ROTEIRO DE REFLEXÃO PARA AS EQUIPES DE PASTORAL DA SAÚDE Júlio Munaro Entre as múltiplas funções que os visitadores de doentes desempenham em suas atividades pastorais, figura a de proporcionar assistência espiritual aos moribundos em sua passagem desta para a outra vida. Missão delicada, mas importantíssima, pois nela ajuda-se o irmão a preparar o seu encontro definitivo com Deus. Sabemos que a morte acontece de mil e uma formas. Ora surpreende como um assaltante; ora agride com a violência de uma fera; ora entra com a suavidade de um amigo intimo. Há quem se deita com saúde e amanhece morto; há quem sofre de uma apoplexia ou de um enfarte fulminante; há quem morre no trânsito ou em acidente de trabalho, sem tempo para dizer um ai; e há pessoas cuja caminhada para a morte dura semanas, meses ou até anos. Parece que a morte brinca com a vida e se diverte com o sofrimento... Muitas pessoas, sobretudo hoje, morrem em terapias intensivas de hospitais, cercadas de aparelhos e terapeutas, mas isoladas de gente da família e sem assistência espiritual mais assídua. Convém lembrar, contudo, que Deus jamais se afasta de seus filhos e que seu amor nunca deixa de atuar na intimo de cada pessoa para que atinja o seu objetivo último: morar eternamente com o Pai. Deus cuida da planta e do pássaro e muito mais cuida das necessidades materiais de seus filhos (cf Lc 12,22-31). Que cuidados não terá para o seu bem espiritual e para a sua salvação eterna! Deus não deixa de fazer a sua parte e a faz bem. Nós homens é que podemos falhar. E qual o homem que não deseja a sua realização última? Até o descrente de tudo traz em seu intimo o anseio inextinguível de ser plenamente feliz, de não se frustrar na vida. Trata-se de um fermento salvifíco que o próprio Deus colocou no coração do homem e cuja ação jamais cessa. O visitador de doentes não pode esquecer estas duas realidades: . «Deus quer que todos os homens sejam salvos» (1Tm 2,4); . todos os homens anseiam salvar-se. Além do mais, Deus chega onde nós não chegamos e tem segredos para salvar os homens que nós jamais descobrimos. Que o visitador de doentes tenha bem presente isto em todas as suas atividades pastorais, principalmente com os moribundos. Ninguém deve arrogar-se a pretensão de ser salvador de quem quer que seja, pois um só é o nosso Salvador, Cristo Jesus (cf. 1Tm 4, 10). Mas ninguém deve esquivar-se á obrigação de proporcionar ao próprio irmão, seja ele quem for, os meios de salvação que Deus colocou à nossa disposição. Nada de omissão, portanto, e, ao mesmo tempo, todo o esforço para que não falte a assistência espiritual possível ao moribundo. O visitador de doentes não pode esquecer que Deus dotou a pessoa humana do dom da liberdade, liberdade da qual Deus jamais se arrependeu e que ele próprio respeita até as últimas conseqüências. Não se pode, pois, agir á revelia do moribundo na assistência espiritual. Menos ainda aguardar que entre em estado de inconsciência para administrar-lhe sacramentos que recusou quando em plena posse de suas faculdades. A assistência espiritual não se limita aos sacramentos, nem a salvação decorre exclusivamente deles, sobretudo quando o moribundo não acredita nos sacramentos. A nossa fé em Deus, no seu amor misericordioso, no fator da obra redentora de Cristo, bem como o nosso intenso amor pelo irmão e pela sua salvação têm capacidade salvifíco de valioso alcance. Pedir a Deus pela salvação de nosso irmão, com todo o vigor de nossa fé e com toda a força do nosso amor, pode ser o único caminho que sobra. E seria, por acaso, um meio desprezível?
Se nossa fé não chegar a tanto e se nosso amor não nos impelir a isso, nossa limitação pastoral seria espantosa. Estaríamos falhando no essencial. O mundo moderno, com seu vasto pluralismo religioso, exige do visitador de doentes uma mentalidade aberta e uma visão clara da obra redentora de Deus em Cristo. A salvação não conhece limites. Fechar-se num esquema acanhado não corresponde á riqueza da misericórdia de Deus, nem ao seu amor infinito pelos homens. E uma atitude mesquinha corresponderia aos anseios mais profundos da pessoa humana?
SÃO PARECIDOS ESTES DOIS SANTOS PATRONOS DOS DOENTES No dia 22 de junho de l986, o Papa Leão XIII declarou São João de Deus e São Camilo de Léllis celestes patronos de todos os doentes e hospitais. Neste ano comemoramos, pois, o primeiro centenário do acontecimento. A idéia de propor São Camilo de Léllis como patrono dos doentes e dos hospitais partiu do arcebispo de Nápoles, Cardeal Guilherme Sanfelice. E, sem dúvida, tinha ele razões próprias e fortes para tanto, pois os religiosos de São Camilo trabalhavam ininterruptamente em sua diocese desde 1588. Sua ação na diocese de Nápoles foi tão marcante que um historiador da época garantiu que, em nenhuma outra cidade, os cristãos cuidavam tanto e tão bem dos doentes como lá. O ViceRei, o Cardeal, os nobres e as damas da sociedade, os clérigos e os religiosos e o povo todo faziam do serviço aos doentes um dever e uma honra. Qualquer serviço que os doentes precisassem, por humilde e banal que fosse, não causava constrangimento a ninguém. Quando, porém, a proposta do Cardeal Sanfelice chegou ao Vaticano, o Cardeal Lúcido Maria Parocchi, protetor da Ordem Hospitalar de São João de Deus, achou que, com igual mérito de São Camilo de Léllis, também São João de Deus merecia ser declarado patrono dos doentes e dos hospitais. A idéia do Cardei Lúcido Maria teve ótima acolhida e a petição chegou ao Papa com os dois nomes. Antes disso, porém, a proposta foi reforçada por grande número de pedidos provenientes de todas as partes do cristianismo. Em nome próprio e do povo, 25 cardeais, 62 arcebispos, 219 bispos, 25 superiores gerais de ordens e 12 de superiores gerais de congregações dedicadas aos doentes solicitaram ao Papa a ratificação do pedido. Não se tratou, pois, de decisão de cúpula, como se diz hoje, mas de anseio da Igreja. A Sagrada Congregação dos Ritos examinou a proposta e a aprovou por unanimidade no dia 27 de maio de 1886. Em seguida, a encaminhou ao Papa que, com o breve «Deus, rico em misericórdia», procedeu á declaração final. Em resumo, o breve papal diz o seguinte: «O Senhor Deus misericordioso sempre suscitou na Igreja homens inflamados de caridade que, com espirito impávido e animoso, se consagrassem á empresa de prestar socorro ás múltiplas necessidades do gênero humano, cada um pela sua parte. Sobressaem, entre estes. São Camilo de Léllis e São João de Deus que, animados de igual caridade, não cedendo a fadigas nem temendo perigos, mesmo de vida, se dedicaram a socorrer os pobres enfermos: um, aliviando os males do corpo, e especialmente ocorrendo em sua ajuda com os recursos do ministério sagrado nos momentos da extrema agonia; o outro, preparando-lhes refúgio e medicamentos, e tendo igualmente a peito a sua salvação eterna. Um e outro deram origem a congregações religiosas que, aprovadas pela Santa Sé, herdaram o seu espírito, e ainda hoje subsistem. Agora, pois, os dois Santos sejam declarados pela autoridade apostólica patronos de todos os hospitais e de todos os enfermos, onde quer que se encontrem».
Como se vê, São Camilo e São João de Deus não foram declarados patronos dos doentes e dos hospitais por mera honraria. Tiveram méritos incontestes na assistência aos doentes e na transformação dos hospitais. Para continuar seu ideal e sua ação na vida da humanidade, cada um deles fundou uma Ordem Religiosa. São João de Deus fundou a Ordem Hospitalar, aprovada por Pio V em 1571. Conta-se que, na ocasião, o Papa teria dito: «Eis a flor que faltava no jardim da Igreja>. De fato, sempre foram escassas as ordens e congregações religiosas que se dedicam integralmente aos doentes. São Camilo de Léllis fundou a Ordem dos Ministros dos Enfermos, popularmente conhecida como Ordem dos Camilianos. Pio V, ao aprová-la em 1586, disse que «Camilo e seus companheiros cuidam dos doentes com amor igual ao da mãe que cuida de seu filho único gravemente doente». Ambas as ordens estão hoje disseminadas nos cinco continentes e, embora com um número relativamente pequeno de religiosos, exercem ampla e intensa atividade tanto na assistência a doentes quanto na promoção de saúde, bem como na formação de profissionais. Seus membros, além de zelar por uma vivência cristã profunda, esmeram-se na sua formação profissional. Ambas as Ordens contam com médicos, psicólogos, enfermeiros, sociólogos, administradores de saúde, especialistas em Sagrada Escritura, teologia, ética, história. Na Ordem de São Camilo, prevalece o número de Padres. Na Ordem de São João de Deus, os irmãos leigos são em maior número. Em ambas, a convivência fraterna reconhece paridade de direitos e de deveres a todos os seus membros. Trabalham em hospitais próprios e de terceiros, como profissionais da saúde ou como capelães especializados na Pastoral dos Doentes. As duas ordens contam, juntas, mais de 200 hospitais, onde são atendidos milhares de doentes todos os dias, com nítida opção preferencial pelos pobres. Nas duas instituições, sobre tudo no Terceiro Mundo, o atendimento ao doente e a promoção da saúde andam inseparáveis. A atenção á pessoa e o atendimento de suas necessidades prevalecem sobre qualquer outro interesse. Ambas as ordens contam hoje com florescentes ramificações femininas, também espalhadas pelo mundo e em perfeita sintonia de ideal com São Camilo e São João de Deus. Na Ordem de São João de Deus, surgiu, no século passado, a Congregação das Irmãs Hospitalares do Sagrado Coração de Jesus. Na Ordem de São Camilo nasceram, também no século passado, as Congregações das Irmãs Ministras dos Enfermos e das Filhas de São Camilo e, neste século, o Instituto Secular das Missionárias dos Enfermos «Cristo Esperança». Os Camilianos só se estabeleceram no Brasil em l922 e a Ordem de São João de Deus fixou-se aqui em 1945. As congregações femininas, tanto camilianas quanto hospitalares, também aportaram em nosso pais, onde desenvolvem amplo apostalado a serviço dos doentes e da saúde. Nas últimas décadas, ambas as ordens masculinas e todas as congregações femininas que participam do seu ideal abriram amplo espaço para a participação de leigos em seu ideal e em suas atividades. Os leigos não são seu braço direito ou força de trabalho, são membros de sua grande família. São João de Deus nasceu em Portugal, no ano de 1495, e faleceu em Granada, Espanha, no dia 8 de março de 1550. São Camilo de Léllis nasceu na Itália, no dia 25 de maio de 1550, e faleceu em Roma, no dia14 de julho de 1614. Ambos tiveram juventude difícil e incerta. Ambos foram soldados de aventura e ambos acabaram trabalhando como pedreiros para ganhar o seu pão de cada dia em circunstâncias difíceis. Nem um nem outro teve qualquer formação acadêmica regular. Ambos, a certa altura da vida, se converteram inteiramente a Cristo, e esta foi sua grande descoberta vital, a centelha ardente que incendiou seu coração de caridade e os levou a atear fogo em milhares de outros corações.
Por caminhos diferentes, Deus conduziu a um e a outro em contato com os doentes e os prendeu definitivamente ao seu serviço. São João de Deus foi internado como louco em um manicômio de Granada. Apanhou firme e penou duro. Mas, como era um louco lúcido e com o coração abrasado pela caridade de Cristo, deu-se lago conta de que o mau trato não cura ninguém, nem mesmo os psicopatas. Mal se viu livre das cadeias e das pancadarias do manicômio, pôs sua dolorosa experiência a serviço da redenção dos loucos. Ardente de caridade, sem um centavo, iniciou uma obra própria. Para ele, a imagem do psicopatas não era a de um possesso do demônio. Era, antes, a imagem do Cristo vivo que clama por acolhida, compreensão e cuidados. Um doente como qualquer outro doente. Um doente de quem Cristo diz: «Estive doente e me socorrestes... Vinde, benditos de meu Pai, e possui o reino que vos foi preparado» (cf. Mt. 25, 31-46). Sua intuição desencadeou um processo revolucionário no tratamento dos psicopatas. Camilo de Léllis, jovem mas doente, precisou internar-se no Hospital São Tiago, em Roma. De índole rebelde, acabou sendo expulso do hospital, sem que estivesse plenamente curado. Doente, mas cheio de brios e de sonhos, aventurou-se pelo mundo, como soldado de ocasião. Convertido, fez-se capuchinho, mas sua falta de saúde obrigou-o a retornar ao hospital de onde fora expulso. Tratou-se, trabalhou e novamente voltou para a vida religiosa, mas uma vez mais, a doença o reconduziu ao Hospital São Tiago. A partir de então, com quase 30 anos, percebeu que Deus o queria lá. E lá ficou com os doentes. E de lá, com um grande ideal de caridade e um punhado de homens incendiados pelo amor de Cristo, foi criando núcleos em toda a Itália, servindo aos doentes nos hospitais, nas cadeias, a domicílio e nas epidemias que pipocavam por toda a parte. Por onde passou, deixou a sua marca e a de seus seguidores. Os hospitais foram-se transformando, os doentes tratados com carinho como se fossem o próprio Cristo, os funcionários recobraram ideal, a sociedade engajou-se com novo ânimo. São João de Deus e São Camilo de Léllis, dois desconhecidos, dois doentes, dois pobres, dois sem família. Dois convertidos, dois idealistas práticos, dois abrasados de amor por Deus e pelo próximo. Não transformaram o mundo, nem mesmo o mundo dos doentes, mas mostraram com sua vida que a transformação é possível. O seu ideal e o seu exemplo marcaram época e perduram como um ponto de referência para quem quer dedicar-se aos doentes e á saúde.
VIVÊNCIAS DE VIDA E MORTE NA DOENÇA Frei Achylles Chiaffin “Vivências de vida e morte na doença”, é um tema que, na sua primeira aparência, parece ser incomunicável, intimo, pessoal e inefável. Na verdade, porém, essas experiências pessoais, além de seu caráter inacessível e de traços próprios, apresentam certas características comuns e aproximadas, que permitem um estudo e uma reflexão em torno do assunto, uma pesquisa de dados semelhantes e uma tentativa de descrição de seus fenômenos e causas. A expressão destas manifestações possibilitará a comunicação de idéias e sentimentos, para ajuda aos pacientes, e um diálogo muito criativo para toda a equipe hospitalar e familiar. Conhecer, aceitar e compreender o modo de ser de uma pessoa, com seu mundo pessoal próprio, è a melhor forma de conviver com ela e ajudá-la em suas necessidades.
Um estudo de vivências e experiências de vida e morte na doença poderia começar pelo método teórico dedutivo, que vai dos princípios para os fatos, que julgamos menos viável em nosso estudo. O estudo que parte dos fatos concretos e reais para ascender a algumas conclusões, hipóteses e orientações para a vida prática - este método nos parece o mais adequado em nosso trabalho. E o indutivo. Apresentamos inicialmente alguns casos acontecidos comigo mesmo e, depois, outros ocorridos no trabalho profissional por 30 anos, e outros fatos colhidos em pesquisas de campo profissional. Após os fatos, vamos analisar «as vivências normais e saudáveis de personalidade, para melhor compreender, as vivências problemáticas e das doenças», e, enfim, tentar sentir e colher «as vivências que ocorrem em torno da morte». Se o estudo sobre o comportamento normal de personalidade é importante e formativo, e o conhecimento das características do homem doente, ou problema, é valioso e estimulante para tratamento, a compreensão dos comportamentos da pessoa junto á morte é, por certo, muito eficaz e fascinante. A ciência em função da vida é o sentido de nosso estudo e trabalho. Os três capítulos da personalidade normal, saudável, doente ou problemática, e em meio aos sentimentos da morte, permitem a melhor compreensão dos comportamentos, nas diversas situações, e uma adaptação de atitudes mais coerente com as necessidades das pessoas, nas suas diversas circunstâncias e condicionamentos. A visão serena e realista da vida, da doença e da morte é, por certo, a melhor forma de realizá-las com dignidade e plenitude. Liberta de preconceitos e permite a criatividade do amor perene. Vivências normais e saudáveis de personalidade A tendência normal de todo o ser humano é desenvolver harmoniosamente todas as suas potencialidades, através de motivações e valores, para alcançar sua realização e plenitude. Desde o nascer e, por todo o ciclo da vida, da infância, adolescência, idade adulta e velhice, o homem, em contato com os condicionamentos do mundo exterior, vai construindo seu mundo interior e exterior. Interioriza modelos, introjeta comportamentos e incorpora estilos de vida, hábitos, percepções e impulsos vitais, que formam a vida de cada pessoa, como é presentemente, a partir de sua família, da escola, sociedade, meios de comunicação... A pessoa construi-se a partir de suas necessidades ou potencialidades que estão no ser, desde seu nascimento, potencializando-as evolutivamente. «Necessidades são dinamismos ordenados a mover o homem em busca de sua realização». São energias, forças, impulsos vitais que impelem a agir e viver. As «necessidades bem orientadas», em todas as áreas física, psíquica, intelectual, volátil e afetivamente, emocional e sexual, social e comunitária, moral e religiosamente, formam as personalidades saudáveis, equilibradas, maduras, em cada fase do ciclo da vida. Tornam-se sempre personalidades normais. Quando a pessoa bloqueia, inibe, retarda ou paralisa suas necessidades humanas, vive um ajustamento imaturo de personalidade. Assim como, quando frustra e recalca as necessidades, passará a viver um ajustamento neurótico, ou desajuste de personalidade. Características das vivências normais e saudáveis – Realizando normalmente suas necessidades, integrando-as com harmonia e coerência, a pessoa viverá as características saudáveis e relativamente felizes de sua personalidade. A pessoa bem integrada, e estruturada e reestruturada, se caracteriza por:
. harmonia e integração permanentes na vida; . serenidade, positividade, favorabilidade e entusiasmo; . coerência no ser, fazer, pensar, sentir e agir; . visão objetiva e realista da vida frente ao bem e ao mal; . atitudes de superação de problemas, com reações adequadas; . compreensão de si, como é, na identidade, e do próximo como é; . amor á verdade, fonte de libertação e transparência pessoal; . amor ablativo e dadivoso e não egocêntrico e subjetivo; . integração emocional-afetiva-sexual, social, profissional... . motivação para valores e ideais elevados e modelos formativos: . liberdade interior, filosofia de vida, abertura ao espiritual. Muitos outros critérios podem revelar as vivências de uma personalidade saudável, mas estes servirão para concluir os outros consoante situações. Estes servirão (de base) para compreender que são base para estender a psicologia na doença e na morte. Como se vive, também se recebem os estágios que se seguem á vida. Vivências de personalidade na doença “A saúde é o bem-estar físico, psíquico e social do homem”, nos diz a Organização Mundial da Saúde. E bem estar também espiritual, acrescentamos nós, cristãos. A saúde è o caminho normal e universal do ser. Busca satisfazer e realizar sadiamente todas as necessidades básicas do ser. Quando, porém, uma das necessidades fundamentais do ser está comprometida, surge um desajuste, um problema, ou uma doença. A necessidade biológica comprometida, de alguma forma, traz a doença, que é um desajuste na pessoa, com uma série de problemas, conforme o tipo de mal-estar orgânico ou psicossomático. Desorganiza-se o processo de desenvolvimento corporal e fisiológico, com todas as conseqüências de fenômenos específicos, repercutindo na realização global da pessoa. O homem continua buscando sua construção e realização, mas a doença abala sua estrutura de segurança e auto-determinação. A pessoa se traumatiza, ou desambienta, caindo na ansiedade e angustia, dependência, fragilidade, revolta, submissão ou desânimo... Novo estilo de vida surge, fora de seus projetos e ambições, de sua dinâmica e atividades profissionais e esportivas. Isto se verifica: . na criança, fora de sua família e segurança emocional; . na adolescência, cheia de sensibilidade e dinamismo; . no adulto, cioso de ambições e realizações familiares; . na velhice, que busca reconhecimento, segurança e amor. Os tipos de pacientes se multiplicam, segundo os tipos de personalidade, formação recebida e condicionamentos sociais. Desde o doente sensível, calmo, inibido, social, até o agressivo, nervoso, neurastênico, bilioso, neurótico, fleumático, anti-social... exigindo, cada tipo de pessoa, acolhimento, compreensão e terapia adequada. Características e tratamento - Por apresentar modos de ser diferentes das pessoas saudáveis, todo o doente merece receber tratamento especial, mormente aqueles que estão conscientes de sua situação próxima de morte. O paciente precisa de muito acolhimento sereno e aberto, necessita de segurança, de ser ouvido em suas necessidades de cada situação, diálogo e confiança, encorajamento, franqueza e bom clima de alegria, não de pessimismo ou tristeza.
Importa salientar especialmente o tratamento com os enfermos de fase final que, segundo Elizabeth Kluber Ross, que estudou 500 pacientes nesta situação, passam pelas fases da negação da situação, pela fase de revolta sobre si, para a fase da mistificação, ou barganha, buscando acordos, fase da depressão e, por fim, a fase final da aceitação, ou compreensão de sua realidade e destino. A grande tarefa que todas as boas equipes de hospitais se vêm impondo atualmente é de se criar um clima mais digno, nobre e eficaz de tratar tanto o doente, quanto a morte, pois todo ser humano tem o direito de viver, adoecer e morrer mais dignamente. Este é especificamente o tema a que daremos ênfase a seguir. Vivências da personalidade na morte Fenômenos antes, durante e depois da morte - Estudos e observações importantes vêm sendo conduzidos atualmente por muitos investigadores sobre o grande problema e enigma da morte e os sentimentos que a envolvem. O mistério da morte e suas manifestações nasceu com o homem e acompanhará todos os homens, até o fim dos tempos. A ciência, a arte, a técnica, a filosofia silenciam, batem em retirada, quando se pergunta pelo problema e mistério da morte. Apenas a Teologia oferece respostas, mas a partir da Revelação. O conceito da morte passa por muitas conotações, segundo a filosofia, ciência e religião que cada pessoa professa na vida. A mortalidade está na consciência de todos os povos. “No meio da vida estamos cercados pela morte”. Mas os povos não param no fenômeno da morte. Sempre se preocupam com a questão de um futuro além da morte. A morte é um “fim-fim”, ou esperança de uma nova vida? Os gregos se preocupavam sobre a libertação da alma no corpo. A tradição judaico-cristão se preocupa com a grande mudança do homem pela «ressurreição da carne», no acabamento final. Até se formar a doutrina de que «as almas dos justos terão a visão feliz de Deus na eternidade e os maus serão punidos de alguma forma». Os materialistas simplificam tudo, na sua coerência limitada, afirmando que «a morte é o fim de tudo no mundo». Os hindus e budistas e reencarnacionistas sugerem que a «morte é oportunidade de uma nova existência neste mundo». O Cristianismo, hoje, afirma que a verdadeira vida nasce com a morte. “O que acontece na morte de um homem é tão maravilhoso e plenificante como a própria criação”. E novo nascimento. A vida è uma caminhada; a morte, uma ponte; a imortalidade, a vida real. «A morte não é fim da vida, mas o ingresso na eternidade» (Cristianismo). “A morte não é um fim em si. Representa um período de transição para o espírito”, diz o Espiritismo. A vida depois da morte é um problema sobre o qual nada pode ser dito, afirma o Budismo. É o principio da «impermanência». Milhares de outras instituições afirmam outras alternativas. A Medicina nos diz que a morte «é a cessação de vida sem possibilidade de recuperação» (Blakinston). Vida é ação; morte é inação. Morte é a cessação irreversível de toda função ou atividade cerebral, contatada através de ausência clínica, pelo exame neurológico. Os critérios de morte hoje são: o eletroencefalograma isoelétrico, a arteriografia cerebral e a cintilografia. A morte cerebral é a cessação do ser homem.
A morte biológica é a cessação de todas as funções do organismo. As funções vegetativas. Se os conceitos de morte são complexos, a experiência da morte é uma realidade e evidência de cada momento do dia do homem. Nova visão da morte – Através dos sinais dos tempos, a conotação da morte assumiu muitas formas, passando por percepções muito contrastantes. A sociedade moderna mostra um comportamento paradoxal diante da morte. Uns querem escondê-la, eliminando-a o mais possível da consciência das pessoas. Outros têm a tendência nítida de não falar nunca da morte e sugerem que não se fale nunca em sociedade deste misterioso fato. Nos hospitais, evita-se falar e esconde-se o morto e a morte. Para uns, o nascimento e a morte não são mais apresentados como problemas físico-metafísicos na família. Outros mais querem reduzir a morte a simples problemas técnicos reservados a pessoas especializadas dos hospitais. Ainda há certa tendência a uma banalização materialista da morte e todas as suas implicâncias existenciais. Os meios de comunicação social não raro apresentam a morte como um espetáculo oposto á monotonia da vida noticiosa diária. Muitas pessoas vêem na morte um fantasma, ou terror, um medo, buscando morte indolor, morte técnica pela eutanásia ativa?!. Para muitos, não se teme falar de pornografia e violência abertamente, fazendo da morte uma espécie de pornografia odiosa. Por fim, quer tirar-se da morte seu caráter existencial, filosófico, metafísico ou caráter de mistério que orientará a vida. No entanto, um novo modo de pensar se levanta hoje, encarando com mais naturalidade e dignidade o mistério da morte. Estudos especiais de medicina, psicologia e religião vêm desenvolvendo uma nova mentalidade, na visão serena e natural da morte e seus fenômenos, bem como seu tratamento normal. Há livros, revistas e jornais, que já nos levam a um novo estado de espírito frente à realidade da morte. Viver com dignidade e morrer com dignidade é o lema Epíteto, o grande escritor romano, dizia: “Antes morrer que viver mal moralmente!” Que representa este modo de pensar? “A morte do corpo é apenas um episódio na história sem fim da alma”, afirma Bretton. Que filosofia envolve essa idéia?... “Para o incrédulo, a morte é um salto na obscuridade”, escreve o autor húngaro Thiamer Thot. “Morrer bem é a arte mais difícil”. “Os homens receiam a morte pela mesma razão por que as crianças têm medo das trevas, porque não sabem o que ela contém”, diz Bacon. Trabalhando há 20 anos com pacientes prestes a morrer, a psiquiatra Karen Wintraub, dos Estados Unidos, tem posição firme: “Quando nos defrontamos com a morte, a única coisa que importa é o amor que damos e recebemos. Quem amou não sentirá a morte se aproximar. Mas, para quem não amou, a morte parecerá que veio cedo demais. E será sempre difícil de ser enfrentada”. “Quando me defrontei com a morte, parecia-me ver um funil levando-me para a treva e o mistério, mas, quando a compreendi melhor, vi que ia caindo dentro de um abismo de luz”.
Reflexões sobre “A morte e o morrer” e sobre “A vida depois da vida” “A morte pertence à vida, como pertence nascimento”, diz Tagore em Pássaro Errantes. Muitos estudos concentram hoje suas investigações sobre os fenômenos em torno da morte o do morrer. Podemos salientar: - Elisabeth Klüber Ross, em seu livro “Sobre a morte e o morrer, faz extensos estudos e pesquisas sobre a arte de morrer; - O Dr. Raymond A Moody Jr., no livro Vida depois da vida, também investida grande número de casos sobre os morrientes: - O livro Esperança para além da morte, de U. Zilles, analisa os conceitos e posições históricas frente à morte e seu sentido; - - Leonardo Boff, em Vida para além da morte e A nossa ressurreição na morte, acena para a ressurreição do homem novo; - Estevão Bittencourt, em A vida que começa com a morte, e inúmeros outros autores procuram responder, de todas as formas, ao homem questionantes modernos, o grande problema da morte. O misterioso problema da morte sempre me impressionou – como sensibiliza a todo o homem que pensa diante do amigo morrendo -, mas um acidente (que vitimou, na hora, três amigos, e feriu gravemente mais sete, deixando-me em estado de morte, por muitos dias) levou-me a estudar, observar e pesquisar, mais e mais neste campo, tão deslumbrante e estranho. Sentir-me dado como morto ou morrendo, cercado de equipes hospitalares, por muitos dias, possibilitou-me sentir algo da realidade, no “momento derradeiro do encontro da vida com a morte e a vida”. Cumpre notar que, no momento mais decisivo, embora considerado morrendo, eu ouvia perfeitamente, sem reações possíveis, as palavras confortadoras de uns e bem trágicas de outros. A saber: “Este também não vive”... “Pouco ou nada podemos fazer, pois já está para passar...” “Pobre deste também, tão jovem e já vai morrer...” “Valerá a pena costurar as feridas, se já perdeu mais de dois litros de sangue e deve ter hemorragias internas, cospe sangue e não reage?” “Vamos tentar sua sobrevivência suturando rapidamente e sem anestesia, por que não resistiria... “Já morreram três e este será o próximo, o quarto...” “Palavra estas das equipes de cirurgias e enfermagem e auxiliares, Porém as irmãs confortavam e oravam incessantemente: “Deus vai ajudar... ele vai viver... precisamos de padres jovens para orientar nossa juventude... tenho certeza viverá...”. Como é maravilhoso ouvir nessa hora esses anjos de bondade confortarem, orarem e reviverem o morriente! Mais tarde pude ler nos jornais minha morte fatal, no acidente, com descrições bastante trágicas e espetaculares, que poderiam até matar psicologicamente qualquer vivente menos avisado. Passados 20 dias de alternações de coma e vislumbres vitais e 60 dias de hospitais, retorno para descrever os fatos. Vamos tentar integrar as próprias vivências de experiência frente à morte, com as vivências dos pacientes, por 30 anos, e mais as experiências das descrições das pesquisas dos autores. Fenômenos vida- morte-vida – Além das vivências da saúde e da doença, o homem pode, ás vezes, ter vivências especiais da morte, sendo estas geralmente representativas das anteriores na sua expressão. “Como se vive, se morre”, costuma dizer o povo, voz de Deus. Quais são os sentimentos que invadem uma pessoa antes, durante e depois da morte? Como conhecê-los? . Estas vivências são reais ou fruto do passado, ou da fantasia?
Os estudiosos geralmente convergem ao tentar sondar os sentimentos que as pessoas projetam nas circunstâncias da morte. Elizabeth Klüber Ross, que trabalhou com mais de 500 pacientes em fase final ou terminal, juntamente com alguns capelães e seminaristas de Teologia, debatendo sempre em grupo os casos, traz algumas considerações muito significativas. Afirma Ross que, embora a morte mantenha sua imagem pavorosa, “os homens aprenderam a conviver melhor com a morte atualmente”. As atitudes frente á morte são variadas, desde o medo, a revolta até a serenidade, aceitação e esperança. Os doentes em fase terminal normalmente passam por cinco fases: . o primeiro estágio é de negação e isolamento, em que “não pode ser...” . o segundo estágio é de raiva e revolta, expresso na pergunta “por que eu?”... . o terceiro estágio é de mistificação e barganha, «acordo com Deus, viver», . o quarto estágio é de depressão, em que o milagre e a esperança se vão... . o quinto estágio é de aceitação, com compreensão de seu destino. Na sua experiência, Ross ainda acha que os médicos e familiares devem dizer a verdade ao paciente, mas sempre com esperança de cura. Os familiares devem proporcionar uma vida reintegrada dos pacientes. Acolher, apoiar, reintegrar, não isolar e desumanizar o doente. «Se não somos capazes de encarar a morte, com serenidade, como podemos ajudar nossos pacientes?» “Todos os pacientes - considerados clinicamente mortos - e que retornaram, diz Ross, experimentaram o ato de flutuar para fora de seus corpos físicos, associado com uma grande sensação de paz e totalidade. Muitos, cônscios de outra pessoa que os ajudava em sua transição para outro plano de existência. A maioria saudada por pessoas amadas que tinham morrido antes ou figura religiosa significativa”. O Dr. Raymond Moody, analisando cerca de 150 casos de relatos de pessoas, que foram consideradas mortas e retornaram para a vida (“ressuscitaram”), segundo os médicos, tenta fazer um estudo das características, a partir das semelhanças, nos depoimentos diversos. O morriente ou morto geralmente ouve um ruído estranho, uma noticia declarando-o morto, certa inefabilidade ou inacessibilidade, sentimentos de paz e quietude, um túnel escuro, ou espaço ou funil, sensação de estar fora do corpo, encontros com outras pessoas relacionadas, frente a uma luz brilhante, com recapitulação panorâmica da própria vida, defrontando-se com barreira ou limite, voltando para o corpo e a vida, contando coisas aos outros, com grandes efeitos sobre suas vidas, novas visões e a morte, corroborando... Para Moody, a morte foi considerada como ausência de sinais vitais clinicamente detectáveis; como ausência de atividade de ondas cerebrais; e como perda irreversível das funções vitais. Para os seus casos não procediam explicações sobrenaturais ou farmacológicas ou neurológicas, fisiológicas e nem psicológicas. As vivências que eu mesmo experimentei - após o gravíssimo acidente, acima descrito, em que permaneci junto à morte por diversas semanas, segundo os médicos e enfermeiras, ouvindo todos os dias frases de desesperança e de estímulos, embora pensassem que nada ouvia - me fazem rever as fases que passei, á semelhança do acima exposto. Minha primeira atitude era de não aceitar a realidade, pois eu não podia crer que, sadio, jovem, podia estar partindo. Numa segunda fase, não senti revolta, me negava a mim mesmo viver esta situação, que os visitantes descreviam tão bem... «mal»
Num terceiro estágio, apelei muito a Deus, ao Cristo amigo dos doentes, a meus colegas São Francisco e Santo Antônio, para ver se seria possível livrar-me da situação dolorosa e incompreensível. Depois comecei sentir que não adiantava revoltar-me, ou pedir, ou desanimar, e comecei a pensar mais e mais, orar, sonhar longe. Por fim, realizou-se algo maravilhoso e inefável: entreguei minha vida, minha juventude, minha vibração pelo sacerdócio e pela educação universitária ao Deus senhor da vida, da saúde, da doença e da morte e da nova vida eterna. Foi então que entrei numa paz e serenidade nunca vivida em minha vida. Num estado de espirito bonançoso e calmo. Numa atitude da mente livre e capaz de receber tudo o que viesse e acontecesse. Algo de inefável e transparente entrou bem dentro de mim. Que ainda hoje revivo em meus pacientes... Estes fatos foram narrados muitas vezes em encontros, em rádios e entrevistas, com autenticidade. Todos os dias, trabalhando no Hospital Universitário São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do RS, recebo casos semelhantes, trazidos por médicos, enfermeiras, capelães, funcionários, que sabem que investigo estes fatos surpreendentes. Hoje, dia 12 de julho de l986, a experiente enfermeira Irmã Aurora enviou-me este escrito: Irmã Benvinda Pontel, 66 anos, está há dois anos em , “coma neuro vegetativa”, dependente total, colchão de água, sonda naso-plástica, sonda vesical, franqueotômio Com momentos de superficialização, apresenta algum código - se você ouvi o canto no seu ouvido responda: moveu o lábio e rolou duas lágrimas. O Reitor da PUC-RS, após semanas de inação quase total, sob os aparelhos, abençoado ao partir, com as pontas dos dedos traçou leve sinal da cruz, diante de todos os médicos, coirmãos e funcionários. Dona Tereza, após semanas de coma, segundo os médicos, pouco antes da morte, acariciada pelos familiares, abriu os olhos, sorriu, contornou os familiares com o olhar e serenamente partiu... Centenas de outros casos poderiam ser listados aqui. CONCLUSÕES - Do acima analisado podemos concluir: . como a saúde e a doença, a morte tem seus fenômenos; . a fase final e terminal parece oferecer claramente etapas bem claras; . muitos doentes ouvem e percebem muito bem o que se passa ao redor; . nem todos os casos apresentam fenômenos semelhantes, segundo a doença; . a equipe hospitalar deve humanizar e confortar mais essa situação; . parece haver semelhanças nos fatos antes-durante-e-depois da morte; . luz, inefabilidade, serenidade, retorno, túnel são palavras comuns na morte; . os estágios dos morrientes sugerem ser uma grande verdade na doença; . só pode ajudar na morte, quem procurar amar serenamente na vida; . o acolhimento dos familiares e do hospital é necessário na morte.
ÉTICA E SAÚDE FECUNDAÇÕES ASSISTIDAS Hubert Lepargneur Além de certos transplantes espetaculares, duma nova tecnologia de investigação do corpo por transparência ou análises (ultra-sonografia, scanner... (e de alguns tratamentos de ressuscitação
não menos espantosos, a clínica contemporânea evidencia maximamente sua modernidade pelos seus procedimentos de fecundação artificial, hoje mais discretamente denominados «fecundações assistidas». Além da emergência destas improváveis ocorrências, a maior novidade no campo consiste talvez no fato de que os moralistas católicos não costumam mais levantar objeções de principio quanto á fecundação artificial no âmbito do casal casado (fecundação artificial homóloga). Forçosamente, levamos em conta os teólogos moralistas atualizados em bioética; batalhas de retaguarda sempre haverá. A fecundação artificial com doador tornou-se, de fato, operação comum, abertamente praticada em nações desenvolvidas, sem ter obtido por isso o beneplácito das autoridades eclesiásticas. Isto não significa que os institutos especializados nestes países (uma centena talvez) não estejam seguindo normas precisas e por vezes rigorosas. Como sempre aconteceu para a guerra, existe no mundo atual uma ética além do que nós, cristãos, chamamos de ética ou moral. Não é desprezível levá-la em conta para eventual diálogo. Precisamente, recusa-se fecundar as mulheres não casadas ou viúvas, portanto dar descendência aos «casais de mulheres». O anonimato dos doadores masculinos não significa a ausência de controle de idoneidade (a regra do não pagamento visa evitar as fraudes neste controle), investigando problemas de saúde ou hereditariedade que poderiam afetar os gametas. Poderia a anotação de características morfológicas (altura, cor dos olhos... de valia para não outorgar um preto a um casal branco) incentivar no futuro um eugenismo positivo, hoje rechaçado pela opinião pública? A eventualidade está discutida. Por que não ocorrem mais adoções, que correspondem a operações legais, incentivadas pelo humanismo cristão, em vez de recorrermos a intervenções mais complicadas que envolvem os prospectivos pais? Será que faltam realmente no Brasil, no mundo, crianças abandonadas suscetíveis de adoção? Já que a questão é irrecusável, temos que propor resposta: a complicação legal da adoção talvez assuste (mas, então, por que não a complicação da intervenção biológica, não menos aleatória? Além do mais, a adoção é gradativa, senão revogável); mais forte é provavelmente o instinto natural-cultural que incentiva o ser humano a sobreviver num ser tirado de si, sobretudo no tocante à mulher. Outro processo em discussão diz respeito ao desdobramento da mãe genética e da mãe portadora (da gravidez). Também aqui a opinião pública e a ética cristã não são favoráveis á inovação, pelo objetivo mais comum que se acham agora divorciadas a união conjugal e a fecundidade do casal. Nesta hipótese, uma mulher casada não consegue dar embrião algum, mas á capaz de fornecer óvulos com a condição de procurá-los junto ao ovário. Uma fecundação in vítro une gametas do casal e o produto está implantado no útero de outra mulher, voluntária para o serviço. Que esta seja ou não remunerada não nos parece alterar a essência da operação (a ama-de-leite não é paga?). Ao fim da gestação, a criança é devolvida, em tese e segundo contrato destituída de valor legal, aos pais genéticos. Estudamos de perto as criticas feitas á operação; nem sempre nos convenceram, sem que, por isso, recomendemos necessariamente o processo. Fala-se num eventual perigo cromossômico para o embrião, numa eventual mudança de vontade da mãe hospedeira (que passaria a querer conservar o filho que prometeu devolver), numa eventual mudança de vontade por parte da mãe genética (que se recusaria a receber o produto que ela pediu e suscitou ela mesma). Não vamos fugir, como estes políticos que costumam responder que «não raciocinam sobre hipóteses». O primeiro perigo apontado não è, de lato, biologicamente significativo. A experiência provou que as crianças concebidas por fecundações assistidas, sobretudo com seleção do doador, sofrem em média menos defeitos genéticos do que a média das crianças, isto, porém, não inclui
inconvenientes de ordem psicológica, sobre os quais ainda faltam estudos científicos consistentes. A percentagem de abortos espontâneos, hoje em dia, em casos de fecundação artificial, corresponde à percentagem comum dos abortos de gravidezes normais. As duas dificuldades seguintes seriam facilmente solúveis no dia em que a lei reconhecer a validade deste tipo de contrato e obrigar os contratantes a respeitar a própria palavra, apesar dos imprevistos que toda existência reserva. Isto não elimina uma critica aparentemente mais impressionante, senão acenada, que acusa o processo em pauta de tratar desumanamente a mãe portadora (o útero de aluguel, para quem quer forçar no pejorativo), que trabalharia no anonimato antes de ser rechaçada nas trevas externas, num profundo desconhecimento da relação tão intimamente pessoal que une o feto à mãe. Esta mulher seria tratada como meio e não fim; negar-se-ia sua real maternidade como vinculo bio-afetivo. Recusar-se-ia, paralelamente, ao filho, o reconhecimento da mulher que o carregou nove meses. A critica parece a não poucos arrasadora e decisiva. Uma vez mais, não por defender ou legitimar a operação, mas por honestidade intelectual, e portanto ética, constatamos que esta critica só vigora na hipótese, nada fatal, em que a portadora é tida como escrava que deve esconder-se e desaparecer após o serviço. O argumento perde força quando se aceitam, á luz do dia, a realidade, permanência e honorabilidade das duas, mas cuja colaboração não é necessariamente motivo de hostilidade, rivalidade ou desonra. Por que (a não ser por motivos culturais superáveis?) a mãe portadora não poderia conservar relações amigais com a família e afetuosas com o filho, sem prejuízo para a família legal? Mãe portadora não é concubina ou amante descartável. Antinatural e traumatizante é sempre negar a realidade. Na época em que as mulheres das boas famílias confiavam sua prole a amas-de-leite, um eventual ciúme da mãe genética contra a babá amamenteira e primeira educadora (Gilbeno Freyre contou a importância que tiveram estas pretas no passado brasileiro, e o recentemente traduzido livro de Elizabeth Badinter sobre «Um amor conquistado» acrescenta água no moinho) andava por conta das pequenas fraquezas humanas, nada dramáticas. Finalizamos com este notável trecho do moralista Pe. Bernhard Haering: «Se um dia for possível transplantar com segurança o embrião do útero de uma mulher em perigo iminente de morte ou que não pode ser salva, sem interromper a gravidez, pessoalmente não teria objeções morais substanciais. A Comissão Moral da Associação Católica dos Médicos Britânicos exprimiu opinião diversa, isto é, declarou sempre imoral esse proceder (Medicina e Manipulação, Paulinas, p. 225).