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ROTEIRO DE REFLEXÃO PARA AS EQUIPES DE PASTORAL DA SAÚDE José Cristo Rey Garcia Parede O sacramento da Unção dos Enfermos é um dos mais desprestigiados na vida da Igreja: ousaria quase dizer que se converteu num rito macabro, na «porta ritual da morte». Por outro lado, o desejo de garantir a todo custo a salvação eterna de um doente que antes não pôde confessar-se ou que, pelo menos aparentemente, não levou uma vida cristã digna – faz com que este sacramento apareça como um rito mágico. Nesta situação decisiva da vida, não se realiza freqüentemente um encontro pessoal do doente com Cristo: o enfermo, que ás vezes se acha em estado de inconsciência e em alguns casos sequer manifestou anteriormente o desejo de receber este sacramento, é incapaz de suscitar o relacionamento interpessoal com Cristo, que define toda sacramentalidade. Os padres muito têm falado aos fiéis sobre a morte; mas tem faltado uma catequese adequada sobre o sentido cristão da doença e da morte, que são consagradas por um sacramento. A Unção dos Enfermos aparece lamentavelmente como o rito do «irremediável», da resignação dolorosa, do oculto temor, esquecendo-se que é uma autêntica celebração gozosa de nossa esperança. Cristo e os doentes Cristo preocupou-se de modo especial com os doentes. Curava-os. E suas curas afetavam o lado biológico, o lado psíquico e também o espiritual. A libertação da doença e da morte simbolizava e realizava a libertação do pecado e fazia misteriosamente presente o Reino de Deus. Com a entrada do pecado no mundo, por intermédio dele entrou a morte com toda a sua complexidade: morrer como anulamento de todo pensar, de todo amar e sentir, como afastamento de Deus, fonte da vida, como retorno ao nada. As palavras que Jesus dirigia aos possessos do demônio significavam, em sua intenção, a libertação de todos os complexos e da angústia vital, que produz no homem o sentimento de um ser lançado-no-nada. O pecado exerce em nós uma repercussão psicológica e afeta também nosso corpo. Sentir-se pecador é viver em solidão e experimentar em nosso corpo um isolamento que o corrói paulatinamente. A libertação deste distanciamento interior e deste isolamento do mundo (de Deus-Vida, em última instância!) pode supor muitas vezes a terapia de cenas manifestações morbosas de nosso próprio corpo. As curas que Jesus realizou tinham este profundo significado; por isso as concluía com estas palavras: «Vai e não peques mais». Jesus enviou os Apóstolos para curar as enfermidades e dar forças aos doentes em sua fraqueza, usando para isso a unção com óleo (Mc 6,13). Não se pode dizer que este mandato do Senhor supusesse explicitamente a instituição do sacramento. Tratava-se, de certo, duma cura carismática que simbolizava a chegada do Reino de Deus, cujo agente principal era Cristo e seus colaboradores, os Apóstolos. Oração e Unção dos Enfermos A doença será sempre uma condição prévia para receber este sacramento. Não se trata, porém, duma doença mortal, mas, sim, duma enfermidade crônica, grave, de idade avançada ou, inclusive, duma enfermidade leve que, dadas as circunstâncias, exija uma ratificação cristã, se está vinculada a uma crise religiosa interior ou a dificuldades internas. Se isto fosse tido mais em conta, o sacramento da Unção dos Enfermos adquiriria um aspecto mais atraente, celebrar-se-ia com mais freqüência e significaria em toda família uma celebração gozosa do encontro do Senhor com um homem fatigado com sua fraqueza. Segundo a cana de Tiago, este sacramento é um sacramento de oração: a Igreja reunida ao redor do enfermo e representada oficialmente pelos presbíteros deve, antes de mais nada, orar sobre ele; trata-se do que o escritor do Novo Testamento chama de «oração da fé, que salvará o doente»; a atitude fundamental para a celebração do sacramento deve ser, por conseguinte, a oração fervorosa, pois ela tem grande poder. Na oração se expressa a fé da Igreja no Pai misericordioso e poderoso. Depois, tem lugar a unção com óleo em nome do Senhor. Este sinal sacramental expressa a resposta de Deus á oração da comunidade, significa a atuação salvadora do Senhor no doente, isto é, a salvação e a ressurreição do doente como dom gracioso do Senhor Jesus (cf. Tgo 5,12-16). Este encontro sacramental não é uma medicina mágica que proporciona ao fiel cristão a imortalidade nesta vida. A cura corporal pode acontecer, não porque a administração deste sacramento comporte milagres que superem os avanços da medicina, mas devido á repercussão que a reconciliação com Deus e a alegria de sentir-se chamado para a felicidade eterna podem ter na psicologia e no corpo de um homem. O doente sente que não está sozinho, mas que é chamado a participar do Reino de Deus, «onde não haverá mais dor, nem choro, onde toda lágrima será enxugada».


Na hora da morte, o autêntico sacramento é a Eucaristia sob a forma de Viático. Na passagem pessoal de cada homem deste mundo para o Pai, o Cristo eucarístico o introduz no seu próprio Paço e lhe entrega seu Corpo para que o homem entre, corpo e espírito, na glória de Deus. . A Unção dos Enfermos tem que ser revitalizada em nossas comunidades cristãs. O Cristo-médico-dos-homens está presente entre nós, em seus presbíteros, não para pressagiar desenlaces fatais, mas para entregar-nos à experiência fascinante do poder do Reino de Deus. Quando sentirmos isto, as seguintes palavras da Apóstolo São Tiago adquirirão valor entre nós: «Está enfermo alguém dentre vós? Chame os presbíteros da Igreja». PASTORAL CLÍNICA Assunto momentoso e que desafia de modo muito particular o agente de Pastoral, a AIDS tem sido objeto das mais variadas considerações. Aqui, o Pe. Leo Pessini oferece uma contribuição para que a presença do agente de Pastoral possa suprir uma das mais graves deficiências no trato com os aidéticos: o desconhecimento de que, acima e além do doente, eles são pessoas que revelam carências profundas nessa condição de vida. Conhecer a luta que se trava no seu intimo e dar resposta adequada ás necessidades espirituais que então se revelam é preocupação do agente de Pastoral. O texto é tradução adaptada de artigo do Pe. Richard Dunphy, SJ, publicado sob o título «Helping persons with AIDS find meaning and hope» na edição de mato de 1987 da revista «Health Progress», nos EUA. É possível ajudar o aidético a encontrar sentido e esperança? A tragédia global provocada pela AIDS é vivida sob aspectos intensamente pessoais por um homem, mulher ou criança em particular. A crise pessoal desencadeada ao ser diagnosticada a doença e sua inexorabilidade precipitam necessidades significativas em cada nível da pessoa: no físico. ,no psicológico, no social e no espiritual. E vital para as protissionais da saúde, família, amigos e clero compreender e responder de acordo com suas capacidades a toda gama destas necessidades. Quando as necessidades não são atendidas ou ignoradas, a saúde em geral e o bem-estar do paciente podem ser seriamente comprometidos. O objetivo deste texto é levantar as necessidades espirituais das aidéticos. O nível espiritual é o fundamento dos outros níveis na pessoa, embora distinto do nível físico, social e psicológico. E a dimensão na qual estes níveis encontram sua integração. Quando essas necessidades são reconhecidas e satisfeitas, todos os outros níveis da pessoa são afetados. Embora a literatura neste assunto seja escassa entre nós, estas necessidades estão presentes e são reais, e a presença ou ausência de uma resposta apropriada dos profissionais da saúde, família, amigas e agentes de Pastoral podem afetar significativamente o paciente. Religião e espiritualidade É bom que distingamos entre o que é religião organizada e espiritualidade. Esta distinção nos ajuda porque muitas pessoas, especialmente aquelas dos grupos de alto risco, afetadas pela AIOS, foram em muitos casos feridas ou rejeitadas pela religião organizada. Muitas organizações religiosas, por exemplo, discriminam membros homossexuais. Lideres religiosos em seus sermões condenam a homossexualidade, e muitos fundamentalistas, bem corno algumas seitas, falam da AIDS como um exemplo de vingança divina contra os homossexuais. Desnecessário seria dizer que muitos membros da comunidade gay vêem a religião organizada, bem como seus valores, como irrelevantes e agressivas. Muitos aidéticos também têm experiências negativas com a religião organizada. Como resultado, quando estas pessoas sentem necessidades religiosas ou espirituais, podem não reconhecêlas, ou então simplesmente reprimi-las ou rejeitá-las por considerá-las agressivas e irrelevantes. O termo espiritual se refere àqueles aspectos da experiência humana que transcendem a própria experiência imediata e são relacionais. A dimensão espiritual da experiência humana está ligada às questões de significado, esperança, liberdade, identidade, auto-estima, amor, imagem de Deus, perdão e reconciliação. A espiritualidade é, portanto, determinada pelo modo como as pessoas estruturam seu relacionamento com Deus (ou lidam com a ausência de Deus), o mundo, os outros e elas próprias. A religião organizada, por outro lado, pode ser descrita como o relacionamento humano como o sagrado. A religião organizada tentou abarcar a experiência humana subjetiva do sagrado num determinado credo em particular (verdades fundamentais), culto (uma forma de adoração, oração e práticas religiosas) e comunidade (autoridade, lei e participação). Como tal, a religião é uma resposta humana, e está sujeita à corrupção e distorção, especialmente porque, na religião, pode-se tentar justificar a si mesmo e aos próprios preconceitos, ao apropriar-se do poder do sagrado. Santidade e interesse pessoal misturam-se numa religião organizada. No seu aspecto mais autêntico, a religião vai ao encontro do desejo humano de comunhão com Deus; no seu aspecto mais degradante, pode alienar a pessoa daquilo que é mais profundamente humano: a liberdade para amar.


Como a religião organizada é uma criação humana, cada religião, e sua maneira própria de abraçar a resposta humana do sagrado, existe para servir espiritualmente seus membros. «O sábado foi feito para a pessoa e não a pessoa para o sábado» (Mc 2,27), disse Jesus aos lideres da religião judaica. Os elementos que constituem uma determinada religião organizada existem para alimentar o autêntico crescimento espiritual de seus membros. Jesus disse para os escribas e fariseus que qualquer que seja a legislação religiosa, práticas que verdadeiramente promovem este crescimento devem ser respeitadas e seguidas, mas o que o impede deve ser desafiado e contestado. Na minha experiência, aidéticos que pertencem a uma determinada religião organizada encontraram elementos - tais como o apoio do pastor, comunidade, oração e sacrarnentos - que contribuíram grandemente para seu crescimento espiritual. No trato com a doença, encontrei também pessoas que tiveram de lutar e explorar mais suas visões autodestrutivas de ensinamentos morais religiosos (tais como: a AIOS é um julgamento de Deus da depravação moral), porque bloquearam seu autêntico progresso espiritual e afetaram seriamente sua saúde física e psicológica. Levar em conta esta distinção entre espiritualidade e religião é benéfico, uma vez que tem ajudado muitas pessoas com AIDS a se libertarem no sentido de reconhecer e abordar uma dimensão de suas vidas que é central para sua saúde e bem-estar. Contexto psicossocial Para que passamos compreender as necessidades espirituais que a AIDS levanta, precisamos saber dos efeitos psicossociais da doença. Psicologicamente, o diagnóstico de AIDS normalmente gera um grau elevadíssimo de ansiedade nas pessoas. Os aidéticos vivem na incerteza: a incerteza de morrer antes que seja encontrada a cura, a incerteza de que morrerão se não for descoberta a cura, e a incerteza de como uma ou mais das infecções oportunistas poderão levá-los à morte. Receber um diagnóstico de uma doença mortal caracterizada por tais incertezas cria, sem dúvida, um alto nível de ansiedade. Algumas pessoas com AIDS revelaram que o diagnostica inicial deixou-as em tal estado de choque que lembram pouco ou quase nada das primeiras semanas após o conhecimento do diagnóstico. Ampliando esta incerteza e a ansiedade que a acompanha, sobrevém a síndrome dos altos e baixos. Os pacientes experimentam períodos de estado de saúde razoável, quando podem levar avante uma vida normal ou quase normal, e dispõem de recursos para enfrentar a realidade. Tais períodos serão seguidos por uma crise inesperada e aguda com o processo de debilitação que resulta da própria infecção, testes médicos, medicamentos e procedimentos hospitalares. Conseqüentemente, um dos mais elevados índices de ansiedade que um ser humano pode experimentar é gerado na pessoa portadora de AIDS. Além da ansiedade produzida pela própria doença, os aidéticos precisam enfrentar as imagens sociais negativas associadas á doença, caso pertençam a grupos de risco socialmente marginalizados ou não. Devido à ignorância generalizada e medo ligado à transmissão da AIDS, as pessoas são estigmatizadas como ameaças de saúde pública, leprosos do mundo de hoje: algumas organizações de pais querem vê-los longe da escola, autoridades públicas desejam que passem por quarentena. Como a AIDS pode ser sexualmente transmitida, os que a contraem são consideradas promíscuos, pecadores, hansenianos morais, punidos por Deus com a doença. Além disso, uma vez que a mais alta porcentagem de pessoas portadoras de AIDS nos EUA são gays ou homens bissexuais, a doença foi chamada de praga de gay, mesmo sabendo-se que 26% dos casos registrados envolvem heterossexuais, e que essa porcentagem está crescendo. Finalmente, como a AIDS pode também ser transmitida pelo uso de drogas através de seringas contaminadas, a doença foi associada com o consumo de tóxicos. Ser diagnosticado como portador de AIDS significa entrar num grupo socialmente estigmatizado, com toca a alienação e isoladamente que tal ingressa produz. Este grupo inclui pacientes gays, bissexuais ou viciados em drogas. Além dos sentimentos de isolamento e alienação, os pacientes são vistos com suspeita a respeito de sua condição. Lutando contra estas imagens sociais negativas, não importando como contraiu AIDS, o doente vive um alto grau de alienação e experimenta sentimentos de isolamento e ostracismo, precisamente no momento em que mais precisa de apoio e sentido de pertença. Contudo, gays ou homens bissexuais, por vezes, são forçados a enfrentar um a série de experiências traumáticas e reveladoras de sua condição com famílias e colegas de trabalho. Como resultado de terem revelado sua realidade sexual por causa da AIDS, muitos foram rejeitados pelos familiares e amigos, perderam o emprego etc. Confrontados com estes efeitos sociais e psicossociais da doença, os aidéticos têm pela frente o desafio de trabalhar a dimensão espiritual num nível muito mais profundo do que tem sido vivido anteriormente. Eles enfrentam questões de sentido da vida, identidade pessoal e valor, imagem de Deus e necessidade de perdão e reconciliação num contexto novo e aterrorizante. Eles sentem uma profunda necessidade de significado e esperança. Significado e esperança


As pessoas dão sentido e esperança à sua vida quando possuem uma identidade, auto-estima através de relacionamentos pessoais e profissionais, pela aceitação e respeito que receberam de tais relacionamentos, pela satisfação pessoal e material do exercício de suas profissões, pelo seu estado de saúde e bem-estar físico e, quem sabe, pela sua experiência de Deus ou participação na religião organizada. Quando um ou todos estes aspectos da vida passam por mudança, ou são ameaçados, ou perdidos, experimentamos um colapso parcial ou total de significado e esperança. Enfrentando debilitação física, ansiedade, alienação e rejeição possível ou real, os aidéticos freqüentemente sentem a necessidade de estabelecer o senso de que sua vida ainda tem um sentido, direção e valor, que eles têm um futuro, em termos de qualidade de vida e relacionamento. Isto significa, muitas vezes, redescobrir a esperança e uma razão para viver. Muito próxima da necessidade de significado e esperança está a necessidade de se ter identidade e auto-estima. Quando as pessoas perdem seu trabalho, são rejeitadas pela família ou amigas, ou tornam-se dependentes dos outros para satisfazer suas necessidades físicas mais básicas, elas entram em crise de auto-depreciação e descrença. Elas precisam ver, para além de sua debilitação corporal, desfiguramento, perdas psicológicas e sociais por que passam, a inacreditável força de dignidade, valor e riquezas interiores. Pelo processo difícil de restabelecer o significado de sua própria vida, esperança, identidade e auto-estima, outra necessidade torna-se manifesta no aidético: a necessidade de aceitação incondicional e amor. Quando a pessoa é confrontada com os efeitos que caracterizam uma doença mortal, especialmente com os efeitos que marcam a AIDS, a necessidade de relacionamento é aguçada, e persiste nas atitudes e comportamentos que parecem ser destinadas a alienar precisamente aqueles que mais compreendem e cuidam dela. Os doentes e moribundas podem tornar-se irascíveis, hostis, deprimidos e até irracionais. A medida que a independência física, emocional e social e controle diminuem, regressão e estágios de adolescência ou comportamento de criança e mecanismos de enfrentar a situação podem acontecer. O aidético necessita de uma aceitação consistente e incondicional, além do amor, especialmente durante os períodos de atitudes e comportamentos negativos. Todos os interessados deveriam tentar estabelecer e manter um relacionamento compreensivo e compassivo, independentemente da hostilidade, retração, exigências ou comportamento agressivo manifesto. Agir desta forma não significa deixar-se manipular por tal comportamento, e sim procurar entender a pessoa que está atrás de tal comportamento, e acolhê-la de uma maneira carinhosa e consistente. Um Deus de amor O modelo para esta aceitação incondicional e amor é o Deus bíblico, o Deus que nos aceita e nos ama como somos, que nos liberta da escravidão pessoal, social e religiosa. Um Deus que apaga o pecado, que nos dá a integridade, justiça, paz e o poder de amar, e que nos guia na escuridão do sofrimento e morte para a claridão das promessas da imortalidade. Infelizmente, criou-se uma imagem de um Deus austero e juiz que mais rejeita que acolhe. Há necessidade de descobrir-se a imagem de Deus que é amor. A descoberta de um Deus de amor e acolhedor é impedida pela visão de ser a AIDS uma punição divina ou uma forma não saudável de culpa religiosa. Em muitos gays, esta culpa religiosa é uma homofobia internalizada, um medo irracional de tendência para o mesmo sexo que tem sido expresso na rejeição e discriminação contra os homossexuais. Os aidéticos experimentam por vezes um sentimento de culpa saudável a respeito de aspectos particulares da vida, ao se darem conta de que desvalorizaram o corpo e causaram danos a si próprios ao reduzir pessoas à mera condição de objetos, ou entãofugindo do auto-conhecimento e auto-estima, simplesmente desconsideram sua vida espiritual. Quando estas descobertas aparecem com o sentimento de culpa, estas pessoas necessitam assumir responsavelmente tais comportamentos e atitudes. Em outras palavras, elas necessitam de perdão e reconciliação com Deus, com elas próprias e com aqueles que feriram. Quando os aidéticos confrontam esta culpa, eles podem novamente experimentar liberdade, auto-aceitação e um sentido de inteireza, que não pode ser destruído pelos efeitos físicas ou psicossociais da doença. Viver com uma doença mortífera leva as pessoas a aprofundar a vida no presente. A pessoa aprende a viver cada dia a seu tempo. O remorso do passado e a ansiedade a respeito do futuro não somente criam stress, mas também comprometem o sistema imunológico, além de afastar a pessoa do amor e qualidade de vida que ainda podem ser experimentados no presente. Finalmente, os aidéticos freqüentemente necessitam de diálogo a respeito do espiritual. Eles precisam sentir-se livres para falar de suas necessidades espirituais, sem enfrentar resistência ou falta de compreensão. Ouvir as necessidades e descobertas da pessoa e, se necessário, colocá-la em contato com sua comunidade religiosa (padre ou pastor) é muito importante para ela superar o medo de sentir-se isolada no nível mais profundo do seu ser.


Pacientes que pertencem a uma determinada religião organizada freqüentemente expressaram a necessidade de rituais e práticas de sua religião, apoio do pastor, oração com membros da comunidade ou leitura de textos bíblicos e sacramentos. Estas práticas providenciam conforto, criam uma continuidade com o passado, e ajudam significativamente a diminuir os sentimentos de ansiedade, isolamento e alienação, proporcionando uma experiência de comunidade. Ritos e práticas religiosas não somente ajudam os aidéticos a enfrentar os efeitos de sua doença, mas também contribuem muito para seu crescimento espiritual. Uma resposta compreensiva e apropriada às necessidades do aidético ajuda a saúde e bem-estar global, uma vez que o nível espiritual é o fundamento para a integração dos outros níveis. Mesmo que o resultado final seja a morte, deve-se dar uma resposta às necessidades espirituais da pessoa, ajudá-la a buscar qualidade e sentido na vida: enfrentar a morte dignamente proporcionará essa integração. Importância do atendimento Uma carta escrita por um jovem, quatro dias antes de morrer, dá bem a medida da importância do atendimento às necessidades espirituais do aidético. Disse ele: «Ficarei no hospital provavelmente por mais uma semana. Confio que me recuperarei desta doença. Fui abençoado por tantos amigos, cujo amor e apoio me sustentam. Recebi de quatro a dez visitas por dia, além de telefonemas, e sei que eles rezam por mim. O Padre Carlos me visitou hoje e trouxe a comunhão. Tem muitas mãos. Nunca pensei na AIDS como uma bênção, mas percebo que minha fé está crescendo em profundidade, como nunca antes. Acredito que minha fé é o que mais importa neste momento. O meu médico pode curar a infecção, mas a minha fé no amor do Cristo pode curar-me totalmente. Mesmo que a AIDS não seja curada nesta vida, sei que o corpo espiritual transformado será uma totalidade saudável para sempre. Morrendo com dignidade Unidades de Terapia Intensiva – UTI’s já foram chamadas de «modernas catedrais do sofrimento». E com razão. A desumanização nelas está presente na falta de informação ou na deliberada desinformação dos familiares. O paciente, por sua vez, nunca é consultado: sempre se decide por ele, mesmo quando, consciente, está em condições de opinar. De modo geral, os profissionais da saúde não são trabalhados e nem foram preparados para enfrentar a morte e ser de ajuda aos que estão morrendo. Por isso, não sabem como agir. São excelentes técnicos, conhecem tudo sobre os aparelhos que manipulam, mas parecem calouros na arte de confortar e ir ao encontro da pessoa. Desconhecem como simplesmente ser No Brasil, começa-se, agora, a abordar com mais freqüência e como a atitude dos profissionais na UTI. Mas ainda estamos longe de um hospital que atenda às necessidades dos pacientes terminais. Da fase de meditação e conscientização para a fase de ações e até implantação de serviços próprios, há um fosso. Fala-se, mas não se faz! Em países mais desenvolvidos, como os EUA, por exemplo, pacientes terminais já dispõem de uma instituição própria, chamada hospice (em 1984, havia 1.42g delas nesse pais), e hospitais mantêm em seu quadro de funcionários a ajuda tanatologistas. Nas hospices, os doentes, além do conforto exigido, convivem com suas coisas, muitas flores, recebem a visita de crianças, seus animais de estimação etc., para que se sintam como em casa. E os tanatologistas os ajudam a paz. Nesta matéria especial, o Boletim ICAPS procura contribuir para o debate do tema, apresentando o testemunho, visão e preocupações de quatro profissionais da saúde (duas médicas e duas enfermeiras), que procuram proporcionar aos pacientes terminais algo mais do que simples assistência técnica. Junto com a competência profissional, também mostram sua humanidade. O texto se completa com a «Oração de um doente terminal», de Evaldo A. D'Assumpção, que se transcreve da edição l0-16 de agosto de l986 de «O Lutador».

«A morte pertence á vida, como pertence o nascimento. 0 caminho tanto está em levantar a pé, como em pousá- lo na chão. (Tagore)


A visão de uma jorem médica Eneide Pompiani de Moura A morte - esse assunto tão contravertido, onde as polêmicas são muitas e poucas as respostas - parece tornar-se uma preocupação maior á medida que o individuo sente, consciente ou inconscientemente, que ela se aproxima.. O médico acaba enfrentando constantemente dilemas de vida e%u morte, de que na verdade, não gostaria de participar. Se, ao menos, as responsabilidades fossem divididas... Mas não,tudo está em seu bom senso e habilidades, que deverão ser aplicadas para o melhor de seu paciente... Os primeiros contatos Desde a primeira aula de medicina, o estudante é treinado para encarar a morte friamente... Lembro-me do meu primeiro dia de aula, que foi de Anatomia. Tinha 18 anos, cheia de ilusões, a carreira que se iniciava, numa cidade estranha, longe de pais, irmão ou amigos, onde a insegurança era grande, assim como a incerteza da escolha de uma carrei ra tão arduamente bata( hada... Um desafio assumido e a certeza de que a vitória dependeria exclusivamente de mim... Vejo-me entrando numa sala grande, com mesas de inox e banquinhos de madeira ao seu redor, que iam sendo ocupados pelos futuros médicos, cheios de vontade de saber, á espera da aula inaugural... O professor entra com ar solene. Um silêncio profundo se faz se nt ir. Então nos são apresentados os que seriam os nossos verdadeiros meios de aprendizado: um corpo inerte de um desconhecido, um coração e um feto... Em seguida, foi realizada uma cerimónia religiosa, dando um sentido especial a todo este quadro que, a principio, podia parecer tão frio, mas na verdade tão necessário... O professor explica que deveríamos ser gratos a Deus, pela oportunidade de estudar e aprender no corpo humano, para que, no futuro, pudéssemos tratar de vidas humanas. Não posso negar que neste momento chorei. Mas, igualmente, ele me despertou para a reflexão da grande responsabilidade que teria pela frente. Ao reler o meu diário desta época, vejo nele uma citação: «No corpo inerte, o coração, que antes batia de emoção ao ver seu filho crescer, hoje é algo inanimado, onde nada se tem a fazer, pois a vida não mais habita. Foi a partir deste primeiro contato, e como passar dos anos, que a visão da morte, pouco a pouco, foi-se transformando e cada vez mais sendo encarada como um processo natural, que nós, um dia, teremos que passar... Qual seria o seu procedimento? Não são raras as vezes em que pacientes internados em enfermaria, velhos ou jovens, mulheres ou homens, nos suplicam para ir para casa. Mas há situações em que a complexidade è tamanha que nos faz questionar constantemente. Como foi o casado sr. M., internado por uma infecção pulmonar que, pela manhã, ao vé-lo em seu leito, me disse: «Ora., quero ir para minha casa... sinto que está próxima a minha hora... quero ver meus filhos e me despedir antes de ir» Numa visão médica, o paciente estava em boa fase de recuperação, sem perigo de morte iminente. No entanto, na manhã seguinte, ao procurá-lo em seu leito, já havia falecido. Como explicar este fato? Seria uma premonição? Que direito tive de não deixá-lo partir para o seio de sua família, como desejava? Por outro lado, que explicação eu daria á família, se tivesse dado alta ao paciente, como me foi pedido? Diria á família que era desejo do paciente? E outro caso este de um velhinho internado em enfermaria há muito tempo, já seguido em ambulatório. Quando de sua internação, o vozinho me diz: «Ora., desta vez eu não passo...» Depois de três dias internado, com melhora clínica do quadro, a enfermeira, assustada, me chama ao ambulatório: “vozinho” me chamava insistentemente. Ao chegar, ele pega as minhas mãos ecom os olhos cheios de lágrimas, me diz: «Ora., pedi para chamá-la, pois estou indomembora... Jesus está me chamando... Adeus». Fecha os olhos e se vai... Seu coração bate em uma frequência cada vez mais baixa, até parar, mesmo sob medicamentos e manobras de ressuscitarão... Como você explicaria? E a chamada «melhora da morte»?. Quem já não ouviu dizer de um paciente que se encontrava em mau estado geral e que, de repente, apresenta uma melhora, para, num momento, morrer?! Os casos são muitos... e sempre há dúvidas quanto à melhor maneira de se proceder em cada situação. O que você faria? Filosofia de vida


Durante todos estes anos, eu tento formar um conceito em torno da morte, para criar em torno de mim uma barreira protetora, pois de nada adianta o desespero frente aos casos de morte. Tentei encontrar as re~ postas nas mais diversas filosofias e ciências, com o intuito de ter uma concepção própria. Por fim, eu conclui... Acredito que o ser humano veio á terra com o objetivo de evoluir, e que tem o seu livre arbítrio para conseguir ou não alcançar os seus objetivos. Cabe a cada um descobrir a sua missão e executa-la da melhor maneira possível e, quem sabe, até mais do que tinha planejado em outra dimensão Acredito que somos matéria e espírito e que este último possua uma energia que a cada caminhada ou evolução, se purifique mais e mais. Assim, para mim, a morte nada mais é do que uma passagem necessária para a continuação de uma longa caminhada, que deve ser preparada durante o correr dos anos por cada um. Acredito no ditado que diz «Ninguém morre na véspera», com exceção dos homicídios, suicídios e abortos, onde o processa não se fez de forma natural. Minha obrigação como médica é ajudar ao meu semelhante, na medida do possível, deixando a minha consciência tranqüila. Meu objetivo como ser humano é evoluir sempre, ajudar a todos que me procuram e formar uma família progressista, passando a meus filhos o meu exemplo e o meu modo de ser. Seja qual for a concepção de vida de Cada um, o importante é se ter algo que permita definir o que se deseja, para que, quando chegar o momento, se tenha onde apoiar. Acredito que a matéria é o meio necessário a nossa sobrevivência em sociedade. Mas o espírito é parte integrante de todo ser humano, e não deve ser deixado de lado. Eneide Pompiani de Moura é médica geriatra do Hospital das Clinicas da Universidade de São Paulo Algumas considerações pessoais Janete Livianu Este é um assunto de difícil abordagem porque apresenta múltiplos aspectos, e são vários os tipos de doentes terminais. Serão expostos alguns pontos de vista sobre a morte, enfocando o paciente de UTI - Unidade de Terapia Intensiva. Neste ponto surge nova dificuldade, porque falar da morte na UTI é estar próximo dos limites imprecisas de outra questão polemica que é a eutanásia. Para a maioria das pessoas, a UTI é um local dentro do hospital que possui grande disponibilidade de recursos materiais e humanos, utilizados em pacientes graves, possibilitando a manutenção da vida e oferecendo condições para evolução favorável de uma doença em fase critica. Não serão discutidas aqui as indicações de internações, mas deve-se ter em mente um principio básico: a possibilidade de cura deve existir sempre. Mas, para aqueles que têm uma vivência do dia-a-dia em uma UTI, certas particularidades se ressaltam: aquele indivíduo que até a véspera, possuía sua intelectualidade sua vida íntima, subitamente perde sua identidade, se despersonaliza como ser humano. Isto ocorre por vários motivos, a partir do desnudamento físico total, manipulações por sondas, até a agressão física por aparelhos diversas, respiradores artificiais etc. Realmente, houve grandes progressos técnicos na medicina, mas a maioria das procedimentos médicos causa dor ou, no mínimo intenso desconforto. É questionável se, nesta fase, existe medo da morte. O que existe é o medo da dor, do sofrimento físico real, palpável, que o individuo está sendo obrigado a passar. Muitas vezes se verifica uma reação paradoxal do paciente que, conscientemente ou não tenta libertar-se destas fontes de dor, sendo necessária sua contenção ao leito ou mesmo sedação. As estatísticas mostram que, atualmente, a maioria das pessoas morre nos hospitais. Isto nos coloca diante da questão: de quem é a obstinação terapêutica? Pertence aos médicos, aos familiares ou a ambos? Aos médicos, que muitas vezes deixam de respeitar os limites da natureza e lutam contra a morte, mas não a favor do paciente, para quem o êxito letal pode representar um fracassa? Ou aos familiares que sentem angústia pela ausência de um ente querido em seu cotidiano, por vê-lo agonizar e por perceber sua própria impotência e fragilidade? Até onde vai a preocupação com o paciente ou se está agindo por egoísmo (inconsciente)? Além disso, existe a questão da responsabilidade sobre a morte,tanto sob o aspecto moral como jurídico. A atual cultura ocidental criou um tabu em torno da morte, que se traduz em atitudes que tentam transferir esta responsabilidade para uma instituição -o hospital - com sua aparelhagem e impessoalidade. A maioria das pessoas não possui estrutura psicológica para transformar em fato uma decisão elaborada racionalmente: o sentimento de culpa é quase sempre inevitável. Por outro lado, não existe respaldo legal para assumir determinadas condutas que seriam, para dizer o mínimo, coerentes e piedosas.


Mas a autonomia e a liberdade para decidir são direitos inalienáveis do paciente. que deve ser o primeiro a opinar, pois a ele pertencem o corpo e a vida. Para o paciente, a morte representa, muitas vezes, um alivio de um longo processo de doença ou mesmo de degeneração física e mental. E chegamos ao ponto sempre citado de que as pessoas são donas de sua própria vida. E por que não de sua própria morte também? Deve-se tentar esclarecer e mostrar a diferença existente entre a possibilidade de cura e a necessidade de conforto aos que estão morrendo. É precisa ter lucidez suficiente para deixar a morte ocorrer como um evento e não torná-la um processo artificial, onde não há prolongamento da vida humana, mas apenas se adia o fim. Em tempos passados, era comum as pessoas morrerem dentro da sua própria casa, cercadas do carinho e respeito de seus familiares. E, o mais importante, coma possibilidade de manter integra a privacidade de seus últimos momentos, algo tão intimo e pessoal. Porque transmitir ao doente o que ele mais teme: a dor, a sensação de isolamento ou abandono que surgem quando ele é internado em uma UTI, onde será apenas um paciente a mais? As pessoas devem compreender que o nascer e o morrer são dois fenômenos naturais e equiparáveis como pontos opostos e extremos da existência. Tacos os seres vivos estão sujeitos à morte: é a etapa final de um processo evolutivo chamado vida. O direito de morrer em paz, com dignidade e sem sofrimento desnecessário, é algo que não pode ser esquecido por todos aqueles que lidam com doentes graves. Pois implica no respeito ao ser humano como ser racional e evoluído. Janete Livianu é médica do Hospital do Servidor Público Estadual. Morrer deve ser um ato isolado? Ana Cristina de Sá Depois de muitos anos trabalhando como enfermeira de uma unidade de pacientes críticos em seu estado de saúde, convivendo com seus problemas e Dona Morte, do ser humano consciente frente à morte iminente não é o medo de morrer, pura e simplesmente, mas, acima de tudo, o medo de morrer sozinho. A necessidade de ter com quem compartilhar esse momento drástico, pelo contrario, quase sempre leva os profissionais de saúde a ser afastarem do individuo em fase terminal. Não sei se este fato se dá pelo aspecto desagradável que o paciente assume - magro, descorado, com odores fétidos ás vezes, suor pegajoso, pele fria e pastosa e aquele incomodo olhar-de-me-ajude. Além deste fator, o individuo que está prestes a morrer quase sempre solicita muito os cuidados da ecuipe de saúde e passa a ser chamado de poliqueixoso, acabando por ser marginalizado em suas solicitações: “olha lá a campainha de novo. Aposto que já sei quem é. É o dia todo. Não dá nem pra passar na porta da enfermaria que aquele paciente chama a gente! Assim não dá!!!” Repete-se, então, a antiga história do menino e do lobo. Marginalizado, esquecido, fraco, com raiva, e ao mesmo tempo com medo, o paciente terminal exala ansiedade através de olhares, gestos, atitudes. Certa feita, eu estava de plantão á noite, e havia uma jovem de 16 anos com câncer em estágio adiantada de infiltração, portanto, à beira da morte. Ela fora removida para uma enfermaria menor, com mais dois leitos. Tentava dormir e, de repente, acordava gritando: «Socorro! Ela veio me buscar!Eu não quero ir! Não me deixem mais dormir, se não eu não volto!» Ao receber o plantão, o pessoal que estava saindo me informou que, á tarde toda, isto se havia repetido. Recebi o plantão, dei uma ajeitada geral nas coisas e fui até as enfermarias passar visita e fazer o exame físico de enfermagem, como fazia habitualmente, em tacos os pacientes sob meus cuidados. Quando cheguei à enfermaria daquela jovem, pude sentir no ar a tensão de tacos ali presentes. Não sei se foi sorte ou não, mas, apesar da tensão, as pacientes que estavam juntamente com a jovem eram pessoas excelentes, do tipo que está sempre pronto a ajudar e dar uma torça Aliás, a solidariedade entre os pacientes chega a dar uma pontinha de inveja e ciúme na gente. Seria bom que este senti mente fosse constante na sociedade em geral. Talvez não tivéssemos tanta violência. Bem, entrei na enfermaria e saltei o meu também habitual “Oi, pessoal, ludo bem?” Tadas,com exceção da jovem,responderam que sim. Aproximei-me dela, peguei em sua frágil mão e disse: «Você não respondeu nada. Não está bem?» Ela olhou pró mim e respondeu:«Vocé não ouviu no plantão? Eu e~ tou poliqueixosa e peripaquosa, sou a causa de encheção de taco o pessoal de enfermagem, da enfermaria, dos médicos...» Eu disse: «Ora, você não está em seus melhores dias mesmo. Você tem todos os motivos para solicitar a gente, e nós estamos aqui para isso, não é?» Ela somente olhou para


mim com o cantinho dos olhos e, depois,fechou os olhos sem responder. Eu daria mil tostões por seus pensamentos. Ás vezes, os pacientes recebem maus cuidados de alguns elementos da equipe de saúde e nada dizem, com medo de serem mais maltratados ainda.lsto é a realidade. Antiético seria omitir este fato e não denunciá-lo. Há pessoas que jamais deveriam entrar num hospital para trabalhar neles. Quase sempre, são indivlduos que sofrem repressão em seus ambientes familiares e que projetam esse problema em seus pacientes, numa atitude arrogante, desp& tica e de superioridade de mais forte sobre maisfraros. O problema é que a maioria dessesindivíduos o faz conscientemente. Creio que haja alguma espécie de sadismo nestas atitudes. Percebi, então, que, com certeza,teria que concentrar ali uma porcentagem maior dos meus cuidados naquele plantão. Para minha felicidade, no sentido de fazer cumprir esta necessidade, o plantão estava extremamente calmo. A jovem paciente acordou assustada, pela primeira vez, às 11 horas da noite. Ouvi seus gritos assustados (estava sentada no balcão próximo à sua enfermaria, pois sabia que, a qualquer momento,isto poderia acontecer] e fui até seu leito. Ela olhou para mim e disse: ecristina, eu vou morrer esta noite. Eu sei disso. Eu não quero morrer sozinha. Fica comigo, pelo amor de Deus! Por enquanto, eu só tou morrendo mesmo é de medo!» Eu respondi que ficaria alitodo o tempo que me fosse possível. Fui buscar as papeletas para passar um traço indicando a data do dia seguinte (rotina das enfermarias no plantão noturno). Sentei-me a seu lado. Eu também sentia que aquela vida estava presa por apenas um fiazinhc de esperança. Fui riscando as papeletas e, de repente,sentium aperto de mão. Era a paciente que pegara minha mão, numa atitude de quem busca apoio numa batalha quase perdida. Corre~ pondi ao aperto de mão e continuei sentada. A aproximadamente cada 40 minutas ou uma hora, minha pacientinha (veja a sensação de posse que a gente acaba desenvolvendo: minha pacientinha) acordava de sobressalto, mas, quando isso acontecia, eu estava ali e dizia: «Calma, estou aqui com você. Você não está sozinha». E então tro~


cava um suave aperto de mão com ela. Percebique, à medida que a garota sentira que não estava sozinha, acalmara~e. Lá pelas 3 horas da madrugada, els abriu no~ vamente os olhos, sem gritar ou denotar qualquer tipo de ansidedade, olhou para mim, deu um sorriso e disse:«Obrigada. VO~ cê realmente não me deixou sozinha. Ago~ ra eu não tenho mais medo. Acho que eu tou entendendo melhor tudo isto, e somente o que acontece agora é uma sensação de paz. Obrigada, eu não vou esquecer isso nunca. Faça sempre isso e diga aos seus colegas para fazerem o mesmo». Ainda com uma expressão de tranqüilidade e conforto, fechou os olhos novamente, deu um sorriso, apertou minha mão, bem forte, e, aos poucos, o aperto de mão foi-se tornando cada vez mais fraco, até que sua mão, já ineqe, repousou sobre o lençol. Tentei palpar sua pulsação e não consegui. Deve então o morrer ser um ato isolado? Creio que não. Partilhar com outrem o sentimento de morte é como partilhar qualquer outro fato histórica em nossas vidas, co~ mo o casamento, o nascimento, o batizado, a circuncisão... O que nos custa perder um pouco de tempo (será que é uma perda de tempo?) ao lado do ser humano á beira da morte e que não quer enfrentar essa situação sozinho? Não, morrer não é um ato isolado. Sem morte não há vida, e sem vida não há a morte. São extremas muito próximos. Você já parou para pensar que, desde que nascemos. começamos a morrer? Não? Sim? Então pense nisso, e reflita novamente: morrer dever ser um ato 1solado? Ano Cristina de Sé é enferrrelrs dc Instituto Central do Hospital das Clínicas da universldadada São Paulo ~. À morte: Um SajÍo AO eflfieI7llelrO. Com o índio da experiência profissional, zeram com ele? Por que, ontem, ele estava MàrtÇÍa de SOUZa o convívio com a morte torna-se freqüente bem, conversando, e hoje está ssim?» ao se trabalhar com doentes de alto risco Não enfocarei a problemática de dizer Em nossa sociedade ocidental, a mor- elou graves em Unidades de Terapia lnten- ou não a verdade ao pacientellamília sobre t~ ~;~d~ é ~c~~;derada um grande tabu. Sua siva. Surgem, então, sentimentos de impo- a morte iminente, pois considero de incum~bordagem é bastante superficial, ou me~ tência e culpa, porque não se tem conheci- béncia médica o fornecimento de diagnósti-


r~~ ~~j~ d~~d~ ~ formação primária no ám- mentos científicos suficientes para ajudar a co e prognóstico. Isto não implica no fato de b;j~ f~r~(j;ar elou escolar. Há um grande te- evitar a morte. Há a tendência para se aper- o enfermeiro utilizar comportamentos que r~~r ou mesmo uma aversão em se abor- feiÇcar, conhecer novos aparelhos, novas mascaram a realidade, como, por exemplo. d~r'~~j~ tema devido à não'aceitação da tàcnicas; não se consegue dominar, porém, dizer: oO senhor está muito bem e se recuprópria morte.' o tema morte, e ninguém se conforma com perando», ao invés de «o seu estado realN~~nsino superior e em particular, na a morte do paciente que está sob seus mente não é bom, mas estamos aqui para área de saúde existe a priacupação em en- cuidados. ajudá-lo. Posso encaminhá-lo ao médico pafocarcomolutarcontra morte, encarando~a Segundo Kubler Ross, uma pessoa ra maiores esclarecimentos». como um limite e um desafio, fornecendo- diante da morte (doente ou família) apresenta Apesar de considerar que cada pessoa ~ po~~~ ;ntruçôes sobre como lidar e acei- reações emocionais que são classificadas tem suas características e necessidades int~r ~ r~~rt~ ~r~ ~j~~~ ~yágios sendo que a seqüência dividuais, com o direito de, se e quando quiA f~~r~(çà~ e o treinamento profissional e duração destas fases variam de pessoa a ser, conhecer e opinar pelo seu tratamento, ~y;r~~j~r~ ~ g~~d~~do a vestir uma masca- pessoa e nem todos passam por tacos os Cicely Saunders (enfermeira que posteriorra profissional com o principal objetivo de estágios a saber- negação e isolamento, mente Se formou em medicina), após mui~b~f~~ ~~ ~~jj~~ ~~~ ~~pontaneidade de ira (reÍolta) barganha depressão e tos estudos e pesquisas com doentes em fap~oj~g~~_~~ d~ ;~fj~é~~;a dos possíveis ien- ace;taçào ' ' se terminal, concluiu que a grande maioria j;r~~~j~~ d~ ~~r~p~;xão còlera que possam o ~ . j d y~ ~~~ ò~~ é f~~ dos pacientes sabe do que está para acon~r~~~ç~~ ~ p~~fwj~nal tomo ressoa. Desta ~ ~$°~ ~"~~~~~;~~ ~b~~~~ ~r~ r~~;~ tecer, quer tenham sido informados ou não. f~~r~~ ~à ~ gr~~d~ j~~dé~cia de no caso ~'~Íf ~ ~~~ ~~ j' ~ Acredito que o grande desafio do en~ ~~f(~r~~;~~ ~doj~r comportamòntos esteÍ ~~°~'~'~ ~° '~°'~~~ °' . . . fermeiro está, principalmente, em encarar a ~;~j;p~d~~ p~~~ ~~;j~~ ~~~~t~;mentos emo- Em se tratando de doentyf cirurgicos, morte como parte da existência e não como ~;~~~;~ ~~~ ~ p~~;~~j~ ~j;j;z~~do~~~ do ~ha- Porém, nosso tempo de convivio é, em ye- um desafio à vida a ser superado, reconh~ r~~~ ~r~port~r~~~j~'d~j;~~d~ d~ ~nfermei- ral, muito rápido, passando fesapejcebida cendo as limitações humanas e tecnològicas. ~~ ~~ r~~~r~~ ~~~p d~ b~~~~~~ c~~~~qú~n- a observação de alguns estágios. Muitas ve- para isto, é necessário: ,~(~~,~ ,~;~ ~r~p~rt~r~~~w( ~;j~~~;~r~ ~ zes, os doentes não chegam a acordar da , não abandonar ou fugir destes pacientes, ,~~~~~~ç~~ d~ p~~;~~j~ ~à~~~~d~ ~ pro~ anestesia. Conseguimos observar, em a! orientando toda a ecuipe de enfermagem. ~~y~~~j ~r~~ ~r~~ p~~(~ ~r~ q~~r~ p~d~ guns casos, a conhecida melhora que ante- principalmente através do exemplo . Ape~~~f;~~ ~ p~~~ q~~r~ faz~~ ~~~~ ~~jocações cede a morte, que seria a fase de aceitação sar de serem considerados de «prognóstico ~ d~~~~~ da própria morte. fechado~ e SPP (se parar, paro~, encerrao~ py~[j~~~p~~j~~ d~f~~d~m a impor- Sendo assim, nosso convívio maior é das tacas as medidas terapêuticas, existe jà~~;~ d~ ~~~~~;r~~~j~ d~ ~etf d~ ~utra pe~ junto á fam?ia, que, dentre as reaçôes e sen- um ser humano, com corpo e alma, que d~ ~~ p~~~ ~~~~~ ~r~ ~~j~~;~~~rn~~j~ ~t~j;~~ timentos apresentados, revela ansiedade, pende do nosso atendimento, seja através p~~( ~~~~~~~~ ~~r~~ ~j~ ~~p~~j~~~;a o munÍ desespero, inutilidade, culpa e, principal- dos simples cuidados higiênicos, mudanças d~ ~j;j;z~~d~,~~ d~ ~r~p~tia da capacida- mente, hastilidade, que é projetada na ecui- de decúbito, aspiração de secreção e, prin-


d~'d~ ~~pj~~ ~q~;j~ q~~ ~ ~~(r~ ~stá experi- pe médica e de enfermagem. Geralmente, cipalmente, com a nossa presença, demonsmentando em cada situação. os familiares questionam: «O que vocês fi- _ 6


~ Finalizando, gostaria de deixar como r~ tão que sou tipicamente humana e esperantrando que estamos ali, com ele,lutandojun- ~'~~~° ~'~~° Í~~~~~ ~~~'~~~ P~(~ ° ~'~~d'. Çosamente, possa deixar de esforiar-me patos. Devemos utilizar a empatia, através de ~~~~° ~° P~~'~~~~ ~~ ~~~~ ~~~~'~~', S~gU~. ra conseguir as duas coisas. Se posse aprenum simples aperto de mão, ou mesmo o si- ~° '~~~'~~ ~°SS° d~r ~ atender meus próprios sentimentos e lêncio, que, mu.itas vezes, vai além das pa- 1t) «Dedicar-me ao paciente que está mor- frustrações, raiva e desapontamento, então lavras. Não podemos deixar de usufruir do rendo, não como uma anamnese, mas co- creio ter a capacidade de lidar com esses privilégio de permanecer 24 horas a seu la- mo parte de um relacionamento a dois. Es- sentimentos constantemente: constatação do, criando um sentimento de confiança, a ta atitude requer normas novas para mim. em que se baseia a sabedoria humana». convicção de que alguém cuida dele. E d~ Devo tentar ser eu mesmo; se o moribundo 5') «A última regra abrangetodas as quatro vemos ter várias experiências de que, após me repelir por qualquer razão, devo enfren- e exPressa a Oração dos Alcoolicos Anõnifechar o diagnóstico e encerrartadas as cha- tartalrepulsa. Devo também deixa-lo ser ele mos:Deus me dê a semnidade de aceitaras madas medidas heróicas, alguns pacientes Próprio, sem projetar nele meus próprios coisas que nfo posso mudar; a coragem de se recuperam, para espanto de toda a equi- sentimentos, repulsa ou hostilidade. Uma ~~dar as coisas que posso mudar e a mpe e familiares; vezqueele é realmente um serhumano, su- b*dorlfdereconhecera diferençaentreas . trabalhar juntamente com a família. PCnhoqueprecisedomesmoamorecuida- d~~~atitudes.» orientando~a, compreendendo suas reações do que eu». Não nos escueçamos deque nossa fune permitindo sua presença ao ladodo doen- 2,) ~Honrar a santidade do ser humano. Da Ção se resume no cuidar, e que, segundo te. Pmporcionar ambiente paradeixá-los de- mesmoforma quetenhovalores secretos W a dra. Vanda de Aguiar Horta. «somos gensabafar, chorar e até gritjr, se for o caso; mores e alegrias, eletambém tem os seus». t8 C~'dando de gente». . proporcionar a presença de um represen- 3f) «Devo sempre me perguntar que espétante religioso, quando necessário, pois sa- cie de promessa estou fazendo a mim mesbemos da necessidade de um apoio supe- ma e ao paciente. Se posso ter certeza de "frfia de Souza é enfermeira dc Hospital das rior, quando nos deparamos com alguma que estou tentando salvar-lhe avida ou fazN ~"~'~~~ ~~ ~~~~~~~'~~~~ ~~ ~ð ABU~°. dificuldade. lo feliz numa situação passageira, creio enÒ~~lÇà° à~ UI~I à°4~lll~ l4Íl~llill£l~ Senhor! _ der a medo que eles mesmos têm desta reali- valorizei o ter mais, esquecendo-me par vezes De repente dei-me cunta da doença que pos- dado tãu concrda em nossas vidas: a murte! do str mais. sua e descobri, então, porque minha esposa, E é por isto, Senhor, que - ao invés de fica- G~~~~d~ ~~~~~ ~~ j~~ ~~ . ~ meus filhos e meus amigos me visitam com um rem ao meu lada, tomando a minha mão quan- p~ p~~~ [~~~;~;j ~j ~~ ~f~~° ~~" ~ (Í~~ .ç°friso tão forçada e os olhos vermelhos pela dome sinto desamparado, ou ouvindo pacien- ~f~~~~~ ~~~~~ ~ ~~ j ( ~°'"?' P~~~ (~~ ~"~ dor que lhe provoco. remente as minhas lamúrias, meus gemidos, ~p~~~~ ~~~~j ~(('°P$ ~~'°"~~"(°'~~." Q~~ No inicio, Senhor, recusei-me a acreditar: co- Quando a dor se torna intolerável - doparam- ~~~j;~~~ ' ~ P ~~° °" "~ ~ '~ Pà~~ mO é possível que eu, até então forte e bem di.~- me com medicamentos paliativos e levaram- ~ ' Poslo, trabalhando sem olhar horários e dili- me para o CTI, ambiente frio e desumano, an- ~~°~ C~~~°, ~'t~rctanta, de quc não terei este culdades, podia estar num leito de hospital, de aparelhosinsensiveis á minha dor e ao meu ~f'~~§° f' "~~aqhamjnte, isto já não me angus-


condenadoa, quem sabe, poucos dias de vida? sofrimento marcam gráficas,traçam linha.ç,.s~ ~(. . "_Q~f "~f fyi completo, mas ser comDepois, Senhor, senti ódio de ti. Como podia norizam eletrorúcamente as batidas de meu co- P ~" ~~° ~ l~~°l~r'U do homem, admitir tua cnndição de Pai, permitindo que, ração. E, piorainda, onde fico disrante de mi- Vejo agora, com a clareza que só a praximiem plena caminhada, fossem cortados todos nha família, de meus amigos, de seu calor, dade da morte pode dar, que só me irei realios meus planos e sonhos tão longamente aca- Várias vezes pedi para sair deste lugar horri- £ar em plenitude, ao unirme com a perfeição lentados? Como aceitar perder meu emprego, vel, onde companheiros de infortúnio são cor- que és tu, Senhor! E, para isto, é preciso que minha casa, meu.samigos, minha famflia, que Pos inerres, alguns trazendo, em seus olhos pa- me liberte deste corpo limitado, desta prisão tantos anos levei para formar? raduà, a morte que certamente us levou, ain- cspácio-temporal~ue me serviu de instrumento Mas decidi rezar, Senhor, fazendo mil propos- da que toda parafernàlia sofisticada conserve de caminhada, preciso que este corpo .çe las de barganha, trocando minha condição de seus corações batendo e seus pulmões respiran- transforme numa realidade pura e sem pelas. doente por creches, sacriúcios, doações. Na- do, simulando uma vida há muito extinta, E só entãu serei capaz de voar em perfeita lida disso adiantou, e minha doença prossegue E eu fico observando e perguntando: por que berdade, buscando no estar contigo a consuinexoravelmente. Sinta dares demais e grande esta macabra brincadeira, brincadeira de «fin- mação de meu destino. é o meu desconforto,jamais aliviado pelos mé- gir de vivo com o que já mergulhou na mor- Aceito então Senhor a minha morte venha dicos que me tratam e pelas enfermeiras que te»? Será um gesto de desespero dos profissio- como iier ve~ha qua~do vier já nàánre inr me assistem. riais da saúde, que, por orgulho ou prepotên- poria se sÉrá hoje amanhã oúdaquj a uru.to Tentei falar com eles a respeito de niiiiha doen- cia, não querem admitir seu fracasso? Será por d~as_ Basta-mc saÍer que será através deste ~ Í ça, deminhas angúsúale demeus temores, mas Que se esquecem de que somente tu és o Se- tal da eterttjd~d~ qu~ ~~,~t~ ~~~~ ~ ~$~ l tanto os médicos (que eu julgava sábias e for- nhor da Vida? pouco tempo terienr atraves)ar que ~h$ ~ ~ los) como as enfermeiras (que eu pensava se- E então, Senhor, como não mc atcndcram c até tua preseÍça. E, confiante nóteu amoÍ ÍIÍ gums de seu trabalho) se mostraram apavora- me deixaram aqui, aproveitei para pensar na tua misericórdia, que em nada se assemeiia à dos diante deminhas perguntas, e enfaricamen- vida. No que fiz e no que deixei de fazer. Ve- justiça mesquinha,limitada c vingativa dos hote negaram que estou morrendo. jo que poderia ter feito muitas coisas melhor. mens,lançar-me-ei em teus bmços e verei o de. Mas agora eu sei que todas aj negativas, to- Fuimuito omisso em minhas obrigaçôm deso- finitiva realizar-se de minha vida e de tua das a1respostas ambíguas ou simplistas, cheias lidahedade, deixando de ajudar meus irmãos vontade. de teatros técnicos, servem apenas para escan- que sofriam uu queque de mim necessitavam. Amém! Durante o Vll Congresso Brasileiro de Humanização e Pastoralda Saúde (São Paulo, 4 a 7 de setembro), serão lançados três livros, como se tem informado em edições anteriores deste Boletim. A Redação destaca, aqui, um deles, preparado pela Equipe ICAPS (Pes. Christian de Paul de Barchifontaine. Leocir Pessini e Ademar Rover),


com o tituln «Bioética e Saúde». O livro se divide em quatro grandes áreas de interesse, além de duas contendo anexos(Carta Brasilqira dos Direitos do Paciente e Códigos de Etjca diversos,como do hospital, do administrador hospitalar,de Enfermagem, Deontologia Médica e outros) e bibliografia indicada para os profissionais da saúde e agentes de Pastoral. Afora uma parte introdutótia em que analisa a atualsituaçào e as perspectivas da saúde no Pais, o livro passa a abordar questões de seu objetivo especifico, detalhando, a seguir, alguns temas que são motivo de questionamento e retlexões, como a manipulação dos doentes, o suicidio, o aborto e a eutanásia, avaliando, a cada tópico, a conceiJuação do termo e questionando posicio~ namentos a respeito, afora dar a visão cristã para orientar a postura dos profissionais e agentes de Pastoral. Sempre que posstvel, cada capitulo se encerra com apresentação e estudo de casos elou perguntas e respostas. Em outros capitulos, os temas de fundo são a experimentação em medicina, a engenharia genética, os transplantes e as dro~ gas. Um capitulo versa sabre a morte e o morrer, com depoimentos, estudo de caso e outras abordagens,incluindo uma Declaração dos Direitos do Paciente Terminal. Em doistópicos, ao final,indicam-se as necessidades psico-espirituais dos pacientes internados em hospitais e a conveniência de seu atendimento, além de apontar as grandezas e fraquezas da medicina. 7


E Refonna agTáàa Sempre talada, muito adiada, possivelmente contornada, quando não deturpada, a reforma agrária constitui, ainda hoje, uma das questões-chaves pendentes da ética social do Pais. A apropriação privada dos imóveis, fundos e latifúndios, como dos meios de produção em geral, se justifica, lembramos, numa perspectiva de bem comum, em vista duma distribuição sem exclusivismo. Se, portanto, proprietàrios juntam muitas glebas, muitos milhares de hectares no Brasil, sem aproveitamento agrícola produtivo, na esperança de encarecimento especulativo, enquanto milhões de concidadões morrem de fome por não ter lote algum para cultivar, a desapropriação rápida não representa apenas uma simples possibilidade legal: constitui urgente necessidade moral. Na história do Pais, o capitalismo urbano conservou estreitas relações com os proprietários latifundiários e ambos dominaram o processo eleitoral pelo qual os políticos eleitos não tinham desejo nem interesse em perturbar o status quo da propriedade rural. De vez em quando, o poder executivo - ora pressionado pela dolorosa situação dos camponeses mal amparados ou condenados ao êxodo, ora pelos peritos que concluem pela necessidade objetiva duma reforma agrária que permita o real desenvolvimento da Nação - levanta a voz em prol duma reforma agrária, voz várias vezes abafada ou esquecida. Segundo Plinio Arruda Sampaio, os 20 maiores proprietários de terra brasileifos possuem 12Q fazendas, com 20 mi lhões de hectares, ao passo que 2,5 milhões de posseiros dispõem de apenas 45 milhões de hectares; 145 milhões de hectares são incultos («30 Giorni», novembro de lQ86). O bom senso indica que se deve começar a desapropriação pelas terras não cultivadas dos proprietàrios privados e pelas terras devolutas das entidades públicas, comunas, Estados, Federação, fazendo-se o assentamento, técnica e economicamente assistido, em proveito de quem pode e


quer trabalhar a terra. Numa nação de tradição cristã não faltam argumentos religioso-humanísticos que convergem com os pareceres técnicos e económicos (o Brasil tem condições de se sustentar na agropeçuária, a importação maciça nestes setores revelando descuido da política interna), no sentido da necessidade duma redistribuição das terras, examinando-se, legião por região, quais os melhores gabaritos. Já sabemos que, para a teologia clássica e as encíclicas papais, o conjunto das posses Hubert Lepargneur deste mundo tem o destino do aproveitamento universal, parcelado na satisfação das necessidades de todos os seres humanos. Em determinada nação, o conjunto das terras cultiváveis destina-se ao conjunto dos moradores, a apropriação privada sendo apenas o meio mais adequado para melhorar o rendimento e não o instrumento da fome dos marginalizados. Intérprete do direito natural, o Estado organiza, precisa, retifica o quanto for necessário. Entre a pressão das comunidades de base, algum chamamento á consciência por parte de observadores internos ou externos, e as forças mudas e poderosas do conservantismo dos privilégios, por quanto tempo o governo vai protelar uma implantação mais realista ao provar a paciência do povo? Ainda que todas as terras do Pais não sejam muito boas, ninguém contesta que a relação entre a extensão do território naçional e seus 135 milhões de habitantes é amplamente suficiente para permitir a todos aqueles que podem e querem cooperar na agropecuàtia viverem da terra. Glebas inutilizadas á espera de valorização especulativa em tempo de inflação elevada, terrenos mal aproveitados, espaços desarborizados e queimados, à espera duma exploração mais racional, não faltam alqueires para modestos empreeendimentos a serem atribuidos aos milhões de humildes pcsseiros expulsos da pequena gleba que os fazia viver, proibidos de plantar sequer o arroz e feijão do consumo familiar, a favor de longínquos mas po-


deroscs detentores de títulos de origem duvidosa, apoiados pela decisiva rede da policia e dos políticos da refião. De que lado está a ordem social. Acrescentam alguns observadores que não raramente os empreendimentos pequenos ou médios demonstram um mais alto rendimento que a cultura extensiva e relaxada. Sem dúvida, falta gado no Brasil, mas sabemos também que a pecuátia não proporciona o volume de proteínas outorgadas pela agricultura de cereais e legumes, na mesma área. O melhoramento das taças, a prática mais intensiva do adubo, a modernização do equipamento são parte da solução. Além das medidas desejáveis a serem decididas, outras já ao alcance são pouco usadas, de modo que a função social da propriedade privada fica por conta dos discursos. Os esquemas da desapropriação por causa de utilidade pública são pouco ou mal aplicados, ou exigem uma compensação exagerada para o detentor, que nem precisa dela para viver. Os impostos territoriais não foram planejados para eliminar a inativação das terras. E verdade que em lQ62 se votou um «Estatuto da Terra» que reconhece «a imperiosa necessidade de se dar nova estrutura agrária ao Pais, consagrando-se, ao lado do direito individual de propriedade, o condicionamento do seu uso ao bem-estar social». Estavam previstos uma limitação de aluguel anual da terra a 10% do valor do imóvel, da quota do proprietário a 20% da produção, um prazo çontratua( mínimo de três anos, a não obrigatoriedade da venda da produção ao proprietàrio, a permanência do posseiro que trabalhou mais de cinco anos a mesma gleba, desapropriações em casos específicos de interesse público. A implementação destas normas retrocedeu. Boas leis não observadas servem apenas á boa consciência ostentada no exterior. Entre as barragens eficazes: a exigência constitucional de idenização prévia (primeiro em dinheiro, em títulos especiais da divida pública - fator inflacionário - a partir do governo Castello Branco). Após sua aprovação (em


10- lo- lQ85) pelo governo Samey, o Plano da Reforma Agrária vem sofrendo uma série de recuos. Pretendia-se desapropriar 43 milhões de hectares em quatro anos, para atender 1,4 milhão de famílias. Segundo o cadastro do lNCRA, existem 416,6 milhões de hectares de latifúndios desaproptiáveis, e segundo a CONTAG são 12 milhões de trabalhadores rurais sem terra. O Plano previu, portanto, apenas 10,3% das desapropriações cabíveis, em prol de apenas 11,6°~ dos necessitados (número menor do que os migrantes anuais: ><Enquanto se assentariam 1,4 milhão de famílias, 4 milhões estariam deixando a terra por causa da manutenção de estruturas que continuam expulsando os camponeses da área rural», IBASE). Além de crescer o número de vitimas do problema rural (53 chacinados durante os quatros primeiros meses de 1Q85 e 84 no mesmo período de 1Q86), sem aborrecimentos para os mandantes, os latifundiárias obtiveram: o cancelamento dos planos de prioridade; a transferéncia da competência para os problemas de reforma-desapropriação em beneficio de Comissões Agrárias Reqionais, onde têm por lei tranqüila maioria; remodelação dos quadros do INCRA para eliminar os defensores dos posseiros ((BASE, informe de maio de 1Q86). E outras medidas estão em preparo, que facilitarão a passagem dos assentados amazónicos para simples mão-de-obra dos grupos latifundiários.


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