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O SISTEMA DE SAÚDE NO BRASI L Christian de Paul de Barchifontaine INTRODUÇÃO Para poder captar o processo de instâncias econômicas, políticas e institucionais, relacionando-as numa dada conjuntura com os principais fatos de saúde, estruturou-se uma evolução histórica periodizada segundo a seleção de um evento político-institucional, que significa, em última instância, a recomposição da classe dominante em nível do aparelho de Estado, após movimentos sociais, que, partindo da infra-estrutura econômica, perpassam as classes sociais, e vão recompor o aparelho estatal, incorporando e institucionalizando direitos com o máximo de transformação possível, sem pôr em risco a estrutura como um todo, ou seja, a ordem capitalista. Assim, podemos distinguir três períodos. I. Período de 1850 a 1929: emergência da Saúde Pública. II. Período de l929 a 1960: emergência da Assistência Médica da Previdência Social. III. Período de 1960 a 1984... : emergência do Sistema Nacional da Saúde. I. PERÍODO DE 1850 A 1929: EMERGÊNCIA DA SAÚDE PUBLICA. Durante o Império, as ações da Saúde se concentram na magna instituição da época, a antiga Academia Real da Medicina Social, que tem dois objetivos: proteger a saúde da população (semelhante ás academias européias) e proteger e defender a ciência: este segundo sobrepujando de longe o primeiro e construindo a hegemonia da prática da medicina em relação ás outras práticas de saúde. 1889: A Proclamação da República marca a tomada do poder nacional por uma burguesia nascida do expansionismo econômico da riqueza cafeeira. A partir de l902, a febre amarela dízima a mão-de-obra, sobretudo os imigrantes sem defesa. A peste bubônica também dizimou a mão-de-obra. O presidente Rodrigues Alves chama o sanitarista Oswaldo Cruz que estava se aperfeiçoando em Paris, no Instituto Pasteur. Com a tecnologia da Campanha Sanitária francesa, Oswaldo Cruz erradica a febre amarela. Entre 1902 e l904, Oswaldo Cruz cria a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) para combater a febre amarela: vacinação obrigatória e notificação compulsória. A Diretoria Geral de Saúde Pública foi o embrião do Ministério da Saúde, constituído em l953. Entretanto, neste primeiro período da República (1889-l 909) se, por um lado, vemos a afirmação da ação estatal no campo da Saúde Pública, ainda não constatamos a presença governamental no tocante á ações individuais de saúde. Do ponto de vista da assistência médica, um predomínio da medicina liberal, exercida através dos denominados «médicos de família», dirigida ás camadas de maior poder aquisitivo. Aos outros estratos da população restavam alternativas entre o atendimento pela rede hospitalar de cunho filantrópico, aqui representada basicamente pelas Santas Casas de Misericórdia, herdadas do período colonial; o atendimento pelas práticas e pelos profissionais da medicina popular, integração de conhecimento e práticas indígenas, jesuíticas e afro-asiáticas; e para contingentes de trabalhadores ligados aos serviços de infra-estrutura, que serviam de suporte ao escoamento do café, tais como ferrovias e portos. Iniciava-se um sistema de atendimento através das Caixas Beneficentes organizadas por conta própria pelas empresas e pelos empregados. Essas


Caixas foram regulamentadas em 1923 pela lei «Elói Chaves» e o Estado estendeu esses benefícios aos funcionários públicos em 1926. A penetração estatal no âmbito da assistência médica, vai-se iniciar a partir do período critico para a sociedade brasileira, reflexo da crise mundial dos anos 20. 1923: Congresso da Sociedade Brasileira de Higiene. Diagnóstico da doença: miséria. Solução: consciência possível não permitia visualizar uma mudança de estrutura; ênfase á estrutura pública. 1925: Reforma Sanitária Paulista (com ajuda americana). II. PERÍODO DE 1929 A 1960: EMERGÊNCIA DA ASSISTENCIA MEDICA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL 1934: Criação dos IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensões): todos os institutos são dirigidos por pelegos e assim formam o feixe de pelegos ligados ao chefe político, a exemplo do fascismo. No plano da Saúde Pública, não cabe ao Estado, nesse momento, nenhum projeto de gastos públicos. Mas data de l942 o aparecimento da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública, financiada pela Ford Foundation, como parte do acordo fixado em Convênio na Amazônia (borracha), em razão do obstáculo japonês á rota asiática na 11 Guerra. A Fundação SESP, a principio, se destina a combater a malária, mas vai depois desenvolvendo as atividades de Saúde Pública não só no Norte, mas se estende ao Nordeste (e hoje é importante órgão do Ministério da Saúde, incorporado quando da criação deste, em 1953). 1939-1945: Crise: faltam energia e capital estrangeiro: investimentos com dinheiro da arrecadação dos IAPs (centro hidrelétrico do Vale do São Francisco, usina de aço de Volta Redonda e Central do Brasil (transporte ferroviário). 1944: Muitos acidentes de trabalho: riscos são tão freqüentes que, em 1944, novo decreto estabelece a obrigatoriedade de as indústrias com mais de 100 empregados organizarem uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), que, entretanto, não sairá do aspecto formal. 1945: Realizada a primeira tentativa de unificação dos Institutos para criar o Instituto de Seguros Sociais do Brasil (ISSB) por Getúlio Vargas, na iminência da sua queda. Como ele tinha seu apoio político nas massas urbanas, tentou reordenar suas bases, unificando-as no ISSB. Logo após a queda do governo Getúlio Vargas, o decreto é revogado. 1948: Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia). Plano que nunca foi efetivado. Este plano apresenta as características de um programa de emergência, formulado como resposta ás catastróficas situações sanitárias que vigoravam no Brasil (controle inflacionário a partir do semi-congelamento salarial e do crédito. Para a viabilidade do controle inflacionário, o presidente Dutra intervém nos sindicatos e partidos e declara ilegal o Partido Comunista Brasileiro). A colocação essencial era de que os baixos níveis de sanidade implicavam custos extremamente elevados, o que constituía um freio ao desenvolvimento econômico do País. 1949: pior taxa de mortalidade infantil por causa do baixo salário mínimo. 1950-1954: Eleição direta de Getúlio Vargas (Populismo). Por parte da Previdência Social, cada instituto funcionava como clientela política de determinado deputado. Cada deputado tinha seu reduto eleitoral, impedindo o assédio dos demais. Na saúde, mais uma vez é a assistência médica da Previdência que vai privilegiar-se neste período, porque ao Estado importa controlar o desenvolvimento do País, para que o controle da força de trabalho é a peça importante. No plano da Saúde Pública, que se vinha desenvolvendo dentro do Ministério da Educação, observa-se um esvaziamento progressivo, pois, mesmo desmembrando-se, com a criação do Ministério da Saúde, em 1953, a sua estrutura frágil confirma o pequeno espaço anterior.


1954: 1º de maio: Regulamento Geral da Previdência Social (RGPS) com uniformização dos direitos trabalhistas e unificação, posteriormente; a nível político, as contradições (entre nacionalistas e desenvolvimentistas) se avolumam até o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, e a redefinição do jogo, na coligação Nacional-Desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1955-l960). A 3 de setembro de 1954, o Congresso anula o RGPS. 1958: A Volkswagem pede liberação do IAPI para fazer convênio com a POLICLÍNICA (hoje SAMCIL). Marca assim o inicio da Medicina de Grupo. 1960: Lei Orgânica da Previdência Social: é a primeira justificativa da participação do Estado em saúde do trabalhador sob argumento economista da produtividade. III - PERÍODO DE 1960 A 1984: EMERGENCIA DO SISTEMA NACIONAL DA SAÚDE 1961: Jânio assume com a maior inflação, até 25/08/61, quando renuncia porque não tem mais apoio. 1960-1962: Piores índices de mortalidade infantil. 1964: Greves até nas Forças Armadas. Mobilização: Nacional de monopólios estrangeiros. Estabilização do abastecimento. Reforma agrária radical. Como mexe cm o capital, Jango foi considerado comunista. Deposição do Presidente João Goulart. 31 de março: golpe militar. O rompimento do pacto político que estivera em vigor durante duas décadas, e que contará com a participação das camadas populares urbanas, criou condições à Previdência Social para utilizar-se da metodologia do planejamento no sentido de reformar a política de privatização dos serviços médico. A primeira medida do Ministério do Trabalho, ainda em 1964, foi intervir nos Institutos de Aposentadoria e Pensões, suspendendo a participação dos representantes dos empregados e dos empregadores no desenvolvimento dos programas. As tarefas de planejamento e execução dos projetos médico-assistênciais passaram a ser de competência dos tecnocratas. 1966: fazem-se sentir as conseqüências dessa medida, quando se cria o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), unificando todos os Institutos. 1968: Decreto-Lei n.º 200 da Administração Federal cria o 1º PND ( Plano Nacional de Desenvolvimento). Este 1º PND prevê a concentração de recursos e decisões. Isso significa uma política econômica de repasse a grupos privados ( sobretudo das áreas de saúde e educação), mas o setor segurança fica na mão do Estado. Em nível da saúde, o 1º PND paralisa a construção e ampliação de serviços próprios. Combinação de metas: a Medicina de Grupo dispara, aproveitando a mão-de-obra barata do setor saúde e contratação de hospitais. 1969 a 74: Epidemia de meningite, acidentes de trabalho e mortalidade infantil alta. A saúde vai muito mal e a economia vai bem para alguns ( milagre brasileiro). 1975: Lei n.º 6.229 de 17/7/75, criando o SISTEMA NACIONAL DA SAÚDE: organização dos serviços e reorganização e hierarquização de ações. 1976: Aprovado o PPA (Plano de Pronta Ação), que transfere as urgências para a rede privada (início da corrupção com US, sem controle). 1978: INPS-INAMPS passa a apresentar déficit. 1979: PREV-SAÚDE aborta. 1981: CONASP: reorientar as ações primárias para os serviços públicos dos Estados e Prefeitura. 1981-1982: Situação de falência da Previdência Social. 1983-1984: Tentativa de correção das distorções.


Conclusão A constituição dos sistemas de saúde no Brasil deve ser entendida dentro da ideologia capitalista. A saúde nunca foi priorizada e de ter sido valorizada; só serviu para manter uma mãode-obra necessária a serviço do poder econômico e para atender a interesses de grupos dentro da sociedade global (Medicina de Grupo, contratação de hospitais, multinacionais de equipamentos e produtos social global não pode ser confundido com o sistema econômico, e a ausência de análise de caráter sociológico não só empobrece a compreensão dos processos econômicos como também confere ao social um papel extremamente residual, incompatível com os progressos realizados na área de planejamento para o desenvolvimento, como se o social fosse algo pairando acima da realidade.

ROTEIRO DE REFLEXÃO Júlio Munaro O visitador de doentes é orientado, sobretudo, para atender o doente em suas necessidades materiais e espirituais. Trata-se de um serviço digno e indispensável e que devemos sempre estimular, pois são ainda muitas as carências neste sentido. E mesmo que não houvesse necessidades, restaria sempre o apelo de Cristo: "Estive enfermo e me visitastes". A visita ao doente tem valor em si mesma. Por outra parte, o visitador de doentes deve perguntar-se se a sua ação pode limitar-se ao atendimento pessoal do doente, ou se a sua condição de homem e de cristão, membro da família humana e da Igreja, não exige dele uma visão mais ampla e uma ação, mais profunda, a fim de se tornar promotor de comunhão fraterna entre todos os homens e agentes de transformação da sociedade como um todo. De fato, muitos problemas materiais e espirituais do doente, e que o visitador de doentes procura resolver, decorrem de inadequada condição familiar, social, eclesial ou pastoral. Esta situação deve ser resolvida, se não se quiser que tudo continue como está. "Eis que faço novas as coisas"(Ap 21,5) parece a meta fundamental de Cristo, e o cristão, como autêntico discípulo de Cristo, não pode ignorar este objetivo. A nossa sociedade sofre de desequilíbrios de toda a sorte, com indizíveis sofrimentos para grande número de pessoas. O visitador de doentes deve, pois, abrir os olhos observar a realidade, analisá-la e confrontála com os legítimos anseios do homem e com as exigências básicas do Evangelho. Os contrastes que surgem neste confronto são muitos e graves. Aparecem na vida da pessoa, da família, da sociedade e da própria Igreja. Seria admissível que o visitador de doentes cruzasse os braços, alegando que sua tarefa é de atender o doente em suas necessidades materiais e espirituais? Talvez valesse relembrar as palavras de Cristo aos fariseus do seu tempo: "Pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Importava pratica estas coisas sem deixar de lado aquelas" ( Lc 11,42). O doente precisa de ajuda material e espiritual e suas necessidades não podem aguardar que se reformem antes a sociedade, a Igreja, a família, Deve ser atendido na hora e da melhor forma possível, independentemente das causas pessoais, familiares, sociais ou eclesiais que geraram a sua situação de carência material ou espiritual. Mas o cristão consciente sabe que deve contribuir para "renovar todas as coisas" e garantir a todos os homens a "plenitude de vida" almejada por Cristo. O pequeno livro "Novos Rumos de Promoção da Saúde" (edições Paulinas, 1974) lembra que não é de boa política montar um serviço de atendimento das vítimas de assalto. É preciso engajar-se na conversão dos assaltantes. "Convertam-se e acreditem no Evangelho" (Mc 1,15)


constitui o mais fundamental dos apelos de Cristo. É preciso converte-se, mas também é preciso trabalhar para que todos se convertam - "fazei que todos se tornem meus discípulos" (Mt 28,19). Mas não basta isso. É preciso trabalhar para que todas as realidades humanas se tornem novas: "Eis que faço novas todas as coisas" (Ap 21,5). Que todos os homens e todas as estruturas sociais por ele organizadas estejam a serviço das pessoas e não contra as pessoas. O engajamento social da Igreja no Brasil e na América Latina está sendo muito criticado, até mesmo nos meios eclesiásticos. Seria certo? Não manda a Bíblia que amemos "com abras e de verdade?" (Cf. Jo 3,18). A boa terapia não combate os sintomas apenas. Procura extirpar o mal pela raiz. Os visitadores de doentes, engajados na ação eclesial, têm atividade específica, missão evangélica qualificada, mas não exclusiva. Como membros da Igreja e da família humana, devem levar em conta o grande conjunto e lutar para que este grande conjunto seja transformado. É verdade que ninguém pode fazer tudo sozinho. Aliás, quem quer fazer tudo acaba fazendo mal tudo o que faz. Mas será que o visitador de doentes pode esquecer-se de que deve ser agente de transformação? Deveria ele manter-se alheio à injustiça social? Não teria ele nenhuma responsabilidade face aos desequilíbrios familiares, sociais e eclesiais que tanto afetam a nossa sociedade? Este ponto merece a nossa consideração e, quem sabe, também algum engajamento comunitário, na Pastoral da Saúde da Criança ou, ainda, nos grupos populares de saúde. "Tenho compaixão da multidão” (Mt 15,32) foi um brado que irrompeu do próprio Cristo. E o visitador de doentes poderia manter-se alheio a este brado? Pode cruzar os braços e deixar que o sofrimento corra solto, por não querer engajar-se na transformação da sociedade? OU, pior, criticar quem se mete nesta luta?

SER SOLIDÁRIO NO CALVÁRIO - UMA EXPERIÊNCIA. Pai de família, três filhos, um homem comum, mas cristão consciente, José Paulo de Arruda Oliveira é agente da Pastoral da Saúde, atuando há seis anos no Pronto- Socorro do Hospital das Clínicas Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na capital paulista. A pedido do Boletim ICAPS, José Paulo deu um depoimento, bastante aberto, sobre sua experiência e o trabalho ali realizado pela Pastoral da Saúde. É resultado do que falou este texto, elaborado pelo Pe. Leocir Pessini, capelão do Hospital das Clínicas. Os Prontos- Socorros (PS), nos hospitais ou como unidades autônomas, são montados exclusivamente para os atendimentos de emergência e em todas as especialidades médicas quando possível. Os profissionais de sentinela, estão sempre prontos para intervir com rapidez, seja sobre um problema simples até um trauma agudo ou acidente. O PS é um verdadeiro microcosmo do grande macrocosmo da sociedade como um todo, Ai se encontra uma amostra qualificada dos valores e ídolos dominantes na grande arena da vida. À Igreja vai quem quer. Ao hospital, ao PS, vai que não quer. As pessoas são trazidas porque se trata de algo muito sério, quando não por uma questão da vida ou morte. Elas não escolheram! Se nas nossas comunidades nos relacionamos com pessoas que têm mais ou menos os mesmo valores e estilos de vida que os nossos, no hospital, de modo todo especial no PS, somos desafiados a conviver com o diferente. Diferente em estilo de vida, fé, cultura, raça e cor. Nas grandes metrópoles, pelo próprio comportamento da sociedade sempre mais consumista, impessoal e injusta, onde os índices de violência chegam a níveis alarmantes, entram no PS pessoas de todas as classes, tipos e condições, em grande número vítimas da violência: baleados (policiais e meliantes),


esfaqueados, suicidas, mulheres com hemorragia por prática de aborto, drogados, vítimas de espancamento, de estupro... A lista da clientela dos Prontos-Socorros é enorme. Poderíamos nos perguntar qual seria a nossa missão em tal situação, já que, na maioria das vezes, a emergência é uma tragédia. Como ser bom samaritano, hoje, junto aos assaltos pelo inesperado da dor, doença e morte. Como ser Cirineu para ajudar a carregar a cruz do próximo no calvário da vida, exatamente quando ela enfrenta o seu grande perigo - o da morte? Sem dúvida, estas são perguntas evangélicas, que exigem respostas concretas na ação. A tarefa mais urgente de início é estabilizar as condições emocionais do paciente, quando todas as providências médicas estão sendo tomadas, lembrando também que os profissionais sofrem uma pressão emocional alta e nós somos parte destes profissionais, no atendimento multiprofissional. Podemos, a princípio, nos impressionar com o sangue e a pressa-rapidez do pessoal e achar que não temos um lugar para atuar. O paciente que entra no OS consciente, tem medo de tudo: medo de morrer, medo de ficar mutilado, medo da dor, medo de perder os amigos e família, medo do desconhecido e medo de perder a própria paz, por vezes. Está sofrendo uma tensão emocional altíssima, agravada por um quadro de profunda dor e confusão. Nós, como agentes da Pastoral da Saúde, devemos ajudar a pessoa a conviver com estes medos. O importante e urgente neste momento é ser presença, ser solidário, respeitar a dor, o gemido a lágrima, a blasfêmia, e o pedido de ajuda, para chamar pela enfermeira ou uma súplica de oração. É esta postura solidária que fala de Deus mais do que o uso de chavões tão tradicionais e comuns em nosso meio, tais como: "É vontade de Deus"... "Deus sabe o que faz"... Não podemos esquecer que o paciente precisa, nesse momento, prioritariamente de um tratamento médico competente, num clima de calma e confiança, junto com o apoio emocional que lhe devolve a segurança de continuar a luta, ou a força para enfrentar o inevitável nos revezes da vida. Acredito que precisamos aprofundar e acreditar mais no valor sacramental do ser presença. E a família do internado no PS? Geralmente, a família é deixada de lado e sozinha, com pouca ou nenhuma informação. Não há ninguém junto a ela para orientá-la. Se são dadas, costumam ser lacônicas e, quase sempre, em tom de mau humor, quando não contraditórias. A estrutura hospitalar em nosso País ainda não contempla um espaço físico para as pessoas ficarem a sós ou resguardadas da multidão nesta hora tão dramática. Os familiares ficam, assim, nos pátios e corredores, padecendo dos mesmos medos e dores da pessoa doente, sem um ambiente só deles, onde poderiam ficar mais à vontade para conversar ou chorar. Aqui se faz necessário que o agente de Pastoral da Saúde compreenda esta situação cruel e seja o facilitador, o elo de ligação famíliapaciente-profissionais. Ter em conta que os familiares desesperados, não raro querendo até mesmo brigar com o serviço médico, estão ansiosos por saber tudo e acompanhar de perto o que está acontecendo com seu ente querido, e por vezes são colocados distantes entre si por estruturas hospitalares desumanizantes. Somos nesse contexto uma presença profética humanizante e chamados a restaurar o toque humano quando se vê somente a doença e não a pessoa ou então quando a parafernália tecnológica é um fim em si, sem levar em conta a dignidade do ser humano. Estando a família em trauma, o doente sendo cuidado, abre-se para nós um leque imenso de possibilidade de ação. Poderemos ser intérpretes junto aos familiares do estado dos doentes. Poderemos até saber melhor do acontecido e informar os profissionais, e som isto ajudar a todos. Surgem sempre oportunidades para se refletir junto aos familiares sobre qual o melhor caminho, qual a melhor maneira de lidar com as dificuldades que virão. É importante nestes momentos ajudá-los a enfrentar possíveis mal entendidos, pois é natural que os familiares se impressionem com os tratamentos usados. Nunca me esqueço duma ocasião em que um paciente teve uma parada cardíaca e os profissionais rapidamente iniciaram a


ressuscitação cárdio-pulmonar. Uma pessoa da família, vendo toda aquela agressão, imediatamente quis brigar com os médicos, porque, no seu desespero e desconhecimento, achava que estavam batendo no seu pai. Quantas vezes somos chamados a ser mediadores em discórdias familiares! Esta é a hora da verdade nua e crua, em que relacionamentos congelados na separação pelo desentendimento são descongelados sob o fogo do sofrimento. A ferida aberta precisa do bálsamo do diálogo, do amor, da misericórdia e do perdão. É bom termos sempre presente que somos um sinal vivo da Igreja que continua os gestos proféticos do Cristo junto a quem sofre. Somos chamados a ser presença solidária que comunga a dor da tragédia ou morte, criando laços de união, fraternidade e amor junto aos familiares. O sofrimento sem amor é profundamente despersonalizante. É bom lembrar que somos parte do exército que, na luta contra o sofrimento, usa como arma o amor. Faz-nos pensar profundamente a afirmação de João Paulo II na Carta Apostólica sobre o sofrimento humano: "O sofrimento existe no mundo para provocar o amor". Continua o Pontífice afirmando que "o amor é também a fonte mais rica do sentido do sofrimento, que, não obstante, permanece sempre um mistério". Poderíamos lembrar aqui a presença firme de Maria junto ao sofrimento de seu filho Jesus no Calvário. Muitos fugiram de medo, até mesmo os discípulos. A mãe vai até o fim. Fica com o filho, mesmo não podendo mudar a sorte dos acontecimentos. Mas deve ter sido bem, reconfortante para Jesus sentir a presença de sua mãe. Quanto amor no meio de tanta dor! A situação de esperar em Pronto-Socorro é dramática: esperar pelo melhor e, ao mesmo tempo, temer pelo pior. Que paradoxo! Haja paciência em meio a tudo que nos provoca impaciência e temor! O tempo não passa e, quando passa, deixa marcas visíveis de cansaço e stress físico, emocional e espiritual: um dia parece um mês, um mês parece uma eternidade. Somos chamados a humanizar o tempo também. É preciso trabalhar em sintonia com os profissionais, principalmente estar por dentro da realidade do quadro clínico do paciente e perceber o nível de consciência da realidade dos fatos por parte dos familiares, bem como saber o que está sendo comunicado para a família. Em muitos casos, precisamos trabalhar esperanças muito irreais e colocar os pés na realidade. Quando a morte acontece... Bem, isto sempre acontece na hora errada e nunca estamos suficientemente preparados para enfrentar tal realidade. Nesta situação, a família precisa de muito apoio, pois fica atordoada, em estado de choque e, não muito raro, nega que a morte tenha acontecido. Uns se revoltam contra tudo e contra todos e sentem que até Deus está contra. Outros ficam imóveis, como que anestesiados, e procuram uma explicação que não encontram, ou então a encontram culpando profissionais e hospitais, que "não agiram como deveriam ter agido". Enfim, temos tantas reações diferentes, como diferentes são as pessoas. O que se poderia fazer aqui? É importante que deixemos as pessoas extravasarem e expressarem seus sentimentos sem serem julgadas ou analisadas. Atenção para o sentimento que elas por vezes assumem: "Por que demoramos tanto trazê-lo até aqui?", "Ele se queixou de dores estranhas, na semana passada, e não levamos a sério", "não deveria sair de carro depois de beber com seus amigos"...É importante agirmos com base na verdade dos fatos, sem enfeites, mas com muito amor. É preciso aguardar o tempo suficiente até que o estado de choque da notícia tenha passado e ajudá-los a decidir sobre os funerais, avisar parentes próximos, verificar se eles têm condições de dirigir o próprio carro ou necessitam chamar um amigo. Não esquecer de trabalhar a dimensão da fé, quando esta é uma realidade importante para quem morreu e quem ficou. Reunir a família ao redor da pessoa falecida e colocar numa perspectiva de fé os fatos que estão sendo vividos. Geralmente convido as pessoas a partilharem os seus sentimentos e afetos com relação à pessoa que


partiu, unindo tudo isto em forma de oração. Agradecer pela vida, lembrar os bons momentos e facilitar a dinâmica do "adeus" e luto que inevitavelmente se inicia. Sabemos o quanto difícil; e dizermos adeus, até mesmo os "adeuses" provisórios, tais como a partida para uma viagem longa. O que dizer se trata de um adeus definitivo... Na perspectiva pascal existe muita vida na morte procuro sempre lembrar. A fé não elimina o sofrimento, mas ajuda a conviver com ele, dando-lhe um sentido. A dor é uma resposta diante da situação da morte, e cada um se manifesta de maneira totalmente diferente: uns choram alto e gritam, outros se encolhem e gemem, outros desmaiam. Neste contexto, quase sempre se nota a presença da lágrima! Ela fala da dor e temor intraduzíveis, de um amor impossível de terminar, de um coração partido. A lágrima não é sinal de fraqueza, mas de grandeza do ser, que se revela limpidamente. É algo sagrado que merece acolhida e respeito. Nossa sensibilidade deve estar aberta para providenciar, quando possível, uma sala ou um lugar sem movimento, onde os familiares possam expressar seus sentimentos sem serem reprimidos, resguardando sua privacidade e evitando que sua dor seja espetáculo para os demais. Uma questão muito importante é a dimensão da fé, como acenamos anteriormente. Lembrar que esta deve emergir naturalmente. Nossos pensamentos, pontos de vista e teologia não devem ser impostos aos outros. Se assim fosse acredito que estaríamos "manipulando" cristamente. Percebo que talvez não seja tanto o momento de se falar em Deus, mas de testemunhá-lo pelo amor, pela paciência, pela disponibilidade, pela fraternidade. Concluindo, gostaria de dizer que o Pronto-Socorro não é prioritariamente o lugar para se doutrinar, mas para se testemunhar a solidariedade na dor, sofrimento e perda. A solidariedade não tem partido, com status ou credo, é a linguagem que fala por si e é compreendida por todos os crentes. Para mim ela está no coração do Evangelho. Como membro da Pastoral da Saúde, sendo Igreja, o desafio que vejo é sermos um sinal profético desta Igreja que caminha com os que mais sofrem: junto aos pobres doentes sem voz, procuramos ser sua voz, lutamos pela humanização nos Prontos-Socorros, verdadeiros calvários do século XX, onde o Cristo é imolado diariamente e onde também queremos profissionais dignos e capazes, que levem em conta a pessoa humana na sua globalidade.

VIDA LASCADA Se não for verdade, é mera coincidência... Themis Carvalho de Andrade sempre gostou de escrever. E tem, já, vários livretos publicados. Sempre usando como temas centrais a saúde, o sofrimento, o amor, a vida enfim. Há bom tempo, ela atua na Pastoral da Saúde, em especial no Hospital São Camilo, de Vila Pompéia, em São Paulo. E na Creche Mãe Maria, também do mesmo bairro. Aqui, um de seus textos, que o Boletim ICAPS vai apresentar em capítulos. CAPÍTULO I Juca Promessa não conseguia entender. Fez tudo direitinho. Tudo do mesmo Jeito que sempre viveu. Sua vida era exatamente como o seu nome. Ganhara o apelido de Promessa por ser conhecido fazedor, e cumpridor, de promessas. Sua relação com Deus era simples e um tanto comercial: não sabia dizer orações elaboradas nem recitar trechos do Evangelho. Aliás, do Evangelho mesmo conhecia quase nada. Juca fazia o que sabia: promessas para tudo!


Lembrava-se, agora, de quando começara a maratona em que se achava metido, sem saber sair. Juca Promessa sentira-se doente. Não houve benzedeira ou curandeiro do sertão do velho e ressequido Nordeste que conseguisse livra-lo de suas dores incômodas. Era a época da peregrinação ao monumento mais importante da fé nordestina: o grande «Padrinho Padre Ciço», aquele que, no dizer do homem comum do sertão, está no céu, de mãozinhas dadas com Nosso Senhor Jesus Cristo. Homem de pele queimada e coração ardente, refletindo em todo o seu ser o sol brilhante que ilumina e castiga o Nordeste, deixando no coração aquele gosto amargo de sensação de estar abandonado até mesmo por Deus, Juca Promessa reuniu sua pobreza numa pequena trouxa, prendeu-a bem numa vara, pegou o rumo da estrada, mas prometeu, com o olhar sofrido e triste, ao sapé de sua palhoça, que voltaria... Voltaria para ser faminto e esquecido como sempre, acocorado no fogão de barro, fumando palha e vendo, talvez, seu filho crescer magro e infeliz como todo garoto do sertão, mas aquecido pelo olhar atento de pai, da mãe... de quantos dividem entre si tanta miséria brasileira. Assim, com uma nova esperança no coração, Juca Promessa reuniu-se aos demais peregrinos, seguido de longe pela mulher, buchuda e sem ânimo... No coração da pobre companheira havia algo parecido com amor. Um não sei o que de ternura misturada com tristeza de ver tanta estrada seca e quente para ser percorrida a pé, carregando a pequena marmita que seria a única comida para si e o marido por muitos dias... e carregando o filho que estava para nascer, nada mais que um acréscimo de sofrimento para sua vida sem perspectiva. Os romeiros iam alegres, a seu modo. Afinal, iam visitar aquele que, todos os anos, recebe o maior e melhor carinho daquele povo desesperado: Padre Cícero, o santo do Nordeste brasileiro! Canonizado e entronizado no céu pela fé popular, sem processo ou julgamento. Sem que se discutisse ou duvidasse da sua santidade, acreditada e cantada pelo povo em verso e prosa. Juca Promessa tinha promessa a cumprir, como a maioria dos romeiros. Foi-se chegando, fincando os joelhos no chão, e... não agüentou. A dor foi demais. Sentiu a cabeça rodando e quase desabou no chão. O que teria acontecido, não fosse mesmo um cabra macho, gracioso de sua macheza e valentia. A mulher mal podia manter-se de pé, cansada de levar a barriga indescansável, e tanto desalento no peito que parecia pesar mais que o mundo... Juca Promessa estava frustrado: não poderia cumprir fielmente sua promessa daquele ano... Como ele ficaria diante do Padre Cícero? Como enfrentaria seu duro olhar de pedra, que não esquece ninguém, cobrando a cada qual suas promessas mais remotas ou difíceis? Juca estava desesperado com a idéia porque, justo naquele ano, pedira algo especial ao Padrinho. Fizera um pedido angustiado e precisava muito ser atendido. Juca Promessa estava enfermo. Doente de uma enfermidade que não conseguia entender, uma coisa que doía e arruinava a sua vida, já tão vazia de alegrias e atrativos. Juca tomara chá de tudo. Consultara benzedeiras, as de fora até, e o Padre Cícero ia ter que desculpar, consultara mesmo ... um «pai-de-santo». Gastara suas últimas esperanças e continuava enfermo, cada dia mais cansado e indisposto para a luta que lhe pertencia como herança maldita. Ali, aos pés do monumento, vendo-o já, mas ainda longe demais para poder tocá-lo, Juca Promessa sentiu-se sozinho no meio do mundo. Ninguém se importava com sua dor - nem mesmo aquele santo tão querido, tão grande, tão importante para seu povo... Olhou-a com uma súplica no olhar e no coração: «Meu Padrim Padim Ciço, num deixa este sertanejo morre assim, sem vê o fio que vai nasce do bucho da muié». Suas pernas fraquejaram. O corpo dolorido cambaleou, e Juca Promessa sentiu-se amparado por alguém que se achegou de repente, segurando-lhe a cabeça. Um momento depois, conseguiu


refletir e identificar: a cabeça estava apoiada no ventre da mulher, que, quase caindo também de cansaço e fome, ainda encontrara forças para agarrar a cabeça de seu homem, que caia. Juca Promessa sentiu uma emoção diferente. Nunca havia pensado naquele filho que estava ali, debaixo de suas mãos. Nunca havia parado para pensar de verdade naquele homem pequenino, que era seu, fruto daquela espécie de amor que unia sua vida com a vida daquela mulher, tão desarranjada e faminta quanto ele... De repente, o milagre: Juca Promessa sentiu, por detrás da chita suja e rasgada que rodeava a barriga da mulher, alguém se mexendo... alguém dando sinal de vida... alguém querendo dizer-lhe que estava lá, que a vida recomeça, que ainda pode haver alguém, neste mundo de Deus, com juízo bastante para mudar a situação de um povo que é quase uma nação: a nação nordestina do povo brasileiro! Juca Promessa recobrou a esperança. Encheu-se da velha força que caracteriza aquela gente, rastejante e soberba ao mesmo tempo. Quase instintivamente, formulou um pensamento que lhe pareceu uma obra-prima. Ficou feliz, riu-se de si mesmo. Acariciou o ventre da mulher que continha a vida de seu filho. Disse coisas engraçadas. Assustou um pouco a pobre companheira, que nunca o vira tão expansivo e feliz, especialmente porque não percebia o motivo de tanta graça... Ela sentia fome, estava cansada, e estava cansada de sentir fome. A prenhez lhe aumentava o apetite e a ânsia de comer. No entanto, a marmita que trouxeram já estava raspada até o último grão e não havia dinheiro para comprar aqueles quitutes atraentes que eram oferecidos aos romeiros... Ah! Se ela pudesse morder um daqueles bolos de milho... um acarajé... mesmo que fosse um milho cozido... Sua imaginação passava de um tabuleiro para outro, sem nunca se saciar, que fantasia não mata fome de ninguém. O pequeno remexia-se em seu ventre, também com fome, e o companheiro parecia ter perdido o juízo, rindo-se daquele jeito... Juca Promessa não participou, pelo menos nesse momento, da amargura da mulher. Havia arquitetado um plano perfeito para obter aquilo de que tanto precisava e tinha que ser arrancado do céu, pelas mãos de um poderoso: a saúde! Não poderia chegar de joelhos até o alto do monumento do padre santo e milagroso? Juca faria coisa muito melhor. Algo muito mais emocionante. Juca Promessa resolveu mudar a sua promessa em qualquer coisa que impressionaria o próprio Deus, segundo seu modo de ver. Levantou-se vitorioso por antecipação. Tremeu um pouco nas pernas enfraquecidas, mas afirmouse naquilo que havia gerado há poucos instantes dentro de sua alma ingênua e entristecida pela realidade que o rodeava. Olhou com inesperada indiferença aquelas pessoas que se arrastavam de joelhos cumprindo promessas, carregando velas imensas, ramos de flores, meninas vestidas de branco, como que querendo mostrar ao santo a prova de sua virgindade, coisa rara naquele sertão, onde o ser humano vale tão pouco e as agruras da vida fazem com que as meninas mais santas guardem no coração a inocência, entregando o corpo a preço de pão. Juca Promessa não se abalou por ver tantos cumprindo seus votos e ele, ali, de pé, impossibilitado de fazer o mesmo. Juca olhou o santo de longe e resolveu aproximar-se mesmo andando, trôpego, sobre os pés... A mulher não entendeu bem a mudança nos planos, mas acompanhou-o, andar cansado e desalento no coração, perguntando porque um santo tão poderoso permitia que houvesse tanta fome em seu estômago frio... Juca caminhava altivo. Como se fosse um rei - rei maltrapilho e sujo, faminto e enfermo, mas um rei! Fazendo sua vara de apoio para caminhar melhor, Juca conseguiu chegar ao pé do monumento. Olhou firme para o rosto do Padre Cícero - era quase um desafio no olhar. Pensou: o que ia fazer agora, teria repercussão no céu, todos os anjos viriam espiar com o canto dos olhos,


talvez invejosos por não poderem oferecer a Nosso Senhor, pelas mãos do padre de pedra do sertão, coisa tão valiosa, de tanta importância... Então formulou em voz alta sua promessa, sua nova promessa, que cumpriria, custasse o que custasse, doesse o que doesse: «Meu Padrim Padim Ciço, quando o meu proquero nasce, quando o menino bota a cabeça neste mundo, há de sê batizado na Parecida do Norte, lá em São Paulo, nas mãos da Mãe do Céu, nossa mãezinha pretinha como nóis». Pensou um pouco. Achou que não estava bem explicada a promessa e completou: «Isto é, mermo que eu ainda num tenha sarado desta praga de muléstia, mermo que eu nunca sare, batizo o moleque lá, na Parecida». Pensou um pouco mais. Achou que assim ia deixar o santo desobrigado. Então emendou:«Mais meu Padim Ciço, pur amor de Nosso Senho Jesus Cristo, tira essa dor da minha cacunda». Assim, tudo explicado, aliviado de seu compromisso, Juca voltou-se para a mulher pasmada a seu lado, sem entender como o companheiro poderia querer que seu filho nascesse em São Paulo, ser batizado na Aparecida e tudo mais. E declarou em tom firme: «Muié, num vortamo mais pro sertão. Daqui, o destino é São Paulo. O menino vai nasce lá». Juca Promessa saiu dali, determinado. Em poucos dias, estava aboletado com a mulher num caminhão pau-de-arara, rumo a São Paulo. Quando chegaram... Bem, quando chegaram você vai saber no próximo capitulo, quando Juca Promessa conhece as delicias do INPS e a caridade da cidade mais rica da América Latina.

ÉTICA E SAÚDE LIBERDADE E PLURALIDADE EM CONTEXTO DE FÉ - 1 Hubert Lepargneur «Uma doutrina social não se enuncia apenas: aplica-se, em termos concretos. Isto vale sobretudo quando se trata da doutrina social cristã, cuja luz é a verdade, cujo fim é a justiça, cuja força dinâmica é o amor,- escreveu João XXIII em Mater et Magistra. Tomamos melhor consciência de que esta «doutrina social» (apesar da expressão ter envelhecido um bocado) não representa um esquema social pronto para imediata aplicação. Trata-se, melhor, de valores em grande afinidade com a concepção cristã de Deus do mundo, do homem, e cuja hierarquia não é definitiva quando se esmiúça em pormenores. Tomamos também consciência de que o magistério não pode hoje ditar sozinho as leis que transformarão a economia e a política nos quadros da felicidade social. O Cristianismo, como fé na Ressurreição de Cristo e religião da pertença á Igreja que nasceu do Novo Testamento, não prescinde duma ética social, cada vez mais exigente e minuciosa nas encíclicas papais, eficiente na exata medida em que os cristãos conformam suas decisões e ações aos valores nos quais pretendem acreditar. Especifica na sua motivação e finalidade, a ética social cristã conhece osmose e diálogo com a mais vasta experiência humana das diversas sociedades. Nunca se separa da práxis, tanto para receber como para propor; nunca deveria divorciar-se dum intercâmbio bastante amplo que afasta a rigidez dogmática em áreas que não lhe são adequadas. Concretamente, esta rigidez força sua entrada na prática social através das ideologias que pretendem objetivizar os interesses ou a própria dinâmica da história, ocultando a precariedade de seu subjetivismo. Afirma-se seriamente, por exemplo, que depois do Capitalismo - considerado como sistema iníquo por si -, está


irresistivelmente chegando o Socialismo, que possuiria o segredo de libertar os povos através da magia da nacionalização dos meios de produção. A ideologia è cega, inclusive ás lições da história que ela pretende sintetizar e explicar. Ao abordarmos este ano - 1987 - a temática da ética social, estamos completando oportunamente os princípios éticos apresentados em 1985 e as reflexões sobre bioética de 1986. Não para diluirmos a responsabilidade individual no pecado coletivo das estruturas e de ninguém, nem para reinventarmos uma nova maneira de fazer teologia moral, a partir de alguma instituição genial repentinamente descoberta neste nosso século fabuloso. A partir dos valores de nossa época e região, como das convicções geradas pela fé cristã na sua continuidade histórica, ainda vasto é o leque das opções políticas e econômicas ao nosso díspar, porque nem nossas análises situacionais concordam sobre os núcleos do mal e as terapias oportunas. Entre «liberdade» e «igualdade», por exemplo, um dia temos que escolher uma prioridade em determinada situação. Apenas um livro pode conter capítulos justapostos que tratam de temas que poderiam não interferir entre si. Destarte, a escolha dos meios concretos de sanação das flagrantes injustiças dificilmente será unânime. Isto não é chocante ao se admitir o valor democrático e benéfico do pluralismo que decorre de livres escolhas. Nosso enfoque, obviamente, levará sobre valores comuns, metas prioritárias para a saúde coletiva, não sem lucidez sobre o lugar, valor e limites das divergências profícuas, e sem cairmos num nível de generalidade e piedosa abstração que convém talvez a um comício político, mas não no tocante á melhoria da realidade. A postura eclesial em matéria social não nasceu do nada, nem num dia só; ela evoluiu bastante, modelando-se, não sem falhas, aos tempos e lugares (talvez insuficientemente). Voltaremos sobre as etapas representadas pelas grandes encíclicas sociais dos últimos anos. Passos um pouco teóricos, sem dúvida, mas marcos duma notável conscientização histórica do corpo eclesial, por heterogêneo que seja. Por enquanto, lembramos o Concílio Vaticano II como data dum certo despertar eclesial, ainda que ele não tenha aprofundado a temática ético-social, levando a América Latina a prolongar o esforço iniciado na atualização libertadora que ai se fazia mais urgente do que na Europa. Lemos, contudo, em Lumen Gentium (Const. Dogm., n° 36): «Por sua competência nas disciplinas profanas e por sua atividade elevada intrinsecamente pela graça de Cristo, os leigos colaborem eficazmente a fim que os bens criados sejam aperfeiçoados pelo trabalho humano, pela técnica e pela cultura para o beneficio de todos, segundo o plano do Criador e à luz do seu Verbo. E assim esses bens possam conduzir ao progresso universal na liberdade humana e cristã. Além disso, com forças conjugadas, os leigos sanem as instituições e condições do mundo, caso incitarem ao pecado. E isso de tal modo que todas essas coisas se conformem com as normas da justiça e, em vez de elas se oporem, antes favoreçam o exercício das virtudes. Agindo desta forma impregnam de valor moral a cultura e as obras humanas... Os fiéis aprendam a distinguir exatamente entre os direitos e deveres que lhes incumbem enquanto agregados à Igreja e os que lhes competem enquanto membros da sociedade humana. Procurarão conciliar ambas harmônicamente entre si, lembrados de que em qualquer situação temporal devem ser conduzidos pela consciência cristã, uma vez que nenhuma atividade humana, nem mesmo nas coisas temporais, pode ser subtraída ao domínio de Deus. No nosso tempo, porém, é extremamente necessário que essa distinção e ao mesmo tempo harmonia transpareçam o mais claramente possível no modo de agir dos fiéis... Pois é preciso reconhecer que a cidade terrena, a quem são confiados os cuidados temporais, é regida por princípios próprios ». Por ocasião das grandes eleições de novembro de l986, lideres católicos estranharam que a Igreja institucional não tenha autorgado apoio oficial a um partido como o PT, e isto após ter


ridicularizado a distinção de Maritain entre "agir como cristão" e "agir enquanto cristão", e tenho o direito de não optar pelo PT, obviamente o militante petista age como cristão (no melhor dos casos) e não enquanto cristão. Portanto a resposta á indagação estava tanto no nº 36, citado, da L.G., quanto na lúcida distinção maritainista. Uma opção política e a maioria das opções econômicas e sociais não são uma decorrência necessária da fé: outros cristãos perfazem opções diferentes a partir de outras análises da realidade e outras escolhas de objetivos concretos, não menos válidos. O respeito aos outros nos compele a distinguir o conteúdo dogmático da fé e preferências terrenas que não decorrem necessariamente dela. Oportunamente observou o PA. de Soras: «Todo problema político, econômico ou social, implica a conscientização de três preocupações: de analisarão objetiva e completamente quanto possível os dados da situação; de fazer o balanço exato dos meios técnicos disponíveis (políticas, financeiras, econômicos, diplomáticos, legislativos etc.) a pôr em ação; de discernir os valores a serem ativados com prioridade. Merecem particular atenção a relação (de eficácia e de afinidade) entre meios e fins, e as questões focalizando a oportunidade de cada alternativa (balanço entre aspectos positivos e negativos). A hierarquia eclesial não impõe a seus filhos nenhuma opinião em matéria temporal, mas sim o dever de se formar uma opinião plausível. Ela não possui soluções feitas para todos os casos. mas diretrizes imprescindíveis...» (P. de Montcheuil). O próprio papa Pio XII tinha dito na Mensagem de Natal de l940:«Entre os vários sistemas, vinculados á sua época, a Igreja não pode ser chamada a adotar um de preferência a outro (sob a ressalva de certas exclusões). Nos limites da lei divina que pesa sobre indivíduos e povos, estendem-se um amplo campo, uma liberdade de movimento para as formas políticas mais variadas...» (repetido em Natal de l942 etc.). Ao concluirmos este primeiro passo no campo da ética social, que não deixa de condicionar toda atividade médica ou hospitalar, limitar-nos-emos a lembrar que a principal contribuição conciliar á moral está na Constituição Gaudium et Spes, sobretudo em volta da ética familiar. Entretanto, o n.º 30 deste documento exorta de modo mais amplo: «A extensão e rapidez das transformações reclamam de maneira urgente que ninguém, por desatenção ou inércia, se contente com uma ética meramente individualista.


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