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A MISSÃO DA IGREJA NO MUNDO DA SAÚDE Aspectos pastorais, éticos e políticos. Calisto Vendrame

Como vêem pelo título, a minha intervenção vai além do tema dos hospitais católicos. Quer ser um convite pare refletir sobre o horizonte mais amplo da missão da Igreja, na qual este se situa e é compreendido. Devendo ter presente a situação internacional e devendo ser breve, com a finalidade de encaminhar o diálogo, ater-me-ei às linhas gerais, procurando não ser genérico. Tentarei chamar a atenção sobre alguns pontos que julgo essenciais para a troca de idéias. Missão da Igreja Em primeiro lugar, devem ficar claros o direito e o dever da Igreja de estar presente no mundo da saúde, se quiser ser fiel à missão recebida do Cristo: «Pregai o Evangelho e curai os enfermos». Cristo veio para que o homem tenha a vida e a tenha em plenitude (Jo 10,10). Que sua missão não tivesse de se limitar à esfera espiritual é evidente nas páginas do Evangelho, onde aparece sempre rodeado por uma multidão de doentes de todo o tipo. “Jesus percorria todas as cidades e vilarejos... pregando a boa nova do Reino e curando toda espécie de doença e enfermidade» (Mt 9,35). Antes, a cura dos doentes constituía um sinal de sua messianidade (Mt 11,3-5). Embora a Igreja nem sempre tenha sabido desfrutar de toda sua missão, sempre reivindicou o serviço ao homem doente como seu precioso dever e direito inalienável (AA n.º 8).

Novos desafios No mundo do sofrimento, a Igreja sempre quis ser a luz de Cristo, que ilumina, e expressão do amor de Deus, que abre os corações para a esperança. Hoje, a Igreja se encontra diante de uma realidade profundamente mudada, 'que se tornou grande e complexa e que bem merece o nome mundo. Se o mundo da saúde sempre foi o espelho da sociedade, hoje o é mais do que nunca e continua a colocar para a Igreja novos desafios que ela não pode absolutamente enfrentar com métodos velhos. Com o progresso científico e tecnológico, cresceu no homem a consciência de seu poder também sobre a vida e sobre a morte. Aquilo que uma vez era deixado à Providência, ao destino e à Religião, hoje a sociedade o assume como sua tarefa primordial. Viver desfrutando de todas as oportunidades que uma vida sadia pode oferecer, parece constituir a aspiração suprema do homem de hoje. Tudo é endereçado para cuidar da própria saúde e manter-se em forma para ser eficiente e gozar do bem-estar. As descobertas nos diversos campos do saber e ingentes recursos econômicos são colocados a serviço da saúde. Os lugares de tratamento tornam-se lugares avançados da ciência e da tecnologia. Um pouco por tudo, o Estado vai assumindo, como seu direito e seu dever, o cuidado da saúde dos cidadãos com os limites que todos conhecemos. Assim, a Igreja perdeu seu papel de protagonista da saúde e arrisca perder também sua missão evangelizadora, se não adotar novas formas de presença neste novo setor da sociedade, mais de acordo com a nova realidade. Estar presente


No seu papel especifico de anunciadora da palavra de Deus e portadora da salvação de Cristo para toda a sociedade, a Igreja deve estender sua presença, além daquela tradicional das obras assistenciais próprias, proclamar, e possivelmente construir, o Reino de Deus dentro de todo o complexo mundo da saúde. Para atingir a consciência das pessoas que lá trabalham não são suficientes intervenções esporádicas vindas de fora. Neste mundo no qual se procede por método experimental, dificilmente serão recebidas orientações que partem de fora, ditadas por princípios filosóficos e religiosos. E apenas partindo da realidade que lá se vive, do conhecimento do contexto sócio-cultural e das grandes linhas que presidem o progresso e influenciam o ethos do mundo da saúde, que se pode inserir a mensagem evangélica que ilumina tudo e transforma tudo, que ilumina as consciências, interpela e converte. É somente assim que a Igreja, na sua missão evangelizadora, pode tornar-se consciência critica da comunidade sanitária, tomar-se defesa do homem e promotora dos valores humanos e da qualidade de vida. Engajamento social dos leigos Tudo isto não é possível sem um engajamento político e social dos leigos católicos. Um grande mal denunciado pelo Vaticano II é o divórcio entre a prática religiosa e a vida, ou a privatização do cristianismo, que em certos países chega ao cúmulo de permitir aos ditadores eliminar inocentes e ao mesmo tempo rezar devotamente o terço, pensando talvez prestar um serviço a Deus. Dai a urgência de uma evangelização de autêntico cristianismo que atinja o intimo do coração do homem, que o abra não apenas para Deus, mas também para o próximo, que não separe nunca a religião da vida, os valores humanos da solidariedade com o povo, que leve assumir todas as implicações sociais e políticas da fé. Uma Igreja que se alienasse da problemática da sociedade perderia seu papel de orientação. As suas lutas em prol da vida ficariam perdidas de começo, obstaculadas pelos próprios católicos. Somente a presença de cristãos 1úcidos e coerentes impedirá que o mundo se torne uma sociedadelaboratório, onde imperam o narcisismo, a busca de prestígio e de gozo e onde a pessoa que não produz e não consome fica marginalizada.

Dimensão ética O campo da saúde é o lugar onde acontecem fatos decisivos para a vida do homem, onde se nasce e se morre, aonde se vivem experiências que marcam fortemente o corpo e o espírito e determinam reviravoltas profundas no tipo de vida em sociedade e muitas vezes nas atitudes psicológicas e espirituais das pessoas. Lá também é o lugar onde os problemas éticos e morais são colocados da forma mais aguda e urgente, sempre nova, dado que o progresso da ciência e da técnica coloca ao alcance do homem novas possibilidades, tanto para viver quanto para morrer, tanto para prolongar a vida com encarniçamento terapêutico, seja para interrompê-la quando nasce, quanto para impedir a concepção ou consegui-la a qualquer custo. Uma tentação difícil de dominar é a de ditar normas partindo de princípios que são evidentes apenas para quem tem uma visão de fé. Não se constrói um edifício começando pelo terceiro andar. É necessário todo um trabalho de escavação para atingir o intimo do coração, a rocha firme do eu profundo, onde o homem está só com o seu Criador e onde decide o seu destino. Somente quando o homem tem uma visão autêntica e uma atitude livre e responsável na sua relação com Deus


e com os homens, torna-se possível um discurso sobre pontos particulares de ética profissional, médica ou não. De outra parte, não se pode dispensar por completo a contribuição das ciências humanas, da cultura típica e sobretudo do ethos do mundo da saúde, da verdade do homem (não somente da verdade sobre o homem). Numa sociedade pluralista que se acha e se confronta numa encruzilhada da saúde, o diálogo interdisciplinar, que leve em conta as diferentes concepções do homem e seu destino, é o melhor caminho para lançar a luz de Cristo sobre toda a problemática humana que explode em torno da vida e da saúde. Mas é toda a visão e atitude da sociedade no seu cotidiano que preparam o homem para enfrentar os problemas que surgem de forma dramática, quando a vida está em perigo. Daí a necessidade de toda uma evangelização que não se limite, que não se restrinja às paredes dos hospitais. O homem deve aprender a viver e morrer de uma forma humana e cristã, antes mesmo de entrar no hospital. Sobretudo nos países do Terceiro Mundo, as necessidades no campo da saúde podem ser esquematizadas da seguinte forma: .80% de necessidades de atenções primárias (nos ambulatórios e postos de saúde), .15% de assistência secundária (em hospitais gerais), .5% de assistência terciária (em hospitais especializados). Os recursos são aplicados, no entanto, da seguinte forma: 80% para assistência terciária e 5% para assistência primária, invertendo, desta forma, a pirâmide das necessidades do povo. Implicações políticas Como conseqüência do progresso da medicina e da tomada de consciência do cidadão, do direito à assistência à saúde, o mundo da saúde tornou-se parte essencial da política de uma nação, com todas as vantagens e desvantagens que isto comporta. Se a civilização de um povo é medida pelo seu comportamento em relação aos fracos, podemos afirmar que a política da saúde é o método mais adequado para medir tal comportamento. A mortalidade infantil, a atenção para com os deficientes e velhos, a média de vida, são todos indicadores que falam mais alto que as palavras todas de todos os ditadores do mundo. Sem uma política global, inspirada nos valores humanos, de nada servem as realizações esporádicas, embora em si mesmas excelentes. Numa nação de Terceiro Mundo onde o governo ditatorial professava fé cristã, mas não titubeava em eliminar os adversários políticos, existia, financiada pelo regime, uma situação para deficientes entre as mais bem sucedidas do mundo, que deixava estupefatos os visitantes e especialistas de outros países. Era uma demonstração permanente do avesso do que existia na nação. Uma política inspirada nos valores humanos e cristãos propõe, acima de tudo, a saúde para todos. O que se vê, via de regra, é a aplicação dos recursos em sentido contrário ao das necessidades. Pode-se afirmar, ainda, que, em multas nações, são mais numerosos os médicos (talvez mesmo católicos) onde há dinheiro do que onde há doentes. É um vexame que, em muitos lugares do mundo, seres humanos continuem a sofrer e a morrer de doenças que há mulo tempo foram debeladas pela ciência; que se continue padecendo e morrendo por farta de medicamentos e alimentos, enquanto somas enormes de recursos são despendidas na fabricação de instrumentos de morte, armas de todo tipo, que chegam em abundância às nações que passam fome.


Uma nação entra no subdesenvolvimento humano-cristão, quando a política do bem coletivo do mundo da saúde é substituía pela política partidária. A partir dai, os centros de tratamento para os doentes se tornam lugares de lucro e de clientela política para as pessoas de saúde. Perde-se a noção da finalidade do serviço de saúde e se assumem (ou se obriga a assumir) agentes de saúde sem qualquer vocação para este serviço eminentemente humano, que requer inteligência e exige coração. Consequentemente, acontecem nos hospitais o que se observa e algo mais que não se entrevê. Certamente existem também outros motivos da deterioração do serviço no campo da saúde, com a mesquinhez com que os regimes de prestigio pagam os funcionários e por último repassam à administração hospitalar, sobretudo de hospitais beneficentes, aquilo que devem. Eis alguns aspectos políticos que dificultam a missão da Igreja e das suas obras, aspectos que se agravam enormemente os regimes políticos cristãos, quando impõem leis que o agente de saúde não pode acatar em sã consciência. Dimensão sacramental A evangelização somente acontece quando a vida de fé vivida no amor e na esperança é celebrada na liturgia. Ela é como o ápice de toda a ação pastoral e ao mesmo tempo constitui sua fonte de luz e força. Uma tentação freqüente na Pastoral Hospitalar é a de tratar os doentes como são tratados os fiéis que freqüentam as nossas paróquias. Se estes constituem 20% da população, 80% dos doentes figuram entre as pessoas que não praticam a religião e não sabem o que sejam e para que servem os sacramentos. Dada a situação psicológica do doente, propor significa impor. O respeito à liberdade do doente é a primeira atitude que abre seu coração para a ação de Deus. Nas celebrações litúrgicas devem ser evitados dois extremos: querer realizar uma liturgia montada para as pessoas de saúde, como se o quarto de hospital fosse uma catedral; ou então banalizar o gesto sacramental, esvaziando-o de sua dimensão comunitária. Deve-se, além do mais, levar em conta que os hospitais exigem uma preparação especializada da parte dos agentes de Pastoral, que sejam capazes de compreender a situação, de compreender o doente, e que sejam criativos. Gostaria que os pontos abordados pudessem incentivar um diálogo produtivo e estimulante, rico de pistas para uma presença nova, densa de esperança da Igreja, a fim de que, no mundo da saúde, além de se acrescentarem anos à vida, se procure acrescentar vida aos anos.

VIDA LASCADA Se não for verdade, é mera coincidência... Themis Carvalho de Andrade prossegue acompanhando a vida, sofrimento e desventuras de Juca Promessa, desde que saiu de seu sertão nordestino. Agora, em São Paulo, ele conhece as delícias do INPS. O primeiro capítulo de “Vida Lascada” foi publicado na página 6 da edição anterior. CAPITULO II


Juca Promessa não poderia dizer ao certo quantos dias e noites passara sentado na Estação do Norte, com a mulher, na companhia de uma centena de outros nordestinos que, condividindo a miséria, aconchegavam-se uns aos outros para enfrentar o frio de São Paulo, contrastante com o calor do sertão. Algumas pessoas apareciam à noite, uma ou duas vezes por semana, distribuindo sopa quente, ou melhor, água quente, que jorrava de garrafas térmicas, e pães meio duros, que caiam no estômago dos flagelados como música festiva... Engraçado! Juca foi chamado de «flagelado» como todos os outros. Perdeu o seu nome próprio, perdeu seu apelido, que lhe dava tanto orgulho, perdeu... perdeu até o direito de ser ele mesmo. Agora era mais um “flagelado”. Só não perdeu foi a dor na cacunda, aquela dor malvada, que fazia com que sequer tivesse vontade de reagir. Juca rira com gosto quando sua mulher, olhando-o meio sem jeito - que o sertanejo tem um pudor muito autêntico -, disse: “Juca, onde será que eles faiz as coisas deles? Aqui num tem mato, num tem rio... tô loca prá... ocê sabe”. Um outro sertanejo que ouvira o comentário apressara-se, solidário: «Aqui tem as casinha. Home dum lado e muié de outro lado. Aqui eles nunca precisam de mato». Juca recordava esses primeiros dias, enquanto esperava na décima fila para ver se conseguia ver a cara de médico. Dali da estação, fora levado para o Serviço de Migração. Juca não se lembrava de ter sido tão maltrado em sua vida de homem sem esperanças. Depois, acabara numa favela fétida, onde «almas generosas» lhe arranjaram a metade de um barraco que cheirava mal e tinha fezes misturadas às águas da única cisterna que servia a todos aqueles moradores. A Juca repugnava a idéia de ter que viver ali. No sertão, o homem fica sujo, mas é uma sujeira limpa. E o suor que o sol arranca da pele, é a poeira da estrada... Mas tudo se lava no rio, quando há água... e, quando não, curte-se o cheiro de corpo, mas, pelo menos, o mato está à mão para certas coisas da vida. Juca gostaria de ter um barraquinho, ao menos que fosse, só dele e da mulher, para amar e viver com mais dignidade. Depois do barraco, disseram-lhe que não encontraria médico se não tivesse “carteira assinada”. Juca, não sabia como, acabara trabalhando como servente de pedreiro. Não entendia coisa alguma disso, não gostava do trabalho, não suportava a dor... Tinha vontade de se encostar num cantinho e deixar-se ficar, quieto, sem ter que envolver-se com a vida dessa gente estranha que vive em São Paulo... Até a religião era difícil para Juca... Ali, plantado naquela fila desde a madrugada, faminto e cansado, recordava-se de que, de posse dos documentos necessários, fora mandado de um lado para outro, sem que alguém tivesse ao menos ouvido o que ele tinha a dizer... Passava horas e horas nas filas e, quando chegava ao guichê, diziam-lhe: «Não é aqui, moço, a fila é aquela», ou «Acabou o expediente, agora só amanhã», ou ainda «O senhor não tem direito de ser atendido, ainda não passou o prazo». Juca não entendia. Como um homem pode ser tão maltratado na sua própria terra? No seu país? Então a isso é que chamavam de «Previdência Social?» Que diabo queria dizer Isso? Juca já havia visto mulheres quase tendo filhos na fila, sem conseguir a tal guia, que é a autorização oficial dos paulistas para o nenê nascer. Sem guia, não pode nascer! Juca pensava nos meninos nascidos no sertão à luz do luar... com naturalidade, sem que ninguém os pude-se proibir, porque nascer é algo que o homem possui sozinho, faz parte do tesouro da vida... Nascer, morrer é sagrado... Mas em São Paulo não é assim. A Previdência Social controla tudo, mas não explica nada. A dor de Juca aumentava, a fila também. O coração de Juca apertava-se, pensando no seu menino que teria de ser batizado na Aparecida do Norte, era sua promessa, e não tinha a tal guia que autoriza os meninos a nascerem. Como é que ia ser? Juca não agüentaria passar por tudo de


novo. Tantas filas, tantos desaforos, tanta falta de compreensão por parte daqueles que se escondem atrás das janelinhas de vidro, munidos de centenas de carimbos, que batem nos papéis como que para castigá-los por terem sido entregues por nordestinos enfermos e mulheres grávidas, desistentes da vida, cansados da luta, amendrontados com a assistência que o «NEPS» lhes dá. Juca Promessa acabara de chegar, com esses pensamentos, a mais uma jarrelinha de vidro: O seu moço, por favor, me atenda...» - Depressa, depressa, sem prosa. Sua guia! - Guia? Juca não tinha guia. Pensou que só para nascerem os meninos fosse necessária a tal guia. Até agora tinha andado de fila em fila, sem conseguir informação alguma... «Num tenho guia, não sinhô, até agora inda num consegui». - Então, sai da fila. O próximo, rápido, rápido... Juca atrapalhou-se um pouco com as batidas do homem no balcão. Tentou dizer que não aguentava mais, que a dor piorara muito, que não havia comido desde a madrugada, e as pernas lhe tremiam debaixo do corpo, que a mulher ia ter um filho... Mas a fila já se adiantara e ele estava fora... outra vez fora ! Outra vez sem conseguir alivio, outra vez sozinho na sua desesperança. Juca sentou-se num cantinho da sala enorme e deixou-se ficar ali, lágrimas escorrendo pelo rosto, sem que ninguém ao menos percebesse a imensa revolta que agitava o seu intimo. No final de muitas horas, sem saber quanto tempo, alguém tocara em seu ombro e lhe dissera, apressadamente: - Vai fechar, moço. O expediente acabou. Se não tem documentação, procure um hospital filantrópico. Juca embatucou: «Filan... o que?'?» A palavra fila dava-lhe horror.

GRANDEZAS E FRANQUEZAS DA MEDICINA Leocir Pessini Não é preciso ir longe e perceber de imediato que uma das características de nossa época, não obstante os progressos materiais conseguidos, é a incapacidade de resolver humanísticamente os problemas que acontecem no dia-a-dia. Isto se observa de uma forma toda particular no campo médico. A medicina contemporânea foi invadida pelo futuro, muda de face e passa a sofrer de uma certa deterioração. A relação médico-paciente se desagrega e começa a imperar na medicina a tecnolatria (adoração da técnica): pelo lado médico, por um misto de comodidade, deslumbramento e interesses comerciais; e, na vertente leiga, por uma tendência natural a endeusar a máquina, reforçada pela publicidade a serviço do complexo médica-industrial. Os meios de comunicação diariamente nos empanturram com os prodígios da ciência, e a «escatologia cientifica» passou a ser uma obsessão dos futurologistas. Existem também determinantes sócio-culturais de hoje desempenhando um papel importante, tais como: o mito do progresso, a primazia do consumo visto como solucionador dos problemas de bem-estar e a polarização para tudo o que revela uma manipulação técnica à custa de realidades humanas. Nos países desenvolvidos, fala-se de crise da medicina e alguns vão até mais longe, ao dizer que estamos caminhando rumo a uma anti-medicina. Seria este o caos de transição, ao qual sucederia uma nova medicina com a formação do médico integral? A questão nuclear que procuramos abordar neste texto é a medicina tecnocêntrica que se vai institucionalizando no mundo atual. Após esta breve introdução do status que, veremos que isto


gera diferentes tipos de profissionais da mediana, buscaremos uma compreensão histórica do modelo médico, (assando pelo complexo industrial atual, e por fim nos perguntamos: a medicina tem cura? l. Tipos fundamentais de médicos Podemos classificar os médicos em três categorias: o médico-hurnano, o médico-sábio e o médico-tecnotrônico. O médico-humano é aquele que ouve e examina atentamente o doente. É o amigo e o conselheiro. Acontece, assim, uma relação médica-paciente num nível profundo. Isto provoca uma descontração no doente e ambiente familiar, com o restabelecimento do equilíbrio psicológico. Infelizmente, este tipo de profissional, o médico de família, está em extinção. Cabem a este médico o atendimento e o tratamento do paciente, e, desde que necessária, a orientação para procurar um especialista. O especialista, por sua vez, também deve estabelecer uma boa relação médica-paciente e não vê-lo como um repositório de sinais e sintomas. O médico-humano vem cedendo lugar ao médico-sábio. Este é uma espécie de central de dados, para onde o paciente chega e de onde parte em seguida, com uma receita. Este tipo de médico, quanto mais competente, tanto mais é inacessível e silencioso. O paciente, diante deste profissional, hesita em lhe confiar suas angústias e temores, e fala muito pouco de seus padecimentos físicos. Atualmente estamos entrando na era do médico-tecnotrônico. Este é um manipulador de técnicas requintadas, de circuitos eletrônicos. No exercício da medicina, interpõe entre ele e o paciente um complexo de aparelhos, realidade que deu um golpe mortal na relação médicopaciente. O medico humano exerce uma medicina mais de doentes do que de doenças. O médicosábio exerce uma medicina cada vez mais de doenças e sempre menos de doentes. Para o médicotecnotrônico, o futuro do doente já não se encontra mais nas mãos do médico, e sim na tecnologia. 2. A tecnologia é neutra? Devemos assinalar que nenhuma máquina ou procedimento técnico é capaz de substituir o diálogo entre duas pessoas humanas, entre o médico e seu paciente. Na sociedade tecnológica em que vivemos, será que a medicina pode ser diferente do que é? O poder médico é transferido progressivamente para os atos técnicos e para os medicamentos. O fato é que, quanto menos o médico dá de si e seu tempo, mais medicamentos prescreve e mais exames de laboratórios pede. E a medicina farmacologizada e instrumentalizada. Não podemos deixar de ter uma visão crítica dos efeitos colaterais da técnica. A tecnologia é neutra? Fala-se que é preciso desmistificar o conceito de neutralidade da técnica e que depende do homem fazer dela bom ou mau uso. Esta ótica parece ser simplista e não leva em conta os aspectos políticos e econômicos da questão. Uma corrente forte de pensamento afirma, às vezes, que a tecnologia é neutra e isenta de valores, sendo meramente resposta à demanda econômica. Este quadro está por demais simplificado, na verdade. Hoje, nas nações industrializadas, as demandas surgem para suprir desejos, tanto quanto necessidades; e os desejos são estimulados por muitos fatores, dos quais não são os menores as campanhas planejadas para criá-los. Outra corrente nega a neutralidade da técnica, e acredita que ela está nas mãos de seus criadores e operadores, não sendo conseqüentemente autônoma. Uma terceira corrente de pensamento defende que a técnica está acima de bem e do mal, sendo dotada de autonomia. Esta forma as necessidades externas, não determina a técnica, mas sim suas necessidades intrínsecas é que são determinativas. A técnica acaba sendo o juiz do que é moral, criando assim uma nova moralidade e até uma nova civilização. Afirma-se que a técnica é


autônoma até mesmo em relação à economia e à política. Hoje estamos amedrontados com uma tecnologia que produz armas nucleares que ameaçam a sobrevivência da humanidade. Veja-se o caso da usina nuclear de Chernobyl, na Rússia, para citar um exemplo. 3. O modelo médico Para termos uma visão mais ampla, precisamos recuar no tempo histórico até o século XVII, com René Descartes, filósofo e matemático que foi o inspirador da ciência moderna. Grande mudança na história da medicina ocidental ocorreu com a revolução cartesiana. O mundo começou a ser pensado de modo analítico, que consiste em decompor pensamento e problemas em suas partes componentes e em dispô-los em sua ordem lógica. Isto constitui a base do moderno pensamento científico e possibilitou a concretização de importantes projetos tecnológicos. Para Descartes, o universo era uma máquina, e a natureza funcionava segundo rígidas leis mecânicas. Este tipo de raciocínio foi extrapolado para a medicina. O corpo humano é uma máquina que pode ser analisada nas suas diferentes peças, e a doença é o mau funcionamento dos mecanismos biológicos. Ao negligenciar os aspectos sociais e ambientais, esse pensar perde de vista a perspectiva integral. Este tipo de enfoque acaba deslocando a atenção médica do doente para a doença: a úlcera é rosa. Os de enzimas, anticorpos, que nâo funcionam bem. Concentrando-se em partes cada vez menores do corpo, a medicina perde de vista o paciente como ser humano. Na verdade esta abordagem é reducionista e vê saúde como um mero funcionamento mecânico do organismo. No século XIX, com os progressos da biologia e avanços da tecnologia médica, a atenção do médico começa a se deslocar para o estudo das doenças. Novas patologias são . descritas, e as doenças começam a ser rotuladas de acordo com um determinado sistema de classificação. É a nosografomania. Alguém, não sem ironia, já disse: a medicina fez, desde um século, progressos sem parar, inventando, aos milhares, doenças novas. Nesta época, as Santas Casas de Misericórdia se transformam em centros de diagnóstico, terapia e ensino, até chegarem aos modernos hospitais. Assim, os avanços cientifico-tecnológico, ao lado do modelo cartesiano do ser humano, foram os responsáveis pela pulverização da medicina em especialidades e de uma prática cada vez mais médico-hospitalar. 4. Complexo médico-hospitalar No século XX floresceram as indústrias farmacêuticas e a de equipamentos médicos, formando o que se pode chamar de complexo médico-hospitalar. A medicina deixa de ser uma arte e se transforma numa indústria dominada pela lógica da acumulação e de rentabilidade de capitais crescentes. Esta industrialização acontece em dois planos: naquele da produção de bens de saúde e naquele da administração do tratamento. A exploração de uma medicina lucrativa atraiu para a área da assistência vultosos recursos do capital industrial e financeiro. O estilo ocidental da pretensa medicina curativa foi exportado para o Terceiro Mundo, perenizando o relacionamento colonial, tornando as ex-colônias dependentes das tecnologias e provisões do Ocidente. A indústria farmacêutica cresceu com o desenvolvimento do capitalismo e industrialização do setor químico e petroquímico. Um exemplo: a companhia farmacêutica Eli Lilly gastou, nos últimos anos, 250 milhões de dólares em escolas médicas nos EUA com o objetivo de reforçar o currículo, no sentido de doutrinar o estudante para maior conhecimento farmacológico e maior utilização de drogas. É preciso convencer a qualquer custo que cada doença tem uma causa definida e, portanto, deve ter a sua bala mágica ou o míssil que a fulminará. A estratégia dos trustes farmacêuticos é convencer que


a saúde é uma mercadoria como outra qualquer, não somente para se comprar, mas que é necessário se comprar para se ter. A compra de medicamentos (e dos atos médicos) é, assim, o único meio de preservar, de melhorar ou restabelecer a saúde. Tenta-se convencer a classe médica, bem como o público em geral, que um dia todas as doenças serão curadas pela ação de um procedimento farmacológico e/ou cirúrgico. O alvo é sempre a biológico, não levando em conta os problemas psíquicos, sociais ou ambientais da pessoa. Chega-se ao extremo da medicalização de um problema social, como denunciou lvan lllich. Outro problema sério na medicina moderna é a crescente iatrogenia. Os fármacos, os exames invasivos, a infeção hospitalar, certos tipos de terapia e até cirúrgicos apresentam índices de morbidade e mortalidade que já nos assustam. Mckinlay refere que o número atual de mortes por cirurgias desnecessárias e o número de internações por iatrogénese excedem anualmente o número de americanos mortos e feridos nas guerras da Coréia e do Vietnã. O complexo médico-industrial detém um enorme poder político e econômico orientado para o lucro, usa e abusa da publicidade. Diariamente, vemos e ouvimos nos meios de comunicação a respeito das excelências da medicina tecnológica, fazendo - nos crer que a solução para os problemas da saúde está na técnica, e não no estilo de vida, na reformulação da estrutura social, no combate à subnutrição, na melhoria dos fatores ambientais etc. A publicidade farmacêutica é intensa. Diz-se que 'o lema repassado ao propagandista pelos seus patrões é: «Se você não puder convencer, pelo menos confunda». Nesta mentalidade é preciso consumir remédios e equipamentos para a felicidade da indústria da saúde. 5. Recusa do psicológico O ser humano, com sua inteligência e criatividade, construiu um mundo singular. Se ele é um gigante na esfera intelectual, na esfera emocional é um pigmeu. O homem não é somente um ser que sofre, mas um ser que sabe que pode sofrer, enfim é um ser que se preocupa. As manifestações de seus conflitos consigo mesmo e com o mundo podem assumir uma linguagem corporal. A doença seria, assim, uma espécie de linguagem cifrada, um último e trágico protesto do indivíduo contra uma situação adversa. E a realidade psicossomática. Ocorre que estes doentes são manuseados pela medicina na busca de uma patologia orgânica. Na busca de uma patologia tangível, muitos especialistas são convocados e muitos exames são realizados, e nada acaba sendo apurado. O doente é marginalizado pelo sistema de saúde, cujo modelo é biológico e centrado na assistência médico-hospitalar. Por outro lado estudante de medicina não recebe qualquer orientação para a abordagem psicossomática do doente. A medicina moderna promove saúde? Sem dúvida, os avanços científicos contribuíram muito para o progresso da medicina (é o caso da medicina de emergência ao lidar com acidentados, das infeções agudas, dos cuidados aos prematuros, das imunizações e de algumas intervenções cirúrgicas), mas é questionável se este progresso contribuiu para a melhoria da saúde da população. O avanço dos conhecimentos técno-científicos não significa, necessariamente, melhor assistência à saúde. O aumento da expectativa de vida nos países desenvolvidos, apontado como sendo uma conquista da medicina moderna, é falacioso. Medidas de caráter econômico-social (erradicação da miséria, eliminação da fome, higiene, saneamento básico, educação e habitação) firmam muito mais para essa conquista. A instituição médica deveria atuar como agente de transformações médico-sociais. Conclusão: impasse sem saída?


Uma pista para se melhorar seria uma atuação no aparelho formador. A escola médica deve constituir um espaço critico para a formação do médico e proporcionar-lhe uma visão holística e dialética dos problemas de saúde da comunidade. O estudante de medicina não deve ser um mero repositório de conhecimentos, uma espécie de médico programado para procedimentos técnicos, que sabe tudo da máquina e nada do homem. A prática de uma medicina puramente científica é na verdade pretensiosa e reducionista. O homem é um ser multidimensionado, e sua dimensão cultural (psíquica, social e espiritual) não é menos importante que as demais. Talvez seja uma reação a esta medicina asséptica, puramente científica, o fato de, hoje, os curandeiros, feiticeiros e charlatões gozarem de grande aceitação popular e com freqüência terem mais sucesso junto aos doentes do que os representantes desta medicina oficial. A medicinal na sua fase pré-científica foi mágica e sacerdotal, não devemos esquecer. Bosquet afirma que, «em 75% dos casos, os medicamentos que o médico prescreve ao paciente devem sua eficácia ao ritual que preside o ato e não aos princípios ativos que ele supõe conter o medicamento e, muitas vezes, não tem». Em medicina, a utilização experimental de placebos equivale ao emprego de um procedimento mágico com fins científicos. A medicina tem cura? «Uma caminhada de mil léguas começa com um primeiro passo», diz muito sabiamente um provérbio chinês.

O SISTEMA DE SAÚDE NO BRASIL Em sua edição anterior, o Boletim ICAPS apresentou uma “análise sumária da constituição do sistema de saúde no Brasil”, abrangendo o período de 1850 a 1985, parte introdutória de trabalho elaborado pelo Padre Christian de Paul de Barchifontaine, a que se deu, então, o título de “O sistema de saúde no Brasil”. O texto agora apresentado (com o subtítulo Saúde), constitui a seqüência do referido trabalho, cujo objetivo – como explica o autor – “é refletir sobre a situação e perspectiva de saúde no Brasil”. Ele reúne a experiência de enfermeiro, capelão de hospital e mestrando em Administração Hospitalar, além de docente de Ética Profissional e Hospitalar, bem como estudos particulares e participação em diversos cursos da área. O trabalho introdutório foi publicado na página 2 da edição anterior; em edições futuras, se dará seqüência ao texto. Introdução Não basta cuidar da saúde do povo. É preciso cuidar das condições de vida do povo, muito mais importante que os recursos médicos. O fator determinante do nível de saúde é o conjunto de fatores que interferem nas condições de vida da pessoa. No passado, era muito valorizada a bagagem genética. Hoje, sabe-se que a interferência genética sobre as doenças é uma causa secundária. Os fatores que condicionam o nível de saúde do povo são:  interferência genética: menos de 1%,  recursos de saúde (médico, hospital, remédio, ambiente): até 30%,  nível de vida (alimentação, moradia, escolaridade etc.): até 70%, constituindo, portanto, o condicionamento mais poderoso para o nível de saúde da população. Abordar a saúde, inserindo-a nem contexto sócio0econômico, é muito mais importante do que analisá-la como um fator isolado. Quanto ao discurso, todos os governos possuem um modelo de desenvolvimento econômico que visa proporcionar um nível de vida em condições satisfatórias.


Mas 2/3 da população mundial e pelo menos 1/3 dos brasileiros vivem em condições de pobreza absoluta. Do ponto de vista teórico, o desenvolvimento econômico deve aumentar a produção e distribuir equitativamente a renda. No Brasil, houve efetivo aumento da produção, mas não houve distribuição. O Crescimento, não significa desenvolvimento – o País não se desenvolveu, apenas inchou, ao concentrar os recursos nas mãos de uns poucos. O crescimento econômico, ademais, não foi feito por obra do capital brasileiro, mas por conta de endividamento externo e interno.

POLÍTICA DE SAÚDE Política de saúde é a organização do serviço de saúde, que inclui cuidados médicos. Do ponto de vista histórico, observam-se três fases distintas:  Idade Média - a doença é vista como um castigo de Deus. As pessoas doentes careciam de misericórdia. Dai as Santas Casas de Misericórdia. Praticava-se mais assistência religiosa que assistência médica. A saúde era um dever do indivíduo;  a partir do século passado – a doença passou a ser vista como agressão do ambiente (esgoto, água, saneamento básico...). A pessoa não é a única culpada, há interferência dos fatores sociais. A saúde é um dever do indivíduo, mas também dá comunidade (solidariedade social);  em 1948 - Na Assembléia Geral das Nações Unidas foi aprovada a Declaração Universal dos Diretos Humanos: a saúde é um direito da pessoa. O Estado deve promovê-la. Deve, portanto, o governo assumir sua missão. A forma efetiva de fazê-lo é criar o Serviço Nacional de Saúde, não só com os recursos dos trabalhadores, porque a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. O Serviço Nacional de Saúde deveria ser capaz de atender as necessidades básicas da população. Por isso precisaria :  ser Integral, sem divisões de saúde curativa x preventiva e individual x coletiva;  ser integrado, eliminando superposições;  ser igualitário, isto é, para todo cidadão, sem discriminação de classes sociais.

CONCEITUAÇÃO DA SAÚDE A preocupação com a saúde é tão antiga quanto o homem. Na antigüidade, os povos não letrados atribuíam a saúde ou doença a desejos divinos. Para os egípcios, hebreus, gregos e romanos, a saúde era considerada em termos de saúde física. Neste século, nossos pontos de vista começaram a dar ênfase à pessoa como um todo, e em relação também à sociedade (sociologia e psicologia).

Definição da saúde A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a saúde como “o perfeito bem-estar físico, social, mental e espiritual (acrescentado em 1978), e não somente a simples Ausência de doença ou enfermidade”. Esta definição é abstrata e idealista: bem-estar = felicidade, harmonia. Isto influencia na abordagem das doenças: o objetivo é «tratar doenças». E claro que, para os países desenvolvidos, esta definição pode ser aplicada. Para nós, na América Latina e no Brasil, sabemos que a definição


da OMS pode contribuir para estimulo ao desenvolvimento da medicina curativa, a invasão das indústrias farmacêuticas e de equipamentos sofisticados. É bom lembrai que mais ou menos 90% do orçamento de saúde é dedicado à medicina curativa e somente 10% para a medicina preventiva, quando, face a nossa realidade, estes números deveriam ser invertidos. No Brasil, sabemos que há mais que uma visão individualista (à imagem de capitalismo) que interfere na saúde ou doença da população. Assim, veio em tempo oportuno, lembrando os fatores políticos, econômicos e sociais, a VIII Conferência Nacional da Saúde (17 a 21 de março de 1986) que definiu a saúde como: «a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da população, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida». Podemos perceber logo que o enfoque é colocado sobre a sociedade, a comunidade, e que o objetivo é «proporcionar saúde» antes de tudo, e não somente «tratar doenças». Toda a visão da saúde deve passar pelo entendimento de que, sem uma transformação ou mudança do sistema em que estamos vivendo, nunca haverá saúde para 70°h da população brasileira. O PODER DA ORAÇÃO, PARA UM MÉDICO. «A oração foi um dos principais instrumentos terapêuticos da clínica do século XIX, mas, mais recentemente, fora eliminada das alternativas terapêuticas delas ferramentas químicas, mecânicas e cirúrgicas. Sem limitar a oração a seu papel de técnica ansiolítica, pretendo apenas que a contemplação orante, sobremaneira quando usada com continuidade, tem um notável efeito calmante em certos indivíduos. O médico não precisa ser religioso para ajudar doentes crentes a tirar forças a partir de suas convicções. Não sou religioso nem costumo rezar; entretanto, pergunto freqüentemente a pacientes em profundo stress: “Já achou conforto através da oração?” Ainda que muitos tenham deixado de entrar numa igreja por muitos anos, alguns reconheceram que a oração já lhes fora proveitosa. Neste caso, pergunto: «Aceitaria rezar agora?» Por vezes, peço ao enfermo rezar por todo o pessoal hospitalar. Se ele concordar, sento em silêncio enquanto ele reza, em voz alta ou não. Quando ele tenha terminado, se eu achar conveniente, agradeço por me ter incluído em suas preces. Com um doente que aceita este procedimento, ele resultou sem exceção em maior calma para o sujeito e em melhoramento do relacionamento clínico entre mim e ele. Se o doente manifestar reticência, não insisto. As pessoas irreligiosas devem também ter suas preferências respeitadas.”

O RELATIVO E O PERMANENTE Hubert Lepargneur Num primeiro passo, tentamos distinguir no campo da ética social o nível permanente da fé religiosa, núcleo inspirador de toda ação do crente, e as opções decorrentes de preferências pessoais ou grupos, extremamente condicionadas pela mutabilidade dos contextos. Sem abraçar a moda segundo a qual todo fenômeno humano é praticamente redutível ao «cultural», e portanto relativo, a honesta informação nos leva a apontar que a própria Igreja evoluiu em mais de um ponto neste


campo da prática social e de sua normatividade. Longe de tudo relativizar, insistiremos sobre valores permanentes: a pessoa humana e o bem comum das sociedades, sobremaneira. Mas é mister reconhecermos que existem evidências transitórias e por vezes falaciosas, que o tempo há de selecionar e purificar: motivo para nutrirmos o sentido da tolerância, sem o qual não se pode esperar nem paz humana.

As ilustrações que seguem são clássicas entre historiadores. l) INSURREIÇAO ARMADA - Papas do século XIX pronunciaram-se contra, sem os matizes que encontramos na própria doutrina de Santo Tomás, justamente exaltada pela Sé Apostílica. Gregório XVI, em Mirari vos, e Pio IX, na alocução Qui pluiribus (9-11-1876), excluem a hipótese de rebelião justa. Leão XIII volta ao ponto na encíclica Quod apostolici (28-l 2-1878): “Se ocorre que os príncipes excedam-se temerariamente no exercício de seu poder, a doutrina católica não permite insurgir-se contra eles, de receio que a tranqüilidade da ordem seja mais perturbada e a sociedade mais prejudicada. Quando o excesso faz desaparecer qualquer esperança de salvação, a paciência procura o remédio no mérito e em ardentes súplicas junto a Deus». Em maio de l937, porém, diante das revoltas mexicanas, Pio XI volta ao ensino tradicional de Santo Tomás (Summa Theclogica IIII, qu. 42, a. 2, ad 3), ao declarar: «Se ocorre que os poderes constituídos se insurgem abertamente contra a justiça e a verdade ao ponto de destruir até os fundamentos da autoridade, não se vê como condenar a união dos cidadãos para a defesa da nação e a própria defesa, por meios apropriados dirigidos contra aqueles que se prevalecem do poder público para levar o pois a sua ruína”. Paulo VI, em Populorum progressio (n? 3-3l ), confirma a liceidade da revolução em casos extremos e com condições que não cabe desenvolver aqui. 2) OS JUROS - O conceito segundo o qual o empréstimo duma quantia de dinheiro justifica, por si, a restituição duma importância acrescida de juros é condenado por Bento XIV na encíclica Vix pervinit (1-11-1745). A partir de sua própria prática divergente, a Santa Sé muda de posição, explicitamente a partir de 1830 (conf. o canon 1543 do Codex Juris Canonici que vigorou de 1917 a 1983). 3) A TOLERÂNCIA - Na alocução Acerbissimum (27-9-1852), Pio IX condenou sem restrição a tolerância legal do exercício público dum culto não católico num Estado auto-declarado católico. Esta condenação foi renovada pelo Syllabus (1864; prop. 78). Pio XI começa a matizar em 6 de dezembro de l953: «O que não responde à verdade ou à lei moral não possui objetivamente nenhum direito à existência ou propaganda»; o papa, porém, não exige o uso estatal sistemático da coação contra o erro, «no interesse dum bem superior ou más amplo». O Concílio Vaticano II - não sem mal – abre as portas da tolerância (liberdade de consciência), talvez ao lembrar o mal que a própria Igreja sofreu por parte da intolerância dos outros. 4) OUTROS EXEMPLOS poderiam ser desenvolvidos: os casos de Galileu, de Joana d'Arc, das pretensões de Bonifácio VIII recusando a autonomia do poder temporal, da interpretação literal do livro do Gênesis, da afirmação que Moisés tinha o Pentateuco, Davi seus- salmos, um único lsaías o livro que tem este nome, da condenação da Evolução como chave de leitura da pré-história, da hipótese do poligenismo, da condenação da “democracia” e do voto universal, do “progresso”, da “liberdade de consciência”, do ecumenismo, da concelebração, sem falar da imposição da latinização cultural a povos orientais (caso dos ritos chineses etc. ), da postura relativa ao corporatismo (Pio XII), à maneira de justificar a propriedade privada etc.


Em contraposição, salientamos valores imprescindíveis de qualquer posicionamento da ética social cristã. l) A PESSOA HUMANA possui dignidade intrínseca (“imagem de Deus”) que impera liberdade, responsabilidade, liberdades e direitos (cuja extensão será sempre discutida porque condicionada). 2) A FAMÍLIA deve ser protegida, incentivada, ajudada, de diversas maneiras, ainda que mudem estruturas, comportamentos e condicionamentos. 3) A organização social deve atender a um certo direito ao TRABALHO como meio de realização de pessoal e de digno sustento individual e familiar. 4) A justa REMUNERAÇÃO do trabalho, dos serviços, da oferta de bens apropriáveis, conforme o contexto sócio-econômico e os padrões de vida decente, individual e familiar, do mesmo contexto movediço (salário, alojamento, saúde, educação, transportes, propriedade privada etc.). Não se esqueça o livre acesso à cultura, as condições de exercício de um direito sendo sempre a discutir nos contextos concretos. É óbvio, por exemplo, quanto ao desejável acesso de todos à propriedade privada dos bens de consumo e da própria moradia. 5) Não menos importante é a procura, como referenciar constante e relativizante, do BEM COMUM da sociedade (nacional e internacional): o que mais falta entre nós. Isto não significa o desconhecimento que a finalidade da organização social, do próprio Estado por exemplo, é a pessoa humana, que nunca deve ser reduzida a simples instrumento de outro fim. 6) Uma justa conceituação, ainda que sempre revista criticamente, do ESTADO. Declarou Pio XII: «Nenhuma instituição social, após a família, impõem tão fortemente, tão essencialmente, quanto o Estado. Tem sua raiz na ordem da criação e constitui um dos elementos do direito natural» (5-8l950). Isto não implica o endeusamento do poder estatal que redunda constantemente numa burocratização alienante, ainda que «socialista» de nome. Caberiam aqui reflexões relacionando a Nação e o Estado, cuja confusão é o primeiro passo do totalitarismo. A própria concepção, legitima em principio, da soberania nacional, projetada no Estado e constantemente invocada num contexto de crise de região subdesenvolvida (e exclusivamente neste contexto), tem sua evolução especifica, que joga num anacronismo xenófobo ou puramente demagógico muitos de seus usos e abusos contemporâneos. 7) Distinguir e unir o JURÍDICO- POLITICO (ordem temporal) e a ORDEM MORAL, na qual a hierarquia católica não é mais a única expressão significativa e normativa. Em outros termos, a ordem jurídica possui certa autonomia política, mas também vincula-se com imprescindíveis exigências éticas. Isto significa, por exemplo, que os constituintes têm obrigações em relação a seus mandantes, os cidadãos que eles representam, mas também obrigações, as mesmas ou outras, em referência a uma ordem justa.


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