua ~eirapara 0 genera. Sua formac;ao feminista .__// permite-lhe partir de prenussas empiricam~nte tes13das, como "0 genera , eurn sistema social que distribui poder. E, portanto, urn sisremanolf­ tieo . Sem embargo 0 uso a termmologia sistemica, sua k.! afirmac;ao e integralmente verdadeira, permitindo-lhe examinar 0 cara­ ·8 ter sexista do Estado. ) "~, Se 0 macrapoder e macho, branco e rico (Saffioti, 1987),0 Estado,

instancia cris13lizada deste poder, so pode apresentar as mesmas carac­

,j terfsticas. Isto nao significa que se conceba 0 Estado como estatico. Ao

~ t:.~ contrano, movido por relac;6es sociais, esti em permanente movimento. (";; ~ Maisdo que isto, nao representa, sempre com a mesma forc;a, os ~ interesses dosmachos ricos e brancos. Embora estes visem sempre a realizac;ao de seus interesses, cedem a press6es de segmentos da socie­ dade civil. E verdade, como se mostrara mais adiante na analise de condutas de delegadas, que as concessoes, muitas vezes, sao anuladas grac;as aimensa capacidade do Estado de absorver e transformar de­ , _ mandas ue nao consultam seus interesse n UZl 0, em geral, por, ~ homens,este onaosea eVl entemente,comomasculino, chegando mesmo a absorver mulheres-dlibi, ou seja, as modeladas para respaldar a falocracia ou, pelo menos, 0 andracentrismo. 0 carater ­ masculino do Es13do nao deve, alias, causar surpresa paraquem a<\mi!: ue tod s relac;6es sociais apresentam urna dimensao de genera,t'Do tado e mascu no: a el ve e trata as mu eres da angulo femims, maneira como os homens veem e tratam as mulheres. 0 Estado burgues, coercitiva e autoritariamente, constitui a ordem social no interesse dos homens como urn genero - atraves de suas normas, padroes, relaC;ao com a sociedade e politicas substantivas legitimadoras. (oo.) 0 govemo das leis, nao dos homens, limita a parcialidade com coaC;ao escrita e <5' ameniza a forc;a c m uma razoavel observfmcia das regras" (pp. 161 e ~2);l ,.~' '-­ parafemaIia do Direito positivo e pracessual dissimula 0 carciter sexista do Es13OO, dando-lhe a tao necessaria aparencia de neutralidade. Obviamente, 0 Estado aparentemente neutro nao pode ancorar-se senao

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na objetividade alcan~da atraves do uso da razao, qualidade, por defi­ nic;ao, essencialmente masculina. Alem disto, esta "objetividade" resul­ 'I ta de urna epistemologia generica ou pretensamente nao-situada, reve­ 'II lando que 0 ~tado se vincula profundamente ao conhecimento ciennII ,fico oficia!JOra, ,nao se recoIlhecendocomo urna das perspectivasrJ I: jPossibilitadas pela estrutura social, esta postura esta colada a urn ideal , de justi~ que ratifica 0 enero como urn eixo ao Ion 0 do ual 0 poder :I!III e distribuido. fato de os excessos dos omens no processo de donn­ 'III nac;ao das mulheres serem punidos, visando a sua "normaliza~ao", I constituiurn forte indicio de que 0 Estado regula e garante a supremacia I masculina. Isto significa que 0 Estado masculino refor~a a organiza~ao 1,1 social de genero, com todas as injusti~ que ela contem. I S6 aparentemente 0 Estado burgues independe do genero, assim , " como s6 II ,, ele,guardaautonomia em ao regime de 'I I ~ classes SOCtalS. ao se esta atiiriiando, em nelihurn dos casos, que ~' a determina~ao linear, mas que interesses dos homens enquanto enero e representantes de urna classe 0,u fra ao de classe sao ampla- " , ',1,' . ? : 1'1 f.... mente satisfeitos or este ti de Estado. m outras palavras, 0 Esta 0 , .C;) ~ re ete urn poder masculino, rico e branco legitimado, de urn lado, pelas ,I II~ rela~es de facto e, de outro, por urn campo epistemico.

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Nesta linha de raciocfnio, feministas encarregadas de fonnular po.

lfticas publicas destinadas a mulher, ou aptas a faze-lo, deverlam rol·

vindicar 0 es a necessario, no a arelho de Estado ara im lemenlA·

las. onceber polfticas de discrimma~aoPOSl9Ya da mu er e ears·

cargo do Estado sua implementa~opermite a este a instrumenta1iz8QAe

daquelas em benef,icio da igualdade formal entre os generos, eu seja,

propicia a realiza~~o do ideal de ·usti~a liberal-bur es, enquante se

simula 0 contrario. e este ultimo que urge concretizar, 18 0 ,mu an­

re a~6es efetivas entre homens e mulheres. Mais do que isto,

as trata-se de transformar todas as rela~es sociais, posto que contamina­ das pelo exercfcio discricionario do poder. Este fenomeno, seguramen­

te, s6 se tomara possivel com a forma~ao de alian~as entre sujeitos

singulares diversamente situados nos grandes eixos de distribui~aodo

poder, compondo urn sujeito coletivo multiplo. Esta estrategia possui

implanta~o epistemica: obsoletiza-se a tematica indiv£duo versus so­ ciedade, colocando-se na ordem do dia a problemlitica do individuo

integrando 0 sujeito coletivo. Certamente nao haven} melhores condi­

¢es que estas para se empreender a luta da transforma~odo Estado

burgues.

As polfticas publicas dirigidas a mulher, no Brasil, a partir dos anos

80, cobrem dois grandes eixos: saude* e violencia. Este vern adquirin­

do, sem duvida, maior visibilidade,** posta que:

1. Rela~es violentas que amea~ma integridade flsica de mulheres ' . t sao freqiientes, tern na familia 0 seu locus privilegiado, tendem a () cronifica~oe sao publicizadas quando 0 myel de tensao se acentua , l a tal ponto que ocorre a elimina~ao fisica da vitima.

Em decorrencia da naturalizac;ao da inferioridade social da mulher e de sua especial concepc;ao de justi~, baseada na igualdade abstrata­ mente concebida, toma-se possivel convencer 0 Estado burgues a con­ ceber e/ou implementar polfticas publicas, ~o conteUdo se define pela discrimina~ao positiva de mulheres, embora isto aparentemente seja paradoxaI. A contrapartida desta fenda no aparelho de Estado consiste na transmuta~o,por parte deste, do sentido impressa nas referidas medid~, de m?do a, ao inves de pr?p!ci~as mUlhere~con~~es para a conqUlSta da igualdade concreta VlS-a-VlS os homens, mante-las na sua dependencia. Na verdade, portanto, a fenda nao e senao urna vaIvula atraves da qual os processos sociais fluem e refluem.,A esperan«a. situa-se exatamente nos residuos que 0 processo de fluir-refluir vai deixando. Assim, a Iongwsslffio prazo, 0 EStado burgues passarK"a contar com urn acelVO de residuos, do qual sera, provavelmente, impas­ sive! se livrar. Se este raciocfnio for correto, tera chegado, enta~, 0 -momento de mudar 0 conteudo do Estado que, obviamente, deixara de ser burgues. '

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* Revitaliza-se 0 debate em tomo de programas de saude destinados amulher, a partir \)

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dos anos 80, tendo como foco central 0 Programa de Assistencia Integral aSaMe da

Mulher (PAISM), coordenado pelo Ministerio da Saude.

* *As politicas publicas voltadas para coibir a violencia contra a mulher tern carater

visivelmente repressivo e moralizador, cujo alvo consiste em uma a«<3o socialmente

reprovavel (quando exacerbada) conquanto legitimada, uma vez que esta inscrita num

caldo de cultura marcado pelo exercicio discricionario do poder. A concep~lio da

polftica de saude expressa no PAISM, ao contriirio, redimensiona e amplia conceitos,

tern carater eminentemente preventivo, subvertendo as priiticas correntes nesse terrene,

muito embora tenha encontrado problemas para sua implementa'Oiio nesses moldes ­

o que nlio se constituirii em materia de analise deste trabalho por escapar 80 seu

objetivo.

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2.. Enquanto fenomeno universal, as rela¢es hienrrquicas de genero sao constitutivas do conjunto das rela~s sociais do qual mulheres vitimas de violencia sao ou tomam-se coparticipes. 3. Evidencia-se, em consequencia, 0 canlter androcentrico das institui~6es, nas quais a violencia e oenunciada e que se transfor­ mam em palco de disputa pelo poder - de submeter, de defender­ se, de julgar, de punir, de moldar subjetividades, de transgredir. 4. Dada a transversalidade do fen6meno e as diferentes express6es e dissimula~6es que encarna, reflete urn modelo de fanu1ia que, no plano ideologico, se tenta negar, mas, na pnitica, se reafirma coti­ dianamente. 5. E, portanto, pode tambem refletir a imagem do espectador, que, nesse sentido, se toma tambem sujeito capaz de emocionar-se, indignar-se ou mesmo de apresentar uma rea¢o de conivencia com o fen6meno, mas, de qualquer forma, p6e-se em rela~iio com 0 mesmo. 6. propicia a convergencia de a~6es de gropos feministas, revelando significativo potencial mobilizador. Constitui-se, assim, em campo de luta fecundo, entrando, de forma decisiva, na pauta de reivindicag6es do movimento feminista, a partir da qual esta passa a estabelecer interlocu¢o com outras instancias da sociedade civil e com 0 Estado. Como resultado de press6es crescentes deste movimento, que se vai conformando enquanto sujeito politico capaz de penetrar nos mean­ dros das institui~6es mais totalitarias e de ousar tentar subverter sua logica e suas a~6es, sao criadas Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs)* ou Delegacias Especializadas no Atendimento a M9lher (DEAMs)** em ambito nacional. Trata-se de umapo/{tica/seletiva voltada para a amplia~ao da cidadania de uma categoria social discri­ minada, 0 que evoca uma conce]J{iio distributiva de justi~a (Dnube, 1990). Esta concep¢o, subjacente a demandas de setores hegem6nicos do movimento feminista brasileiro, e apropriada por candidatos de

oposi~ao a govemos estaduais, num contexto de redemoOfltlllQlo do pais e de suas institui~6es, mais precisamente, no decorrer da prlmelrll "'!'

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elei¢o pos-ditadura rnilitar. De topico de plataforma poUtiClI "roil.· ma de alguns govemos, revela-se com grande efeito multlpUcldor, ~ uma politica que institui, de forma continua e sis~m6tlcl, I dlYt.lo sexual do trabalho numa das institui~6es essencialmente m••cullnu e discriciomirias do Estado, que mais tem contribufdo para InYllbUIIIr I cidadania das fra¢es de classe e categorias sociais mais subaltemilldu (Almeida, Can~ado, Silva, 1990). Configuram-se 0 dilema e a ten,le entre 0 projeto de estabelecer novos parametros para 0 comblte' violencia contra a mulher e seu ancoradQuro - a instituic;Ao pollclal - ,cujo carater e antitetico a esta inten¢o. A resolu¢o ou abrandamento dos embates crescentes entre movl· mento feminista e Estado, neste dominio, se traduz pela estrat6gia de delimitar uma arena publica de disputa para os sujeitos envolvidos em rela¢es de violencia, com moldura politico-institucional, onde possam ser conjugados instrurnentos legais e a media~ao do poder institufdo, com vistas aamplia¢o de direitos sociais de uma categoria subalterni­ zada e are1eitura das rela~6es de genero nos pIanos institucional-fami­ liar-social. Na base do desafio instala-se 0 paradoxo: almejar a imple­ menta~ao da legalidade e a redistribui¢o dajustiga pela instituicjlo que tem sido um dos mais vigorosos bra~os do Estado para a manutenc;Ao de uma ordem social iniqua e excludente. E mais: 0 desafio consiste tambern em aspirar a implanta~ao de uma poHtica feminista por urn Estado androcentrico. Neste feixe de tens6es assim engendrado, colo­ cava-se a necessidade de manutenc;ao na cena principal do protagonista fundamental, qual seja, 0 movimento feminista, no sentido de se as­ segurarem a concep~ao e as premissas basicasoriginarias da poUtica proposta. Tratar-se-ia, pais, de transpor para a nova arena publica refe­ rida a interlocu~ao movimento feminista versus Estado, visando are­ qualificar/ressignificar a re1a¢o entre este e a sociedade ciVil, no to­ cante ao genero. Nao se esta desconhecendo, com !SSO, que ao transfor­ mar uma demanda social em polltica publica, 0 Estado processa seu

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• Denominae<iio da primeira delegacia do genero criada em Sao Paulo e seguida por outros Estados da federaC$iio. • ·Nomenclatura institufda no Estado do Rio de Janeiro. Dada a diversidade de denomina¢es, passar-se-a a utilizar a expressao Delegacia da Mulher.

.>A primeira Delegacia da Mulher foi criada em Sao Paulo em 1985. Hoje, exlstem 126 '\

(1994) delegacias desta natureza neste Estado e perto de duas centenas em todD 0 Brasil.

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enquadramento num esquema burocnitico-institucionaI, tentando capi­ talizar a medida como benesse generosamente concedida asua popuIa­ ~o-alvo. Nao obstante, considera-se possivel superar 0 carater instru­ mental que numerosos movimentos sociais conferem as suas lutas, quando, uma vez efetivada uma conquista, assiste-se ao seu refluxo no que conceme amesma. Isto nao significa uma recusa da utilidade de movimentos sociais de esgotamento nipido, dado 0 reconhecimento de que a multiplicidade do sujeito so permite alian~as em bases desiguais e, por isto, as vezes, efemeras. Muitos dos membros que engrossam as fileiras de certos movimentos sociais consideram seus objetivos ime­ diatos como fmais, enquanto outros tern-nos como resultados parciais de uma etapa da luta mais ampla. Cabe, ainda, lembrar que varios movimentos sociais mobilizam parcelas importantes de determinados contingentes humanos com diferentes inser~6es na estrutura da socie­ dade, assim como fra~6es de classes, visando a mudan~as, por vezes, profundas. Isto equivale a dizer que tais contingentes movem-se, com freqiiencia, segundo a distribui~ao-conquista do poder ao lange dos antagonismos sociais basicos. Na optica do movimento feminista, estava-se diante de uma poutica .instigante, tendo em vista que significava 0 reconhecimento implicito, porparte do Estado, de que 0 atendimento por ele prestado a mulheres vitimas de violencia era, ate enta~, discriminatorio e desigual. Enuncia­ va tambem a possibilidade de reconstru~ao desse servi~o em bases, se nao democraticas, pelo menos com umgrau substancialmente reduzido de autoritarismo. Configurava-se, ainda, 0 direito ao recClnhecimento das diferen~as, no plano do atendimento institucional, sem que isso representasse reprodu~o de desigualdades. Para tanto, seria fundamen­ tal combater a tendencia hegemonica do servi~o recem-criado a refletir padr6es convencionais de poder de poucia, conquanto mesclado com uma pratica intuitiva, resvalando para a solidariedade vitimista. Ao mesmo tempo, fica clara a premencia de se superar seu carater frag­ mentario, posto que 030 abarca a g10balidade das a¢es necessarias para que a mulher dele necessitada possa romper com rela¢es de violencia (Saffioti, Can~do, Almeida, 1992). Ou seja, enquanto esta poutica 030 for ampliada de forma a se alterarem os padr6es de atendimento judi­ ciario as vitimas ease criarem servi~s de apoio, como abrigos, creches publicas, entre outros, estar-se-a lidando com uma politica que visa antes a prestar atendimento emergencial as muIheres do que a combater

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a violencia que grassa nas rela¢es de genero. Ja esm demonstrado, em estudo recente realizado pelo Americas Watch (1991), que a impunida­ de ainda e a norma e, nesse sentido, a cria~o das Delegacias da MuIher nao teve 0 poder inibidor da violoocia, conforme se pretendia. Na perspectiva do Estado, trata-se de uma medida de baixo custo economico e com grande repercussao poutica, poi~om alta visibilida­ de, contribuindo para forjar uma outra acep~o de uma agencia de controle social, cuja imagem estava exclusivamente vincuIada a memo­ ria de praticas de tortura - seja a presos pouticos ou comuns - e arbitrio. Por outro lado, e uma poutica capaz de angariar reduzido apoio social, pela seletividade dos seus beneficiarios e dada a parcialidade das a~ dela derivada, contendo assim uma ambigilidade intrinseca. Nesse quadro, amplia-la nos moldes acima propostos significaria ter a garantia de que a reorienta~ao dos gastos sociais nessa dire~ao possibilitaria 0 redimensionamento do apoio social. Isto posto, pensa-se nao ser pos­ sivel ob.ter ganhos nessa linha, nos marcos de urn govemo liberal-bur­ gues e, por conseguinte, androcentrico, se nao se tiver a real dimensao do campo de for~s em que se esm atuando. As Delegacias da Mulher constituem 0 ceme da politica de segu­ ran~a publica brasileira dirigida a mulher - se se toma para anaIise a realidade nacional -, sendo nuan~da pelas particuIaridades poutico­ economico-cuIturais das regi6es onde ocorreu sua implanta~ao. No que tange ao caso do Rio de Janeiro, esta subespecializa~o do trabalho da policia, a partir do corte de genero, passa a integrar a estrategia de modemizar;iio da policia civil, que desde 1981 investira na projissionalizar;iio e feminilizar;iio da sua interven~ao no campo social, atraves da implanta~o de Servi~o Social em algumas de suas agencias (Almeida, 1991). Em outros termos, a a~ao social da polfcia, tao solidificada no seu cotidiano e negadalsolicitada nos moldes de urn pronto-socon"o social, passa a adquirir maior visibilidade e legitimida­ de, imprimindo-se-lhe uma nova etica e instaurando-se novo ponto de tensao nas rela~6es que a perpassam. Draibe (1990) aponta a consen­ sualidade na literatura especializada de que ct... a politica assistencial constitui a fonna ancestral da politica social. " Destaca ainda a autora: "Foi sob 0 modo de assistencia publica aos pobres que 0 Estado Modemo, nos primordios do Capitalismo, deu inicio a urn tipo de regula~ao e controle sociais, mas simultaneamente de integra~ao das popula~6es pobres..." (p. 18, grifos no original). Esta forma de as-


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sistencia e constitutiva da cotidianidade da a~ao policial, residindo af

uma das fontes da rela~ao paradoxal que trava com a popula~ao: sua

interven¢o e, ao mesmo tempo, receada/rejeitada e demandadallegiti­

1,,:1 mada por esta. E sua a¢o era marcada pelo conjunto de caracterfsticas ,ll enumeradas por Draibe como inerentes aforma inaugural de polftica ~; I, :1 social: "lnstabilidade e descontinuidade das a~6es e servi~s prestados,

Iii a par de caracterfsticas assistencialistas, patemalistas, clientelistas, au­

I111111 toritarias, de tutelageme de 'doa~ao' e arbitrariedade no modo de

conceber e implemen . programas, assim como de escolher e tra 1'1,11 ;'1 rt:'\ seus benefici' . ." (p. 19fCom a mser~ao do Servi~oSocial em dele ~ gaClas policiais.Jnao so se 3ltera esta pnitica, urna vez que a rela~o com 1Iii!) a popula~ao passa a se pautar na perspectiva de am lia~ao da sua

.cidadania e d ' s suas or aniza 6es sociais mas tambem rea:'

111 tualizam-se os sellS sfmbolos: da marca academica asua penetra¢o em 1I CJ regi6es perifericas, substituindo-se a a~ao repressiva pela interven~ao I,I1 assistencial e educativa, com 0 intuito de apoiar a~6es voltadas ao '~ alargamento dos direitos sociais da sua uIa - o-alvofN'este cenario

I ,I 'I ~ ~.. coeXlstem a natureza represslva da institui~ao POliCl e a orma~ao

~~ ~ academica e polftica das assistentes sociais, que revelava urn claro

(11,1 III \2J vinculo cIassista antag6nico ao do organismo emoldurador de sua acao.

Ii rata-se de urn campo de tor~ onde se movimentavam representa¢es

~I I i I e praticas contradit6rias: as denUncias de exercfcio discricionano do poder extravasavam as muralhas do aparelho repressivo, pela conviven­ 1;111 cia nao. __!!! affi!illJa.d~.PQJtadores de ~~tivasanta Qnic~te

Servi~ logrou me lar crescentemente~ tua~oes e vlOlencia contra a

II f)i mulher, ajudando-a a decodificar mecanismos institucionais necessanos

II', \/ a obten~ao dos seus direitos, constituindo-se, pois, em recursor em

,I,iI ateria de a io a vftimas de violencia na esfera olicial COmparece, I Iii I) enta~, como coadjuvante no processo e esconstru¢o/reconstru¢o II', dos contomos polftico-institucionais que circunscreverao as fonnas de r media¢o instituintes. No que conceme asociedade civil, cabe ressaltar, mais urna vez, a , 1'1 1: , importancia dos movimentos sociais pelo tim da impunidade dos ho­

II mens que espancavam,seviciavam e ate assassinavam suas (ex)£Q!I.lP1l­

',I nheiras."Me'll~a6 especial deve seffeHaaosSUss,que oeserivolveram

I: urn esfor~o herculeo para criar e manter servi~s de acolhida e orien­ 'I' ta¢o demulheres vftimas de violencia, independentemente do aparato 'II de Estado. Sem sombra de duvida, os SOSs deram certa visibilidade ao 1;:1 ,I' 'II

problema da violencia contra a mulher e contribufram sensivelmente para gerar a demanda das Delegacias da Mulher. Nas Delegacias da Mulher do Rio de Janeiro, 0 Servi~o Social dialogou sistematicamente com grupos feministas e outros movimentos sociais, experimentando praticas institucionais articuladas e, nesse sen­ tido, forjando novas referencias para a rela~o polfcia versus sociedade civil. Nao obstante tratar-se de uma polftica publica fundamental, evi­ dencia-se uma lacuna no que se refere aqualifica~ao dos sellS agentes na 6ptica das rela~6es de genero. Concep~6es diferenciadas se sobre­ p6em, se mescIam, se contrap6em no entrejogo do modelo dos padr6es institucionais convencionais e da auto-referencia, cujo corolario ea solidariedade vitimista. Neste palco de negocia~aopermanente com 0 poder institufdo, emerge urn campo de constitui~aode subjetividades. Nos bin6mios legalidade/moralidade, indiciamento/aconselhamento, releitura/reprodu~ode reIa¢es desiguais de genera, os 6ltimos termos tern sido tendencialmente hegem6nicos. E, no entanto, urn campo de for~as tambem ambfguo no qual a transgressiio "legalizada", ou seja, aquela praticada pelos agentes da lei, a pretexto da ineficacia desta, se confunde com 0 improviso, a intui¢o e/ou a banaIiza¢o. Eurn terreno fertil para que a polftica se personifique, sendo circunscrita pelo con­ junto de rela~6es sociais do qual os seus executores participam.

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o caso de uma delegacia especializada do Centro-Oeste ilustra paradigmaticamente esta assertiva. Com a palavra a sua delegada titular: "Vores precisam me ajuclar, precisam fazer exames de les6es corporais, eu preciso da materialidade, preciso cia prova (...) E elas chegavam e 0 medico nao estava Ia,ja nao teria medico para.atende-Ias. As lesOes iam sumir, as marcas iam desaparecer, a impunidade ia continuar. Coloquei as senhoras na viatura e mandei que fosse ao Instituto Medico Legal, liguei pro medico, disse que eu estava esperando, que tinham umas mulheres pra ir se submeter ao exame. Foram e eu fiquei feliz. Resolvi 0 problema"

Depreende-se 0 trafico de intluencia, a par de urna a~ao as­ sistencialista e tutelar, exercido pela autoridade policial para que uma institui~ao publica preste 0 servi~o do qual sua existencia e tributana. Parece intuir que a polftica social se toma, se nao in6cua, pelo menos limitada, quando nao se supera seu carater fragmentario. Esta supera¢o

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etentada, lan~do mao a profissional da rede de poder local, bem como colocando-se na perspectiva popular e nutrindo-se de cren~incorpo­ radas ao imagimirio coletivo de que a sorte de obter benesses de institui­ ¢es privadas pode substituir 0 papel do &tado na presta~ode servi~ sociais eficazes: "Eu you construir uma Delegacia de Defesa da Mulher onde tenha urn albergue onde eu possa colocar essas mulheres, possa dar esse apoio, onde tenha 0 Instituto Medico Legal funcionando dentro da propria de­ legacia. (...) Mas construi a Delegacia de Defesa da Mulher com auxnio da LBA, sem 0 govemo; 0 govemo esteve la me ajudando com alguns move is. Mas s6 com a sociedade nos conseguimos construiressa delega­ cia. (...) Eu estou aqUi com urn pedido, 0 secretario ate me autorizou de comprarum video, urn slide, mandei ate pra Porta da Esperan!«l do Silvio Santos. Esta aqui 0 oficio, dizendo pra ver se me mandavam isso. Porque eu quero colacar esse video. Entrei em contato com 0 IDAC, que e no Rio de Janeiro, pedindo 0 Projeto Mulher formado de quatro slides: Mulher tambem tern direito, Aprender para viver melhor, Briga de marido e mulher e Vida de mulher. sao os slides que estou procurandotrazer porque nossa finalidade equando se registra uma ocorrencia, passamos os slides, temos uma conversa com eles, uma orienta~o (...) Estamos fazendo urn trabalho de conscientiza~o na propria delegacia, temos 0 grupo Alanon e 0 grupo dos Alc06latras An6nimos e eles vao la pra fazer urn trabalho com os alcoolizados que sao demais. 0 problema mais serio de espancamento e 0 p~oblema do alcoal e estou com uma lei urn pouqui­ nho severa. Eu intimo 'para comparecer a essa reuniao e agora estou tentando arrumar urna kombi pra eu ir buscar esses mo!;Os pra participar dessas palestras porque eles nao tern dinheiro pra vir."

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ciamento de programas sociais, de forma que nao dirige ao Estado esta demanda, 0 que, de certa forma, legitima sua omissao - alias, nao chega sequer a reconhecer 0 Estado na figura de urna de suas institui­ ~6es mais marcadamente assistencialistas e c1ientelistas (LBA) ., bern como com a reprodu~o de praticas autoritarias ou de umapedagogia da vio!encia. Resiste na medida em que t~ burlar as limita~es e ter acesso a informa~6es como no tocante aos instrumentos pedag6gicos que pretende adquirir, assim como estabelecer novos arranjos sociais que permitam partilliar responsabilidades pela implanta~o de progra­ mas sociais publicos. Demarca, com isso, seu campo de a~ao, centrali­ zando servi~os anteriormente dispersos, estabe1ece c1aras fronteiras com as pniticas em curso nas de1egacias ordinarias, ao mesmo tempo em que amplia seu poder polftico-institucional. Nao obstante, 0 jogo de espelhos nao eeliminado, 0 que acarreta, simultinea e paradoxalmente, a proje~ao da imagem do poder de policia convencional: "Ele da a senten~a quando sente; senten!«l vern de sentir e ele da a senten!«l. (...) Nenhurn magistrado que der urna senten!«l sentindo, vai me punir. Pega 0 carro e manda prender tooos esses homens, vai buscar! Vai na casa, vai no servi!;O, traga esses homens aqui!"

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"Eu disse: amigo, voce quer entrar assim ou quer entrar baleado? Vace escolhe, porque voce vai entrar na minha sala!" "0 senhor esta detido porque 0 senhor vai ter que arrumar uma outra forma de decIarar amor, porque esta forma nao vai dar certo."

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a discurso acima enuncia uma concep~ao globalizante de politica social, delineando urn percurso que contempla tanto a instincia da polfciajudiciaria quanta uma dimensao educativa. Educa~o de maos

dadas com a repressao, denunciando amarca da forma~o edo exercicio

profissionais em todas as a~6es da delegada, mesmo naquelas que

ultrapassam sua fun~ao stricto sensu. Ademais, ela cria, encarna e executa a lei, que passa a alicer~ a a~o pedagogica por ela idealizada, cujo planejamento e precedido de um diagnostico formulado com 0 olliar do senso comum. Este, no entanto, nao ehomogeneo, mas per­ meado por elementos de acomoda~ao e resistencia (Anyon, 1990). Acomoda~ao com a falta de aloca~ao de receitas publicas para 0 finan­

"... ninguem mais ia adelegacia sem advogado porque estava com medo daquele recolha, recolha! Me perdoa mas nao tinha outro jeito, tinha que tomar uma providencia." t..lO(~

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A for<;a, a coer~ao e 0 poder discricionario sao constitutivos e estruturadores das agencias de controle social, notadamente da institui­ ~ao policial - organismo essencialmente androcentrico. Desenvolver este estilo politico-administrativo assegura ao seu protagonista salvo­ conduto asua estrutura de poder. Possibilita escapar ao estigma que vem sendo construfdo pelos agentes da repressao de que de1egacia especializada em crimes contra a mullier ea cozinha da policia, porque elugar de mulher e de resolver problemas domesticos. Nao ecasual­


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de uma profissao marcadamente repressi'{a e masculina. 0 controle hierarquico, representado pelo secretario de Estado que amea~imobi­ liza-Ia, se deixa aprisionar pela necessidade de anonimato da violencia praticada par urn representante do poder institufdo, preservando-se, assim, nao s6 a "moralidade" do macho, mas tambem a do Estado que representa e que acaba par personificar. Aevoca~o do poder de fogo do movimento feminista e urna estrategia politica que retira a contenda da fechada estrutura do poder institucionallocal e a remete asociedade civil, cujo potencial de mobilizac;ao e estabelecimento de novas articula­ ~oes ja se mostrou fecundo neste campo. Adelegada nao s6 reconhece, mas legitima sistematicamente a importfmcia desse sujeito coletivo:

mente que a delegada acumula 0 cargo de titular da Delegacia Regional de Policia Civil, tendo exercido tambem outras fun~oes de destaque anteriormente. Entretanto, sabe-se que os setores dominantes nao sao homogeneos, podendo desenvolver divergencias pontuais, sem compro­ meter sua estrategia global de explora~o-domina~o.Nestes termos, a delegada chocou-se com focos de poder local: "E vinha muIher de secretariode Estado que queria urna provid~ncia (...) eu mandava 0 offcio. Momentos depois, eu era chamada pelo meu secre­ tario, ministro da Seguran~a: 'Dra. (...), esse caso eu resolvo.' De jeito nenhum, 0 senhor nao me fa~ isso porque a muIher veio procurar a mim. Me tira, nao me deixa no cargo, mas quem tern que conversar com esse mo~o sou eu, porque eu nao sei 0 que 0 senhor vai dizer pra ele. Talvez o senhorva dizer a ele que isso e chilique de muIher. Eu quero conversar com ele. 'Entao, a senhora venha conversar com ele no meu gabinete.' Vou! E fui e comecei a conversar (...) Chegou a determinado ponto que ele me me olhou e pensou com ele: essa negrinha esta pensando que e gente? Preconceito existe, muIher e negra... dois preconceitos Ilmito gran­ des, ne? Erne olhou, e ainda senti no olhar que nao era ~6 isso. Senti no olhar uma perda do cargo. Eu premeditei porque n6s temos essa beleza maravilhosa que e a sensibilidade, urn sexto sentido; e quando ele estava me olhando eu falei: (...) Nao tenho medo de perder meu cargo. Agora quero deixar bern claro que temos urn movimento de mulheres aqui (...) e que eu ~u, com essas muIheres, pra porta do seu gabinete demonstrar que 0 senhor e urn espancador'."

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o recrudescimento da disputa pelo poder faz entrar em cena outro

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sujeito politico que expressa solidariedade com a delegada, pos­ sibilitando-Ihe reafirmar tres dimensoes da sua identidade - duas ba­ sicas e uma secundaria - que se sobrepoem neste embate: a de genero, a de ra~ e a profissional, 'lue sobrepujam outra dimensao basica da sua identidade - a de classe. 0 depoimento da delegada revela sua capa­ cidade de mobilizar energias extraordimlrias face a manifesta~oes de preconceito racial. Embora nao haja espa~ para uma analise do entre­ cruzamento dos dois antagonismos enfrentados por ela, cabe, pelo me­ nos, indicar as dificuldades vividas por uma mulher negra, no exercicio

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* Para 0 aprofundamento da discussao sobre identidade, veja-se SatIioti, Can~do, Al­ meida, 1992.

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"... e preciso que eu credite aqui as minhas homenagens ao SOS-Mulher de todos os estados do Brasil, por ue foram eles~a~ Delegacia de Defesa da MuIher. oi urn fi1i15aIfiOlongo, caminhopenoso, ~mas, como tOdo tra a 0 am er, ele esilencioso, desaparece, inexiste, e muIheres corajosas, grupos de muIheres autonomos da nossa sociedade civil saiu pelas ruas, pelas esquinas, pelos lar vantando problemas, denunciando a violencia domestica e urbana Mulheres coraJosas pe ­ ram cartazes e oram pros Foruns 0 nosso Brasil solicitando puni~ao pros nossos agressores, penas mais severas. Nao se podia mais admitir os famigerados crimes de arnor. Tinha que se combater a ideia absurda de que a defesa da honra do hornem era legitima e de que os assassinatos de mulheres eram urna coisa adrnissfvel e ate justificavel."

A incorpora~ao do discurso feminista e visfvel, sendo permeado por uma linguagem academica e revelando que no universo de representa~6es da delegada coexistem referencias dfspares, que se al­ ternam ou se mesclam em diferenciadas conjunturas. Neste momenta, a feminismo eproeminente e apropriado como referencia, indicando a onipresen~ do genero na sociedade. Necessaria se faz que este saber - fragmentado, intufdo, porvezes dilufdo e ofuscado por representa<;6es derivadas de outros campos ­ seja sistematizado, aprofundado e incorporado afilasofia de a~ao das profissionais que se defrontam cotidianamente com urn contexto forte­ mente hierarquizado de rela~6es de genero. A analise mais exaustiva de urnaDelegacia da Mulher do Centro-Oeste pretende indicar a quanta esta politica publica, em processo qualitativo de esgotamento acelerado por falta de capacita~ode quadros, pode ser potenciada, desde que seja


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reapropriada pelo movimento feminista, e que a formulac;ao de urna estrategia global de intervenc;ao nessa area nao silencie as particulari­ dades locais - antes, seja por elas desafiada, com vistas a sua incor­ porac;ao e superac;ao. Nao se tern nenhuma d6vida sobre a validade da ideia de se criar urn espac;o nao hostil as mulheres, no aparelho repressivo de Estado, de modo a propiciar-lhes tratamento adequado e evitarsua exposic;ao a urn tipo agressivo de atendimento, proprio de delegacias ordinarias de po­ lfcia. A ideia, contudo, nao se resurniu jamais a substituic;ao de policiais homens por policiais mulheres, sem lhes proporcionar formac;ao na area de relac;6es de genero, a partir do ponto de vista feminista. Nas circuns­ tfulcias em que as Delegacias da Mulher vern sendo implementadas, isto e, como se fossem suficientes urn edificio, uma viatura, urn telefone e policiais mulheres com a mesma formac;ao de qualquer outro policial, estas institui~es nao respondem a demanda de urna politica de discrl­ minac;ao positiva em relac;ao a mulher. A maioria das delegacias espe­ cializadas opera em circunstflllcias tao precanas que faz jus as criticas de grande parcela de suas usuarias. Cabe lembrar que a proliferac;ao dest~ instituic;oes nao se faz acompanhar da dotac;ao de verbas e equi­ pamentos necessarios a urn funcionamento adequado. Ha delegacias que nao dispoem de nenhuma infra-estrutura e, porvezes, sequer de combustivel para realizar diligencias. Trata-se, como se ve, de uma apropriac;ao, por parte do Estado liberal, de urna discriminac;ao positiva em relac;ao a muIliet, convertida em mecanismo populista em favor de governantes homens. Criam-se, indiscriminadamente, De1egacias da Mulher, mas nao se lhes propiciam possibilidades de atuac;ao segundo os padroes idealizados pelas feministas que as conceberam. Seja por carencia de recursos materiais, seja por falta de formac;ao no dominio das relac;oes de genero das policiais, 0 Estado vern minando uma ex­ traordinana ideia de politica publica destinada a, pelo menos, reduzir a impunidade de homens perpetradores de vioIencia contra mulheres. Urge que feministas se conscientizem das circunstancias em que esta operando a maior parte das delegacias especializadas e tomem a iniciativa de se reapropriarem de seu conteudo originario. Convem ressaltar que se 0 Estado liberal tenta, permanentemente, recuperar em beneficio de seu proprio ideal de justic;a politicas de discriminac;ao positiva com referenda a mulheres, 0 govemo nao constitui urn bloco monolitico. Ao contrario, existem conjunturas politicas bastante favo­

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raveis a negociaC;ao com certos membros do staffgovemamental. Na condic;ao de categoria socialmente fra~mulheres organizadas podem adotar estrategias de introduc;ao de cunhas no Estado burgues atraves de participantes de determinados governos. Se esta nao for a melhor estrategia, constitui, pelo menos, a mais myel em certas circunstfulcias historicas.

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A violencia contra a mulher ocorre em urn contexto social engen­ drado por clivagens de genero, classe e rac;aletnia, que atravessam as relac;6es familiares intemas (entre seus integrantes) e extemas (enquan­ to agencias de mediac;ao). A experiencia desta forma de violencia ocorre desigualmente para os membros do casal, favorecendo aos homens que, em sociedades falocraticas, mobilizam maiores parcelas de poder. Capturada em seu desejo, e, portanto, com dificuldade para colocar-se como sujeito dese­ jante, a mulher sofre repressao em todas as etapas de sua vida, por parte da familia e de varias agencias socializadoras. Assim, a mulher sofre mais os efeitos da crise, pois vive a ambi­ giiidade de quem ainda nao conseguiu se despojar de algumas caracte­ risticas reificadas, mas luta tentando apropriar-se de instrumentos dis­ poniveis e construir novas ferramentas, em relac;ao a sua autonomia e relac;6es mais igualitarias (Caruso, 1989). A violencia fisica ocorre reciprocamente entre 0 homem e a mulher, em larga escala, tratando-se de relac;6es e nao de ac;6es unilaterais de violencia. Sua reproduc;ao da-se amplamente em relac;ao as gerac;6es

imaturas. (

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As mulheres transgridem de diferentes formas, tentando subverter a organizac;ao social de genero ou simplesmente escapar de suas implicac;6es mais atrozes. Em suas produc;6es discursivas, as mulheres assumem e realc;am suas formas de insubmissao, enquanto os homens formulam suas falas no sentido de legitimar suas ac;5es. Ambos utili­ zam-se do processo devitimizac;ao/culpabilizac;ao. No entanto, os ho­ mens fazem-no transferindo 0 segundo dos termos para as mulheres, e, apropriando-se exclusivamente do primeiro. As mulheres, distintamen­ te, partilham ambos os termos com os homens. 217

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VIOLENCIA DE GENERO

A violencia fisica nao visa a punir 0 corpo, mas a dobrar a cons~ ciencia de outrem. Arealidade corporea e tao somente urna media~o do jogo de poder. Este, por ter eficacia ielativa e porosa, nao pode prescindir da for~. Portanto, esta forma de violencia denuncia a impo­ tencia de quem consegue supremacia nesse jogo, para manter 0 outro sob dominio absoluto. Assim, no mesmo movimento, esta rela~ao de violencia encerra os germens de sua transforma~ao.

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adequados a vitimas de violencia, mas tambem de contribuir para a constru~o de urn mundo menos desigual.

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Desvendar as contradi~s dessa rela~o de poder constitutivas da organiza~ao social de genero e fundamental para que se formulem estrategias de politica publica, capazes nao so de oferecer servi~s

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Para tanto, devem se foIjar contextos qualitativamente novos para a (re)produ~o de subjetividades das gera~es imaturas e dos educado­ res lato sensu. Urn programa de forma~o politica em rela~5es de genero, classe e ra~a/etnia, destinado a formuladores e exec~tores de politicas publicas e a membros de organiza~es da sociedade civil _ e basilar para a des-re-constru~ao destas rela~5es. Neste sentido, as imbrica~5es entre teoria e politica~? evidentes.

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