LEVANTA-TE, TOMA O TEU LEITO E ANDA... Leocir Pessini
A Palavra de Deus, que é palavra de vida, sempre nos abre perspectivas novas perante os desafios e problemas que se antepõem à nossa ação no campo da saúde. Leiamos o texto de Marcos (2, 3-12). Nos comentários, sirvo-me, em sua substância, de considerações feitas por Arnaldo Pangrazzi.
"Trouxeram-lhe, então, um paralítico, transportado por quatro homens. E não como pudessem aproximar-se por causa da multidão, abaixaram o teto à altura do lugar onde ele se encontrava, e tendo feito o buraco, baixaram o leito em que jazia o paralítico. Jesus, vendo a sua fé, disse ao paralítico: «Filho, os teus pecados estão perdoados». Ora, alguns dos escribas que lá estavam sentados refletiam em seus corações: «Por que está falando assim? Ele blasfema! Quem pode perdoar pecados a não ser o Deus único?» Jesus imediatamente percebeu o que pensavam em seu intimo e disse: «Por que pensais assim em vossos corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: Os teus pecados estão perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Pois bem, para que saibais que o filho do Homem tem poder de perdoar pecados na terra, eu te ordeno disse ele ao paralítico - levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casam. O paralítico levantou-se e, imediatamente, carregando o leito, saiu diante de todos, de sorte que ficaram admirados e glorificavam a Deus, dizendo: «Nunca vimos coisa igual.” Este texto bíblico é profundamente rico, mas nem sempre nos damos conta de toca sua riqueza ao lê-lo. Nossa tendência, à primeira vista, é de tão-somente focalizar o encontro entre Jesus e o paralítico, e esquecermos os quatro homens que possibilitaram o encontro. Os quatro voluntários anônimos representam todos os que trabalham na Pastoral da Saúde, na sua dimensão mais excelsa, quando a ação se torna mediação entre as pessoas e o Deus da Vida. Numa breve análise do fato, podemos resgatar alguns elementos fundamentais da ação pastoral no contexto da saúde. . Podemos falar, antes de tudo, de uma ação pastoral encarnada. Fazer Pastoral da Saúde é ir ao encontro das pessoas onde elas estão e encontrá-las no nível de suas necessidades. As necessidades de cada doente são diferentes, de acordo com suas realidades, também diversas. Os quatro homens do Evangelho exerceram um ministério encarnado ao responder á situação concreta. Poderia ter sido um desejo do paralítico ou curiosidade de encontrar pessoalmente Jesus, ou, talvez, até mesmo sugestão dos voluntários em fazer essa jornada. Qualquer que seja a razão, o doente confiou neles, e eles se tornaram instrumento de uma peregrinação que mudou radicalmente sua vida. Eles se transformaram de simples voluntários em instrumentos de salvação. . Tem-se, também um exemplo e modelo de pastoral participativa, comunitária. Nenhum dos voluntários poderia, sozinho, ter carregado o paralítico. Havia necessidade de outras mãos e força para uma ação coordenada. Cada um tinha de assumir uma parte da tarefa, adotar o mesmo ritmo ao longo da caminhada, e também de parar juntos. Esta organização tão simples e espírito colaborativo garantiram o sucesso da jornada e contribuíram para a felicidade, a saúde daquela pessoa, que recebera tão pouco da vida. Seu gesto de solidariedade confirma que, na base de toda experiência comunitária, deve existir a
disponibilidade de doar-se a si mesmo, como tão eloqüentemente nos fala São Francisco: «que eu não procure tanto ser consolado, mas consolar; ser compreendido, mas compreender; ser amado, mas dar amor». Os voluntários são, ainda, amostra de uma pastoral criativa. Quando pretendiam atingir seu objetivo (levar o doente a Jesus), perceberam a presença da multidão como obstáculo. Isso desencorajaria qualquer pessoa. Poderiam ter dito ao paralítico: «Fizemos o que podíamos fazer, como você vê, mas não dá para ir adiante» ou «desculpe-nos, temos que voltar, pois nunca poderemos ultrapassar essa multidão». No entanto, ao invés disso, fizeram do problema um incentivo para sua criatividade. Pensaram numa nova idéia para superar o obstáculo, um projeto tão incomum que deverá ter pego de surpresa até o próprio paralítico: introduzi-lo na casa pelo teto. Hoje, uma ação semelhante talvez os tivesse levado ao banco dos réus, por “periclitação de vida». A justiça de ontem lhes deu, porém, melhor tratamento. E sua coragem e imaginação tornaram possível o encontro histórico entre Jesus e o paralítico. E Jesus reconheceu seu trabalho pastoral, como diz o Evangelho: «Vendo sua fé...» A iniciativa extraordinária desses quatro homens é uma inspiração e um desafio a todos para agirmos com imaginação e criatividade ao enfrentarmos problemas velhos e questões que o mundo atual propõe à Pastoral da Saúde. Pastoral da Saúde é a arte de estar com as pessoas nas suas lutas, ajudando-as a desabrocharem e ser. Em seguida, retirar-se, de maneira a que elas possam crescer e viver com saúde. Assumir a própria história - «Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa» - disse Jesus. No entanto, poderia ter dito simplesmente para o paralítico andar e jogar fora o leito. Não o fez: ao contrário, convida-o a levar aquela maca com ele, a abraçá-la. E constante a tentação que temos de simplesmente desconsiderar ou negar aquela parte sofrida, doida de nossas vidas, enfim nossas limitações. A maca fazia parte da história do sofrimento, da doença daquela pessoa, era algo sagrado, um sacramento. A missão desafiadora da ação pastoral é justamente de oferecer as limitações humanas como fonte de fortaleza e crescimento para o outro, e ajuda-lo a integrá-la na sua vida, a assumir as passagens duras de deserto, de dor e tentação numa perspectiva libertadora. Em suma, ajudar a pessoa a assumir a sua própria história. Temos aqui, em síntese, quatro características que, juntas, nos dão o sentido libertador da Pastoral: uma pastoral encarnada, participativa, criativa, que leva a pessoa a assumir a própria história de suas perdas na perspectiva pascal.
ROTEIRO DE REFLEXÃO PARA AS EQUIPES DE PASTORAL DA SAÚDE Júlio Munaro O ano de l987 é um ano especial para a Igreja universal, pois o mundo católico vem refletindo sobre o papel do leigo na vida da Igreja. Esta reflexão culminará com o Sínodo dos Bispos, em Roma, e presidido pelo próprio Papa, de 1º a 30 de outubro. Terá por tema: «Vocação e missão dos leigos na Igreja».
O papel dos leigos na Igreja variou muito ao longo do tempo. Nos três primeiros séculos, quando a hierarquia da Igreja não estava suficientemente organizada e não havia um governo eclesial bem definido, o papel dos leigos foi de excepcional importância em todos os campos, sobretudo na evangelização. A partir do ano 313 da era cristã, com o chamado Edito de Milão, pelo qual foi reconhecida a cidadania romana ao Cristianismo, a Igreja foi associada ao Império Romano. Em força disso, sua organização se intensificou. A autoridade e o papel dos bispos e do clero em geral aumentou muito. Quem perdeu com isso foram os leigos. Posteriormente, com o desenvolvimento da vida religiosa ativa, sobretudo a partir de, São Domingos e São Francisco, no século XIII, e seus desdobramentos posteriores, criou-se a mentalidade de que, para exercer qualquer atividade pastoral na Igreja, era preciso ser padre ou religioso. A Igreja, no entender de muitos, tinha-se clericalizado. O papel dos leigos torna-se passivo, sem iniciativa, inteiramente subordinado ao clero, que tratava os leigos como se fossem menores de idade e nutria a seu respeito incorrigível desconfiança. A partir da 1º: guerra mundial, sobretudo durante o pontificado de Pio XI, a Igreja redescobriu os leigos, sua vocação e seu papel. Os leigos mereceram especial atenção tanto da hierarquia quanto dos teólogos. O Concilio Vaticano 11 acabou por dedicar-lhe um capitulo inteiro de um de seus principais documentos, a Constituição «Lumen Gentium», capitulo 11, e um documento específico, a “Apostolicam Actuositatem”. Mas, apesar de tudo isso, o Concilio não esgotou o assunto, nem em seus aspectos teóricos, nem em seu desenvolvimento prático. Os livros publicados sobre o assunto foram muitos nos últimos anos. Os congressos e debates se multiplicaram. Graças a isso, os leigos vêm ocupando um lugar cada vez mais amplo e significativo na vida da Igreja. Podemos dizer que já participam de quase tudo. Ousaríamos afirmar que nunca, nos últimos 1500 anos da história da Igreja, os leigos ocuparam um espaço tão amplo e tiveram um papel tão importante quanto hoje. No entanto, ainda reina insatisfação e mesmo alguma confusão. É por isso que a reflexão continua e em nível de Igreja universal. Não são apenas os bispos e os teólogos que se acham envolvidos. Os leigos também participam e de forma muito ativa. Sua experiência e sua opinião não ficam esquecidas. O mundo da saúde, com seu desenvolvimento cada vez mais rápido e com sua função cada vez mais importante na sociedade moderna, é dominado pelos leigos e se tornou quase inteiramente laicizado, isto é, os valores espirituais ocupam um espaço cada vez menor neste âmbito. A ciência e a técnica, a política e o poder econômico o dominam de ponta a ponta. Estaria isso em sintonia com as necessidades e os anseios mais profundos do ser humano, sobretudo na hora do sofrimento e da morte? Não resta dúvida que a ciência e a técnica, a política e o poder econômico têm lugar próprio e insubstituível nas questões de saúde. Seriam, contudo, incompatíveis com os valores espirituais? Não deveriam leva-los em conta, tanto na organização das estruturas de saúde, quanto na formação dos profissionais e na sua atuação prática de atendimento dos doentes? Os agentes de Pastoral da Saúde não podem manter-se alheios a esta questão. Muito menos devem atribui-la à exclusiva responsabilidade dos bispos, padres e religiosos. Trata-se de responsabilidade eclesial, isto é, de todos os membros da Igreja, cuja parte maior é formada de leigos. Qual, pois, o papel dos leigos cristãos no mundo da saúde? O ano do Sínodo sobre os leigos não pode passar desapercebido a ninguém. É preciso que os agentes de Pastoral da Saúde o acompanhem atentamente, reflitam sobre as orientações novas que serão traçadas e se engajem de forma cada vez mais consciente e ativa na evangelização plena do mundo da saúde. Estamos atentos a esta caminhada dos leigos na vida da Igreja?
A MEDIÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: RUIM. Prosseguindo na publicação do trabalho de Christian de Paul de Barchlfontaine, Boletim ICAPS publica agora a sua sexta parte, intitulada «A produção social da saúde. Os trechos anteriores saíram nas edições deste ano, iniciando-se em janeiro-fevereiro. 1. Vivemos num universo em que a doença é ideologicamente tratada como ponto de partida para a obtenção da saúde, não como conseqüência da deterioração da saúde. E vista como causa, não como efeito, a partir de uma estrutura social. Será que o risco de adoecer e de morrer é igual para todos? Existe no jargão popular a distinção entre doenças dos pobres (fome, verminose etc.) e doenças dos ricos (doenças cardiovasculares, câncer etc.). Mas as estatísticas recentes mostram que os pobres são duas vezes desgraçados, porque também morrem de doenças dos ricos. De quem é o compromisso com a melhoria da saúde do povo? O amparo social é um direito do cidadão e um dever do Estado. A proteção social é feita pelo INAMPS, que é uma organização fundamentalmente sustentada pelos trabalhadores, direta e indiretamente, com base no salário da maioria da população: o trabalhador paga 8,5%, descontados na folha de pagamento, e a empresa paga 8,5%, repassados nos preços do consumidor. O modelo assistencial brasileiro não atende às necessidades do povo, porque não elimina as doenças. Existe, sim, o comércio da doença: o INAMPS vende assistência médica a serviços empresariais de saúde. Assim, a doença tornou-se um negócio altamente rendoso. Outro negócio rendoso é a indústria de medicamentos: segundo a OMS, 207 medicamentos bastam para tratar 90% das doenças do povo brasileiro. No entanto, hoje, existem mais ou menos 50.000 especialidades diferentes! Conclusão: justiça social e democracia - participação da comunidade no planejamento, execução e fiscalização dos serviços. 2. Políticas sociais As políticas sociais são aquelas medidas governamentais destinadas a garantir a reprodução da força de trabalho. A reprodução da força de trabalho é um conceito que engloba a sobrevivência do trabalhador e de sua família. 3. Modelo de organização de saúde . ênfase à medicina curativa, individualizada, em detrimento da saúde preventiva; . privilegiamento das empresas privadas de produção de serviços de saúde, através da compra, pela Previdência Social, desses serviços; . tendência á universalização do atendimento médico em caráter emergêncial, realizando-se porém do modo desigual. 4. O capital como fator patógeno (produz a doença)
A «selvajaria» do nosso capitalismo reside no grau de exploração da força de trabalho. Os baixíssimos salários pagos aos trabalhadores exigem, para garantia da sobrevivência, o prolongamento da jornada e a aceitação de condições de trabalho perigosas e insalubres, bem como a entrada muito precoce das crianças em atividades produtivas. O resultado da superexploração da força de trabalho conduziu ao quadro de salário extremamente critico: «Trata-se da mais perversa combinação de doenças da minoria (desnutrição, infecções) com as chamadas doenças do desenvolvimento (acidentes de trabalho, de trânsito, doenças ocupacionais, violência, intoxicações), afligindo principalmente as camadas oprimidas da sociedade» (Berlinguer, Giovani - «Medicina e Política» - São Paulo, CEDES/HUCITEC, 1983, 2º edição). A ENGENHARIA GENÉTICA VISTA PELA IGREJA Com o mesmo titulo acima, a revista, Família Cristã, (Edições Paulinas) de abril último publicou este artigo de autoria do Pe. Júlio Munaro, camiliano integrante da Equipe ICAPS. Por sua oportunidade, o Boletim ICAPS, com a devida autorização da revista, o publica aqui. Com data de 22 de fevereiro do corrente ano, o Vaticano divulgou, através da Congregação para a Doutrina da Fé, a Instrução sobre o respeito á vida nascente e á dignidade da procriação, que teve imediata repercussão internacional, sobretudo nos meios científicos ligados á biologia e á genética, por serem os mais diretamente implicados no assunto abordado pela Santa Sé. O documento reconhece que a biologia e a genética conseguiram, nas últimas décadas, tamanhos progressos que já se encontram em condição não só de manipular a vida das plantas e dos animais, mas também do próprio homem, através da chamada engenharia genética. O valor das descobertas da biologia e da genética são inquestionáveis. Somadas a outras conquistas da ciência e da técnica, colocam a humanidade no limiar de uma nova era, extremamente promissora. As doenças hereditárias, por exemplo, que até hoje ficaram sem solução, poderão ser superadas de vez. Tudo isso, não significa, porém, que essas ciências não coloquem o homem diante de certos riscos que ás vezes são graves. O problema interessa a todos e não apenas á Santa Sé. O poder que as ciências encerram inquieta governos e até mesmos os cientistas, e faz com que se questionem acerca dos efeitos que podem provocar. Ficou famoso o caso do cientista francês Jacques Testard que, no ano passado, desistiu de suas pesquisas e experiências em seres humanos. Ele próprio explicou, numa entrevista, o porquê de seus questionamentos e de sua decisão. Em resumo, disse: «A idéia fundamental da fecundação in vitro (bebê de proveta) era dar um filho a um casal que não podia ter filhos». Mas a ciência e a técnica não pararam ali. Dentro de alguns anos oferecerão aos casais a possibilidade escolher o tipo de filhos que querem, como hoje se escolhe o tipo de cachorra que se compra. «Seguir adiante - diz ainda - significa satisfazer, a médio prazo, o sonho dos biólogos de fazer homens sob medida, na mais perfeita lógica hitleriana». E continua: «Podemos imaginar a fecundação do óvulo pelo óvulo (sem a presença do espermatozóide), a autofecundação feminina (que permitirá á mulher ter um filho que será sua cópia genética), a gestação humana no ventre de um animal e até, por que não?,.. a gestação masculina,>. A par disso, desponta a possibilidade de produzir homens em série, um igualzinho ao outro, e gestados num útero artificial. E pode-se escolher o tipo de homem que se quer produzir. A humanidade está ás vésperas de uma realidade que ultrapassa os sonhos!
A ÉTICA Surge, inevitável, a pergunta: será que tudo quanto é possível convém e é eticamente licito? Governos de vários países ocidentais constituíram comitês de ética com a finalidade especifica de estudar o assunto. Seus relatórios multiplicaram-se nos últimos anos e muitas deles com propostas restritivas. Sirva de exemplo a decisão tomada, em setembro do ano passado pela Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa, a qual representa 21 nações: “o embrião e o feto humano devem gozar, em qualquer circunstância, do respeito devido á sua dignidade». Proíbe, além disso, a conservação do embrião humano in vitro depois do 14º dia de sua fecundação, quando se inicia a divisão das primeiras células. Proíbe, também, a criação de seres humanos idênticos, a implantação de embriões humanos em seres de outra espécie e vice-versa, a fusão de gametas humanos com os de outro animal, a criação de gêmeos idênticos, a pesquisa em embriões humanos vivos, a ectogênese (ou a produção de seres humanos fora do útero), a determinação genética do sexo e, finalmente, a criação de embriões humanos com a finalidade de servirem de material de pesquisa. Neste contexto, é fácil compreender que a Santa Sé, sempre atenta aos problemas do homem, se tenha sentido na obrigação de vir a público para reafirmar sua posição doutrinal. O documento, de fato, não acrescenta nada de novo. Aplica a doutrina tradicional ás novas realidades. Suas posições restritivas, até mesmo para a fecundação in vitro com a finalidade de proporcionar filhos a casais estéreis, não tiveram boa acolhida. As discordâncias foram muitas e graves. Algumas, até, com excessos verbais. A meta que o documento aponta é alta, quase uma utopia. Não será fácil atingi-la. Os cientistas, em sua maioria, continuarão sua caminhada teórica e prática. O MÉRITO DO DOCUMENTO Em primeiro lugar, a instrução tem o grande mérito de reafirmar a dignidade do homem e o respeito incondicional atribuído á sua vida, desde o instante da concepção até a morte. O principio não vale apenas para as manipulações genéticas, o congelamento de embriões humanos, sua transformação em material de pesquisa ou a destruição pura e simples dos embriões ditos excedentes. Os milhões de seres humanos que perambulam sobre a face da terra e vivem em condições infra-humanas nos países do Terceiro Mundo, bem como os doentes incuráveis e os idosos das regiões desenvolvidas, cada vez mais ameaçados de eutanásia, são iluminados, indiretamente, pela luz que o documento reflete. O ser humano, sua vida e sua dignidade estão longe de ocupar o devido lugar. Relembrar isso com ênfase e insistência nunca é demais. O aborto corre solto e legalizado; a eutanásia prospera, e seus defensores e propugnadores Tornam-se cada vez mais agueridos; a mortalidade infantil não dá grandes sinais de diminuir; as mortes violentas em guerras e guerrilhas, em acidentes de trânsito, assaltos e outras formas de violência já não se contam. O homem, sua vida e sua dignidade constituem o cerne da instrução. Bastaria isso para dignificar quem a elaborou e assinou. O segundo grande mérito da instrução é a defesa da dignidade do casamento e de sua finalidade procriadora. «Deus, que é amor e vida, inscreveu no homem e na mulher a vocação a uma participação especial no seu mistério de comunhão pessoal e na sua obra de Criador e Pai. Por isso, o matrimônio possui bens e valores específicos de união e de procriação que não se podem comparar com os que existem nas formas inferiores de vida». Posto isto, carateriza-se a originalidade do ser humano na transmissão da vida. «Com respeito á transmissão das outras formas de vida no universo, a transmissão da vida humana tem
sua originalidade, que deriva da originalidade própria da pessoa humana», sujeita a «leis imutáveis e invioláveis que devem ser reconhecidas e observadas,>. O resto do documento é aplicação pura e simples destas idéias, com seqüência lógica impecável. Á medida que a aplicação avança, as podas, sempre com a finalidade de salvaguardar a vida e a dignidade do homem, se agravam, o que, sem dúvida, cria mal-estar nas pessoas engajadas em pesquisas avançadas de biologia e genética, feitas em embriões humanos. E uma barreira ética levantada contra eles. A decepção, contudo, não se limita a eles. Atinge, de forma inexorável, também os casais estéreis, esperançosos de encontrar no bebê de proveta uma solução para sua infecundidade. Não importa que a fecundação seja homóloga, isto é, com óvulo e espermatozóide do próprio casal. As mães que alugam seu útero também são descartadas. As duas práticas - o bebê de proveta e a mãe de aluguel -, amplamente difundidas e aplaudidas, tinham tocado as cordas mais intimas do sentimento popular e de forma positiva. O corte drástico da Santa Sé deixou todo o mundo atônito: povo, imprensa, moralistas, cientistas e até mesmos bispos. Universidades católicas e também hospitais religiosos tinham entrado na era do bebê de proveta. Uma medida tardia? Uma medida provisória? Esta última hipótese é defendida por muitos. Os indícios, contudo, apontam para a irreversibilidade da Santa Sé. Não é dogma, é verdade, mas as justificativas antropológicas apresentadas parecem definitivas. Claro que nem iodos ficarão passivos. Os debates serão acalorados. Como nem todo mundo é católico e nem iodos os católicos são dóceis á palavra da Congregação para a Doutrina da Fé, os bebês de proveta continuarão e as clínicas especializadas não ficarão sem freguesia. O diagnóstico pré-natal também é colocado em questão, a menos que respeite a vida e a integridade do embrião e o do feto humano e se oriente para sua salvaguarda ou para sua cura individual. Não há qualquer reparo a fazer quanto a estas posições. Mas os países que já legalizaram o aborto, e são muitos no mundo, inclusive no ocidente cristão, certamente darão de ombros. Lamentável, sem dúvida, mas real. Um médico inglês, católico praticante, afirmou que, “se a Igreja continuar fazendo declarações que contradigam a realidade em matéria sexual, acabará perdendo o crédito de que goza em outros campos, bem mais centrais para nossa fé e bem preciosos para todos nós”. E acrescentou que outros colegas comungam sua idéia. O dito médico não fazia referência á presente instrução. Quantos porém, não aplicam hoje a mesma opinião a este último documento? Convém lembrar que a Igreja aposta no futuro e estriba-se em realidades mais profundas que os acontecimentos que empolgam momentaneamente. IGREJA E CIÊNCIA A impressão que o documento deixou em muitas pessoas é de que a Igreja teme o progresso e se opõe á ciência. A realidade, contudo, não corre bem nesta linha. A própria instrução reconhece que, «graças ao progresso das ciências biológicas e médicas, o homem pode dispor de recursos sempre mais eficazes». Aceita, tanto em biologia, genética e medicina, quanto em qualquer outro campo, todos os progressos procurados por vias legitimas e postos a serviço do homem e de todos os homens. Para desfazer qualquer dúvida a respeito, compulsar os documentos mais recentes da Igreja, inclusive do Concilio Vaticano II. Fatos isolados e de outras épocas devem ser analisados no contexto cultural do seu tempo e não apenas à luz dos conhecimentos atuais, a menos que existam – o que não passaria de grave equivoco - instituições totalmente supra-históricas. A Igreja Católica jamais reivindicou tal privilégio. Antes sempre se considerou peregrina na história.
Não há como negar que as pesquisas e progressos científicos levantem questionamentos éticas. A descoberta da energia atômica não ficou alheia a tais questionamentos e, ainda hoje, os ecologistas do mundo inteiro reivindicam medidas de maior segurança, e, quanto a isto, foram amplamente reforçados pelo acidente de Chernobyl, cujos efeitos, e não sem reclamações, se fizeram sentir até no Brasil, através do leite importado da Europa. Jean Ladriére, professor de filosofia das ciências na Universidade de Louvain, lembra que «mais recentemente vimos igual tomada de consciência ética a respeito das possibilidades abertas pelo desenvolvimento da biologia e, em particular, das manipulações genéticas». Os próprios cientistas se impuseram na década de 70, nos Estados Unidos, uma moratória em virtude das experiências em biologia fundamental, mais especificamente no campo das manipulações genéticas. Desse ponto de vista, não são poucas as pessoas que pressentem o perigo e reclamam cautela. O que está em jogo, em primeiro lugar e acima de tudo, não é propriamente o progresso científico, mas o homem, a quem o progresso deve servir e não subordinar. A Igreja - especialista em humanidade, e não em ciência - volta-se para o homem e seus interesses mais profundos e permanentes. O documento em pauta visa justamente a isto, apesar dos questionamentos que possa ou mereça provocar.
A DIMENSÃO PROFÉTICA DO CARISMA CAMILIANO O texto a seguir é uma adaptação feita pelo Pe. Dyonisio L. Costenaro a partir de um trabalho de Carlos Mesters, intitulado «Os profetas e saúde do povo», publicado pelo Centro de Estudos Bíblicos, de Belo Horizonte, em 1986. Foi o último trabalho do Pe. Dyonisio, antes de sua morte, em março deste ano, que fez circular entre os camilianos brasileiros. Embora se dirija aos integrantes da Ordem, o texto pode ser aplicado a todo entusiasta trabalhador no campo da saúde, razão por que o Boletim ICAPS o transcreve. O profeta é alguém que, profundamente engajado na problemática existencial, descobre Deus como ser vivo, e, à luz desta experiência, sabe contemplar os acontecimentos da história, julgá-los e manifestar seu significado em voz alta, assim como as exigências de Deus e as falhas dos homens. Os profetas comprometeram-se com Deus e com a época em que viveram. Atualmente, o profetismo converteu-se num pólo de reflexão para os religiosos da América Latina, ajudando-os a descobrir sua espiritualidade e identidade. Sua palavra interpreta a vontade de Deus aqui e agora. Os dados históricos em que vive submerso constituem um elemento imprescindível para formalizar seu anuncio ou denúncia. Faz critica à ordem estabelecida à medida em que se transforma em «desordem institucionalizada». Sua vida-para-outros dá-se na fidelidade e é encarnada, sem ambigüidade. Põe o dedo na ferida. Isto traz-lhe suspeitas, calúnias, perseguições, conflitos, mas o profeta leva a cruz com esperança. O quadro de saúde brasileiro e latino- americano deve ser profeticamente horrorizado. Os contrastes das classes sociais são abissais. A distribuição da renda é tremendamente injusta. O sistema econômico gera uma infinidade de pobres e «adoecidos». É impossível calar-se! Deus não pode deixar de ouvir os clamores de seu povo! E no âmbito da saúde e de sua política os camilianos não podem furtar-se a serem seus arautos, os porta- vozes dos que não têm voz. E aqui penso que haja uma contribuição largamente atual e recriação de nosso carisma. Não podemos limitarmo-nos
à assistência física e espiritual do «tete a tete» hospitalar, mesmo se precisamos de mais hospitais para atender a todos. Nós devemos também ir às causas geradoras de tantos «adoecidos». Devemos buscar luzes também nas ciências humanas, principalmente na sociologia, para detectarmos os mecanismos de morte deste grande hospital (sem hospitais) em que se transformou a América Latina. O camiliano que quer ser fiel aos sinais dos tempos na AL tem que assumir um compromisso histórico evangélico da opção preferencial pelos pobres e da libertação integral do povo. Isso exige um trabalho que vai além do confronto individual com o Evangelho, mas que se centraliza especialmente na transformação das estruturas derivadas do pecado e multiplicadoras da morte. Isto exige ainda a necessidade da mudança do lugar social. Assim se evitará uma ação pastoral alienada e a histórica, por mais especializada que possa parecer... O camiliano, além do hospital, trabalha no povo, com o povo e para o povo. Cuidando dos efeitos, podemos nos constituir em instâncias legitimadoras da opressão. O camiliano consciente é uma instância critica. Ele soma com o Deus da Aliança que libertou o povo do Egito. E a gente sente e «desconfia» que o «Kairós», o tempo forte de Deus, de intensidade maior do que a habitual, se aproxima também para a América Latina, cujo povo percebeu que o esquema de poder vigente em nossa sociedade não representa uma ordem natural e necessária, e está para tomar-se sujeito da própria história. O camiliano encarna as exigências da aliança e da lei de Deus. Ele tem a experiência da santidade de Javé, mas também a experiência da realidade do povo. Onde aparecem cacos de vidro no chão, a gente pára, olha e diz: «uma coisa foi quebrada»! Alguns se acostumam aos cacos e os ignoram. O profeta, porém, faz o contrário, confronta o povo pobre com os pobres que sobraram do desastre da quebra e exige mudanças em nome de Deus. Os «cacos» que no A.T. revelavam a quebra da Aliança eram os pobres e «empobrecidos», os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, Isto diz que algo está errado, o povo está ferido, o povo está doente! Desta experiência nasce no profeta o impulso de gritar, de denunciar, é uma denúncia carregada de fé. Por isso ela é ao mesmo tempo anúncio de Deus e apelo à conversão, à mudança da sociedade, à observância da «Lei e da Aliança». Esta dimensão de leitura critica contemplativa da realidade, como uma dimensão profética de nosso carisma, é que este artigo quer destacar. Esta visão lança o «capelão social» que amplia a atuação do capelão hospitalar que, por vezes, ingenuamente, contesta a injustiça social... O camiliano em sua pastoral profética segue três caminhos: 1. Caminho da justiça Justiça existe quando tudo está no lugar onde Deus quer; quando tudo é como deve ser. Os profetas lutam para que tudo e todos ocupem novamente o seu lugar conforme o projeto da Aliança. Não são pregadores teóricos, mas denunciam claramente as injustiças e apontam as causas. Não têm medo de dizer o que está errado na organização do Pai, tanto por parte das pessoas responsáveis como por parte das instituições. Põem o dedo na ferida! Jesus, cuja vida era rodeada de doentes esquecidos e marginalizados, presença maciça e constante destes «cacos da humanidade», vergastou as falsas lideranças que faziam sofrer e adoecer o povo: fariseus, saduceus, anciãos, sacerdotes, essênios, herodianos, zelotes, escribas, pois, não obstante toda essa gente que se servia do povo, ele andava cansado e abatido como ovelha sem pastor. A ligação individualista e moralista, que culpa sempre a própria pessoa pela doença que carrega, satisfaz á classe dominante e é usada para marginalizar os pequenos e os sofredores. Há uma ligação de causa e efeito entre o sistema e a falta de saúde.
Este é um trabalho que amplia o nosso carisma, faz-nos profetas de mundo novo, onde haja sim doentes por causa da limitação da nossa contingência humana, mas não haja «adoecidos» por causa da injustiça. O engajamento nesta dimensão social motiva e encanta os jovens, revolucionários e idealistas por natureza. 2. Caminho da solidariedade Nem toda a pobreza é fruto da injustiça, mas todos os pobres merecem ser acolhidos e promovidos. A comunidade camiliana e do povo de Deus deve ser uma amostra daquilo que Deus quer para toda a humanidade. Na comunidade do povo de Deus não pode haver pobre (Deus. 15,4). Embora «pobres sempre existirão» (Mt 26,11), à medida que entrarem em contato com a comunidade camiliana, sem diminuir em nada a luta pela justiça, ela tentará acolhe-los e promovelos. Os pobres e doentes iam atrás de Jesus o dia inteiro (Lc 7,13). Ele fez-se solidário com eles até a morte, soltando um «grande grito que Deus ouviu, ressuscitando. E a solidariedade motiva os jovens que sonham com a igualdade. 3. Caminho da mística A injustiça básica é a consciência roubada do pobre. Neles foi colocada uma consciência de inferioridade. O sistema injusto, procurando neutralizar o grito do pobre, fez do pobre um ser inferior, um preguiçoso e até um pecador que não merece vida melhor do que a que tem. Sendo assim, o rico pode continuar tranqüilo na posse de sua riqueza, sem ser incomodado pelo grito do pobre, pois o pobre é, ele mesmo, culpado de sua própria pobreza. Enquanto perdurar no pobre esta falsa consciência de inferioridade e de pecado, qualquer trabalho de mudança, tanto na linha da justiça como da solidariedade, não passará de uma ilusão. Será como enxerto em galho seco, reboco em parede rachada, operação plástica em cadáver! E então como fazer para tirar esta injustiça básica? Quem é capaz de devolver ao pobre esta consciência roubada? Os ricos podem devolver o dinheiro. Não podem devolver a consciência roubada! Aqui entra a certeza básica de fé do povo da Bíblia, a saber, Deus ouve o grito do pobre e lhe diz: «Eu estou com vocês». E dai, desta certeza que nasce nele a nova consciência de gente e de filho de Deus, consciência da própria dignidade. E como se fosse uma nova criação. O caminho da mística ensina ainda identificar o pobre e o doente com Cristo, e o camiliano com o Bom Samaritano. E este trabalho encanta e motiva os santos, místicos por essência! O camiliano da América Latina, para ser fiel a seu carisma deve ir além da assistência direta ao doente, quer física, quer espiritual. Ele deve inserir-se, deslocar-se para as periferias, trabalhar nas favelas, adentrar-se pelo interior do País buscando as regiões mais carentes, organizar a saúde preventiva, formar profissionais com visão cristã, atuar na política da saúde. Á medida que o camiliano responder adequadamente a esta realidade toda, atualizará e ampliará seu carisma e dará um testemunho profético a nossa gente, sintonizando com o discurso da Igreja da América Latina...
CAPITALISMO E SOCIALISMO Hubert Lepargneur
Em suas “Investigações sobre a natureza e a causa das riquezas das nações”, o escocês Adam Smith já apontava, no século XVII, as virtudes econômicas do espírito empreendedor, da criatividade e da livre concorrência, benéficas para a nação toda, num contexto das trocas pelo mercado e de liberdade democrática. A experiência da fraqueza humana exige hoje, mais do que nunca, que o Estado esteja vigilante para evitar os abusos pelos quais os fortes esmagam os fracos e os exploram. O bem real da sociedade não é necessariamente atrelado ao sonho mais maravilhoso, se este não passa de isca para desarmar os ingênuos. Uma vez, um presidente da República de país soberano proferiu que “a função da política é a de converter os sonhos e as aspirações em realidade”. Infelizmente, ele não invocou na teoria nem usou na prática critérios para distinguir objetivamente entre sonhos de alienação que, pelo irracionalismo e irrealismo de seus ingredientes, costumem acentuar a desgraça dos povos, ainda que possam reforçar os privilégios dos poderosos e de seus amigos, e planejamentos cabíveis de melhoria da situação vigente. Este político ignorava o dito de Churchill: “Gente que não está preparada para fazer coisas impopulares e desafiar o clamor do povo não está capacitada para ser ministro em tempo de stress”. É historicamente inegável que Churchill não disse isto para dar cobertura a medidas contrárias ao bem comum e dos pobres. De qualquer maneira, um jornal da época do presidente aludido comentou o seguinte: “Mergulhamos no abismo porque, desde o dia em que tomou posse, este governo não fez outra coisa senão tentar converter os seus sonhos em realidade,s em se preocupar em indagar se a realidade econômica... realmente permite transformar sonhos em realidade... Não temos nenhuma dúvida de que cada um dos brasileiros sonha comprar amanhã um carro último tipo, um iate, uma casa na praia, uma casa de campo, ou mesmo uma simples casa para morar. Acontece que a maioria deles não tem dinheiro para fazer tudo isso. Se tentasse, iria à falência, ou até para a cadeia. Assim, embora seja justo e desejável que todo mundo possa ter tudo isso, esses brasileiros são obrigados a adiar os seus sonhos por causa dos limites que lhes impõe a realidade, e não têm outro remédio senão adiá-los. O governo do presidente Fulano, não. Ele não põe limites para os seus sonhos, e sai por aí comprando tudo, distribuindo rendas inexistentes e gastando aquilo que não tem... O resultado é esta inflação galopante, o caos na economia produtiva e sua subseqüente paralisação por esgotamento... Enquanto o governo continua encarando a política e, principalmente , a política econômica, como um mero instrumento para a realização dos seus sonhos, por mais loucos que sejam; enquanto forem os sonhos do governo que continuarem sendo visto como lei e limite para economia; e enquanto a realidade econômica e suas leis inexoráveis não passarem a ser vistas como o limite para a realização dos sonhos do governo, não conseguiremos sair do abismo...”Mesmo se tal governo não pode deixar de invocar o bem do povo para ingressar nas aventuras duma heterodoxia descontrolada, sabemos que o bem real dos pobres exige outro rumo. A grande vantagem de um regime socialista abertamente marxista é que tem respaldo para impor à nação os sacrifícios que lhe parece necessários, conquanto as democratas imaturas não têm. Resta-lhes a leve tarefa de achar os bodes expiatórios que vão assumir as inevitáveis conseqüências de seu leviano popularismo. Qualquer que seja o regime, cabe ao Estado velar para que cada cidadão tenha o sustento mínimo para uma vida decente . O que hoje chamamos de Previdência Social supera a oposição capitalismo-socialismo, ao se tratar de providenciar a cada um os cuidados mínimos de saúde, mais de um país foi tentado a fazer um passo a mais na perspectiva do Estado-Providência: os balanços objetivos que podemos ler agora não são positivos. Mais do que nunca, deixando de lado ideologias e caricaturas, o problema real é a determinação das funções do Estado para o bem comum. Este bem global é que justifica sua existência e sua ação e nunca se celebrará demais o acerto do princípio, lembrado pelas encíclicas, da subsidiariedade: o Estado deve fazer apenas o que as
células sociais descentralizadas não têm capacidade de realizar, além de vigiar sobre os mecanismos sociais de maneira a impedir que o forte esmague o fraco. Dentro do realismo há pouco apontado, cabe a cada nação definir os direitos sócio-econômicos que o país está em condições de assegurar a cada um: estamos no reino do relativo, mas também do real, no qual a paralisação da produção não é o bom caminho para melhorar a distribuição. No fim do século XIX, Karl Marx prestou alguns serviços ao apontar vícios da sociedade industrial; o socialismo que ele elaborou, porém, não se revelou nem segura ciência nem correto profetismo (miséria crescente da classe operária, levando à ditadura do proletariado internacional), nem sua implementação leninista na Rússia deu os resultados econômicos, políticos ou sociais, que seus sinceros partidários esperavam. O maior centro de imperialismo do mundo é hoje o país que mais gasta em armas, mais vende armas, mais incentiva conflitos locais, enquanto sua propaganda fala em paz para desarmar os ingênuos. É porque a questão social tem muita conseqüência para s outros que os erros de quem não consegue ultrapassar os precários limites de sua ideologia ou a sensibilidade do momento revestemse de considerável gravidade, Investigar objetivamente e sem demagogia é aqui um dever e um dever difícil, talvez o primeiro dever social. Há alguns anos, um artigo de revista católica do País apresentou a seqüência capitalismo-socialismo como um benéfico e inelutável progresso histórico, o regime mais perfeito sucedendo ao outro. O balanço que cabe fazer em 1987 é outro, tanto quanto à inelutabilidade dessa passagem quanto ao benefício que traria ou está trazendo para os povos envolvidos. Vejamos algumas situações particularmente significativas: a revolução de maio de 1972 instalou em Madagascar o regime socialista cujos princípios (estatização e economia, recusa de integrar o conceito de rentabilidade, descuido pela agricultura, alergia às democracias ocidentais) revelam-se hoje catastróficos pelos resultados políticos, econômicos e sociais, Teve que importar 62 mil toneladas de trigo, em 1986, e 110 mil toneladas de arroz, quando o país teria condições de auto-suficiência alimentar; sobretudo no Sul, a fome se espalham com a desorganização da produção e a insegurança, apesar do autoritarismo do presidente Ratsiraka, que tomou o poder em 1975 a serviço dos ideais socialistas; Não mais brilhante parece o balanço do socialismo grego do primeiro ministro Andréas Papandréou. Seu partido (PASOK) perdeu, nas eleições de outubro de 1986, as três principais cidades do país (Atenas, O Pireu, Salônica); Em Cuba, não sabe quem não quer saber o que significa a dependência de Fidel Castro à ideologia e aos subsídios do Cremlin; o presidente vitalício mantém a mais alta percentagem de presos políticos por habitante, apesar da emigração; A experiência socialista francesa de François Mitterrand teve que fazer marcha a ré para evitar a catástrofe; Nem o reticente socialismo húngaro evita a crise política e econômica: o setor estatal da economia tem em 1986 um crescimento zero, o povo sobrevive pela economia paralela; O lugar falta, e a necessidade, para ilustrar as recentes guinadas do socialismo hindú de R. Gandhi, do marxismo de Mikhail Gorbachev na URSS, e do marxismo chinês reorientado do Deng Xiaping, e lhes apontar o significado. Em contra-prova vai muito bem o capitalismo do Japão, da Coréia do Sul, de Taiwan, de HongKong. Os tempos modernos nunca viram democracia e prosperidade fora do regime capitalista sob controle da própria população.