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CNBB e Pastoral: realidade e perspectivas Coube à Irmã Catarina Pereira de Figueiredo, SMR, apresentar o documento com o título acima, posicionando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e seu esforço no campo da Pastoral da Saúde como um desafio que requer, sobretudo, o amor. 1 - Introdução - A Comissão Organizadora do VIII Congresso Brasileiro de Humanização e Pastoral da Saúde convidou-nos para participarmos deste evento, refletindo sobre o tema “CNBB e Pastoral da Saúde: realidade e perspectivas”. Agradecidas, aceitamos o convite pela consciência que temos da importância da Pastoral da Saúde no seu compromisso com a vida, que é a razão de ser desta Pastoral que nos desafia a cada dia no contexto da realidade em que vivemos. A Pastoral da Saúde se fundamenta na mensagem e no testemunho do próprio Cristo, que veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Hoje, mais do que nunca, a vida está ameaçada e sendo destruída de forma cruel, violenta e institucionalizada. Urge, daí, a necessidade cada vez mais crescente de assumirmos efetivamente nosso compromisso de cristãos, engajando-nos nesta realidade, para transformála, cristianizá-la, recuperando, defendendo e cultivando os valores que favorecem a vida. 2 - Realidade da Pastoral da Saúde - A Conferência dos Religiosos do Brasil sempre se preocupou com a questão da saúde, já que um grande número de religiosos exerce seu apostolado nesse setor. E a partir de 1976 constituiu, inclusive, um Grupo de Reflexão da Saúde, que vem desempenhando a sua missão com muita competência e responsabilidade. Entre as atividades desenvolvidas, anualmente se realizam seminários em nível nacional e regional. A CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) tem o mérito de ter desencadeado e continua motivando a Saúde Comunitária. No seminário realizado em outubro de 1985, em Belo Horizonte, os participantes encaminharam moção à CNBB, solicitando que se organizasse a Pastoral da Saúde em nível nacional, com o objetivo, entre outros, de articulação. Em 1986, a CNBB, com o apoio da CRB, realizou o Encontro Nacional já previsto no “80 Plano Bienal dos Organismos Nacionais da CNBB”. Na página 164 desse plano se lê: “A Igreja, em sua larga tradição de zelar pela saúde e no espírito da CF de 1981 (Saúde para todos), deseja manter viva a preocupação pela saúde do povo brasileiro, como serviço de valor eminentemente evangélico” (cf. Relatório do Encontro Nacional de Pastoral da Saúde, CNBBCRB, Brasília, 8 e 9 de maio de 1986). Ressaltamos, entretanto, que a Igreja sempre se preocupou com os doentes, através da Pastoral dos Enfermos e, com a motivação da CRB, já desde o I Seminário Nacional de Saúde, em 1977, surgiram experiências de Saúde Comunitária em algumas regionais e que hoje já são uma realidade concreta. No Encontro Nacional de Pastoral da Saúde de 1986, a partir das experiências relatadas por diversas regionais, constatou-se que há muitas atividades dentro do campo da saúde. Foram distinguidas três áreas: • um trabalho com enfermos (hospitalar e domiciliar); • um trabalho de Saúde Comunitária ou Popular; • um trabalho em nível de instituições. Os participantes frisaram a necessidade de: • destacar a Pastoral da Criança dentro da Pastoral da Saúde Comunitária; • centrar o trabalho na educação transformadora a partir da Comunidade; • atingir o homem todo, em seus aspectos biológico, psíquico, social e espiritual; • priorizar a educação e organização das comunidades em função da saúde, sob o impulso da justiça, solidariedade e mística;


• dar atenção à sabedoria popular; • ver a mulher como agente de mudança e principal agente da Pastoral da Saúde; • não esquecer o momento político no trabalho de saúde. Enfatizamos que é fundamental somar as forças para atingir o objetivo geral da Pastoral da Saúde, que é o seguinte: “contribuir na promoção, prevenção e recuperação da saúde de todas as pessoas, dentro de sua realidade, para que tenham vida em abundância, que caracteriza a realização do Reino de Deus no mundo”. Para viabilizar as propostas do Encontro e dar continuidade ao processo foi encarregada a Irmã Cacilda Hammes, que acumula essa função com as atividades normais que já vinha realizando. Conseqüentemente, por enquanto, os passos são lentos e limitados. O trabalho vem sendo assumido em equipe. Dentre as atividades desenvolvidas, destacamos a realização do II Encontro Nacional, em Brasília, de 1º a 4 de julho de 1987, que teve como tema central “A saúde comunitária legitimada pela instituição hospitalar”. A escolha desse tema baseou-se no fato de que o povo brasileiro está ainda muito dependente das instituições de saúde, principalmente médicohospitalar, e de que o hospital, tendo visão mais global de saúde (não apenas de doença), favorecerá um avanço significativo na saúde comunitária. Os objetivos do Encontro foram: • desencadear e dinamizar o processo de articulação entre Saúde Comunitária e Institucional (hospitalar); • partilhar experiências; • priorizar as linhas de ação da Pastoral da Saúde; • somar forças na concretização das prioridades assumidas. Foram muitos os questionamentos dos quais destacamos: • como fazer para que o povo se organize, conheça e exija os seus direitos à saúde, inclusive o direito de ser tratado na doença? • como fazer para que o povo se torne agente de mudança? • por que a Pastoral da Criança não está integrada com a Pastoral da Saúde? • como Igreja, estamos dando força ao povo ou ajudamos a manter e fortalecer o sistema? • nosso papel tem sido de denúncia ou somos coniventes com as injustiças? • como cristãos, nos comprometemos com as lutas e o sofrimento do povo ou ficamos como meros espectadores? Dentre as diversas propostas focalizamos: • trabalhar com o povo para que haja sua participação em todas as fases, desde o planejamento de ações de saúde (serviços de saúde) até a cobrança de seus direitos à saúde; • que nosso trabalho de Pastoral da Saúde e Pastoral da Criança e de outras Pastorais seja um trabalho em nível de organização do povo e de caminhada numa perspectiva de fé libertadora. Foram definidas as seguintes competências da equipe de Pastoral da Saúde: 1 - organizar a Pastoral da Saúde em nível de CNBB; 2 - estabelecer linhas prioritárias para a atuação da Igreja no Brasil no campo da saúde; 3 - assessorar a CNBB nas questões relacionadas com a Pastoral da Saúde; 4 - fornecer subsídios à direção da CNBB para que possa tomar atitudes proféticas diante de graves atentados à vida; 5 - motivar a formação de Equipes de Pastoral da Saúde em todos os Regionais e incentivar a articulação entre elas; 6 - incentivar a articulação dos setores de Pastoral da Saúde para que haja unidade: 7 - articular a Pastoral da Saúde com as Pastorais envolvidas com a promoção da vida e demais Pastorais da Linha 6. 3 - Perspectivas


a) elaborar e divulgar subsídios que sirvam para reflexão, formação e ação libertadora no campo da saúde; b) fazer levantamento de experiências onde já acontece a articulação entre Saúde Comunitária e Hospitalar e promover encontros de partilha e aprofundamento; c) promover, juntamente com a CRB, encontros com Provinciais e/ou Assistentes de Provinciais no setor da saúde e administradores de hospitais cristãos para avaliar a presença e a atuação dos religiosos dentro dos hospitais; d) intensificar o processo de conscientização do povo na linha de educação popular para a saúde, a fim de que conheça seus direitos, se organize e os exija, tanto em nível comunitário quanto hospitalar; e) interpelar a prática dos hospitais através da prática da saúde comunitária, com vista a uma participação popular no planejamento e fiscalização dos serviços de saúde; f) comprometer-se a articulação de Saúde Comunitária e Hospitalar, com a luta mais ampla na transformação da sociedade. Concluindo, podemos afirmar que a missão numa Pastoral da Saúde Libertadora está sendo um desafio cada vez mais forte e crescente, e requer muita fé, audácia, perseverança, união e, sobretudo, amor pela causa. Ir. Catarina Pereira de Figueiredo

O horizonte ético e o sistema técnico-científico Padre Olinto Pegoraro discorreu sobre a ética e a ciência biomédica, centrando sua apresentação em recente documento do Vaticano, a “Instrução sobre a vida humana nascente”. Ele sugere mais diálogo para iluminar essa tão sublime e complexa questão. O esforço de compatibilizar o horizonte ético com o sistema técnico-científico exige muita flexibilidade e capacidade de distinguir entre elementos verdadeiramente radicais e inegociáveis e os pontos transitórios, contingentes de nossas teorias éticas e científicas. Qualquer que seja a teoria ética que defendamos, será sempre absolutamente fundamental manter o horizonte ético na forma acima proposta ou numa outra. Mas, no curso da existência, será sempre difícil avaliar adequadamente as atitudes das pessoas e os avanços técnico-científicos. Esta dificuldade aumenta quando entra em jogo a vida humana. O poder de intervenção técnico-científica em nossa vida cresceu muito nas últimas décadas, trazendo enormes benefícios às pessoas. Mas os benefícios têm uma contrapartida problemática. Colocam-se sobretudo problemas genéticos, éticos, político-sociais e religiosos. E, em muitas situações, ainda não vemos a possibilidade de compatibilizá-los satisfatoriamente. Uma coisa é certa: nossas teorias abertas e históricas são o campo para um esforço fecundo de compatibilização. A propósito, recentemente o Vaticano lançou um documento a respeito da reprodução humana (“Instrução sobre a vida humana nascente”, Tipografia Poliglota Vaticana, 1987). Tema da mais alta importância e eivado de questões não resolvidas e que preocupam a todos: cientistas, políticos e religiosos. O documento trabalha em três níveis: teológico, filosófico e técnico-científico. O objetivo é “expor os critérios de juízo moral sobre as aplicações da pesquisa científica e da técnica, particularmente naquilo que diz respeito à vida humana e aos seus inícios” (6). E um grande esforço de compatibilização do avanço técnico-científico com o horizonte ético a respeito da ciência biomédica. O horizonte ético do documento insere-se na concepção naturalista. Supõe uma “adequada concepção da natureza da pessoa humana na sua dimensão corpórea” (8). Somente “seguindo a sua verdadeira natureza, é que a pessoa humana pode realizar-se como totalidade unificada” (8).


Sendo assim, o documento perde a historicidade. Torna-se um documento a-temporal, que podia ter sido escrito tanto no século passado como poderá ser escrito no próximo século. Firma-se na imutabilidade da natureza humana e no postulado de sua inviolabilidade incondicional. Uma vez estabelecido este horizonte ético, o documento julga as principais práticas da técnica médica relativas à procriação e à atuação sobre o embrião humano. E o faz casuisticamente, no sentido de que a cada caso bem definido se aplica o critério ético. Exige respeito absoluto ao feto desde o instante da concepção, sem fazer nenhuma alusão ao grande debate que a este respeito se travou desde Aristóteles até nossos cientistas. Defende a dignidade e o direito à vida aos embriões humanos obtidos in vitro, mas denuncia “a particular gravidade da destruição voluntária dos embriões humanos obtidos in vitro, unicamente para fins de pesquisa, seja mediante fecundação artificial como por fissão gemelar” (18). Denuncia também a fecundação artificial heteróloga e homóloga, visto que a ética natural exige que a concepção humana se faça pelo ato conjugal dos esposos. Também a maternidade substitutiva (útero de aluguel) é considerada “contrária à dignidade da procriação da pessoa humana”. O documento contempla favoravelmente um só caso ligado à inseminação artificial homóloga, quando a técnica médica “pode ajudar o ato conjugal” dos esposos, “facilitando a realização plena” (32). É evidente que o horizonte ético adotado não ajuda a compatibilizar o enorme avanço da ciência médica a respeito da reprodução humana. Na perspectiva desse horizonte ético, dever-se-ia fechar os centros de pesquisa que se ocupam de tão grave e delicado assunto. Por outro lado, o documento se serve de preciosas informações técnico-científicas obtidas exatamente nestes laboratórios. Informações que melhoram a existência humana e ajudam a avançar os critérios de avaliação ética de nossa vida em sua fonte. Faltou ao documento a dimensão histórica que tenta avaliar a imensa complexidade do problema. Complexidade e obscuridade que sugerem cautela e flexibilização na avaliação. Neste terreno, as afirmações definitivas arriscam ser pelo menos pouco informadas e, por isso mesmo, parciais. Então, que fazer? Certamente, a melhor atitude é a retomada do diálogo nesta área tão complexa. Sem dúvida, o horizonte ético e o sistema técnico-científico terão que iluminar-se mutuamente, de modo especial a respeito do fato tão sublime e misterioso que é a transmissão da vida humana. Neste sentido, o documento ajuda com duas colocações importantes. A primeira, quando diz que “aquilo que é tecnicamente possível não é necessariamente, por esta mera razão, admissível do ponto de vista moral” (10). Formulação preciosa, mas que não é nem desenvolvida, nem aproveitada no conjunto do documento. O sistema técnico-científico não pretende derrubar o horizonte ético. Nem exige impor-se a qualquer preço. O diálogo entre os dois sistemas vai descobrindo pontos de encontro e de equilíbrio, segundo a dignidade do homem e segundo os méritos da ciência. Outra colocação importante do documento é o apelo final dirigido aos legisladores e políticos das nações, recomendando que se esforcem, “através de sua intervenção junto à opinião pública, para obter na sociedade o consenso mais vasto possível acerca de tais pontos essenciais” (37). Esta colocação é de grande importância, visto que os problemas éticos não são reservados a filósofos ou a teólogos, mas especialmente ao poder da comunidade, representada por seu corpo político. A natalidade humana deve subordinar-se ao poder político, que a equacionará conforme as situações culturais, sociais e éticas dos cidadãos. Pe. Olinto Pegoraro, religioso camiliano


É fundamental a interação com o paciente O enfermeiro deve valorizar o relacionamento terapêutico, a comunicação pessoa-apessoa. E refletir sobre o seu verdadeiro papel. É o que pensa Maria de Fátima Prado Fernandes, enfermeira do Hospital das Clínicas, de São Paulo. “Felizes os que escolheram a Enfermagem para amá-la”. Esta frase é uma das muitas carinhosas palavras do Dr. Carlos Lacaz. Mas eu completaria esta questão, colocando: Felizes aqueles que, amando o próximo, escolhem conscientemente sua profissão, afim de atender o ser humano. Enfermagem, é claro, se insere neste contexto, e o enfermeiro muito pode fazer pelo paciente, assistindo-o como pessoa. Vocês já pensaram no que o paciente espera de nós, quando entra no hospital? Muitos respondem que é aliviar sua dor, recuperar-se, ou mesmo receber remédios, cápsulas, injeções. Acredito que o paciente necessita, sobretudo, de uma comunicação humana, de atenção individualizada. Da mesma forma que nós, quando entramos no hospital, não conseguimos separar o nosso eu-pessoal do nosso ser profissional - isto é, continuamos com nossas emoções, sentindo simpatia, nos alegrando ou entristecendo-nos com o quadro que o paciente apresenta -, ele também, quando chega ao hospital, não consegue deixar em casa seus problemas familiares, de trabalho, para simplesmente ser paciente, ou pensar apenas no seu tratamento. Ele se vê privado de seus hábitos, suas iniciativas, com interrupção de suas atividades. A angústia cresce, a pressa de voltar para casa se perpetua, manifestando-se, às vezes, em alterações voltadas para o desconforto. Não há remédios que o consolem, apenas a palavra e a presença amiga podem fazê-lo, uma vez que sua família não pode permanecer ao seu lado. O paciente necessita sentir-se amado, junto a pessoas que o respeitem, que se interessem por sua evolução. Visto que uma só pessoa não poderá atender o paciente em todas as suas necessidades, a equipe multiprofissional deveria apresentar características de uma real equipe humanizada, isto é, que veja o paciente como pessoa, dentro de um relacionamento de interajuda. Isto porque o mesmo deve tornar-se parte da equipe, expressando seus sentimentos e compartilhando suas idéias, dentro de uma relação de franqueza, respeito e aceitação, para que haja um processo de aprendizagem, enriquecimento em todas as direções. Às vezes, fico imaginando: será que é tão difícil aprender a controlar nossas próprias atitudes, tornar pequenos os grandes problemas, valorizando apenas aquilo que nos faz crescer como seres humanos? A paciência é, hoje, uma palavra tão solicitada, e no entanto tão esquecida! Nós compreendemos aquilo que gostaríamos de ouvir, e fingimos não entender, muitas vezes, o que o paciente quer falar-nos. Refletimos, nesse momento, um egoísmo, deixandonos engolir pela tão falada tecnologia e sofisticação, papéis, informações e outros. Com isso, vêm os momentos de atropelos, caminhamos sem perceber o que ocorre ao nosso redor. E o paciente está ali, observando tudo e todos, pois, enquanto todos buscam cumprir suas funções, ele está parado, olhando, admirando, tentando aproximar-se. Assustado, fica calado, com medo de perturbar, sentindo solidão, e fora de seu ambiente, agora hospitalar. É triste, mas é fato: as pessoas estão se esquecendo do básico, que o paciente necessita de compreensão e calor humano. Será que é difícil demonstrar respeito, sinceridade, disponibilidade em doar-se, deixar transparecer-lhe que nós também necessitamos de calor humano, de sua bondade, ouvindo-o sem julgamento e explicando nossas ações, a fim de transformar os porquês do dia-a-dia no simples viver e amar?! Como dizia Horta, a Enfermagem é “gente que cuida de gente”, e essa verdade prevalece, mesmo que, atualmente, ainda encontremos pessoas que desconhecem simplesmente esse princípio de amor. E por que essas pessoas não param para tomar consciência, questionando, de tempos em tempos, do que é preciso fazer para tornar o local de trabalho mais humano? Como contri-


buir para isso, frente a cada esforço individual? É preciso, antes de tudo, que o profissional abra espaço para ouvir o grito, o gesto e causa do sofrimento do paciente. É preciso que se valorize o relacionamento terapêutico, a comunicação enfermeiropaciente, ou seja, pessoa-pessoa, encorajando-o a expressar suas emoções, utilizando frases como: O que você gostaria que eu fizesse por você? Como eu posso ajudá-lo? É bom lembrar que somos seres de possibilidades: é só querer, e seremos capazes de assumir mais e mais nossas próprias características humanas, com dignidade e amor. E como é bom e saudável poder segurar a mão do paciente, passar-lhe a mão na testa ou descansá-la pausadamente no seu ombro, para comunicar-lhe nosso interesse, transmitindo segurança e promovendo seu bem-estar! Para que isso ocorra, basta apenas assumir um compromisso de ajuda para com ele, lembrando sempre que o mesmo tem seu valor, seus pensamentos, suas vontades, suas emoções, sua personalidade e peculiaridades, e que lhe são próprias. Por acreditar e vivenciar tudo isso, muito cresci como pessoa e enfermeira, pois tive o rico privilégio de aprender com meus pacientes. Na verdade, precisei e continuo a necessitar do colorido que eles proporcionam a nós, profissionais, no dia-a-dia, pois, através de seus gestos, um pequeno brilho nos olhos, no silêncio, nas palavras, lágrimas, sorrisos, experiências, expressões de amor, agradecimento, eles me ensinaram, nestes pequenos e ricos momentos, sem perceber, o meio singelo de alimentar o meu amor em exercer minha profissão. Já ouvi deles palavras que me comoveram, um olhar terno, fraterno e amigo, às vezes como enfermeira, outras como filha, conselheira. Escutando frases como “obrigada por me ter ouvido”, “estou sofrendo tanto, mas só de pensar que você está aqui tenho forças para voltar”, “você parece meu anjo da guarda”, “você me transmite paz”, “eu me sinto tão bem quando você vem me visitar...” Permaneci curtos e longos momentos com o paciente, já ri, brinquei, me zanguei, chorei, partilhei, escutei, falei, mas sempre respeitando e compartilhando idéias, dentro de um limite, com muita sinceridade, no propósito de ajudá-lo, confortá-lo, ao aceitar seu real estado, mesmo que seu caminhar se direcionasse para a última jornada. Desta forma, vou-me renovando, na certeza de que sempre existe algo a ser feito, a percorrer, sempre alguém está ali, precisando de nós, esperando atitudes, mas não numa posição rígida, e sim através de uma força humana, guiada pelo amor ao próximo, transmitida pelo dinamismo junto à humildade, repousada na serenidade e no carinho que fica contido na doação. E nesta consciente condição de “ser e fazer”, vou vivendo a Enfermagem, procurando distinguir o momento oportuno de doar, receber e compartilhar, para que haja um crescimento aprendiz, em busca de novos frutos e sementes. Maria de Fátima Prado Fernandes

Para humanizar os lugares de sofrimento Transcreve-se aqui, da edição de 19 de julho, o texto de “L'osservatore Romano”, que traz a alocução do Papa João Paulo II ao receber, em 7 de maio, os Irmãos de São João de Deus e os Camilianos participantes do Congresso Europeu sobre a “Presença e missão no mundo da saúde”. Caríssimos Religiosos “Fatebene-fratelli” e Camilianos: 1)- Sinto grande alegria em acolher-vos juntos nesta Audiência a vós reservada, e com viva cordialidade manifesto a todos o meu afeto, dirigindo um particular pensamento aos Superiores-Gerais, o Irmão Pierluigi Marchesi, e o Padre Calisto Vendrame, que promoveram o Congresso Europeu sobre a “Presença e Missão no Mundo da Saúde”. Estendo a minha saudação afetuosa e de bons votos também vossos Irmãos de hábito espalhados pela Itália e pelo mundo, bem como às Religiosas que participam do vosso Carisma e no vosso apostolado.


Saúdo também o caro Monsenhor Forenzo Angelini, Pró-Presidente da Pontifícia Comissão para a Pastoral dos Agentes Sanitários. A ocasião desse encontro com as duas Ordens religiosas é deveras significativa e singular: a comemoração do primeiro centenário da proclamação dos vossos fundadores, São Camilo de Léllis e São João de Deus, como padroeiros dos hospitais e dos doentes, por parte do meu predecessor Leão XIII. Quisestes sublinhar tal circunstância reunindo-vos num Congresso de vastas proporções, para vos interrogardes sobre o significado e a presença dos vossos dois institutos no mundo atual e para delineardes um programa pastoral na perspectiva do futuro. Da minha parte exprimo-vos, antes de tudo, a minha satisfação por esta iniciativa tão correspondente às necessidades nos nossos tempos, que exigem cada vez maior comunhão e colaboração entre todos aqueles que têm a felicidade de crer em Cristo, e mais ainda entre aqueles que estão a Ele consagrados. Desejo depois assegurar-vos a minha participação nos vossos problemas e nas vossas preocupações acerca da atividade típica das vossas Ordens em relação aos doentes e aos lugares de cuidados da saúde. 2)- Os tempos, em que fomos chamados a viver, levantaram múltiplas questões, que devem ser enfrentadas com serenidade e coragem, sem jamais se esmorecerem os ideais cristãos, que são o fundamento da nossa vida, e também os carismas próprios das vossas Ordens. A Pastoral nos hospitais tornou-se mais difícil e exige preparação e qualidade específicas; o voluntariado é uma realidade certamente positiva, que requer, porém, capacidade de avaliação, de orientação e de organização; as relações com as Igrejas locais, com os comitês éticos, com o Conselho Pastoral dentro do hospital, com os agentes sanitários, impõem uma atenta e constante vontade de escuta e de serviço; sobretudo o empenho de humanizar os lugares do sofrimento e de apoiar aquele que, na sociedade do bem-estar e do consumo, é atingido pela doença e pelo temor da morte, requer grande caridade, paciência e doação. Nesta luz vos exorto, caros religiosos, a abrir-vos cada vez mais aos vossos colaboradores leigos, suscitando neles o desejo de uma relação que vá para além do simples âmbito profissional para alí aumentar uma participação na vossa dimensão apostólica. Compreendo plenamente as vossas ânsias pastorais, e espiritualmente estou junto de vós com a minha estima, o meu encorajamento e a minha oração, nos hospitais onde prestais serviço, ao lado de tantos doentes, especialmente nas nações mais pobres e necessitadas. Muitas coisas mudaram e sob numerosos aspectos, mudaram decisivamente para melhor, a partir do período em que viveram os vossos santos fundadores; mas o carisma de São João de Deus e de São Camilo permaneceu e deve permanecer intacto em vós, que sois os seus filhos espirituais: aquele carisma que faz com que se veja em cada doente um irmão a amar e a servir em Cristo e como Cristo, com aquele afeto - como escrevia São Camilo nas Regras - que uma mãe amorosa sempre sente para com o seu único filho enfermo (Reg. XXVII) e com aquele ardor de caridade que dimana do coração de São João de Deus, e que se concretizou no quarto voto de hospitalidade. Por mérito das duas Ordens nascidas a breve distância de tempo, uma cruzada de amor para com os sofredores difundiu-se pelo mundo, tão concreta e tão edificante, que, a 27 de maio de 1886, Leão XIII, com o Decreto “Inter omnigenas virtudes” declarou São João de Deus e São Camilo de Léllis padroeiros dos hospitais e dos doentes e, em seguida, Pio XI, com o breve “Expedit plane”, designou-os padroeiros dos enfermeiros, das enfermeiras e das suas associações. 3) - Agora, depois deste importante Congresso Europeu, deveis retomar o vosso caminho. A luz dos exemplos e dos ensinamentos dos vossos fundadores, deveis estar persuadidos de que, para realizar a vossa missão, para humanizar os hospitais, para servir os doentes na atual sociedade, para suscitar outras vocações nas vossas Ordens, é necessária sempre e sobretudo uma profunda e convicta vida interior. “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5).


O homem de hoje tem necessidade do vosso testemunho como pessoas firmemente crentes e consagradas a Deus! Muitos hoje tendem a reduzir o cristianismo unicamente à dimensão do amor do próximo, esquecendo Deus, a adoração, a oração. É sem dúvida importante ser sensível às responsabilidades civis e caritativas, que impõe o cristianismo; mas não se deve esquecer o primeiro mandamento. Jesus deu a sua vida pela redenção da humanidade e foi contemporaneamente o primeiro e verdadeiro adorador do Pai. O “homem tecnológico”, que deposita toda a sua confiança e todo o interesse na ciência e na técnica para obter o máximo de bem-estar, encontra-se depois desiludido e amargurado diante do revés fatal da doença, do sofrimento moral, da morte inexorável. O “homem tecnológico” torna-se, por isso, o “homem solitário”, porque debilitado, ameaçado, vencido. A dor física, unida à dor moral, torna-se uma “dor existencial”, e, aberta ou ocultamente, uma “dor religiosa”, suscitando os supremos interrogativos e o pedido de significado. A solidão do homem moderno e a nostalgia de uma resposta que dê sentido à existência, são para vós estímulo a um zelo pastoral cada vez mais ardoroso e incisivo. Aprecio quanto fazeis para curar os doentes e para humanizar os hospitais, e o esforço que vos anima na ajuda aos doentes e aos agentes sanitários, a fim de que adquiram ou recuperem com serenidade o sentido religioso da vicissitude humana, que, envolvida como está no mistério da Providência, inclui também os momentos do sofrimento como apelo ao Absoluto, e está necessariamente orientada para a Realidade transcendente e eterna, para além do tempo e da história. Os doentes têm necessidade de especialistas, que dêem confiança, esperança, conforto e apoio. Hoje, juntamente com a competência profissional, o vosso carisma exige em máximo grau sensibilidade pastoral. 4) – “Não amemos com palavras, nem com a língua - escrevia o Apóstolo São João -, mas por ações e em verdade” (1Jo 3,18). Muitos dos vossos Irmãos de hábito deram com heroísmo a vida durante a peste e a cólera e nos períodos de guerra, enquanto se enfureciam as batalhas, precisamente porque a sua profunda vida interior os levava a tais ímpetos de ardente caridade. Agora, junto dos anciãos, dos marginalizados, dos toxicômanos, dos doentes e dos moribundos, é preciso igualmente o amor iluminado pela fé cristã, é preciso fé com o rosto da bondade. Olhando para Cristo crucificado e confiando em Maria, com aquele ardor de fé cujo exemplo é dado por São João de Deus e São Camilo de Léllis, conservai a paz nos vossos ânimos, enquanto levais saúde e conforto aos doentes a vós confiados, trabalhando juntos para servirdes melhor! E acompanhe-vos também a minha Bênção, que agora vos concedo de todo o coração e faço extensiva aos vossos Irmãos de hábito e às Religiosas dos vossos Institutos.

Mania de esmola O texto a seguir, extraído de recente edição de “Lar Católico” (número referente a 915 de agosto de 1987), é de autoria de Dom Antônio Celso Queiroz, Secretário Geral da CNBB. Sua transcrição é feita para que seja tema de reflexão pelos agentes de Pastoral da Saúde. A partilha não é fácil. Ela supõe uma dupla conversão. Conversão da mania de ajuntar para si, e conversão da mania de dar esmola para os outros. A primeira conversão é mais fácil de compreender do que a segunda. A esmola, com freqüência, encobre um egoísmo maior. Ela só é expressão de amor fraterno quando é a única resposta possível e inadiável diante de uma situação de penúria. É o dar de comer a quem, aqui e agora, passa fome. É dar cobertor a uma família carente neste inverno... Mas a esmola se torna perversão quando toma o lugar da promoção da justiça ou quando usada como meio normal, constante e único de solidariedade fraterna. Nesse caso, a


esmola passa ser simples doação na mão ou na bandeja que se estende para nós. Não nos privamos de nada, não resolvemos a situação do irmão e, apesar disso, nossa consciência fica tranqüila. Totalmente diverso é o gesto fraterno da partilha. É uma decisão consciente de repartir com o outro. Não é dar do que sobra, é dividir o que se tem. A partilha muda nossos planos e nos obriga a reprogramar a vida por causa dos irmãos. Isso é verdade para a criança que se priva de mais um doce, para o jovem que já não vai comprar um novo jeans, para o adulto que abandona a idéia de comprar um novo eletrodoméstico... Isso é, igualmente, verdade para a comunidade que volta atrás na decisão de trocar as luminárias ou para a Paróquia que deixa para os próximos meses a conclusão do novo salão. Só a partilha converte porque mexe na vida: converte pessoas e comunidades. Se esmola convertesse, os ricos seriam santos, e os pobres jamais chegariam ao amor fraterno, porque pobre não dá esmola: nada lhe sobra. Ao contrário da esmola, a partilha consegue também os resultados financeiros significativos que possibilitam soluções de fundo para situações de carência. O resultado de nossas coletas indica bem como é difícil converter-se à partilha. Muitos de nós são ainda incapazes de repartir e, após toda uma quaresma, dão a costumeira esmola, talvez um pouco acrescida. E a mania da esmola passou das pessoas para as comunidades e Paróquias. Há várias delas que, diante do apelo à partilha, reagem com mentalidade de esmola: ou não participam porque “somos pobres também”, “também estamos em obras”, ou deixam cair alguns trocados... A mania da esmola está indo longe. A sociedade e o governo se negam a tomar as medidas políticas que levam à repartição da renda, e apelam para a esmola para ajudar o povo pobre: esmola da assistência, do leite e, agora, do pão... Mas nem no nível social, nem comunitário ou individual, a esmola resolverá as verdadeiras carências. Nesse sentido, é verdade a palavra de Jesus “pobres, sempre os tereis convosco”. Enquanto se tentar resolver o problema da pobreza, dando esmolas, como queria Judas, ele ficará insolúvel. Igualmente os grandes problemas das comunidades e da Igreja. Sem a partilha, as Paróquias ricas continuarão ricas, e as pobres se empobrecerão mais. Sem a partilha, grandes necessidades ficarão sem solução e grandes recursos serão gastos no supérfluo. É igualmente a mentalidade da esmola que dificulta a introdução do dízimo em nossas comunidades. É mais fácil dar trocados do que se comprometer a partilhar o que se tem. Para nós, cristãos, a partilha tem ainda um significado evangélico mais profundo. A verdadeira partilha é sempre comunitária. Diante de uma grande necessidade, um grupo decide reunir-se para partilhar. Uma maneira excepcionalmente rica de realizar a Palavra do Senhor: “Se dois ou três estiverem de acordo, o que pedirem lhes será concedido, pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18, 19-20). Se o Senhor está presente quando dois ou três se põem de acordo para pedir, quanto mais sua presença se fará forte quando dois ou três se põem de acordo para partilhar com os irmãos! A força da partilha vem, assim, da própria presença do Senhor. Por isso, a partilha converte - muda o coração - e resolve o problema - muda a situação. Dom Antônio Celso Queiróz

Entre sociedade democrática e demagogia A sociedade democrática tem seus demônios, menos identificados do que os das ditaduras. Contra a iniqüidade do sistema estabelecido” (outros dizem “imposto”, mas todo sistema normativo não é imposto por aqueles que detêm o poder decisório aos que menos gostam dele? Discutível não é tanto a imposição quanto o modo de formação da norma ou da transformação do regime), levantou-se entre nós a esperança das Comunidades Eclesiais de Base.


Sua estratégia educativa comporta excelentes prospectos, mas pouco compromete os segmentos detentores do poder social efetivo. Na medida em que envolve o comportamento das massas, levanta outrossim a questão da psicologia da multidão, a respeito da qual J. Delumeau adverte: “Os caracteres fundamentais da psicologia duma multidão são sua influenciabilidade, o caráter absoluto de seus julgamentos, a rapidez dos contágios que a permeiam, o enfraquecimento ou a perda do espírito crítico como do sentido da responsabilidade pessoal, a subestimação da força do adversário, sua aptidão a passar da condenação ao entusiasmo, das aclamações às ameaças.... (La peur en Occident, 14, inspirado por F. Anionioni, L'agressivité collective). De nada adiantaria contestar esta lista: sua fonte não é ideológica, mas empírica; apenas podemos constatar que a maturidade das CEBS as impede de cair em tais perigos, mas quantas CEBS chegam à maturidade almejada? Todos pretendem construir uma sociedade democrática, mas os meios e caminhos usados ou projetados são tão desencontrados que não resulta nenhum conceito unânime de democracia. Sugerimos que ela caracteriza uma corrente de ajustamentos políticos que, junto com as relações econômicas, estruturam a vivência ético-social duma comunidade, geralmente nacional. Democracia é uma estruturação que tem muito a ver com a conquista de direitos humanos, isto é, tem uma história: a reivindicação grega dos cidadãos (os nobres da Cidade, não os escravos ou estrangeiros) a fim de participar no governo da Cidade autônoma; a exigência dos ingleses inscrita na Carta Magna da grande ilha, de não serem conduzidos onde não querem; o senso da liberdade dos pilgrim fathers que fundaram os Estados Unidos numa fraternidade de cristãos trabalhadores; o lema dos revolucionários franceses ao derrubar uma monarquia sonolenta, “Liberdade, igualdade, fraternidade”. Suas modalidades devem ajustarse aos tempos e lugares, mas não chegamos a pretender que “é preciso reinventar a democracia” (chega de novidade pela novidade), sobretudo se pretende-se com isto “reencontrar um lugar conceitual”. Democracia não é lugar conceitual algum, é vivência de certos valores suscetíveis de amadurecer numa nação, mas que não costumam aparecer de repente pela magia dum novo texto constitucional ou pelo carisma pessoal dum providencial pai do povo. Democracia faz aderir a um ideal de liberdade concreta, de relativa igualdade de oportunidade e de igualdade real diante da lei, de solidariedade integrada e estruturada num regime de direito. Não cultiva afinidade com o arbitrário e os conflitantes mundos do irracionalismo. Em outras palavras, a ela opõem-se os hábitos do nepotismo, do clientelismo, do coronelismo, do investimento econômico (tipo de aposta) como armação mais substancial da propaganda política (em vez da honesta concorrência entre programas alternativos), da corrupção para promover uma sigla ou um grupo de interesses. Nestes caminhos dificilmente haverá democracia fora das palavras e conceitos. O divórcio entre as promessas do impossível, que visam agradar a cada categoria social, e uma prática a serviço de interesses muito mais restritos, não pertence tampouco a autêntica tradição democrática, ainda que se queira reinventá-la. Democracia consiste, antes, em seguir a opinião e decisão da maioria, previamente esclarecida, elaborada na perspectiva do bem comum amplo, possivelmente através do programa dos partidos, e em respeitar os legítimos interesses das minorias. A essência da democracia reside para nós nestes dois itens juntos. Dificilmente agrada-se a todo mundo, senão em base de equívocos que cedo ou tarde vêm a se desfazer. Governar é escolher no concreto, nem que seja à luz de princípios abstratos. Governar coerentemente é manter uma certa hierarquização nestes valores, sem divorciar teoria e prática. O que a ética social cristã exige não é necessariamente um rei ou um presidente da República, é que o interesse comum seja promovido pelo Estado e os direitos das minorias respeitados. Um pouco de conhecimento histórico não prejudica no intuito de evitar as ciladas dos utopistas que pretendem criar novos conceitos, ainda que a história nunca se repita servilmente e que a aspiração para melhorias constitua indispensável incentivo ao esforço político.


Isto não quer dizer que a maioria não se possa enganar redondamente na determinação de seu bem, para não falar no bem da humanidade. Uma das melhores administrações da velha República não se deu com Campos Salles e seu ministro Joaquim Murtinho, após o que o primeiro saiu vaiado do cargo da Presidência da República? As massas reclamam amplos benefícios imediatos (amiúde legitimamente), ao passo que as elites no poder agem afim de manterem seus privilégios; nem isto, nem sempre aquilo é forçosamente compatível com o bem comum a longo prazo. A democracia é como a paz: à parte de um ideal a ser perseguido, não constitui entidade absoluta. Democracia não chega a viger como regime perfeito; honra-se em oferecer a menos imperfeita das alternativas concretas. Difícil ao se estabelecer uma democracia real é não confundi-la com alguma forma cativante de demagogia. Roberto Campos e J.O. de Meira Penna admitem que o País sempre viveu, em sua história financeira fantástica, em períodos cíclicos de perdulários alegres, levianos que estimulam a inflação, e de sovinas macambúzios, impopulares, que restabelecem a seriedade da poupança. Quais deles gozam de mais prestígio, não é mister dizer. Governar não é só escolher, mas prever e, portanto, responsabilizar-se pelas conseqüências previsíveis das opções feitas, ainda que as massas não enxerguem estas conseqüências que se vão abater sobre sua cabeça, talvez durante o governo de dirigentes ulteriores, já que os erros políticos demoram a oferecer ou impor seus frutos. O venezuelano Carlos Rangel apontou no “egoísmo grupal” o motivo principal do atraso do continente sul-americano. “Conseqüentemente, como conciliar racionalmente o interesse geral a longo prazo com o de parcelas míopes da população que só vêem seu interesse restrito e imediato?” (de Meira Penna). A miopia verificasse em vários ambientes, anda que a miopia dos poderosos seja mais prejudicial do que a miopia dos simples sonhadores. O pior resulta de sua conjunção, quando os utopistas elogiam a irracionalidade, suporte real de todas as injustiças cometidas. Os regentes da situação nem esperavam este apoio. Pe. Hubert Lepargneur, religioso camiliano


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