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UNIFAE – CENTRO UNIVERSITÁRIO FRANCISCANO

FREI ANDRÉ LUIZ DA ROCHA HENRIQUES, OFM

A METAFÍSICA DO BEM-AVENTURADO JOÃO DUNS SCOTUS ENQUANTO POSSIBILIDADE RACIONAL DO DISCURSO TEOLÓGICO

CURITIBA 2008


FREI ANDRÉ LUIZ DA ROCHA HENRIQUES, OFM

A METAFÍSICA DO BEM-AVENTURADO JOÃO DUNS SCOTUS ENQUANTO POSSIBILIDADE RACIONAL DO DISCURSO TEOLÓGICO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina de Monografia em Filosofia do curso de Filosofia da UNIFAE – Centro Universitário Franciscano. Orientador: Prof. Dr. Frei João Mannes, OFM

CURITIBA 2008


Dedico este humilde trabalho ao grande mestre da Escola Franciscana, o Bem-aventurado JoĂŁo Duns Scotus, Doutor Sutil e Mariano, cujo sĂŠtimo centenĂĄrio de morte celebramos este ano.


RESUMO O presente trabalho busca analisar a legitimidade e atualidade da Metafísica elaborada pelo Bem-aventurado João Duns Scotus como condição de possibilidade de um autêntico discurso acerca de Deus. Para tanto, deve-se estar atento aos limites intrínsecos de nossa linguagem, que, no presente estado, deve partir sempre da realidade empírica. A partir desta preocupação atual pela semântica, já presente no pensamento de Scotus, apresenta-se o contexto histórico de seu pensamento. Do discurso aparentemente inconciliável entre os filósofos e os teólogos de seu tempo, Scotus extrai a possibilidade de uma nova Metafísica, mais geral. O primeiro passo na elaboração desta é o que Scotus chamou de “distinção formal”. Esta é capaz de identificar na própria realidade extramental, antes de todo ato do intelecto, uma distinção entre determinadas “formalidades” ou inteligibilidades, que, embora não possam ser reduzidas entre si, não constituem “coisas” separadas, ou mesmo separáveis, na essência dos entes. Estas formalidades estão na base de nossos conceitos e possibilitam a compreensão do próprio conceito de “ser” como sendo unívoco a toda a realidade, mesmo a divina; pois, sendo o mais indeterminado que possuímos, o conceito de ens não possui em si mesmo nenhuma referência a ser imperfeito ou finito. O conceito de ser unívoco é, portanto, o objeto primeiro de nosso entendimento e fundamento de toda analogia entre Deus e as criaturas, sem a qual esta cairia na equivocidade. À univocidade do conceito de ser se unem os transcendentais, em particular os chamados “disjuntivos”, que possibilitam uma determinação positiva de Deus enquanto “Ser Infinito” em correlação aos seres finitos. A partir da demonstração metafísica da existência de Deus e de suas propriedades absolutas cognoscíveis sob a luz natural da razão, chega-se ao conceito de “Ser Infinito” como conceito natural mais perfeito e mais simples acerca da qüididade divina e limite máximo da Metafísica. Palavras-chave: Metafísica. Formalidades. Univocidade. Analogia. Transcendentais. Deus. Infinito.


SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 5 1 DUNS SCOTUS E A REFUNDAÇÃO DA METAFÍSICA ..................................... 8 1.1 A ATUALIDADE DA METAFÍSICA ESCOTISTA ................................................. 8 1.2 CONFLITO ENTRE FILÓSOFOS E TEÓLOGOS NO SÉCULO XIII ................ 10 1.3 A SOLUÇÃO PROPOSTA POR SCOTUS................................................................ 13 1.4 SCOTUS E A SUPERAÇÃO DA “METAFÍSICA” ARISTÓTELICA ................. 16 2 PONTOS-CHAVE DA METAFÍSICA DE SCOTUS ............................................. 19 2.1 A DISTINÇÃO FORMAL EX NATURA REI ............................................................ 19 2.2 O CONCEITO DE SER UNÍVOCO ............................................................................. 24 2.2.1 O objeto próprio do entendimento humano ............................................................. 24 2.2.2 Univocidade: fundamento da analogia ..................................................................... 26 2.3 OS TRANSCENDENTAIS ........................................................................................... 29 3 A PROVA METAFÍSICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS ...................................... 32 3.1 METODOLOGIA DE SCOTUS .................................................................................. 32 3.2 A DEMONSTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DO PRIMEIRO PRINCÍPIO ............. 35 3.2.1 Pela via da eficiência .................................................................................................. 35 3.2.2 Pela via da finalidade .................................................................................................. 35 3.2.3 Pela via da eminência ................................................................................................. 36 3.2.4 A tríplice primazia do Primeiro Princípio ................................................................ 36 3.3 PROPRIEDADES ABSOLUTAS DA QÜIDIDADE DIVINA............................... 37 3.3.1 A simplicidade do Primeiro Princípio ...................................................................... 37 3.3.2 A sabedoria do Primeiro Princípio ............................................................................ 38 3.3.3 A infinitude do Primeiro Princípio ............................................................................ 40 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 43 REFERÊNCIA...................................................................................................................... 45


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INTRODUÇÃO No longo percurso da história da Filosofia Ocidental, destaca-se entre os embates mais polêmicos e conflituosos a já tão antiga e sempre nova questão acerca das relações entre razão e fé, ciência e revelação, Filosofia e Teologia. Diante do horizonte aberto pelas atuais investigações acerca da linguagem, este conflito se torna ainda mais explícito e aparentemente insolúvel, a ponto de inúmeros filósofos simplesmente o abandonarem, julgando-o apenas um “pseudoproblema”. De fato, perante nós se eleva a barreira aparentemente intransponível dos limites mesmos de nossa linguagem, que, formando necessariamente seus próprios conceitos a partir da experiência sensível, não os poderá transpor legitimamente para realidades outras, das quais não possua experiência alguma. Tal é precisamente o impedimento que se antepõe, na contemporaneidade, a toda pretensão de um conhecimento metafísico, e com ele de todo o discurso teológico. Poderia-se, no entanto, objetar que a Teologia não se fundamenta na experiência sensível para a formulação de seu conhecimento, mas tão somente na revelação divina; sendo, por isso mesmo, independente destes mesmos limites intrínsecos de nossa linguagem. Contudo, ao analisarmos mais de perto estes mesmos conceitos teológicos e a própria linguagem utilizada pelas Sagradas Escrituras, não nos resta outra opção senão aceitar que também estes conceitos estão marcados pela nossa experiência sensível e que o próprio Deus se revela a nós com uma linguagem verdadeiramente humana. Deste modo, todo o nosso discurso teológico aparece diante destes mesmos limites de nossa linguagem (incapaz de transcender a realidade empírica) como uma contradição ou, ao menos, um discurso paradoxal. Há, no entanto, um pensador medieval, o Bem-aventurado João Duns Scotus1, que, pela profundidade de sua indagação e sutileza de suas distinções, foi capaz de 1

O Bem-aventurado João Duns Scotus nasceu entre 1265-1266, provavelmente na aldeia de Duns, na Escócia (o que indica o nome “Scotus” - escocês). Abraçou a vida religiosa sob a Ordem dos Frades Menores por influência de seu tio Frei Elias Duns, vigário geral da Escócia e guardião do convento de Dumfries, e foi ordenado sacerdote em Northampton a 17 de março de 1291 por Dom Olívio Sutton, bispo de Lincoln. Lecionou em Oxford, Cambridge, Paris e Colônia, onde faleceu a 8 de novembro de 1308. É considerado um dos príncipes da Escolástica e, ao lado de São Boaventura, o principal


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entrever, já há sete séculos, algumas destas implicações acarretadas pelos limites de nossa atividade cognoscente. Embora ainda bastante desconhecido, especialmente no Brasil, o Doutor Sutil 2 é detentor de um sistema filosófico rigorosamente lógico e profundamente cristão, de caráter essencialmente metafísico e gnosiológico, podendo nos oferecer uma contribuição valiosa no apontamento de uma possível saída e solução à predita questão. Já em seu tempo, ele soube apontar a insuficiência da Filosofia Primeira de Aristóteles na elaboração de um autêntico discurso racional acerca das realidades espirituais (não-empíricas): mesmo a demonstração da existência de Deus nela realizada, seu ponto máximo, não passa de uma prova contingente, pois se fundamenta na existência contingente dos entes empíricos, e é incapaz de expressar algo próprio da essência divina, que – ainda que seja chamada “Primeiro Motor Imóvel” – não pode, de modo algum, consistir em ser simplesmente motor. Por isso, preocupado com o realismo de nossos conceitos, ou seja, de que eles possuam uma sólida fundamentação na realidade objetiva, o Doutor Sutil realizará uma verdadeira refundação da Metafísica, alargando o horizonte de seu objeto próprio: o ser enquanto ser, cujo conceito e definição não implica por si só qualquer tipo de imperfeição e contingência. Tal conceito simpliciter simplex (simplesmente simples) de ens (ente) é, portanto, per se (por si) indiferente à realidade finita ou infinita, contingente ou necessária, podendo, assim, ser predicado de modo unívoco, ou seja, sem contradição, tanto às criaturas quanto à própria essência divina. representante da Escola Franciscana. Foi beatificado por João Paulo II em 20 de março de 1993. Utilizaremos neste trabalho o cognome Scotus (excetuando-se as citações diretas onde o autor possa ter empregado outra forma deste nome) tendo em vista as últimas publicações brasileiras que a têm utilizado. Outras formas geralmente empregadas nas publicações brasileiras: Escoto, Scot, Scoto. 2

Era uso comum na Idade Média o emprego de um título que qualificasse o pensamento dos doutores de maior referência; assim, Santo Tomás é conhecido como Doctor Angelicus ou Communis, São Boaventura como Doctor Seraphicus, etc. O título Doctor Subtilis é o mais comumente aplicado ao nosso filósofo, devido ao caráter verdadeiramente sutil de seu pensamento, repleto de distinções e demonstrações silogísticas. Todavia, ele também é conhecido como Doctor Marianus, pela brilhante defesa que este, em 1307, em assembléia solene da Universidade de Paris, fez da tese imaculista, ou seja, de que Maria Santíssima teria sido concebida sem o pecado original; tornada dogma da Igreja Católica por Pio IX em 1854. Além disso, ele também é conhecido como Doctor Ordinis, devido à grande importância dada por este ao ordenamento entre os seres; característica esta que se sobressai na demonstração da existência de Deus, conforme veremos no nosso terceiro capítulo.


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A fim de analisarmos mais detidamente a supracitada questão e a solução proposta por Duns Scotus, realizaremos o seguinte percurso: No capítulo primeiro, contextualizaremos o conflito entre filósofos e teólogos surgido no século XIII, demonstrando a insuficiência da metafísica aristotélica e a originalidade da metafísica elaborada por Duns Scotus como condição racional da possibilidade do discurso teológico. No capítulo segundo, analisaremos as bases da metafísica escotista, isto é, a introdução de uma distinção formal (metafísica) entre a distinção física e a distinção lógica, a questão da univocidade do conceito de ser e a reelaboração da doutrina medieval dos transcendentais. E no capítulo terceiro, apresentaremos o esquema fundamental da prova metafísica da existência de Deus como “Primeiro Princípio” e a possibilidade de se afirmar algo positivamente acerca da qüididade divina, isto é, a afirmação puramente racional de Sua “simplicidade”, “sabedoria” e “infinitude”. Para o desenvolvimento e embasamento deste trabalho, tomaremos por metodologia a pesquisa bibliográfica, atendo-nos a alguns textos do próprio filósofo e aos seus comentadores, particularmente, às atas dos Congressos Escotistas Internacionais.


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1 DUNS SCOTUS E A REFUNDAÇÃO DA METAFÍSICA Neste presente capítulo analisaremos a questão tão premente na atualidade acerca do problema semântico do discurso teológico, ou seja, a possibilidade de um verdadeiro discurso humano sobre as realidades espirituais, que possua, como todo discurso humano, um fundamento sólido na experiência. Tal análise será conduzida a partir de um resgate histórico das soluções apontadas pela metafísica de Duns Scotus, que pretende ser uma solução aos conflitos entre filósofos e teólogos de seu tempo a partir de uma superação da metafísica aristotélica por uma nova metafísica generalíssima, que possibilite a compreensão e conceitualização positiva das realidades espirituais. 1.1 A ATUALIDADE DA METAFÍSICA ESCOTISTA Ao longo da história da Filosofia, a Metafísica foi sempre, pelo menos até à Idade Moderna, a base necessária para a construção de qualquer sistema filosófico que pretendesse apresentar aos seus contemporâneos uma ciência suficientemente fundamentada da realidade, de tal modo que esta, muitas vezes, se confundia com o próprio sistema, uma vez que, todas as demais ciências filosóficas se articulavam a ela para formar um só sistema coerente. O que ocorre de modo especial no pensamento do Bem-aventurado João Duns Scotus, gênio brilhante e verdadeiramente sutil, que soube em sua época construir um sistema filosófico-teológico de profunda unidade e coerência lógica, fundado sobre um aguçado raciocínio metafísico-gnoseológico, conforme assevera Boehner e Gilson (1995, p. 498): “[...] o interesse pela metafísica retém o lugar central na obra filosófica de Duns Escoto. Mais que nenhum outro escolástico, o Doutor Sutil forceja por baseá-la em alicerces seguros e por arquitetá-la consoante as exigências da teoria aristotélica das ciências”.

Sua principal preocupação, de fato, repousa sobre o problema do conhecimento humano enquanto ponto de partida para a delimitação de toda ciência possível ao homem em seu presente estado3. Só então poderá verificar a possibilidade 3

Esta última delimitação do problema gnoseológico tem, em Scotus, uma importância central, uma vez que, como veremos no segundo capítulo, utilizando-se dos dados da fé, ele se nega a rebaixar a capacidade do intelecto humano às essências simplesmente materiais, como fizera Aristóteles e Santo


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de uma metafísica que, por meio de uma “abstração última” que supere a contingência radical do mundo sem perder o vínculo com a realidade empírica, torne possível uma verdadeira ciência humana acerca da realidade divina, ou seja, uma Teologia nossa4. Esta, embora se fundamente na Revelação divina e se refira a uma realidade nãoempírica, deve se expressar de modo que possa ser compreendida pelo intelecto humano em seu presente estado, isto é, utilizando-se de conceitos que possuam alguma base, ainda que remota, na experiência sensível. Esta preocupação central de Scotus e o rigor lógico de seu pensamento demonstram a sua própria atualidade, uma vez que, os maiores embates contra a Metafísica na Filosofia contemporânea se deram, de fato, a partir de uma análise da linguagem (destacamos neste sentido o “Tractatus Logico-Philosophicus” de Ludwig Wittgenstein), a qual tornava ilegítimo e incoerente todo discurso que ignorasse os limites próprios de nossa linguagem, isto é, que pretendesse afirmar algo acerca de realidades não-experimentais, destituindo de valor, assim, todo discurso metafísico e, juntamente com ele, todo discurso teológico. Para falar de uma coisa é necessário conhecê-la e, para conhecê-la é necessário ter dela uma certa experiência. Isto é obvio e vale também em relação a Deus: o discurso sobre Ele supõe um certo conhecimento d’Ele e, portanto, uma certa experiência da sua realidade. Diversamente, o discurso teológico seria privado de sentido (SCAPIN, 1969, p. 493, tradução nossa 5).

Como vimos, a preocupação pelas conexões entre os nossos conceitos e a realidade não é uma novidade da contemporaneidade. Neste sentido, Manno (1972, p. 628, tradução nossa6) aponta Duns Scotus como exemplo notável desta preocupação pela semântica: “[...] que neste campo [o da teologia racional] há traçado um modelo de semântica, a tantos séculos de distância da atual analítica”. É exatamente sobre esta

Tomás de Aquino. O “presente estado” indica a situação atual do intelecto humano, que não possui outra forma de conhecimento que não passe necessariamente pelos sentidos. 4

Esta terminologia é utilizada por Scotus para distinguir o conhecimento que possuímos de Deus (“theologia in nobis” ou “nostra”) do conhecimento que Deus mesmo possui de si (“theologia in se”) ou mesmo do conhecimento próprio dos bem-aventurados que contemplam a face de Deus. 5

Do original: “Per parlare d’una cosa, bisogna conoscerla e, per conoscerla, bisogna averne una certa esperienza. Ciò è ovvio e vale anche nei riguardi di Dio: il discorso su di Lui suppone una certa conoscenza di Lui e, quindi, una certa esperienza della sua realtà. Diversamente, il discorso teologico sarebbe privo di senso”. 6

Do original: “[...] che in questo campo ha tracciato un modello di semantica, a tanti secoli di distanza dall’attuale analitica”.


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análise profunda da nossa linguagem que Scotus fundamenta sua nova Metafísica; o que demonstra a grande atualidade de seu pensamento e as “credenciais de legitimidade” de sua Metafísica e Teologia Natural. Pich (2003, p. 17-18) assevera: [...] a presente investigação pretende mostrar uma atividade filosófica legítima e, para determinados fins, imprescindível. Toda teologia filosófica, para que obtenha, entre todos, no mínimo credibilidade, tem de analisar filosoficamente a linguagem natural, que inclui a religiosa. Para tanto, o estudo dos escolásticos é um dever metodológico: como a filosofia analítica da religião, a teologia filosófica dos medievais é conscientemente argumentativa e realiza vigorosamente análises conceituais.

Antes, porém, de adentrarmos propriamente na Metafísica do Doutor Sutil, faz-se necessário contextualizar o ambiente histórico e filosófico de Scotus, com sua problemática própria à qual ele buscará dar suas respostas. 1.2 CONFLITO ENTRE FILÓSOFOS E TEÓLOGOS NO SÉCULO XIII Scotus surge no fim do século XIII, período marcado por uma profunda crise do pensamento cristão medieval: a harmonização entre Filosofia e Teologia, razão e fé, pretendida pela genial síntese tomista, já quase se rompia ante o desenvolvimento de uma Filosofia independente e de cunho cada vez mais aristotélico, que tinha a presunção de abranger toda a realidade inteligível, negando a necessidade de uma outra ciência que se fundasse no conhecimento sobrenatural obtido pela Revelação. No outro extremo encontrava-se a corrente agostiniana tradicionalista, que pretendia, por sua vez, submeter a si ou mesmo suplantar pela Teologia todo conhecimento filosófico, opondo-se até mesmo ao aristotelismo moderado de estilo tomista. Conforme explica Cruz Hernández (1968, p. 191), para compreender o pensamento de Scotus não se pode olvidar a realidade do desenvolvimento da Filosofia durante o século XIII. Segundo ele, neste tempo já haviam chegado ao seu pleno desenvolvimento as grandes universidades medievais. E entre elas, Paris e Oxford se constituíam como os dois grandes centros intelectuais da Idade Média. Nestas mesmas universidades haveria de estudar e lecionar o nosso filósofo. Até a época de Santo Tomás a Filosofia era ensinada unicamente por teólogos; agora passava a ser ensinada por professores de Filosofia. Paralelamente a isto, a corrente tradicionalista (fundada no pensamento de Agostinho) dava já sinais de enfraquecimento e “na própria escola


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franciscana, denuncia-se e abandona-se a iluminação7, ou conhecimento nas razões eternas, por implicar o erro teológico da visão de Deus e do ceticismo” (BÉRUBÉ, 2004, p. 297). A situação é ainda mais agravada pela ulterior condenação de 219 teses de cunho aristotélico-averroístico, a 07 de março de 1277, pelo bispo Estevão de Tempier. Segundo Chauvet (1968, p. 80), esta mesma condenação acaba também atingindo a própria síntese tomista, levando o capítulo geral da Ordem dos Frades Menores (da qual Scotus faz parte), celebrado em Estrasburgo no ano de 1282, a restringir a leitura das obras de Tomás de Aquino aos leitores notabiliter intelligentes, e somente numa leitura conjunta com o “Correctorium fratris Thomae”, escrito por Frei Guilherme de Mare, no qual se criticam 116 proposições tomistas. Como Duns Scotus teria interpretado os acontecimentos de seu tempo? À semelhança de Santo Tomás, ele ensinará que entre Filosofia e Teologia há uma distinção plena, de tal forma que cada uma possuiria seu próprio método e objeto, não podendo submeter-se uma à outra, nem serem confundidas ou simplesmente unidas; porém, divergirá deste quanto à sua perspectiva por demais otimista, que pretendia harmonizar os princípios aristotélicos com os dados obtidos pela fé cristã. De fato, para Santo Tomás, conforme explica Bettoni (1968, p. 104), o filósofo e o teólogo consideram e estudam a realidade sob perspectivas diferentes, o que não implicaria necessariamente que cada um chegaria a conclusões opostas entre si. Um exemplo disto seria a conclusão de que a terra é redonda, conclusão esta a que físicos e matemáticos, a partir de suas metodologias e objetos distintos, como que contemplando a realidade a partir de perspectivas diferentes, poderiam chegar independentemente e sem que uma contradissesse a outra, mas, ao contrário, suas conclusões seriam complementares.

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Duns Scotus critica o pensamento de Henrique de Gand, que estabelece a necessidade de uma iluminação especial de Deus para se chegar a um conhecimento certo e indubitável, por conduzir, necessariamente, ao ceticismo. Reinterpretando a teoria agostiniana da iluminação, o Doutor Sutil falará em iluminação geral, o que tornaria possível a qualquer um, utilizando-se apenas das capacidades naturais do intelecto, chegar à certeza. Sobre as questões acerca da teoria da iluminação conferir o ótimo trabalho de Faustino Antonio Prezioso, La critica di Duns Scoto all’ontologismo de Enrico de Gand. Padova: CEDAM, 1961.


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Por sua vez, Scotus pensa que os filósofos, desconhecendo as realidades reveladas sobrenaturalmente, chegariam apenas a conclusões parciais e imperfeitas do ponto de vista da Teologia, que não poderia, por este mesmo motivo, aceitá-las. E do mesmo modo, o discurso do teólogo seria incompreensível para o filósofo, que, não tendo experiência das realidades por aquele expressas, julgaria inaceitáveis as conclusões por aquele alcançadas. De um lado, [Scotus] vê o mundo tal como o fabricaram os filósofos gregos em suas investigações do Perí físeos, que terminam necessariamente, por necessidade racional, no Motor Immobilis, como coroamento e limite de toda a sua filosofia; e do outro, contempla o mesmo mundo visto pelos teólogos, não fabricado por eles mas crido, no qual não aparece outra necessidade que a da contingência radical por depender, não de um primeiro Motor que move por necessidade, mas de uma Vontade criadora que opera livre e contingentemente. Em outras palavras: um mundo de cabeça para baixo. Como se pode unir a visão destes dois mundos, o dos filósofos e o dos teólogos? Como se pode unir a contingência radical com a necessidade racional? (OROMÍ, 1960, p. 16*, tradução nossa 8).

Analisando as conclusões a que chegaram os filósofos, Scotus demonstra a inconciliável oposição destas em relação às conclusões oriundas da Teologia, especialmente a partir da doutrina da criação. A seu ver, Aristóteles e todos os demais pensadores que não tiveram contato com a revelação cristã encontravam-se numa impossibilidade de compreender o significado último das coisas e, por isso, a realidade lhes aparecia como sendo necessária e imutável. Ressaltamos aqui que não se trata de uma questão superficial, mas dos próprios fundamentos de ambas as ciências, que se propõem, cada uma a seu modo, dizer o que seja a realidade. E é exatamente aí que estas duas ciências aparecem como totalmente contraditórias: uma afirmando a “necessidade” do mundo material, que, segundo Aristóteles, seria eterno; e a outra afirmando a “contingência radical” deste mesmo mundo material, criado livremente pela Vontade divina9.

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Do original: “De una parte, ve el mundo tal como lo fabricaron los filósofos griegos en sus investigaciones del Perí fiseos, que terminan necesariamente, por necesidad racional, en el Motor Immobilis, como coronamiento y límite de toda su filosofía; y de otra, contempla el mismo mundo visto por los teólogos, no fabricado por ellos sino creído, en el que no aparece otra necesidad que la de la contingencia radical por depender, no de un primer Motor que mueve por necesidad, sino de una Voluntad creadora que obra libre y contingentemente. Es decir: um mundo al revés. ¿Cómo se puede ensamblar la visión de estos dos mundos, el de los filósofos y el de los teólogos? ¿Cómo se puede unir la contingencia radical con la necesidad racional?”. 9

Esta questão será retomada no terceiro capítulo, p. 35-36.


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Estava instaurada assim a crise de todo o pensamento medieval, isto é, a insustentável conciliação entre razão e fé. E conforme ressalta Oromí (1960, p. 16*), pior era a situação do teólogo do que a do filósofo, uma vez que os conceitos utilizados pela própria Teologia tornam-se, como conseqüência lógica de sua própria teoria, de igual modo contingentes e, portanto, incapazes de expressar a realidade de Deus enquanto Ser necessário e mesmo qualquer verdade necessária, decaindo, por conseguinte, irremediavelmente no relativismo e mesmo no absoluto ceticismo. Nem mesmo o recurso à analogia poderia superar este abismo, revelando-se, deste modo, não passar de uma eqüivocidade, pois a condição lógica de uma comparação qualquer entre dois termos (o mesmo vale para qualquer silogismo) é a existência de um termo médio unívoco, ou seja, que não varie de sentido quando aplicado a qualquer um dos membros da predita analogia10. 1.3 A SOLUÇÃO PROPOSTA POR SCOTUS Diante deste abismo aparentemente insuperável aberto entre o discurso filosófico e o teológico, muitos propuseram a chamada via apofática (teologia negativa, que afirma a impossibilidade de se dizer o que Deus seja, mas somente aquilo que Ele não é) como a única possível; e houve quem propusesse que não haveria outro caminho senão o silêncio (para Wittgenstein, de Deus nada se pode falar, pois Ele se encontra fora dos limites da nossa linguagem, os quais coincidem com os próprios limites do mundo factual). No entanto, Duns Scotus sustenta a afirmação de que não só é possível dizer algo sobre Deus, mas que também este algo deve ser positivo. Para tanto, ele começa por demonstrar a insustentabilidade da via puramente negativa: Além disso, ou a negação é concebida simplesmente em si ou como predicada de algo. Se a negação é concebida simplesmente em si como, por exemplo, “não-pedra”, ela verifica-se tanto do nada como de Deus, pois a negação pura predica-se tanto do ser como do não-ser. Portanto, através de tal negação, não se conhece a Deus mais do que ao nada ou a uma quimera. (DUNS SCOTUS, 1979, p. 268)11.

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Esta questão será retomada no segundo capítulo, p. 23-26.

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Ordinatio I dist. 3 pars 1 q. 1 n. 10.


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Manno (1972, p. 649, tradução nossa12) assevera ainda que esta via puramente negativa conduz necessariamente ao ateísmo, pois “se Deus não fosse cognoscível através da razão, poderia ser legitimamente negado por quem não tem a fé”. Pois, de fato, do pretexto da inefabilidade da essência divina não se poderia sequer afirmar a sua existência. E acrescenta ainda: A “teologia negativa”, afirma Scotus, torna possível todos os erros em relação a Deus: se d’Ele não dizemos positivamente o que é, não temos algum critério para afirmar o que não é; se poderia dizer de Deus que é imanente, totalmente um com o mundo, que é corpóreo, etc. A teologia negativa não teria algum critério para refutar estas afirmações: se poderia também negar Deus e a teologia negativa não poderia se manifestar. [...] Um conhecimento puramente negativo, portanto, é impossível; é necessário um conhecimento positivo, por “afirmação”, à qual a “remoção” deve ser complementar. Devemos afirmar de Deus tudo isto que indica perfeição, a iniciar pelo ser, e excluir d’Ele todo limite. Só então a negação possui valor, enquanto se traduz em afirmação (MANNO, 1972, p. 649-650, tradução nossa13).

Se não é possível isolar a Teologia em uma via puramente negativa, como conciliar os conceitos desta com os da Filosofia, isto é, com os conceitos racionais abstraídos da realidade sensível? Como superar o conflito estabelecido entre filósofos e teólogos? Para Oromí (1960, p. 16*-17*, tradução nossa14), a resposta de Scotus é: “[...] um mesmo seja filósofo e teólogo ao mesmo tempo [...]”. Mas com esta resposta não estaria ele se contradizendo? Como vimos acima, Scotus distingue totalmente Filosofia e Teologia, cada uma destas ciências tem, segundo ele mesmo, seu próprio objeto e metodologia. De fato, a distinção escotista é bastante radical: A filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele ou dele dedutível. Já a teologia, ao contrário, trata dos articula fidei ou objetos de fé. A filosofia segue o procedimento demonstrativo, a teologia o procedimento persuasivo. A filosofia se detém na “lógica do natural”, a teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A filosofia se ocupa do geral 12

Do original: “Se Dio non fosse in alcun modo conoscibile tramite la ragione, potrebbe essere legittimamente negato da chi non ha la fede”. 13

Do original: “La ‘teologia negativa’, afferma Scoto, rende possibili tutti gli errori intorno a Dio: se di Lui non diciamo positivamente cos’è, non abbiamo alcun criterio per affermare cosa non è; si potrebbe dire di Dio che è immanente, tutt’uno col mondo, che è corporeo, ecc. La teologia negativa non avrebbe alcun criterio per confutare queste affermazioni: si potrebbe anche negare Dio e la teologia negativa non potrebbe insorgere. [...] Una conoscenza puramente negativa, dunque, è impossibile; è necessaria una conoscenza positiva, per ‘affirmationem’, alla quale la ‘remozione’ deve fare da complemento. Dobbiamo affermare di Dio tutto ciò che indica perfezione, a iniziare dall’essere, ed escludere da Lui ogni limite. Allora soltanto la negazione ha valore, in quanto si traduce in affermazione”. 14

Do original: “[...] uno mismo sea filósofo y teólogo al mismo tiempo [...]”.


15 ou universal, porque é obrigada a seguir “pro statu isto” o itinerário cognoscitivo da abstração, enquanto a teologia aprofunda e sistematiza tudo o que Deus se dignou nos revelar sobre a sua natureza pessoal e o nosso destino. A filosofia é essencialmente especulativa, porque visa a conhecer por conhecer, ao passo que a teologia é tendencialmente prática, porque nos põe a par de certas verdades para nos induzir a agir mais corretamente (REALE, 1990, p. 598).

Por isso Oromí (1960, p. 17*) tenta mostrar que não há contradição nesta resposta de Scotus, mas pelo contrário o filósofo-teólogo proposto pelo Doutor Sutil deve ter em mente esta mesma distinção, isto é, ele não deve confundir filosofia e teologia, nem mesclá-las. De fato, explica ele, sem abandonar o método próprio de cada uma destas ciências, e sem confundir os objetos essencialmente distintos, a mente do filósofo, sendo a mesma que a do teólogo, pode ser iluminada pelos dados da fé, não para passá-los ao acervo filosófico – o que seria ilícito – mas somente para tê-los em conta a fim de tornar mais aguda a razão, abrindo-lhe novas perspectivas, como que estendendo o campo das possibilidades ontológicas, enquanto elabora os dados que lhe confere a experiência sensível. Scotus sabe que a razão jamais poderia chegar a conhecer diretamente os dados revelados, porém, pode ela colocar-se em um plano tal onde, se se dá a Revelação, estes possam ser compreendidos. Por sua vez, a mente do teólogo, sendo a mesma que a do filósofo, saberá que deverá expressar os dados da Revelação em conceitos humanos, e não qualquer um, mas somente em conceitos depurados pela razão de todo rastro do mundo físico, sendo que seu objeto próprio – a realidade espiritual e sobrenatural – está para além deste. Duns Scotus pretende ser este filósofo-teólogo, e o resultado de seu pensamento, segundo Oromí (1960, p. 17*), é o surgimento de uma nova ciência, com seu método próprio e seu objeto próprio, adequada ao intelecto humano, que não pudera ser conhecida pelos filósofos, nem expressada pelos teólogos. Esta nova ciência servirá como “dobradiça” entre a Filosofia e a Teologia, segundo a expressão de Merino (2006, p. 125), unindo-as desde dentro. Sendo seu objeto próprio indiferente às realidades físicas e às espirituais, embora parta sempre destas mesmas realidades físicas, esta nova ciência (com mais direito que a “filosofia primeira” de Aristóteles, que não pudera ir além da realidade física15) será chamada “Metafísica”. 15

A realidade comum de toda essência física é o movimento, cuja razão está na composição essencial de matéria e forma, substância e acidentes, essência e existência, e, de uma maneira geral, a


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Oromí (1960, p. 18*-19*) ressalta que para se chegar a este plano metafísico é preciso primeiro, com o teólogo, reconhecer que o mundo físico é por si contingente, dependendo de uma Vontade criadora que age livremente. Este saber teológico não dá ao filósofo o objeto da Metafísica, mas abre o caminho para transcender à Física, e, por meio destes mesmos conceitos contingentes, chegar às essências necessárias que não dependem nem da realidade física nem de uma Vontade que age contingentemente, mas de uma Inteligência que só pode agir necessariamente. Graças à fé se transcende à Física e se descobre a Metafísica, e desde esta se torna possível a Teologia como ciência humana do divino. 1.4 SCOTUS E A SUPERAÇÃO DA “METAFÍSICA” ARISTÓTELICA Chauvet (1968, p. 84-85) define a metafísica de Duns Scotus como um novo ponto de vista mais abstrato e geral em relação ao agostinianismo tradicionalista, ao tomismo e ao ecleticismo de Gil de Roma, Godofredo de Fontaines e Henrique de Gand, mestres contemporâneos a Scotus, e com quem este disputara a maior parte de suas teses. Esta “abstração última” teria Scotus intuído a partir da natura communis de Avicena, o qual considerava que antes de qualquer ato relacionante16 do intelecto (secunda intentio), a qüididade de um determinado indivíduo é inteligida (prima intentio) em si mesma como indiferente ao universal e ao particular. Para responder à questão da “natureza comum”, Scotus recorreu a uma distinção intermédia entre aquela que se dá entre as entidades físicas e aquela composição ato e potência. A razão última do movimento é o Motor immobilis, razão de todo movimento das essências físicas, inclusive do seu movimento existencial. Por isso, Scotus chama Física à ciência que Aristóteles denominou com o nome geral de Filosofia Primeira e que os aristotélicos medievais chamaram Metafísica. De fato, o objeto primeiro desta ciência filosófica é o ser físico; e as razões que investiga são as razões essenciais físicas do movimento até chegar ao primeiro Motor. As essências físicas conotam sempre a existência, uma vez que o seu conceito é formado por abstração da natureza existente pelos sentidos. 16

Na realidade, não se dão essências universais, mas tão somente predicações das essências. As essências ou são concretas ou abstratas, e somente as concretas são de fato existentes. Tais essências abstratas possuem uma determinada unidade, distinta da unidade das essências concretas, por possuírem um único sentido e significação, todavia não se referem a um único indivíduo. A universalidade consiste na simples função relacionante da mente, que pela proposição, relaciona a quantidade de indivíduos a que se estende um conceito. Por ser abstrato e, portanto, ilimitado o número de indivíduos a que um conceito pode estender-se se pode dizer que o conceito abstrato é universal, sendo que esta universalidade não é do conceito em si, mas da função relacionante da mente, e esta é o objeto próprio da Lógica.


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puramente lógica, a distinção formal ex natura rei17, que nos lança definitivamente no plano das entidades metafísicas. De fato, como explica Oromí (1960, p. 19*, tradução nossa18), “só o indivíduo existe, e tudo o que existe no indivíduo existe individualmente ou individualizado”. Portanto, embora seja real enquanto anterior a qualquer ato da mente que conhece, a natureza comum não existe como comum no indivíduo (ou seja, ela não é distinta da essência física, que é em si mesma indivisível), existindo apenas individualizada (sem esgotar-se, contudo, neste único indivíduo, ou seja, existindo individualizada em outros). A heceidade19 é esta formalidade última que restringe a natureza comum a tornar-se individual e que jamais vem separada desta nos entes concretos. Logo, somente a natureza individual (a essência física) é real e existente, enquanto que a natureza comum, por ser abstrata, é somente real. Porém, esta realidade abstrata deve se apoiar na concreta, que é a única existente. A questão fundamental de Scotus é se, além das essências físicas dadas pela experiência ou que o nosso intelecto abstrativo 20 capta através dos sentidos, se dão outras essências concretas que não sejam em si “físicas”, ou seja, marcadas pelo movimento, e se também a estas o nosso intelecto possa captar, ainda que indiretamente, em sua forma abstrata. O Doutor Sutil sabe como teólogo que se dão outras essências concretas que não são físicas no sentido exposto; dá-se, ao menos, a essência divina concretíssima, que, ainda que os filósofos a chamem Primeiro Motor, não pode consistir em ser motor. Sabemos ainda, por Revelação, que veremos a Deus face a face. A possibilidade da visão beatífica significa a mesma possibilidade atual, ainda que não se dê de fato, de nosso intelecto captar também as essências não-físicas, inclusive a concretíssima essência divina. Pois, para isto, Deus não mudará a natureza mesma de nosso intelecto, posto que deixaríamos de ser nós mesmos. 17

Esta questão será retomada no segundo capítulo, p. 16-20.

18

Do original: “Sólo el individuo existe, y todo lo que existe en el individuo existe individualmente o individualizado”. 19

20

Em latim, “haecceitas”, isto é, aquilo que faz a natureza ser “esta” – em latim, “haec”.

A abstração não cria o objeto, mas apenas o conhece. O nosso intelecto nada capta diretamente do concreto, o único existente. Captamos uma realidade abstrata e a expressamos de modo abstrato: captamos a significação. Se captássemos diretamente o concreto não seriam necessários os conceitos e, por conseguinte, não seriam necessários signos e significações para entender a realidade.


18

Movido por estas considerações teológicas, Scotus retorna ao campo filosófico. Nosso intelecto não capta de fato nenhuma entidade concreta diretamente, seja esta física ou não-física. E desta última, não capta nem mesmo alguma entidade abstrata diretamente. Nossos conceitos abstratos se formam originariamente pelos sentidos. Porém, Scotus afirma que é possível ainda um conceito abstrato formado pela abstração dos conceitos abstratos físicos, e que, por conseguinte, deixa de ser físico. Para entender o conceito Pedro devo entender primeiramente Pedro como sujeito concreto, homem como entidade abstrata física e a relação entre eles. Do mesmo modo, para entender o conceito homem (entidade abstrata física) o nosso intelecto deve entender o que seja essência (que já seria uma entidade abstrata “nãofísica”, enquanto indiferente a toda entidade concreta física ou não-física), o que é a existência e a relação entre as duas. A possibilidade de considerar “essência” em si mesma, na sua completa indiferença a todo concreto é o que constitui a possibilidade de falarmos de entidades metafísicas. Estas entidades metafísicas, que expressam uma realidade comum e unívoca a toda entidade concreta, tornam-se, por sua vez, para Scotus, o fundamento científico da analogia entre as entidades físicas e as entidades espirituais, e, portanto, o fundamento do discurso teológico. Para tanto, elas devem ser indiferentes às duas realidades, sem, contudo, confundi-las ou identificá-las – o que seria absurdo! O conceito de ser tomado em si mesmo enquanto expressa unicamente a entidade como tal, em si mesma neutra e unívoca, é o objeto próprio da ciência primeira (adequada ao nosso intelecto): a Metafísica. Todavia, conclui Oromí (1960, p. 30*), a ela não chegaríamos se a Revelação não nos houvesse aberto os horizontes da especulação filosófica e, por isso, a Filosofia de Duns Scotus não é apenas acidentalmente cristã, mas o é radicalmente; demonstrando que o próprio conceito de ser deve ser iluminado pela Revelação cristã para ser de fato completo. Para compreendermos melhor a originalidade do pensamento do Doutor Sutil e suas conquistas no campo de uma Metafísica possibilitadora da Teologia como ciência analisaremos no próximo capítulo alguns pontos-chave de sua Metafísica, preparando já de antemão o campo metafísico onde se desenvolverá, no terceiro capítulo, a demonstração escotista da existência de Deus enquanto Ser Infinito.


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2 PONTOS-CHAVE DA METAFÍSICA DE SCOTUS Neste capítulo, analisaremos as bases da Metafísica de Scotus, a começar pelo mais sutil de seus conceitos, a distinção formal ex natura rei, caminho imprescindível para a compreensão de todo conceito metafísico posterior; a seguir, analisaremos a polêmica questão da univocidade do conceito de ser (que, ao lado da doutrina do primado da vontade21, rendeu ao Doutor Sutil inúmeras acusações ao longo da história) e, por fim, a revisão escotista da tradicional doutrina medieval dos transcendentais. 2.1 A DISTINÇÃO FORMAL EX NATURA REI A questão da distinção formal ex natura rei, isto é, da natureza da coisa, está intimamente atrelada a dois campos da especulação filosófica indissociáveis: a Gnoseologia (que estuda o próprio processo do conhecimento humano) e a Ontologia (ciência do ser). Ao tratar da questão dos diversos graus de unidade22, o Doutor Sutil cita o seguinte passo da Metafísica de Aristóteles, mediante o qual poderemos compreender o que se deve entender aqui por “distinção”: Mas o igual, o semelhante e o idêntico são também relações numéricas, só que em outro sentido. Com efeito, todos eles se referem à unidade: idênticas são as coisas cuja substância é uma só; semelhantes são as coisas que têm a mesma qualidade, e iguais são as coisas cuja quantidade é igual [...] (ARISTÓTELES, 2002, p. 237)23.

21

Como explica Saint-Maurice (1947, p.189-198), o “voluntarismo” de Duns Scotus segue de perto a tradição da Escola franciscana, que desde São Francisco, cantava o amor acima de tudo, dando à vontade o primado entre as faculdades da alma. Todavia, deve-se recordar que uma só é a alma humana, e nela as faculdades se distinguem apenas formalmente, e que, portanto, a vontade em Scotus jamais é compreendida como tender cego e irracional, mas como “apetite racional livre”. De fato, a prioridade de origem cabe à inteligência, porque só se pode querer o que se conhece. No entanto, diferentemente da inteligência, que opera necessariamente na presença de seu objeto, a vontade é livre, ou seja, só ela é capaz de determinar-se a si mesma, e, por conseguinte, só ela pode ser meritória diante de Deus, pois não basta conhecer o bem, é preciso realizá-lo. Quanto ao ato criador, somente pelo primado da vontade se pode compreender o mundo como dom livre e gratuito de Deus e manifestação de seu amor, opondo-se, assim, ao Motor Imóvel de Aristóteles, que, sendo “pensamento de pensamento”, só poderia operar necessariamente. 22

Ordinatio II dist. 3 pars 1 q. 1 n. 18.

23

Metafísica V, c. 15, 1021a 9-15.


20

Portanto, conforme o Estagirita, na base de toda relação de comparação entre os seres encontra-se uma determinada unidade, que, todavia, se mostra de modo distinto quanto ao idêntico, aos semelhantes e aos iguais. Há, portanto, diversos graus de unidade e não apenas aquele que se refere à substância individual. Cezar (1996, p. 23) recorda, referindo-se ao problema gnoseológico, que “[...] quem diz ‘semelhante’ diz ‘idêntico sob um aspecto’ e ‘distinto sob outro’”. Assim, partindo do texto de Aristóteles, podemos dizer que os semelhantes são idênticos quanto à qualidade e os iguais, quanto à quantidade. Deste modo, temos já três graus distintos de unidade, que se referem, respectivamente, a três modos distintos de identidade, os quais, por sua vez, opõem a si três tipos de não-identidade ou distinção. Scotus, por sua vez, enumerará seis graus diferentes de unidade24, que Cezar (1996, p. 26) assim explica: O mais baixo grau de unidade é a unidade do agregado, isto é, dos objetos simplesmente reunidos. Acima desta está a unidade de ordem, isto é, onde o conjunto não é uma simples reunião, mas obedece a uma ordem e cada parte tem sua posição determinada em virtude desta ordem. Acima, está a unidade por acidente, que é a unidade de uma substância e seu acidente. Acima, está a unidade por si, isto é, a unidade entre os elementos essências de uma substância. Ainda acima está a unidade do simples, onde temos uma verdadeira identidade, pois no interior do simples qualquer parte é a mesma coisa que qualquer outra parte. Por fim, está a identidade formal onde o idêntico inclui o idêntico em sua razão formal.

Uma vez que todo ente só pode ser “real” (ou seja, aquele que possui existência extra-mental) ou “de razão” (aquele que existe unicamente na mente), a distinção formal só poderá dar-se em uma destas duas realidades ontológicas. Conforme vimos, no capítulo anterior, esta distinção não é construída pela mente, mas abstraída da realidade, não podendo ser, deste modo, uma distinção “de razão 25”. Será, então, real? Scotus, ao tratar da não-identidade entre a essência e as pessoas divinas, nos dá uma definição clara do que ele entende por “real”: Entendo o “realmente” no sentido de que não se origina de nenhum modo de inteligência atuada, mas que esta entidade existiria aí, mesmo se nenhum intelecto estivesse atuado. É isso o que chamo de “esse ante omnem actum intellectus”. – Ora, não pode acontecer que uma entidade seja comunicável 26

24

Cf. Ordinatio I dist. 2 pars 2 q. 1-4, n. 403.

25

Um exemplo de distinção de razão é aquela que se dá entre dois termos distintos que simbolizam a mesma coisa, isto é, que correspondem de modo idêntico ao mesmo objeto formal. Exemplo: “estrela da manhã” e “estrela da tarde” se referem igualmente ao planeta Vênus. 26

Esta entidade é a essência divina, comunicada a cada uma das três pessoas da Santíssima Trindade.


21 antes de qualquer ato da inteligência... e outra entidade seja incomunicável 27 antes de qualquer ato da inteligência... se não houver, também antes de qualquer ato de inteligência, uma distinção entre esta e aquela realidade. Logo28... (Ordinatio I dist. 2 pars 2 q. 1, n. 390 apud KOSER, 2005, p. 122).

Esta “distinção real” entre a essência e as pessoas divinas é a menor entre as distinções reais analisadas por Scotus, correspondendo ao maior grau de unidade citado acima, ou seja, àquela que se refere à sua “razão formal”; por isso, este tipo de distinção real passou a ser chamada de “distinção formal” ou “não-identidade formal29”, ou mesmo “real menor30”, a fim de evitar qualquer confusão com as demais distinções reais (que permanecem chamadas simplesmente de “distinções reais”, sem nenhuma determinação que as distinga daquela dita “formal”, mas apenas as que as diferenciam entre si, isto é, como “distinção real atual” ou “distinção real possível”): Segundo Scotus31, se pode falar de distinção real quando dois objetos subsistem separadamente ou possam separar-se, ou, todavia não podendo separar-se (exemplo: o céu e o movimento, segundo a concepção medieval), encontramos as duas entidades perfeitamente separáveis em outros objetos. Distinguem-se assim realmente matéria e forma, substância e acidente, sem que a distinção real danifique, quando aqui fosse, a unidade real (TRAINA, 1968, p. 156-157, tradução nossa32).

Esta unidade real tratada por Traina é aquela “por si” ou mesmo aquela “por acidente”, próprias das substâncias materiais, que são sempre compostas de matéria e 27

Esta entidade corresponde a cada pessoa divina, cuja “relação”, aquilo que lhe é próprio, é incomunicável às demais pessoas. 28

Logo, há uma distinção real entre a essência e as pessoas divinas, ou seja, uma distinção “anterior a qualquer ato intelectual”. 29

Scotus ao tratar da distinção entre a essência e as pessoas divinas prefere falar em “não-identidade formal” a “distinção formal” (cf. Ordinatio I dist. 2 pars 2 q. 1 n. 404), “‘[...] porque a formalidade [isto é, a incomunicabilidade, elemento positivo constitutivo da pessoa] é afirmada numa [na pessoa, chamada também de suppositum] e negada na outra [na essência]’ (loc. cit. n. 405), e entre o ‘nada’ e o ‘algo’ propriamente não se pode dizer que há diferença, pois que a distinção é uma relação que reclama dois extremos e não pode existir se um dos extremos não existe – e o ‘nada’ não existe” (KOSER, 2005, p. 128). 30

Pois, conforme a Ordinatio II dist. 3 pars 1 q. 1 n. 8, a natureza comum se refere a uma “unidade real menor que a unidade numérica”, e, portanto, não é por si mesma “esta”, isto é, uma realidade singular e individual. 31

Traina refere-se aqui à Ordinatio II dist.2 pars 1 q. 2 n. 94: “Accipio igitur quod nihil potest concludi ‘distinctum ab alio’ nisi vel propter separationem actualem, vel potentialem, vel propter proportionem istorum ad aliqua alia quorum alterum est ab altero separabile” (DUNS SCOTUS, 1973, p. 198). 32

Do original: “Secondo Scoto si può parlare di distinzione reale, quando due oggetti sussistono separatamente o possono separarsi, o, pur non potendosi separare (es. i cieli e il movimento, secondo la concezione medievale), troviamo le due entità perfettamente separabili in altri oggetti. Si distinguono così realmente materia e forma, sostanza e accidenti, senza che la distinzione reale intacchi, qualora ci fosse, l’unità reale”.


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forma, substância e acidente, gênero e espécie, ato e potência. Estes tipos de unidade são inferiores à unidade do simples, a qual não comporta este tipo de distinção real. Portanto, estas distinções são inconciliáveis com a simplicidade da substância divina (nem mesmo aquela que se dá por uma distinção potencial, uma vez que na essência divina não há nada em potência que já não esteja em ato 33). Contudo, Scotus insiste na necessidade de uma não-identidade ante omnem actum intellectus, e, portanto, real, entre a essência divina comunicável e a incomunicabilidade das pessoas; a qual, segundo ele, não se opõe à simplicidade divina34. Koser (2005, p. 129) assim explica o pensamento de Scotus: [...] é um fato indiscutível que também para o conhecimento intuitivo de Deus existe em Deus algo que é comunicável e o que não é comunicável. Como a ciência intuitiva de Deus corresponde à objetividade e não nasce de abstração, segue que estas diferenças devem existir “in re”, no próprio objeto, e não podem derivar do sujeito pensante. Estas diferenças, porém, levam necessariamente à afirmação de que em Deus o que é comunicável e o que é incomunicável não é formalmente idêntico, pois que do contrário ou a ciência divina estaria labutando em erro ou não seria ciência intuitiva. Disto segue, como conclusão indeclinável, que a essência divina não é formalmente idêntica às pessoas divinas. Constando isto, e constando simultaneamente a simplicidade infinita de Deus, segue que estes dois dados não podem colidir.

Conforme já vimos no capítulo primeiro, esta distinção formal pode ser vista também entre a natureza específica e a individualidade, onde não é possível falar em uma distinção real, isto é, “[...] tal natureza humana não vai nunca separada de tal individualidade, nem esta daquela” (TRAINA, 1968, p. 157, tradução nossa 35). Além disso, diferentemente de Santo Tomás, o Doutor Sutil não admite uma distinção real entre as faculdades da alma, isto é, entre intelecto e vontade, que, portanto, se distinguem unicamente de modo formal. É o mesmo eu idêntico a si mesmo que quer e entende, embora estas duas ações não sejam realizadas por faculdades redutíveis uma a outra. Esta identidade real da alma humana com suas faculdades tem a favor de si uma forte persuasão teológica: pois se a vontade se

33

Neste sentido, a explicação proposta por Cezar (1996, p. 27), que contrapõe a distinção formal unicamente à distinção real atual, é ainda insuficiente para dissipar qualquer confusão (Cf. Ordinatio I dist. 2 pars 2 q. 1 n. 400). 34

Cf. Ordinatio I dist. 8 pars 1 q. 4, que trata da compossibilidade entre a simplicidade divina e a distinção formal entre as perfeições divinas. 35

Do original: “[...] tale natura umana non va mai disgiunta da tale individualità, nè questa da quella”.


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distinguisse realmente do intelecto, este chegaria ao seu fim último, a visão beatífica, por um “acidente” seu, e não por si. Mas o que é, afinal, esta distinção formal? Segundo o Doutor Sutil36, poderia se chamar esta distinção formal de “distinção de razão”, como a chamara São Boaventura, se “ratio” não for aqui compreendida como uma diferença formada pelo intelecto, mas unicamente como a qüididade da coisa enquanto é objeto da inteligência; ou mesmo como “distinção virtual37”, enquanto que as entidades assim distintas não são res et res, mas uma única res tendo “virtualmente”, ante omnem actum intellectus, como que duas realidades. Carvalho assim resume o pensamento de Duns Scotus acerca desta distinção: [...] a admissão de um dado isomorfismo entre a ordem conceptual e a ordem da realidade justifica, primeiro, que um conceito possua uma certa semelhança com aquilo que representa. Ora, esse conteúdo inteligível é uma característica da coisa, e vários conteúdos inteligíveis, formalmente distintos, portanto, embora sejam definíveis isoladamente não constituem, na coisa que existe, uma pluralidade de coisas. Seria um absurdo. Duns Escoto defende, por isso, que se algo possui a capacidade de despertar vários conceitos na alma, todos eles pertencendo a essa coisa na medida em que revelam parcialmente a sua natureza, então essa distinção deve deter uma actualidade qualquer; esta última é o que a linguagem técnica escotista chama “formalidades”38, aspecto inteligível de uma coisa que é inferior ao conteúdo inteligível total dessa mesma coisa (CARVALHO. Nótula introdutória. In: DUNS SCOTUS, 1998, p. 27-28).

Por meio dos graus de abstração é possível formar quatro níveis de formalidade: 1) as formalidades specialissimae (referentes à espécie: humanidade, eqüinidade); 2) as formalidades subalternatae (referente ao gênero: animalidade, corporeidade); 3)

as

formalidades

generalissimae

(referente

às

categorias:

substancialidade, qualidade, quantidade); 4) as formalidades transcendentes (referente aos transcendentais: entidade, unidade, bondade, verdade).

36

Cf. Ordinatio I dist. 2 pars 2 q. 1 n. 401-402.

37

O Doutor Sutil dá, portanto, a esta expressão uma conotação oposta àquela dada por Santo Tomás de Aquino, para o qual ela significa uma diferença post actum intellectus. 38

Acerca do conceito escotista de “formalidade” é interessante também notar a asserção da Universidad Ibero-americana (1968, p. 87), que iguala a este o conceito que Scotus faz de “realidade”, que se distinguiria da coisa real como o abstrato do concreto: “La ‘res’ tanto de los antiguos como de los escolásticos continúa, dentro del pensamiento de Scoto, conservando su mismo significado; es la cosa, el individuo concreto. La ‘realidad’, pues, vendría a ser la abstracíon de la cosa, de la ‘res’, es decir, aspectos reales que se encuentran en la misma cosa” (UNIVERSIDAD IBERO-AMERICANA, 1968, p. 87-88).


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Aristóteles já havia considerado a possibilidade dos três primeiros graus de abstração, mas é exatamente na proposição deste último grau de abstração que o Sutil demonstra sua originalidade, possibilitando um conceito unívoco de ser enquanto ser. 2.2 O CONCEITO DE SER UNÍVOCO A questão que passamos agora a abordar, o conceito de ser unívoco, insere-se na obra do Doutor Sutil dentro de duas discussões comuns na Escolástica, ou seja, a questão tradicional acerca do objeto próprio do entendimento humano e a possibilidade de um conhecimento natural do homem a respeito de Deus. 2.2.1 O objeto próprio do entendimento humano Um dos principais problemas enfrentados pelo Doutor Sutil foi o do objeto próprio do entendimento humano, temática esta comum na Idade Média e já debatida anteriormente também por Tomás de Aquino, que chegara à conclusão de que o objeto próprio de nosso entendimento é a qüididade das coisas sensíveis. Já para Averróis e Henrique de Gand, este objeto próprio seria Deus, enquanto Luz eterna na qual contemplaríamos todas as demais coisas. Primeiramente, Scotus distinguirá entre a capacidade de direito (ex ratione potentiae) de nosso intelecto – que deve abrir-se necessariamente aos entes em sua totalidade, enquanto dotados de inteligibilidade – e a sua capacidade atual (pro statu isto) – que está de certo modo reduzida à quiditas rei materialis. Sendo esta última determinada ou pelo pecado original ou pela convergência entre as faculdades da alma, isto é, a intelectiva e a sensitiva39. Tal distinção parte do pressuposto teológico de que o homem, por direito, será capaz de conhecer a Deus intuitivamente (visão beatífica). O intelecto permanece, considerado segundo a sua natureza, idêntico antes, durante e após a realidade infralapsária, isto é, mesmo sob diferentes condições, respectivamente sob um estado. [...] Do contrário, o conhecimento de Deus e das substâncias imateriais, prometido para a vida futura, forçaria uma ação graciosa tal, que não pressupusesse a natureza do intelecto, mas a modificasse [...] Porque ao receber o hábito da visão de Deus, isto é, o poder de intuir, o intelecto seria transformado, teria, nisso, a 39

Considerando esta segunda possibilidade apontada por Scotus, “[...] convém destacar que o modo de conhecimento que será determinado pela união do espírito ao corpo pode caracterizar um estado querido por Deus, em sua liberdade, ‘ex mere voluntate’, para o bem do ser humano, independentemente da queda” (PICH, 2003, p. 25-26).


25 sua destruição. É sob tal pena que aquela resolução, a de negar em última análise uma “ratio recipiendi beatitudinem” por parte do intelecto, permaneceria, “pois o que é substancialmente simples não pode ser intrinsecamente mudado” (PICH, 2003, p.29-30).

Devido a isso, Scotus tomará a posição proposta por Avicena, que considera o ser em si mesmo (unívoco a Deus e às criaturas, como veremos a seguir) como objeto apropriado do intelecto humano. Contudo, sem descurar do processo próprio de elaboração do conhecimento humano por meio da abstração, pelo qual, o primeiro objeto do intelecto, no presente estado, só pode ser a “qüididade da coisa sensível”; sem que esta, todavia, torne impossível um conhecimento abstrativo, ainda que limitado, das substâncias imateriais, o qual “[...] se dá somente a partir do que o objeto motivo adequado do intelecto, agora, na espécie inteligível, pode produzir do que essencial ou virtualmente está contido em si” (PICH, 2003, p. 27-28). Todavia, resta ainda recordar que, por meio desta mesma determinação do primeiro objeto do intelecto verifica-se a incapacidade, no presente estado, de o intelecto conhecer as substâncias imateriais intuitivamente. A escolha do conceito de ser enquanto ser como objeto próprio do entendimento humano se dá, principalmente, por duas propriedades suas que o constituem como o “primum omnium sciuntur” (o primeiro dentre todas as coisas conhecidas): Nessa noção de qüididade, [a da coisa sensível,] porém, acrescenta ele, [Scotus,] está também incluído o conceito genérico de ens, o qual o intelecto humano é capaz de alcançar através de um processo de abstração, e que representa uma total indiferença frente a todas as diferenças materiais. Esse conceito, por sua vez, encerra em si um duplo primado: comunidade, uma vez que a determinação ens é encontrada em tudo o que se conhece, sendo por isso o conceito mais comum, e virtualidade, visto que tudo o que se pode conhecer se encontra, ao menos virtualmente, na necessidade de ser compreendido enquanto ens. A partir dessa noção, por sua vez, é possível que se conheça mais que a mera quiditas rei materialis e, sendo isso possível, não se pode admitir a total limitação de nosso intelecto a essa qüididade material (GUERIZOLI, 1999, p. 36).

Deste modo, por abstração das coisas sensíveis, o intelecto pode chegar a um conceito generalíssimo, o conceito unívoco de ser 40, que se apresentando como pura indeterminação pode ser predicado a Deus e às criaturas. É este, o ser em sua 40

Assim como em Aristóteles, também para o nosso filósofo, o ser se diz de muitos modos enquanto se considera a formalidade própria de cada entidade. Todavia, tomado em si mesmo, o “ser” possui necessariamente um único significado, que pode ser expresso como o “não-nada”.


26

generalidade, o verdadeiro objeto do intelecto humano. Ele é o objeto próprio da metafísica, que, em Scotus, apresenta-se como ciência dos transcendentais. 2.2.2 Univocidade: fundamento da analogia Para compreendermos, de fato, o que significa o conceito de ser unívoco, e a sua não-contradição com a analogia41 tomista, é necessário ressaltar o que já vínhamos analisando acerca dos três níveis diferentes de distinção propostos por Scotus. No nível da distinção real encontra-se a Física, na qual só é possível falar em analogia entre Deus e as criaturas. Neste ponto, Scotus concorda com a opinião tradicional, no entanto, ele vai mais além e estabelece um novo horizonte, o metafísico, no qual tornase possível uma univocidade, que não só não contradiz a analogia no plano físico, mas até mesmo a fundamenta: S. Boaventura, S. Tomás de Aquino e Duns Scot afirmam que, no concreto, o termo ser é meramente análogo. Ousar dizer mais, seria cair no panteísmo e suporia uma realidade concreta fundamental comum a Deus e à criatura. Mas onde S. Boaventura e S. Tomás param, o Doutor Subtil passa adiante, e prova que de outro ponto de vista, o do metafísico e do lógico, Deus e a criatura se encontram intimamente pela univocidade do ser (SAINTMAURICE, 1947, p. 168-169).

Conforme vimos no primeiro capítulo, é necessário uma univocidade, um ponto médio que aproxime e torne possível a Teologia como ciência análoga à Física, isto é, que possibilite a transposição dos conceitos físicos para a Teologia, tomando-os sob uma significação análoga, pois o nosso intelecto, no presente estado, extrai todo o seu conhecimento a partir dos sentidos. Acerca desta necessidade, argumenta Scotus: Nenhum conceito real é causado naturalmente no intelecto humano nesta vida senão por aqueles fatores que movem naturalmente o nosso intelecto. Ora, estes fatores são a imagem sensível ou o objeto revelado na imagem sensível e o intelecto agente. Portanto, o único conceito simples que é produzido naturalmente no intelecto do tipo do nosso é aquele que pode ser produzido em virtude destes fatores. Ora, o conceito que não fosse unívoco em relação ao objeto revelado na imagem sensível, mas totalmente distinto deste, anterior e em relação ao qual o objeto tenha [apenas] analogia, não 41

A analogia coloca-se entre a equivocidade de um termo (em que os objetos nomeados em nada se assemelham, a não ser no nome) e a univocidade (em que ocorre uma identidade real, e não apenas verbal), ou seja, consiste em uma relação na qual não há completa identidade, nem total diferença. Segundo Guerizoli (1999, p. 53), “a maior parte dos autores escolásticos considera impossível ocorrer alguma predicação unívoca entre as acepções humana e divina do conceito de ens. O conceito humano de ser, segundo eles, só pode ser predicado de maneira unívoca a algo que se ponha dentro do domínio do finito. Nunca um conceito presente num intelecto finito e temporal poderia ser univocamente predicado de uma realidade infinita e eterna, como a realidade de Deus, por exemplo”.


27 pode ser produzido em virtude do intelecto agente e das imagens sensíveis. Portanto, tal outro conceito análogo postulado nunca existirá naturalmente no intelecto humano nesta vida e, conseqüentemente, não se poderá ter naturalmente nenhum conceito de Deus. O que é falso (DUNS SCOTUS, 1979, p. 271-272)42.

Com efeito, conforme assevera Saint-Maurice (1947, p. 170), “sem univocidade, o análogo cai no equívoco”, pois toda analogia de atribuição ou de proporcionalidade supõe alguma certa semelhança, um ponto médio pelo qual possam ser comparados os dois termos distintos. Do mesmo modo, se o termo médio de um silogismo não fosse unívoco teríamos um silogismo defeituoso de quatro termos, cuja conclusão seria, com certeza, absurda. Exemplo: O banco é um local para assentar-se; o ladrão roubou o banco; logo, o ladrão roubou um local para assentar-se. E, para que não haja controvérsia a respeito do termo “univocação”, chamo de conceito unívoco o que é dotado de unidade suficiente para estabelecer uma contradição, ou afirmá-lo ou negá-lo a respeito da mesma coisa. É também dotado de unidade suficiente para servir de termo médio num silogismo; de tal modo que, os extremos unidos através de um termo médio dotado de tal unidade, unem-se, em conseqüência, entre si sem a falácia da equivocação (DUNS SCOTUS, 1979, p. 270)43.

Segundo o pensamento do Doutor Sutil, o conceito de ser transcende qualquer modalidade intrínseca da existência concreta, sendo anterior a qualquer determinação, até mesmo a de finito (as criaturas) e infinito (Deus). Deste modo, a definição de ser, em sua univocidade, consiste na possibilidade de existir, a qual se estende a todos os seres (Deus e as criaturas). Compreende-se aqui que a idéia de possibilidade estendida a Deus não indica nenhuma espécie de contingência: “O Deus de Scotus aparece assim como aquela realidade que coincide com as realidades dadas na possibilidade de ser, porém distinguindo-se delas na impossibilidade absoluta de que não seja” (MUÑOZALONSO, 1972, p. 179, tradução nossa44). Está latente neste ponto uma distinção radical entre Tomás e Scotus quanto à compreensão do próprio conceito de ente e ser, o que determina toda a construção de suas respectivas análises metafísicas:

42

Ord. I dist. 3 pars 1 q. 1 n. 35.

43

Ord. I dist. 3 pars 1 q. 1 n. 26.

44

Do original: “El Dios de Scoto aparece así como aquella realidad que coincide con las realidades dadas en la posibilidad de ser, pero que se distingue de ellas en la imposibilidad absoluta de que no sea”.


28 A característica fundamental do ente, segundo Tomás de Aquino, é o “ter seu ser”. [...] Entre o ser e o ente, portanto, subsiste uma real diferença. [...] Dependente dessa doação, o ente para Tomás de Aquino está necessariamente atrelado e subalternado a uma instância que lhe possa comunicar o ser que ele próprio não é, mas precisa ter para vir-a-ser. Esse algo, cujo sentido é puramente ser e que, por isso, não tem seu ser mas, antes, é seu próprio ser, é Deus, o ente singular “cuja essência é seu próprio ser”. [...] Ao contrário de Tomás de Aquino, Duns Escoto não determina a constituição do ente em termos de “ter seu ser” mas segundo o critério do “poder ser” ou, mais precisamente, do “não ter o ser como contraditório”. [...] Ao contrário de Tomás de Aquino, portanto, Duns Escoto compreende o conceito de ens como um conceito neutro, absoluto e indiferente, cuja existência não está vinculada à sua participação no ser, mas em sua capacidade de possuir uma unidade [...] que seja capaz de tornar-se medium entre a infinita essência divina e a finita realidade humana (GUERIZOLI, 1999, 48-50.54).

A transposição da metafísica para o campo das possibilidades ontológicas operada pela abstração última abre o caminho para a construção de uma ciência do necessário, caminho aparentemente cerrado pela contingência essencial do mundo enquanto produto de uma Vontade que opera contingentemente, ou seja, podendo não fazê-lo. Assim, a necessidade dos entes possíveis45 não se dá pelo ato da vontade divina, mas pelo intelecto divino infinito que produz necessariamente uma infinidade de inteligíveis. Deste modo, são os inteligíveis o objeto próprio de nosso intelecto, ponto de encontro entre a teoria da iluminação agostiniana, compreendida como iluminação geral, e a teoria aristotélica do conhecimento abstrativo: Os inteligíveis, de fato - vistos na escala descendente - partem de Deus como sua obra primeira ad extra: são o “produto” do intelecto divino; - vistos, por outro lado, na escala ascendente - reconectam o intelecto do homem ao intelecto de Deus como à própria fonte da certeza nas nossas cognições. Tanto é verdade que entre o nosso intelecto e o intelecto divino - os ditos inteligíveis, chamados também idéias eternas, “ratines lucis aeternae” estabelecem - segundo Scotus - um único e mesmo “ponto” de contato: ente comum, ente unívoco (ROSINI, 1972, p. 691, tradução nossa 46).

45

Ord. I dist. 43 q. unica n. 6: “[...] possibile, secundum quod est terminus vel obiectum omnipotentiae, est illud cui non repugnat esse et quod non potest ex se esse necessario; lapis, productus in esse intelligibili per intellectum divinum, habet ista ex se formaliter et per intelectum principiative; ergo est ex se formaliter possibilis et quase principiative per intellectum divinum” (DUNS SCOTUS, 1963, p. 354, grifo nosso). A expressão “illud cui non repugnat esse” (que Guerizoli (1999, p. 47) interpreta como “isto, ao qual o ser não é contraditório”), sem a delimitação posterior (ou seja, “quod non potest ex se esse necessario”) referente exclusivamente aos seres contingentes, pode servir como definição do conceito de ser unívoco por ser também comum à realidade divina sem a sua respectiva delimitação: “[...] Deus non tantum est cui non repugnat esse, sed est ex se ipsum esse” (Ord. I dist. 36 q. unica n. 50 – DUNS SCOTUS, 1963, p. 291, grifo nosso). 46

Do original: “Gli intelligibili, infatti – visti nella scala discendente – partono da Dio come la prima sua opera ad extra: sono il “prodotto” dell’intelletto divino; - visti, invece, nella scala ascendente –


29

Agora, partindo de um conceito de ser unívoco a Deus e às criaturas, torna-se possível estabelecer, segundo o pensamento de Scotus, uma prova genuinamente filosófica da existência de Deus, que não somente não viole as leis do silogismo (as provas anteriores partiam unicamente de um conceito de ser análogo e, portanto, equívoco a Deus e às criaturas), mas também porque parte de uma proposição necessária (a possibilidade) e não da existência atual das criaturas contingentes, da qual só se poderiam obter verdades igualmente contingentes. Todavia, esta passagem da realidade criatural para aquela divina por meio do conceito de ser unívoco só é possível graças à nova estruturação que Scotus opera nos chamados atributos transcendentais do ser, dos quais passamos agora a nos ocupar. 2.3 OS TRANSCENDENTAIS Transcendental, na compreensão escotista, é tudo aquilo que se situa para além das categorias aristotélicas, ou seja, da classificação da realidade criatural. Portanto, entre os transcendentais devemos elencar primeiramente o próprio conceito de ser, em si mesmo neutro e indeterminado, e com ele aquelas propriedades que se constituem como qualificações e determinações do ser, chamadas de “passiones entis”. [...] o ser se divide em infinito e finito, antes do que nas dez categorias, pois o segundo destes, isto é, o ser finito, é comum aos dez gêneros. Portanto, tudo o que cabe ao ser enquanto indiferente ao finito e ao infinito, ou como próprio ao ser infinito, cabe-lhe não enquanto restrito a um determinado gênero, mas anteriormente e, por conseguinte, enquanto transcendental e fora de qualquer gênero. Tudo o que é comum a Deus e à criatura é tal que cabe ao ser na medida em que é indiferente ao finito e ao infinito. De fato: enquanto cabe a Deus é infinito e enquanto cabe à criatura é finito. Portanto, cabe ao ser antes que se divida nos dez gêneros e, por conseguinte, tudo que é deste tipo é transcendental (DUNS SCOTUS, 1979, p. 339)47.

Duns Scotus distingue três classes de transcendentais: os conversíveis (aqueles que são predicados a todos os entes: uno, verdadeiro, bom e belo), os disjuntivos, também chamados de “diferenças últimas” do ser (nos quais somente um dos extremos da disjunção deve ser predicado a um determinado ente, que pode ser: finito ou

ricollegano l’intelletto dell’uomo all’intelletto di Dio come alla propria fonte della certezza nelle nostre cognizioni. Tanto è vero che tra il nostro intelletto e l’intelletto divino – i detti intelligibili, chiamati anche idee eterne, “rationes lucis aeternae” – stabiliscono – secondo Scoto – un unico e medesimo “punto” di contatto: ente comune, ente univoco.” 47

Ord. I dist. 8 pars 1 q. 3 n. 113.


30

infinito, necessário ou contingente, simples ou composto), e as perfeições puras (perfeições que por sua própria natureza não comportam necessariamente algum tipo de imperfeição, como a sabedoria, que, deste modo, pode se predicar, segundo um determinado grau e proporção, a um homem ou um anjo – seres finitos e, portanto, portadores de uma perfeição limitada – e a Deus – Ser Infinito e, por conseguinte, dotado de perfeições igualmente absolutas e ilimitadas). Ao tratar das perfeições puras e da necessidade de que a sabedoria seja considerada um transcendental, embora não possa ser predicada a todos os seres mas somente aos seres dotados de espírito (intelecto e vontade), o Doutor Sutil afasta-se radicalmente da metafísica tradicional, segundo a qual os transcendentais possuiriam a máxima extensão e universalidade predicativa, e expõe o que compreende como natureza própria dos transcendentais: [...] assim como não é da natureza do gênero supremo ter sob si várias espécies, mas sim não ter nenhum gênero acima de si (como, por exemplo, a categoria do “quando”, que, por não ter nenhum gênero acima de si, é um gênero supremo, embora tenha poucas espécies ou nenhuma), assim também tudo que não tem nenhum gênero sob o qual esteja contido é transcendental. Donde pertence à natureza do transcendental ter somente um predicado superior, o ser. Mas é acidental ao transcendental que ele seja comum a muitos inferiores (DUNS SCOTUS, 1979, p. 339)48.

Eram estas perfeições puras, a partir de uma analogia 49 de proporcionalidade, o instrumento mais utilizado pelos escolásticos para se falar acerca da qüididade divina, porém estas não são, para Scotus, os conceitos metafísicos mais perfeitos, pois uma noção perfeita deve incluir também a respectiva modalidade. Por isso, a classe mais importante para Scotus será a dos transcendentais disjuntivos, pois, conforme Guerizoli (1999, p.60), a sua singularidade “está exatamente na sua capacidade de se tornarem predicados positivos e necessários tanto do criador quanto da criatura”. Portanto, serão estas “diferenças últimas” do ser a ferramenta indispensável para uma demonstração metafísica da existência de Deus: O método para demonstrar a existência de Deus, em Scotus, consiste precisamente nisto: em descobrir as propriedades essenciais do ser tal como 48 49

Ord. I dist. 8 pars 1 q. 3 n. 114.

Esta se desenvolvia, geralmente, em três etapas: a via affirmationis, ou seja, a afirmação de uma determinada perfeição presente nas criaturas, como a potência; em seguida, a via negationis, ou seja, a negação desta mesma perfeição em relação a Deus, cuja potência não se identifica àquela presente na esfera criatural; e, finalmente, a via eminentiae, ou seja, a afirmação desta perfeição elevada a um grau supremo, digno da realidade divina, ou seja, a onipotência.


31 aparecem nas criaturas, em sua forma imperfeita, e, apoiando-se no conceito mesmo de ser, como termo médio unívoco, demonstrar a necessidade da disjuntiva em sua perfeição absoluta (OROMÍ, 1960, p. 72*, tradução nossa50).

A partir disso, compreende-se o porquê em Scotus a concepção da natureza metafísica de Deus “não é desde logo a asseidade, tão pouco o ato puro, mas a infinitude radical aplicada ao Ser mesmo” (UNIVERSIDAD IBERO-AMERICANA, 1968, p. 90, tradução nossa51), conforme veremos no capítulo seguinte, onde trataremos diretamente da demonstração metafísica da existência de Deus elaborada por Scotus e o fim último de sua Metafísica: o conceito de Ser Infinito.

50

Do original: “El método para demostrar la existencia de Dios, en Escoto, consiste precisamente en esto: en descubrir las propiedades esenciales del ser tal como aparecen en las creaturas, en su forma imperfeita, y, apoyándose en el concepto mismo del ser, como término medio unívoco, demostrar la necesidad de la disyuntiva en su perfección absoluta”. 51

Do original: “No es desde luego la aseidad, tampoco el acto puro, sino la infinitud radical aplicada al Ser mismo”.


32

3 A PROVA METAFÍSICA DA EXISTÊNCIA DE DEUS Neste capítulo, analisaremos o desenvolvimento último dado pelo Doutor Sutil à Metafísica por ele elaborada, ou seja, a sua complexa demonstração da existência de Deus e de Seus atributos positivos passíveis de serem alcançados pela luz da razão, em particular, o conceito humano mais simples e mais perfeito da realidade divina: o ens infinitum. Contudo, não é nosso objeto elencar todos os argumentos utilizados por Scotus, mas apenas apresentar a sua estrutura geral52. 3.1 METODOLOGIA DE SCOTUS O Tractatus de Primo Principio é iniciado, intercalado em suas partes e encerrado por um diálogo orante do nosso filósofo com Deus, ao qual louva pela Sua suprema perfeição, e ao qual pede a graça de poder demonstrar, assim como acredita, a Sua existência e infinitude: Tu és o ser verdadeiro, tu és o ser todo. Se tal me fosse possível, era isto em que acredito que eu queria saber. Ajuda-me, Senhor, a investigar o quanto pode chegar a conhecer do ser verdadeiro, que tu és, a nossa razão natural, começando a partir do ser, que a ti mesmo atribuíste 53 (DUNS SCOTUS, 1998, p. 43)54.

Conforme vimos no capítulo anterior, o nosso filósofo estabelece como objeto adequado de nosso intelecto não a qüididade dos seres materiais, mas o ser enquanto ser, que na sua própria razão formal não inclui em si mesmo o conceito de finitude; sendo, portanto, indiferente ao finito e ao infinito, os quais passam a ser considerados como atributos transcendentais disjuntivos do ser e, deste modo, o fundamento metafísico que permite a demonstração da existência de Deus a partir de suas propriedades relativas em relação às criaturas. Embora a proposição “Um Ser Infinito existe” seja demonstrável pela natureza dos termos, com demonstração propter quid55, para nós é 52

Seguiremos a ordenação argumentativa do Tractatus de Primo Principio com algumas considerações da Ordinatio I dist. 2 pars 1 q. 1-2, que trata do mesmo tema. 53

Scotus se refere aqui à passagem de Êxodo 3, 14.

54

Tractatus de Primo Principio 1.

55

Ou seja, aquela demonstração que parte da causa para o efeito e que é o conhecimento mais perfeito de algo, pois pode explicar o “porquê” (propter quid) do efeito. Neste caso: aquele que se dá pelo conhecimento da qüididade ou essência em si do Ser Infinito, que inclui a sua necessidade de existir, deduzindo, assim, analiticamente a existência da essência conhecida.


33 impossível demonstrá-la deste modo. Todavia, podemos demonstrá-la com demonstração quia56, partindo das criaturas. Com efeito, as propriedades do Ser Infinito que dizem respeito às criaturas relacionam-se mais de perto ao termo médio da demonstração quia do que as propriedades absolutas. Por isso, [...] se pode concluir mais imediatamente para a existência daquelas propriedades relativas [...], pois da existência de um relativo decorre imediatamente a do seu correlativo 57 (DUNS SCOTUS, 1972, p. 15-16)58.

Para representar estas relações entre Deus e as criaturas, conforme explica Guerizoli (1999, p. 59-60), Scotus utilizará o conceito de “ordem essencial”, no qual o primeiro termo indica uma relação na qual um ente é disposto como anterior e outro como posterior; e o segundo termo, uma relação na qual subsiste entre os entes relacionados um vínculo onde o posterior não está ordenado ao anterior de modo meramente acidental, mas retira constantemente desse ordenamento as condições de seu próprio modo de ser. Unindo este conceito de “ordem essencial” aos atributos disjuntivos predicar-se-á ao Criador a propriedade relativa, e contingente, de ser essencialmente anterior e à criatura a propriedade absoluta, e necessária, de ser essencialmente posterior. Traduz-se, assim, com linguagem metafísica o conceito teológico de criação59. Devido à grande importância deste conceito para a demonstração das propriedades relativas de Deus, Scotus dedicará os dois primeiros capítulos do Tractatus de Primo Principio para uma análise minuciosa dos seis tipos de ordem 56

Ou seja, aquela demonstração que parte do efeito para a causa, da qual só conhece “que” (quia) ela assim é e não o seu porquê. Neste caso: aquele que parte do modo de existir das criaturas e de suas propriedades para concluir a existência do Criador e suas propriedades relativas àquelas. 57

Ou seja, “[...] ex contingente sequitur necessarium, licet non e contra” (DUNS SCOTUS, 1960, p. 131 – Lectura I dist. 2 n. 56). 58 59

Ordinatio I dist. 2 n. 39.

No entanto, é importante notar que o próprio Scotus deixa bem claro uma grande diferença entre o conceito teológico de criação (criatio in tempore) e este filosófico (criatio ab aeternum), devido à impossibilidade de se demonstrar racionalmente a “ordem real da criação, onde a não-existência precede a existência real da criatura com prioridade de quase-duração. Todavia, se tomarmos a criação como a toma Avicena, Metafísica, livro VI, no sentido de a não-existência preceder a existência com mera prioridade de natureza [ou seja, a natureza da criatura não implica a sua existência, sendo nela como que acidental], então o antecedente deixa de ser um pressuposto de fé, mas está suficientemente demonstrado, porque pelo menos a primeira natureza depois de Deus procede dele e não existe por si mesma, nem recebe o ser de algo preexistente [isto é, da matéria]; logo é criada” (DUNS SCOTUS, 1972, p. 50 – Ord. I dist. 2 n. 121). Uma vez que a matéria, para Scotus, não é apenas pura potencialidade (como fora para Aristóteles), possuindo, assim, algum grau mínimo de atualidade (sem o qual o composto hilemórfico não seria de fato um composto, pois a matéria não seria algo positivo, e a matéria não poderia ser uma das causas do ser, pois o nada não pode causar nada), também ela deve receber seu ser do Primeiro Efetivo (cf. MERINO, 2006, p. 137-138).


34

essencial

(eminente-excedido,

eficiente-efetuado,

final-finido,

forma-formado,

material-materiado e causado-causado) e as relações entre eles. Scotus apresenta, inicialmente, três conclusões gerais que, segundo Guerizoli (1999, p. 69), têm “[...] um caráter preventivo e consiste em assegurar que, independentemente do tipo de ordem essencial tratada, seus elementos anteriores e posteriores serão sempre realidades distintas entre si [...]”. Scotus as formula assim 60: “Que não há coisa nenhuma que esteja essencialmente ordenada a si mesma” (DUNS SCOTUS, 1998, p. 49), ou seja, nada pode exceder-se em perfeição a si mesmo ou depender essencialmente de si enquanto causado e poder existir sem ela mesma enquanto causa, a qual jamais depende essencialmente de seu causado; “O círculo é impossível em qualquer ordem essencial” (DUNS SCOTUS, 1998, p. 49), pois uma mesma coisa seria essencialmente anterior e posterior a si mesmo, acarretando o absurdo já excluído na conclusão anterior; “O que não é posterior ao anterior também não o é ao posterior” (DUNS SCOTUS, 1998, p. 50), isto é, o que não é efeito de uma causa anterior não pode ser efeito de uma posterior, pois a posterior depende, na ordem essencial, da anterior para causar. Nas demais conclusões acerca das relações entre os tipos de ordem essencial, que não desenvolveremos por motivo de brevidade, o Doutor Sutil demonstra, entre outras coisas, que a causa eficiente por si deve incluir a causa final, que, por sua vez, não pode causar nada sem aquela, pois ela só causa enquanto “move” a causa eficiente a causar em vista de um fim; que a causa material e a formal se dão sempre conjuntamente e jamais sem a concorrência da causa eficiente; que o excedido e o dependente não coincidem necessariamente; e que todo finido é excedido, pois o fim é melhor do que aquilo que está ordenado para ele. Dos seis tipos de ordem essencial analisados no segundo capítulo do Tractatus, o nosso filósofo elege três, o da ordem de eminência e as duas ordens extrínsecas de dependência causa-causado (causa final e causa eficiente), por serem as que melhor se ajustam à prova da existência de Deus, pois os outros três tipos de ordem essencial estão exclusivamente ligadas à realidade criatural.

60

Cf. Tractatus de Primo Principio n. 9.


35

3.2 A DEMONSTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DO PRIMEIRO PRINCÍPIO Scotus passa a analisar separadamente a cada uma das ordens essenciais selecionadas na análise anterior, buscando estabelecer em cada uma a possibilidade de um Ser Primeiro; depois, que o Ser Primeiro descoberto só pode ser incausado; e, finalmente, a passagem do âmbito da possibilidade para o da existência real. 3.2.1 Pela via da eficiência61 Na demonstração da existência de um Ser Primeiro na ordem da causalidade eficiente, Scotus não parte da existência atual dos entes sensíveis (“Algum ser é produzido”) – pois esta é contingente e só poderia fundamentar uma verdade contingente –, mas da possibilidade destes (“Algum ser é efetível”). Reale (1990, p.602) assim explica o motivo da escolha argumentativa de Scotus: “[...] se o mundo existe é absolutamente certo e necessário que ele pode existir [...] Ainda que desaparecesse, continuaria sendo verdadeiro que o mundo pode existir, visto que já existiu”. A partir da possibilidade de algo ser efetível, Scotus demonstra que este só o poderá ser por outro, pois não pode ser produzido pelo nada e nem por si mesmo. Não podendo retroceder ao infinito na ordem de anterioridade, demonstra-se a possibilidade de haver um Primeiro. Se há uma causa eficiente absolutamente primeira, esta deve ser incausada, não podendo estar subordinada a outra, e, portanto, deve existir por si mesma. E como algo que não existe atualmente não pode existir por si mesmo, pois é impossível que um ser não-existente traga algo à existência; e que o Primeiro Princípio Eficiente, como afirmávamos antes, deve existir por si mesmo; segue-se que um tal ser não pode não-existir, sendo, portanto, necessariamente existente. 3.2.2 Pela via da finalidade62 A demonstração da primazia de uma Primeira Causa Final se realiza do mesmo modo que na causalidade eficiente. Quanto à demonstração de sua 61

Cf. Ordinatio I dist. 2 n. 43-59; Tractatus de Primo Principio n. 25-37.

62

Cf. Ordinatio I dist. 2 n. 60-63; Tractatus de Primo Principio n. 38.


36

incausabilidade, Scotus afirma que o Primeiro Fim não pode ser ordenável a nenhum outro fim, e que, portanto, não pode ter causa eficiente, pois esta ao causar por si causa em vista de um fim. Não podendo derivar a sua existência de outro, se o Primeiro Fim é possível ele deve existir necessariamente. 3.2.3 Pela via da eminência63 Scotus sai da ordem das causalidades extrínsecas e busca demonstrar a primazia do Primeiro Princípio na ordem da perfeição e da eminência de seu ser. Alguma natureza eminente é simplesmente primeira em perfeição, e como esta não pode ser ordenada a outro fim, pois sendo assim seria excedida por este em sua bondade e, por conseguinte, em perfeição, esta primeira natureza não tem causa de nenhuma espécie. Deste modo, segue de sua possibilidade a sua existência necessária. 3.2.4 A tríplice primazia do Primeiro Princípio64 Sendo demonstrada a existência de um Primeiro Eficiente, de um Primeiro Fim e de uma Natureza Suprema, Scotus passa a demonstrar que estas três primazias coincidem em uma única natureza. Como já demonstramos, o Primeiro Princípio é necessariamente existente, sendo, portanto, impossível que algo que lhe seja incompatível exista. Deste modo, a impossibilidade da existência de outra natureza incausada pode ser provada por três diferentes vias, as quais passamos a explicar. Pela via da eminência, pois se houvesse duas naturezas necessárias por si mesmas, seria-lhes comum a necessidade de ser e, portanto, esta última seria uma entidade qüididativa comum a ambas, desempenhando, assim, um papel de gênero. Segue daí uma contradição: “Como, porém, uma realidade genérica e, portanto, menos decisiva para a atualização da espécie que a diferença específica, pode ser o fundamento do modo de ser necessário, isto é, da irrevogável necessidade de atualidade, das espécies que daí provêm?” (GUERIZOLI, 1999, p. 92). E para que duas naturezas incausadas subsistissem sob um mesmo gênero, seria necessário que 63

Cf. Ordinatio I dist. 2 n. 64-67; Tractatus de Primo Principio n. 39.

64

Cf. Ordinatio I dist. 2 n. 68-73; Tractatus de Primo Principio n. 40-48.


37

houvesse uma diferença de perfeição entre elas, decorrente da diferença específica. Porém, nada pode ser mais perfeito que o ser necessário por si. Pela causalidade final: “Com efeito, se houvesse dois fins últimos, haveria duas coordenações de seres em direção a eles, de modo tal que uns seres nenhuma ordem teriam para com os outros, visto não a terem ao fim deles [...] e assim delas não resultaria um só universo” (DUNS SCOTUS, 1972, p. 32)65. E finalmente, pela causalidade eficiente e pela dependência em geral: [...] uma e a mesma coisa não pode depender totalmente de duas coisas; pois em tal caso dependeria de uma coisa que se poderia eliminar, sem prejuízo da dependência total [em relação à outra]; donde se segue que não depende daquela. Mas há coisas que dependem essencialmente de uma causa eficiente e eminente, como também de um fim. Logo, não pode haver duas naturezas das quais dependam total e primariamente segundo esta dependência tríplice. Logo, há uma só natureza-termo dessa tríplice dependência e, por isso mesmo, possuidora desta tríplice primazia (DUNS SCOTUS, 1972, p. 3233)66.

Além destas, o nosso filósofo apresenta ainda diversas provas e argumentos prováveis, demonstrando quase à exaustão a necessidade de que uma só natureza primeira compreenda em si a primazia destas três ordens essenciais67. 3.3 PROPRIEDADES ABSOLUTAS DA QÜIDIDADE DIVINA Mas Scotus não pára na prova da existência necessária de Deus, sua investigação deseja ir até o limite do que se pode afirmar positivamente acerca da qüididade divina. Ele buscará, então, demonstrar a simplicidade, a sabedoria e a infinitude do Primeiro Princípio. 3.3.1 A simplicidade do Primeiro Princípio68 A simplicidade essencial do primeiro princípio pode ser demonstrada pelo mesmo argumento que impossibilitava a existência de duas naturezas incausadas, ou seja, o problema decorrente da existência de um gênero comum. Scotus, porém, mostra que há ainda um outro argumento superior a este, isto é, o fato de que toda composição 65

Ordinatio I dist. 2 n. 73.

66

Ordinatio I dist. 2 n. 73.

67

Cf. Tractatus de Primo Principio n. 44-47.

68

Cf. Tractatus de Primo Principio n. 50-54.


38

do tipo “matéria”-“forma” ou “gênero”-“diferença específica” denota um grau de potencialidade incompatível com a qüididade divina, que conforme já vimos é ato puro e perfeição suprema. Toda perfeição predicada a Deus não pode ser, então, compreendida como um acréscimo à sua qüididade, mas como realidade intrínseca e necessariamente inerente à Sua natureza. Lembremos que as perfeições puras não estão sujeitas à classificação segundo a tábua das categorias, mas são atributos transcendentais. À objeção quanto a certa composição na realidade divina, na qual essência e relação na pessoa divina são distintas, Scotus responde que esta não-identidade formal existente na natureza divina não inclui uma composição de duas entidades realmente distintas (ou seja, separáveis) e que, por ser infinita, uma perfeição deve incluir a outra por identidade, pois ao infinito nada se pode acrescentar69. 3.3.2 A sabedoria do Primeiro Princípio70 A sabedoria, que se desdobra como inteligência e vontade, é demonstrada pelo fato de que, sendo o Primeiro Princípio causa eficiente primeira, sua ação terá sempre em vista a realização de um fim. E como é incompatível com sua natureza que esta esteja ordenada naturalmente a um fim que lhe seja exterior, pois, deste modo, o Primeiro Princípio não possuiria a primazia na ordem da causalidade final (o que já foi demonstrado), conclui-se que o Primeiro Princípio só pode agir livremente, ou seja, de modo inteligente e querente. Outro argumento importante citado por Scotus é aquele no qual ele parte do efeito de uma ação realizada livremente pela vontade do homem, demonstrando que se o Primeiro Princípio não age livremente não haverá espaço para a liberdade humana: Algo é causado contingentemente. Logo, a primeira causa causa contingentemente. Logo, causa voluntariamente. Prova da primeira conseqüência: Toda causa segunda causa enquanto movida pela primeira. [...] Prova da segunda conseqüência: Não há princípio de operação 69

Evidencia-se, neste ponto, a diferente compreensão de “infinito” no pensamento escotista e no pensamento aristotélico. Para Scotus, de fato, o infinito se dá de modo intensivo e qualitativo, como “[...] aquilo ao qual não se pode adicionar perfeição alguma [...]” (GUERIZOLI, 1999, p. 108); enquanto, por sua vez, Aristóteles o compreende de modo extensivo e quantitativo: “Não aquilo além do qual não há nada, mas, ao contrário, aquilo além do qual sempre há alguma coisa. Eis o infinito (...)” (ARISTÓTELES. Física III, 6, 207a apud GUERIZOLI, 1999, p. 109). 70

Cf. Ordinatio I dist. 2 n. 75-110; Tractatus de Primo Principio n. 55-66.


39 contingente, exceto a vontade ou algo que acompanha a vontade. Porque tudo o mais age por necessidade de natureza e, portanto, não contingentemente (DUNS SCOTUS, 1972, p. 35)71.

É justamente neste ponto que transparece claramente o rompimento de Scotus em relação ao necessitarismo grego. De fato, para Aristóteles, o Motor Imóvel moveria de modo necessário, causando um movimento uniforme e eterno do conjunto do céu, no qual as diferentes distâncias, direções e velocidades ocasionariam a variação das estações e, com ela, a geração, crescimento e corrupção dos seres, ou seja, a sua contingência. Algo “contingente” nestes moldes aristotélicos é ainda, para o nosso filósofo, uma realidade “contingentemente necessária”, isto é, embora nem sempre tenha existido e nem sempre existirá, é necessário que em um determinado momento exista de fato. Portanto, não é este o conceito de “contingência” a que Scotus se refere, mas àquele ainda mais radical e que deriva de uma ação livre: [...] declaro que não chamo aqui de contingente tudo o que é não-necessário ou não-sempiterno, mas algo cujo oposto poderia ocorrer no momento em que aquilo ocorre. Foi por isso que eu disse: “algo é causado contingentemente”, e não, “algo é contingente”. E digo agora que o Filósofo não pode negar o conseqüente, retendo o antecedente pelo [expediente do] movimento; pois se este, como um todo, deriva necessariamente de sua causa, então cada uma de suas partes é causada necessariamente no momento em que é causada [...] Logo, ou nada ocorre contingentemente, isto é, evitavelmente, ou o Primeiro causa imediatamente de modo tal que poderia também não causar. (DUNS SCOTUS, 1972, p. 37)72.

O Doutor Sutil dá ainda mais um passo e demonstra que se o Primeiro Princípio é causa eficiente de todos os efetíveis, segue-se que Este deve conhecer necessariamente todos os entes, pois não se pode querer o que não se conhece. Sendo, portanto, o conhecimento divino anterior à própria existência das coisas em si mesmas (como um “artista perfeito”, que conhece distintamente o que deve ser produzido antes de sua produção) e sua vontade capaz de efetivar qualquer um dos entes inteligíveis, conclui-se, necessariamente, que o Primeiro Princípio possui a inteligência e a vontade no mais alto grau de perfeição.

71

72

Ordinatio I dist. 2 n. 79-81.

Ordinatio I dist. 2 n. 86. Este argumento é de suma importância, pois torna possível provar filosoficamente o dado central do conceito teológico de “criação”, ou seja, a completa gratuidade do ato criador, operado livremente pelo imenso amor de Deus.


40

3.3.3 A infinitude do Primeiro Princípio73 O conceito mais perfeito que se pode conceber naturalmente acerca da qüididade divina é o conceito de “ser infinito”, e este é o ponto alto da metafísica escotista e o seu limite. O conceito escotista de “infinito” não deve ser compreendido como um atributo extensivo, o que seria absurdo e incorreria numa compreensão panteísta da realidade, mas como um atributo intensivo, ou seja, d’Aquele que possui em Sua essência o mais alto grau de perfeição, que extrapola até mesmo os limites de nossa compreensão finita. Ele o demonstra primeiramente pela via do intelecto, uma vez que o Primeiro Princípio conhece atual e simultaneamente uma infinidade de inteligíveis, Ele só pode ser um intelecto infinito. O que é confirmado pelo fato de que Ele os conhece sem o auxílio de qualquer natureza intermediária, isto é, a existência anterior de um objeto que possa ser inteligido, mas unicamente pela contemplação de Sua Natureza Infinita; pois no Primeiro Princípio nenhum ato pode ser acidental, mas sempre idêntico à sua própria natureza incausada. [...] o conhecimento de um qualquer objecto é naturalmente gerado pelo objecto como causa próxima, sobretudo o conhecimento pela visão. Se aquele conhecimento está presente a algum entendimento sem a acção desse objecto, mas só em virtude de um outro objecto anterior feito para ser sua causa superior em relação a semelhante conhecimento, segue-se que aquele objecto superior é cognoscivelmente infinito, pois um objecto inferior nada lhe acrescenta em cognoscibilidade. A natureza primeira é um tal objecto superior, porque só pela sua presença no entendimento primeiro, sem que haja outro objecto concausante, há conhecimento de qualquer objecto no intelecto [...] Logo é infinito; e é-o também em entidade, porque em tudo há uma relação directa entre a cognoscibilidade e o ser (DUNS SCOTUS, 1998, p. 103)74.

Na via da simplicidade essencial, retornamos ao problema do gênero e diferença específica na qüididade divina. Como vimos antes, a simplicidade essencial não comporta uma composição da natureza divina. No entanto, há uma espécie de comunidade entre os entes, que inclui também a essência divina: a comunidade do ser. Deste fato, Scotus conclui pela infinitude do Primeiro Princípio, pois esta “[...] é a capacidade de se identificar e se diferenciar de outros com base em um mesmo

73

Cf. Ordinatio I dist. 2 n. 111-144; Tractatus de Primo Principio n. 67-87.

74

Tractatus de Primo Principio n. 70.


41

elemento, demonstrando, pois, a noção de ens infinitum como conseqüência da simplicidade essencial da primeira natureza” (GUERIZOLI, 1999, p. 116-117). Segue, então, as vias da ordem essencial. Pela eminência, demonstra-se a não incompatibilidade da infinitude em relação ao ser enquanto ser, pois o nosso intelecto e a nossa vontade deleitam-se na idéia do infinito, e uma vez que o ser enquanto ser é o objeto adequado de nosso intelecto seria absurdo que este não repugna-se a infinitude se ela corrompe-se o ser, assim como o ouvido repugna a desafinação; logo se o infinito é possível, o ser eminentíssimo deve ser infinito. Pela causação final, prova-se que a infinitude é conclusão necessária do fato de que nossa vontade pode desejar ou amar algo mais perfeito que qualquer fim finito; e que, portanto, o Fim Último deve ser infinito. E por fim, pela causação eficiente, conclui-se a infinitude intensiva do Primeiro Princípio pelo fato de ser maior perfeição que um agente possa realizar atualmente uma infinidade de efeitos do que poder realizá-los apenas sucessivamente. Todavia, esta potência infinita do Primeiro Eficiente não corresponde ainda à “onipotência” enquanto atributo teológico de Deus; o que Scotus ressalta: Portanto, ainda que tenha relegado o estudo da omnipotência propriamente dita, conforme a entendem os católicos, para o tratado relativo ao que se deve acreditar, ainda que a não se tenha provado, prova-se todavia a potência infinita que por si possui simultaneamente toda a causalidade de maneira eminente, a qual, enquanto é por si, se existisse formalmente, poderia produzir simultaneamente efeitos infinitos, se estes fossem simultaneamente factíveis75 (DUNS SCOTUS, 1998, p. 116, grifo nosso)76.

Enfim, o conceito de “ser infinito” é, para Scotus, a dobradiça que une o fim da Metafísica (conhecimento necessário e natural da realidade transcendental) e o início da Teologia (conhecimento revelado e sobrenatural). Deve-se, porém, enfatizar que a possibilidade de se demonstrar o “Ser Infinito” pela via da razão natural não nega a necessidade da Revelação divina, pois é impossível ao homem peregrino conhecer naturalmente a Deus de forma própria e particular, isto é, como tal essência em si. O que conhecemos naturalmente pelo conceito de “ser infinito” é apenas o modo transcendental disjuntivo de Deus ser, ou seja, um atributo positivo de Deus em relação às criaturas finitas. 75

De fato, não pode ser provado filosoficamente que o Primeiro Princípio possa realizar o impossível, isto é, que duas coisas incompatíveis ocorressem simultaneamente, como o branco e o preto. 76

Tractatus de Primo Principio n. 85.


42 Ora, os efeitos deixam a razão na dúvida, ou mesmo a induzem em erro. Por exemplo, o fato de a natureza divina ser comunicável a três Pessoas não pode ser eruído dos efeitos de Deus; o que não é de estranhar, visto que as criaturas não foram produzidas por Deus precisamente enquanto trino 77 (BOEHNER, 2000, p. 491) .

Além do que, para Scotus, a Teologia não é somente uma ciência contemplativa, mas eminentemente prática, ou seja, que visa o conhecimento do fim último do homem e das condições necessárias para se alcançá-lo; porém, “[...] em nossa experiência presente nada encontramos que nos permita concluir que a visão beatífica é nosso fim, ou que ela pode convir eternamente ao homem enquanto tal” (BOEHNER, 2000, p. 491)78; portanto, é necessária ao homem a Revelação divina.

77

Cf. Ordinatio, Prologus pars 1 q. unica n. 41.

78

Cf. Ordinatio, Prologus pars 1 q. unica n. 15-16.


43

CONCLUSÃO Tendo percorrido, ainda que mui brevemente e de modo superficial, os pontos basilares sobre os quais se fundamenta a metafísica do Bem-aventurado João Duns Scotus, percebemos claramente a preocupação do nosso filósofo ante as radicais contradições, já tão presentes em seu tempo, entre o conhecimento filosófico e o teológico. Deste modo, suas respostas podem também ser, para a nossa realidade contemporânea, um auxílio oportuno a fim resgatar o valor da Revelação e a sua necessidade, assim como a legitimação científica de nosso discurso teológico. Deste modo, no conceito de “ser infinito”, que expressa o quanto o nosso intelecto, no presente estado, pode apreender acerca da essência divina, atingimos o ápice da Metafísica do Doutor Sutil. Nele está contido o conceito comuníssimo de ens, que tomado em si mesmo, sem qualquer determinação, transcende a realidade criatural, expressa nas categorias aristotélicas, e que, portanto, pode ser predicado indiferentemente tanto às criaturas finitas quanto à essência infinita de Deus. Nele, igualmente, se pode encontrar a propriedade transcendental disjuntiva que distingue radicalmente a essência divina de todas as suas criaturas, ou seja, o modo próprio de Deus ser e que lhe pertence de modo exclusivo: a infinitude. Deve-se, portanto, verificar que, segundo o Sutil, há uma certa “comunidade de ser” entre Deus e as criaturas, sem, contudo, encontrar-se aí qualquer tipo de confusão que pudesse decair em panteísmo. Tudo que é real possui inteligibilidade e é inteligível enquanto sendo, isto é, como ens. Desta inteligibilidade ou formalidade comum não se pode inferir um “algo físico” (uma res) compartilhado por todos os seres. O que seria absurdo! Deste modo, neste conceito simples de “ser infinito” encontramos aquela ponte, que procurávamos no início de nosso trabalho, que nos possibilitaria – sem querer transpor ingenuamente os limites intrínsecos de nossa linguagem, atrelada à nossa experiência sensível – dizer algo positivamente acerca da realidade divina, a qual não podemos, enquanto peregrinos neste mundo, conhecer diretamente, seja intuitiva ou mesmo abstrativamente.


44

Todavia, restam ainda muitos outros pontos a serem mais minuciosamente analisados, que poderiam contribuir para o devido aclaramento do pensamento de Duns Scotus, e que, devido a uma maior precisão do tema a ser tratado e a brevidade do mesmo, passaram um pouco ao largo de nossos estudos: como, por exemplo, a “coloração” que o Sutil realiza, no Tractatus de Primo Principio, quanto ao argumento ontológico de Santo Anselmo; a questão, amplamente desenvolvida por ele, acerca da impossibilidade de um regresso infinito na ordem das causas; ou mesmo a reinterpretação da teoria da iluminação como ponto de encontro entre as idéias necessariamente presentes no intelecto divino e as formalidades metafísicas abstraídas da natureza dos entes empíricos. Estas, porém, poderão ser tratadas devidamente, e com inegável fruto, em trabalhos posteriores. Permanece, no entanto, a humilde contribuição deste trabalho, que reconhecemos não expressar toda a solidez e sutileza do pensamento deste grande príncipe da Escolástica, mas que poderá servir de inspiração às mentes mais aguçadas, que encontrarão no pensamento do Doutor Sutil um campo assaz fértil e, infelizmente, ainda muito pouco explorado.


45

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