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ARRISCAR... Sorrir é arriscar parecer tolo. Chorar é arriscar mostrar-se sentimental. Partilhar sentimentos é arriscar revelar o verdadeiro eu. Expor idéias e sonhos frente à multidão é arriscar perdê-los. Amar é arriscar não ser compreendido. Viver é arriscar morrer. Ter esperança é arriscar experimentar o sabor do desespero. Tentar fazer algo é arriscar falhar. É necessário arriscar, porque o maior perigo na vida É simplesmente nada arriscar. Sofrimentos e tristezas podem ser evitados, porém Não se pode aprender a sentir, a mudar, a crescer, a amar e a viver Acorrentado pelas próprias certezas, vive-se escravo, Porque já se perdeu a liberdade. Somente a pessoa que arrisca... é livre. PESQUISA NO «ANIMA NOBILE» Evolução contemporânea do pensamento ético Pós-graduado pela Escola Paulista de Medicina e médico do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, Hélio Begliomini apresenta de modo retrospectivo e objetivo as mais Importantes resoluções a nível internacional e nacional dos últimos 40 anos, que nortearam a mudança do pensamento ético no que tange às experimentações em seres humanos. O enfoque ético no que se refere às experimentações no homem, quer para diagnósticos, quer para tratamento, tem sofrido profundas modificações nestes últimos anos. Entre elas, citamos as «barbaridades científicas» ocorridas ao longo da II Guerra Mundial, a tragédia teratalógica com o uso da talidomida e a própria «evolução» do pensamento médico, bem como de toda a sociedade, visando a uma melhor compreensão da dignidade e respeito da pessoa humana. Desafortunadamente, esta dita evolução apresenta uma visão míope, pouco abrangente, pois, por um lado, coibe acertadamente procedimentos considerados antiéticos em adultos e, por outro, fecha os olhos para uma gama enorme de experimentações sutilmente bárbaras, envolvendo os mais variados aspectos da fecundação e primórdios da vida humana. Entretanto, não entraremos nestas considerações, uma vez que temos a finalidade de enaltecer e divulgar objetivamente os pontos positivos do amadurecimento ético no que tange ás experimentações em humanos. A primeira declaração internacional sobre pesquisas em seres humanos foi o Código de Nuremberg, promulgado logo após a II Guerra Mundial, em 1947. Nada mais exprimiu do que as conclusões do julgamento de médicos que realizaram experiências atrozes e desumanas no decorrer da guerra. Ressaltamos que tal código dá especial ênfase ao «consentimento voluntário» ou «consentimento consciente» por parte da pessoa. Este foi um fato inédito e um marco histórico, considerado absolutamente essencial.


Em l964, a Associação Médica Mundial, em sua18º Assembléia, adotou a Declaração de Helsinque - Finlândia (Helsinque I), que era um conjunto de normas para a orientação dos médicos responsáveis por pesquisas clínicas, tanto terapêuticas quanto não-terapêuticas. A repercussão favorável desta declaração teve caráter mundial, e é o esteio da utilizada hoje em dia. Em 1975, a 29º Assembléia da Associação Médica Mundial, em Tóquio –Japão, revisou e ampliou o alcance da Declaração de Helsinque, incluindo as pesquisas biomédicas em seres humanos. Tal modificação é também conhecida como Helsinque II. Entre as novas e importantes disposições desta revisão, encontram-se a necessidade de que os protocolos de experiências para pesquisas em seres humanos sejam encaminhados a uma comissão independente, para efeito de apreciação, comentários e orientação, especialmente nomeada para este fim (artigo 1,2); que os seres humanos não sejam utilizados em pesquisas, a menos que o «consentimento consciente do paciente, dado livremente», tenha sido obtido depois de o mesmo ter sido adequadamente informado sobre os «objetivos, métodos, benefícios esperados, riscos potenciais e inconvenientes» da experimentação, e que ele tenha a liberdade de se abster e de cancelar sua participação a qualquer momento (artigo 1,2); que esse protocolo deva sempre conter uma declaração sobre as considerações éticas implicadas e, ainda, mencionar que houve obediência aos princípios enunciados na declaração (artigo 1,12); que não devam ser aceitos para publicação relatórios de experiências que estejam em desacordo com os princípios estabelecidos na declaração (artigo 1,6). Em 1983, a 35º Assembléia da Associação Médica Mundial, em Veneza - Itália, revisou e atualizou a Declaração de Helsinque, sem contudo fazer grandes modificações nos preceitos anteriores. Outro documento importante a ser mencionado é constituído pelas Diretrizes Internacionais para a Realização de Pesquisas Biomédicas em Seres Humanos. Trata-se do resultado de um amplo estudo iniciado em l976, onde foram consultados diversos especialistas de uma variada gama de conhecimentos, mediante as respostas de um questionário enviado aos serviços oficiais de saúde e faculdades de medicina de muitos países em desenvolvimento. Tal material foi aprimorado durante o ano de 1980 e endossado em sua forma atual pelos organismos que coordenaram tal projeto, a saber: Comitê Executivo do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas COICM (Council for International Organizations of Medical Sciences - CIOMS), em sua 56º Sessão, e o Comitê Consultivo sobre Pesquisas Médicas da Organização Mundial da Saúde, em sua 23º Sessão, ambos no ano de 1981. Trata-se de diretrizes que vem complementar aquelas da Declaração de Helsinque, bem como ampliá-las em determinados pontos. Neste sentido, evidenciaremos seus principais aspectos no que tange aos seguintes grupos envolvidos: 1. Crianças: Estas nunca deverão ser submetidas a pesquisas que possam de igual modo ser realizadas em adultos. Nas condições patológicas próprias da infância, sua participação é indispensável, porém sempre após o devido consentimento de um dos pais outro tutor legal, desde que tenham recebido uma explicação completa sobre os objetivos do experimento e seus possíveis riscos, desconforto ou inconvenientes. Em crianças de maior idade cronológica e mental, deve-se, sempre que possível, buscar sua participação em tal consentimento com as devidas ponderações entre os riscos e benefícios de sua condição mórbida frente à experimentação a ser submetida, e as limitações inerentes ao seu juízo. Por ouro lado, as crianças não devem ser sujeitas a pesquisas que não impliquem beneficio potencial a seu favor, salvo com o objetivo de elucidar condições fisiológicas ou patológicas peculiares à infância. 2. Gestantes e Lactantes: Não devem ser submetidas a pesquisa não terapêutica que acarrete qualquer possibilidade de risco para o feto ou neonato, a não ser que seu objetivo seja o de elucidar problemas de gravidez e lactação.


Por ouro lado, as pesquisas terapêuticas devem visar a melhora da saúde da mãe, sem prejudicar o feto ou lactante, aumentar a viabilidade do feto ou contribuir para o desenvolvimento sadio do lactante, ou a capacidade da mãe de alimentá-lo adequadamente. 3. Doentes e Deficientes Mentais: De modo igual ao grupo infantil, jamais deverão ser sujeitos a experimentações que possam com o mesmo efeito ser realizadas em adultos com pleno domínio de suas faculdades intelectuais. No entanto, são os únicos indivíduos disponíveis para a realização de pesquisas sobre as origens e tratamento de doenças ou deficiências mentais. Com relação ao consentimento pós-informado, deve-se procurar a concordância de familiares imediatos - cônjuge, pai, filho adulto ou irmão - embora, às vezes, seja de valor duvidoso devido à consideração de suas famílias como ônus indesejável. Nos casos em que a pessoa foi compulsoriamente recolhida a uma instituição em decorrência de uma ordem policial, poderá ser preciso obter aprovação legal prévia. 4. Grupos Sociais Vulneráveis: Tem-se em mente aqueles candidatos voluntários de instituições a/ou organizações onde figuram como membros subalternos ou subordinados de um grupo hierarquicamente estruturado, cuja liberdade de opção possa ser explícita ou discretamente usurpada, e, portanto questionável. Entre eles encontram-se os estudantes de medicina e enfermagem, funcionários subalternos de laboratórios e hospitais, empregados da indústria farmacêutica, membros das forças armadas e presidiários. 5. Indivíduos de Comunidades em Desenvolvimento: Quando a experimentação visa o estudo de determinadas condições mórbidas, tais como doenças endêmicas em comunidades de baixo nível sócio-econômico e/ou cultural, incapazes de terem uma consciência clara e apropriada das implicações de sua participação na experiência, é de bom alvitre que seja obtida a interveniência de um líder em quem a coletividade confia. Esse intermediário deve deixar claro que a participação é inteiramente voluntária e que qualquer participante tem a liberdade de não aceitar, ou abandonar a experiência a qualquer momento. 6. Pesquisa em Comunidades: Em experimentações que envolvam grande número de pessoas de uma cidade, região, Estado etc. - tais como, por exemplo, o tratamento experimental de água de sistemas de abastecimento, uso de novos inseticidas, novos agentes profiláticos ou imunizantes e suplementos ou substitutos alimentares - talvez não seja viável obter o consentimento de cada indivíduo, cabendo á autoridade responsável de saúde pública a decisão final. Entretanto, tem-se em mente que a coletividade deve ser informada sobre os objetivos da pesquisa, suas vantagens e possíveis danos; ademais, que seja permitida a opção de discordar e de se ausentar sempre que possível. No Brasil, salientamos a mudança oficial do pensamento com relação às experimentações no anima nobila, exarada nos seguintes documentos: a) Resolução Normativa n.º 1178, publicada no «Diário Oficial» em 17/10/78, referente à experimentação terapêutica de uma substância nova. São estabelecidas todas as etapas e subetapas a serem seguidas, desde a experimentação pré-clínica em animais, de uma nova droga (farmacodinâmica, farmacocinética, toxicidade aguda, sub aguda e crônica, teratogênese e embriotoxicidade, além de estudos especiais) até as quatro fases da pesquisa clínica. Outrossim, é necessária a realização de um plano bem elaborado para que o projeto seja aprovado para a devida execução. Ele deve constar no capitulo referente aos aspectos éticos, que a experimentação será norteada pela Declaração de Helsinque, e que os pacientes necessitam dar o devido consentimento oral ou por escrito; b) Panaria n.º16 da Dimed, publicada no «Diário Oficial» em 14/10/81, referente ao «Termo de Consentimento de Risco» estabelecido de forma padronizada um texto mínimo, que evidencie, entre outros pontos:  Que o paciente estará sendo submetido à experimentação de uma nova droga;


Que não existe certeza de maior eficácia em relação a outros produtos já registrados, bem como maior segurança quanto à incidência de efeitos colaterais previsíveis ou não;  Que o paciente realmente deseja utilizar o produto ou o método terapêutico;  Que o médico que aplica a medicação ou o novo método é o responsável pelos eventuais danos, sendo o laboratório produtor co-responsável pela medicação, estando a União isenta de responsabilidade par danos que possam ocorrer ao paciente, decorrentes do uso do produto ou método terapêutico aplicado;  Que o médico se compromete a informar à Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde a ocorrência de efeitos adversos ou tóxicos; c) Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1215/85, publicada no «Diário Oficial» em 25/07/85. Determina aos Conselhos Regionais de Medicina a criação de Comissões de Ética Médica em todos os estabelecimentos ou entidades em que se exerce a medicina sob a sua jurisdição, bem como a sua devida regulamentação do funcionamento, competência e atribuições, a ser feita através de Resolução dos Conselhos Regionais de Medicina. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), através da Resolução Normativa n.º 23, de 17/09/86, cria as Comissões de Ética no Estado de São Paulo. Entre suas onze atribuições, destacamos de modo pertinente:  Fiscalizar o exercício ético da medicina na instituição (artigo 1);  Colaborar com o Cremesp no combate ao exercício ilegal da profissão e na tarefa de educar, discutir, orientar e divulgar temas relativos à Deontologia Médica (artigo 5);  Opinar sobre todos os projetos de investigação médica realizados na instituição e que envolvam seres humanos (artigo 6);  Instaurar sindicância interna para apurar infrações éticas, ouvindo os interessados, exercendo iodos os aios necessários à apuração dos fatos, comunicando os resultados ao Diretor Clínico e, quando for o caso, às autoridades competentes, incluindo o Cremesp (artigo 8); d) Portaria n.º 31/GM de 9/2/87. O Ministro de Estado da Saúde altera a composição da Comissão Nacional de Avaliação Técnica de Medicamentos, criada pela Portaria Ministerial n.º 536, de 22/12/86. A modificação estabelece a presença de membros das seguintes instituições: Chefe de Gabinete do Ministério da Saúde (Presidente); Sociedade Brasileira de Investigação Clínica; Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental; Sociedade Brasileira de Psicobiologia; Associação Brasileira de Médicos Assessores da Indústria Farmacêutica; Conselho Federal de Medicina. Esta comissão tem a função de avaliar os planos de pesquisas clínicas de novas drogas a serem realizados no Brasil, bem como os dossiês de registro de novos fármacos a serem aprovados para a comercialização em território nacional.

AS LUZES DO ENTARDECER DA VIDA «O anoitecer da vida deve também possuir um significado próprio, e não pode ser apenas um apêndice lamentável do amanhã da vida» (Carl Jung). Leocir Pessini


Envelhecer é um processo natural de crescimento do ser humano, que se inicia com o nascimento e termina com a morte. Consequentemente, uma filosofia do envelhecer deve começar com uma filosofia do ser humano, que inclua, entre outros, os seguintes pontos fundamentais: . cada ser humano é uma pessoa única, desde o primeiro momento da vida. A vida toda de crescimento e experiência forma um todo irrepetível; . viver não é pura e simplesmente existir, mas desfrutar abundância de vida, qualidade de vida, desenvolvendo as potencialidades inerentes ao ser; . embora o ser humano não escolha a hora de nascer ou morrer, estes dois momentos fundamentais, nascimento e morte, dão sentido ao seu viver; . o ser humano é um todo uno, integrado e organizado. Todos os seus sentidos, emoções e órgãos do corpo estão intimamente interrelacionados. Com a idade, mudanças na aparência e comportamento acontecem, mas não tiram o valor do indivíduo como pessoa humana, sua razão de viver e habilidade de aprender; . o ser humano não é algo estático, mas profundamente dinâmico, ele está num constante processo de mudança, e sua idade é uma questão de percepção e atitudes. A idade, portanto, é relativa. Cada fase do viver apresenta mudanças que são respostas a determinadas tensões no curso da vida. Como resultado destas transformações e mudanças, acontecem perdas e ganhos. Os motivos para tais mudanças são identificados diversamente, como a necessidade de segurança, resposta, reconhecimento e novas experiências. Como percebemos, estas necessidades são comuns a todo ser humano; . a preocupação para com os idosos não é diferente da preocupação pela vida em si. Nossa filosofia de vida afeta diretamente os pensamentos, comportamentos e atitudes em relação ao idoso. Tal comportamento é altamente indicativo do valor que damos á vida humana em si mesma. Uma filosofia do envelhecimento deve levar em conta as perdas pelas quais os idosos passam: a antecipação da morte, os mitos, preconceitos e apelos que a sociedade lhes dirige, bem como as riquezas e potencialidades da pessoa. Durante toda a vida, as pessoas devem aprender a adaptar-se às sucessivas e múltiplas perdas. À medida que as pessoas envelhecem, elas diminuem proporcionalmente sua perspectiva de vida. Elas contam seus dias a partir daqueles vividos e não a partir daqueles que virão. Elas não são mais orientadas pelo futuro. Essa diferença básica de visão entre o jovem e o idoso faz com que o primeiro reaja de uma forma ameaçadora quando o último fala da morte. Consequentemente, o idoso pode sentir-se rejeitado. Os idosos podem desejar morrer antes de experimentar gradualmente a diminuição das forças e energias. Seu desejo de morrer freqüentemente é uma resposta á solidão e isolamento que lhes são impostos.

A DIMENSÃO DA TEMPORALIDADE DA VIDA HUMANA A compreensão do sentido do ser idoso deve ser colocada no contexto dos seres humanos serem históricos e temporais: o processo de acumular anos, do qual o idoso é uma parte, é uma expressão concreta do tempo. Ser gente é estar situado no tempo. A temporalidade é constitutiva da existência humana. Se o acumular anos fosse somente uma série de momentos atômicos, então poderíamos escolher os que nos são mais significativos, e o período final da velhice não teria sentido. Hoje, temos uma compreensão mais positiva da temporalidade humana. Podemos interpretar positivamente o processo de envelhecimento, como a expressão existencial mais clara do processo da temporalidade.


Devemos confrontar os que elegem somente uma parte de suas vidas como significativa, pela compreensão positiva do tempo (passado, presente e futuro). Ninguém pode decidir qual parte da temporalidade é a única fonte de sentido da existência. Hoje, se afirma que todo o significado da vida nasce do presente (curtição). Para relativizar o presente como única fonte de compreensão do crescimento humano, deve-se evitar uma idealização em termos de sonhos futurísticos (geralmente, a juventude da sociedade). “Todo o sentido da vida está em questão no futuro que nos aguarda: se não sabemos o que queremos, então não podemos saber o que somos”. Os humanos não são simplesmente vitimas da velhice; esta não é uma experiência puramente passiva, que acontece. Pelo contrário, envelhecer requer auto-possessão e integração quanto qualquer outro estágio da vida, tal como a adolescência ou meia-idade. A velhice terá um sentido no fim, somente se a vida tem um sentido no seu todo. O inevitável é que, nos últimos anos, existe uma perda, diminuição dos talentos e capacidades. Devese encontrar um novo sentido de vida que sustente tal experiência. Freqüentemente, entendemos a velhice como direcionada para a morte, mas não devemos esquecer que ela é também direcionada para o crescimento. Muitos só conseguem ver a vida como um todo, na velhice.

OS IDOSOS SÃO NOSSOS MESTRES O processo de envelhecer é a gradual plenificação do ciclo da vida. Ele não precisa ser escondido ou negado, mas deve ser compreendido, afirmado e experimentado como um processo de crescimento pelo qual o mistério da vida lentamente se nos revela. Sem a presença dos idosos poderíamos esquecer que estamos envelhecendo. Eles são os nossos profetas, eles nos lembram de que o que vemos tão claramente neles é um processo do qual iodos, sem exceção, participamos. Muito já se escreveu sobre o idoso, sobre seus problemas físicos, mentais, afetivos, espirituais. Muito se tem falado a respeito da triste situação de abandono em que se encontram milhares deles. Existe um perigo nesta ênfase unilateral sobre os sofrimentos dos idosos. Podemos começar a pensar que tornar-se idoso é o mesmo que ser um problema; é um destino triste do qual ninguém pode escapar, e deve ser evitado a iodo custo; que crescer em direção a fim do ciclo de vida é uma realidade mórbida e que deve ser reconhecida somente quando os sinais não podem ser mais negados. Não é preciso ir longe dentro desta perspectiva e sentir que toda a nossa preocupação para com os idosos é semelhante ao dar esmola, com a consciência culposa. Para muitas pessoas, o envelhecer está intimamente ligado ao medo e sofrimento. Milhões são deixados sozinhos, e o fim do seu ciclo da vida torna-se uma fonte de amargura e desespero. Existem muitas razões para esta situação, mas, subjacente a todas as nossas explicações, existe a tentação de tornar o processo de envelhecer um problema do idoso e negar nossa solidariedade humana básica neste processo. Talvez estejamos tentando arduamente silenciar a voz daqueles que nos lembram de nosso próprio destino e que se tornam nossos críticos implacáveis, pela sua simples presença. Portanto, nossa primeira e mais importante missão é ajudar o idoso a ser nosso mestre novamente, e restaurar a comunicação interrompida entre as gerações. Falando dos idosos como nossos mestres, lembramos do que eles nos falam a respeito dos perigos, bem como das possibilidades do processo de envelhecer; eles nos mostrarão que o envelhecer não é somente uma jornada para as trevas (perdas), mas também uma caminhada para a luz (ganhos). Queremos falar,


também, que damos permissão aos idosos de nos curarem das tendências separatistas e levar-nos a um contato mais intimo com o nosso próprio processo de envelhecer. Acreditamos que o processo de acrescentar anos à vida, especialmente na velhice, é tão cheio de promessas, que pode levar-nos a descobrir mais tesouros da vida. Acreditamos que o envelhecer não é um motivo para o desespero, mas a base para a esperança; não um lento declínio, mas um processo de maturação gradual; não um destino ao qual temos de nos submeter, mas uma chance preciosa a mais, que deve ser abraçada.

O ENVELHECER COMO CAMINHO PARA AS TREVAS «Ser idoso, para muitos, causa mais medo do que a própria morte», diz Simone de Beauvoir. Nossa cultura da obsolescência programada trata os idosos como «alguma coisa descartável». O que faz os idosos sentirem-se ostracizados? Temos a segregação, a desolação e a perda do eu. Segregação - Acontece em toda e qualquer situação em que o ser se torna subordinado ao ter. Estamos numa civilização em que o ser é menos importante do que o fazer e ter. Desolação - Significa a ruptura com a própria história, quebra dos laços familiares, um desnudamento social. E aqui explode a solidão, expressa em vivas memórias dos tempos quando se vivia alegremente entre amigos e parentes! E agora... só recordações! Perda do eu - É a mais destrutiva forma de rejeição. É o ostracismo interior pelo qual o idoso não somente sente que não tem mais valor numa sociedade do fazer, do lucro, mas sente-se expropriado de sua própria estima, de seus próprios sentimentos de valor. Aquele que perdeu o próprio eu pode dizer como Ben Sirach: “Oh morte, tua sentença é bem-vinda para o miserável e privado de suas forças, para o que chegou a uma velhice avançada, agitado por preocupações, descrente e sem paciência» (Eclesiástico 41, 3-4). É provável que a perda do eu se torne mais visível naqueles cujas identidades foram absorvidas pelo passado, que encontram pouco ou nada de satisfação no presente, e olham para o futuro como uma espessa escuridão. Definem-se como sendo «eu sou o que era!» Todos estes elementos, juntos, nos dão uma fotografia profundamente negativista, em que se tornou difícil ver algo mais no processo de envelhecimento, além de um caminhar para as trevas. Devemos dizer que isto é somente uma face da medalha: precisamos ver o caminho para a luz! E possível? Como?

O ENVELHECER COMO CAMINHO PARA A LUZ No meio de todas estas trevas (perdas), é possível, repentinamente, encontrar-se um idoso portador de um lindo sorriso, sugerindo que existe algo mais para se ver e conhecer, do que inicialmente se imaginou ou pensou. Alguém que irrompe no nosso mundo e que nos ensina que a vida não é um problema a ser resolvido pela informática, mas um mistério a ser descoberto e vivido no amor, a cada dia... A escuridão da velhice tem sido até que bem documentada, mas o lado da luz não parece encaixar-se docilmente nos computadores e instrumentos de tabulação de nossa sociedade consumista. Muita violência na nossa sociedade está baseada na ilusão de se ver a vida como uma propriedade a ser defendida, antes que um dom a ser partilhado.


Quando não deixamos mais o idoso ser o sintonizador com o nosso processo de envelhecimento, rapidamente começamos a fazer jogos perigosos de poder, para manter a ilusão de que somos eternamente jovens e imortais. Então não somente a sabedoria do idoso permanece escondida de nós, mas os próprios idosos perderão seu mais profundo entendimento da vida. Quem pode ser mestre, quando não existem mais estudantes desejosos de aprender!?! Quando deixamos de lado nossos temores e nos aproximamos dos idosos, veremos homens e mulheres contando histórias para as crianças, com os olhos cheios de admiração. Pensamos no velho João XXIII dando vida para uma Igreja esclerosada e parada no tempo e na história, pensamos em Madre Tereza oferecendo esperanças para os cacos de gente, doentes e moribundos, despejados nas sarjetas de Calcutá. Aldous Huxley nos diz: «E duro sentir-se velho. Nós - eu penso - pertencemos àquela minoridade de seres humanos que mantêm a abertura mental e a elasticidade do jovem, enquanto abertos para aproveitar os frutos de uma longa experiência». Gastamos muito mais tempo discutindo a respeito dos sofrimentos do envelhecer do que suas possíveis alegrias. Os idosos são luz: nós os descobrimos como tais, quando nos aproximamos deles e neles entrevemos a esperança, o humor e a visão dos muitos que envelhecem graciosamente. Esperança - A jornada para luz é uma lenta conversão de «desejos» para «esperança». Desejamos isto ou aquilo e temos esperança «em». O desejo tem um objeto concreto, tal como carro, casa, promoções, riqueza etc. A esperança é uma abertura construída na confiança de que o outro cumprirá suas promessas. A conversão do desejo para a esperança exige um processo lento de desengajamento, em que estamos desejosos de nos desligar de muitas coisas, pequenas e grandes do mundo, e abrir nossas mãos para o futuro. Esse desengajamento que torna a esperança possível requer uma mudança de percepção do tempo e da morte, por volta da meia-idade. Toda vez que a vida nos desmonta um desejo para mudar de direção, ou redefinir objetivos, toda vez que perdemos um amigo ou quebramos um relacionamento, ou iniciamos um novo plano, somos convidados a abrir nossas perspectivas e tocar debaixo das ondas superficiais dos nossos desejos diários as correntes profundas da esperança. Toda vez que somos sacudidos pela vida, somos confrontados com a necessidade de se fazer novas partidas. Perguntamo-nos: se isto não acontece nos primeiros anos, podemos aguardar que acontecerá posteriormente, no fim? Quando a esperança crescer, vamos lentamente descobrir que temos valor, não somente pelo que conquistamos, mas principalmente pelo que somos. O que na vida se desgasta pelo uso pode, por outro lado, ganhar em profundidade e sentido. Esta realidade pode ser mais bem expressa por uma parábola taoísta, que nos fala de um carpinteiro e seu aprendiz, que viram um enorme carvalho, muito velho e cheio de nós. O carpinteiro disse ao seu aprendiz: «Você sabe porque esta árvore é tão grande e velha?» O aprendiz respondeu: «Não... por quê?» Então, o carpinteiro respondeu: «Porque ela é inútil. Se fosse útil, já teria sido cortada e usada para se fazer camas, mesas e cadeiras. Mas, porque é sem serventia, lhe foi dada a chance de crescer. Isto é o porque de ela, agora, ser tão grande que você pode até descansar nas suas sombras.... Quando o valor da planta tornou-se ela própria, então estava livre para crescer para a luz. Este é o poder da esperança. Humor - Os idosos freqüentemente enchem a casa com bom humor, e fazem até os altos executivos, absortos em suas milionárias negociatas, sentarem-se e rirem. O conhecimento do sorriso é um grande dom.


Um dia, uma importante diplomata se ajoelhou perante o Papa João XXIII, beijou seu anel e disse: «Obrigada, Santo Padre, pela linda encíclica Pacem in Terris que o Senhor deu ao mundo». O Papa olhou-a com um sorriso e lhe respondeu: «Oh, você também leu?». Quando alguém lhe perguntou quantas pessoas trabalhavam no Vaticano, ele pensou um pouco e disse: «Penso que a metade». O humor é uma grande virtude, porque nos faz ver a nós mesmos e ao mundo, não tão demasiado seriamente. Ele faz a morte estar presente em cada momento da vida, não como uma intrusa mórbida, mas como um lembrete gentil da nossa fragilidade, finitude e contingência das coisas. Visão - Esperança e humor nos dão uma nova visão da vida e das coisas. Freqüentemente encontramos idosos olhando para além dos limites de sua própria existência, em direção à luz que parece envolvê-los com carinho e bondade. Scott-Macwell descreve sua vida, na velhice, e pode nos dar uma pista neste sentido. Diz ele: «Uma longa vida me faz sentir mais perto da verdade; não dá para dizer em palavras, como então transmiti-la? Eu não posso e quero. Eu quero dizer às pessoas que estão - se aproximando e talvez temendo a velhice, que ela é um tempo de descoberta. Se eles perguntarem: «de que?», eu somente posso responder: «Devemos, cada um de nós, descobrir por nós mesmos, de outra maneira não seria descoberta». A visão que cresce com a idade liberta-nos das limitações do próprio eu. Ela convida a nos entregarmos, confiantes e sem medo, ao processo em que a distinção entre a vida e a morte paulatinamente perde seu poder de amedrontar e causar sofrimentos.

O CUIDADO JUNTO AOS IDOSOS Cuidar dos idosos significa antes de tudo entrar em contato com o nosso próprio processo de envelhecimento: sentir a dimensão do tempo, realidade nos constituindo como ser, e estar consciente dos movimentos do ciclo da vida. Somente quando entramos em solidariedade com o processo de envelhecimento, e falamos de uma experiência comum, podemos ajudar os outros a descobrirem a liberdade da velhice. O cuidado no contexto do envelhecimento, neste sentido, no seu primeiro movimento é um encontro conosco mesmos no processo, antes de irmos até os outros. Como podemos estar presentes junto aos idosos, quando escondemos e negamos nosso próprio processo? Nossa primeira questão não é como ser de ajuda para os idosos, mas como permitir que os idosos entrem no centro de nossas vidas, como criar espaço, para que eles possam ser ouvidos. Freqüentemente, nossa preocupação em ensinar ou curar nos previne de perceber e receber o que eles nos oferecem. Dar espaço ao idoso em nosso próprio ser não é uma tarefa fácil. A velhice está escondida não somente dos nossos olhos, mas muito mais dos nossos sentimentos. No mais profundo de nós mesmos, vivemos a ilusão de que sempre seremos os mesmos. Tendemos não somente a negar a existência real do idoso, mas também a idoso que está despertando dentro do nosso próprio ser. Ele é um estranho e, como todo desconhecido, nos incute medo. Cuidar dos idosos significa, primeiro que tudo, deixarmo-nos experimentar pelo envelhecer. Somente quem reconheceu a relatividade de sua própria vida pode ter um sorriso para alguém que se está aproximando da morte. Neste sentido, cuidado! E primeiramente no caminho de nosso próprio envelhecimento que encontramos as forças para todos os que partilham a mesma condição humana.


É verdade que os idosos necessitam de uma porção de ajudas práticas, porém mais significativo é alguém que lhes ofereça seu próprio processo de envelhecimento, como fonte de cuidado. Quando damos espaço para o idoso se tornar vivo no centro de nossa própria experiência, o «estranho», o «intruso» transforma-se em parte do nosso ser, o amigo esperado que se sente à vontade em nossa própria casa. Destacaria duas características importantes nesse processo de cuidar: a pobreza e a compaixão. Pobreza: Ser pobre significa assumir a qualidade do coração que nos faz assumir a vida, não como uma propriedade a ser defendida, mas como um dom a ser partilhado. É a constante vontade de dizer adeus ao ontem e ir para frente em busca do novo, de experiências desconhecidas. E a compreensão interior de que horas, semanas e anos não nos pertencem, mas são lembretes gentis do nosso chamado de dar a própria vida aos que nos seguirão e tomarão nosso lugar. Como passo criar espaço para o idoso, quando não quero ser lembrado de minha historicidade e mortalidade, que me tornam um simples viajante no universo, como todo mundo? Cuidar dos idosos significa permitir aos idosos tornarem-nos pobres, ao nos convidarem a acabar com a ilusão de que criamos nossa própria vida e que nada e ninguém nos pode tirá-la. Compaixão: Ela nos permite superar o medo do «velho estranho” e convidá-lo a ser o hóspede de honra de nossa própria intimidade. A compaixão nos faz ver a beleza no meio da miséria, cria esperança no meio da dor. A compaixão não tira a dor e a agonia de caminharmos para a velhice, mas nos oferece um lugar em que a franqueza é transformada em força. Ela nos faz lutar para um estilo de vida em que as gerações são colocadas em contato umas com as outras, de uma forma criativa. «Quando ao redor de nós não existe mais o mundo que nos lembre de onde viemos e para aonde vamos, então estamos à beira de um precipício». A compaixão verdadeira se traduz em ação sempre, e não num mero «ter pena».

O IDOSO E A MORTE Isolamos, ignoramos e escondemos aqueles que concretamente mais de perto são uma lembrança viva do que todos vamos ter que enfrentar um dia: a morte. Talvez seja por isso que a morte nos assuste tanto! A atitude cultural de nosso tempo tende a transformar a morte-mistério em morte-problema. Segundo o filósofo Gabriel Marcel, «problema é algo que se encontra, que barra o caminho. Fica na minha frente, no seu conjunto. Mistério, pelo contrário, é algo no qual eu mesmo estou implicado, e por isso não está diante de mim no seu conjunto”. Esta tendência dos homens de hoje considerarem a morte como algo que não faz parte da experiência da vida se manifesta numa série de iniciativas sócio-culturais, que visam afastar a morte da vida social de cada dia. Geofre Gorer demostrou como a morte tornou-se um tabu, e como o século XX substituiu o sexo como principal interdito: «Antigamente, dizia-se às crianças que se nascia dentro de um repolho ou que a cegonha trazia, mas elas assistiam à grande cena das despedidas, à cabeceira do doente moribundo. Hoje, são iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia do amor, mas, quando não vêem mais o avô e se surpreendem, alguém diz que ele repousa num belo jardim, por entre as flores». A morte é sempre algo muito pessoal. Responder aos medos e às condições humanas da pessoa moribunda sempre envolve responder a nós mesmo. Enfrentamos continuamente tensões dentro de nós: estar em sintonia com o significado da morte para nós, bem como ser empaticamente


sensitivo e, além disso, ser capaz de manter nossa compostura psíquica e objetividade, de modo que possamos responder às necessidades da pessoa que está morrendo. Procuramos o inimigo e o encontramos: ele está dentro de nós. Poderíamos perguntar: que espécie de idoso serei, se tiver a chance de sê-lo? A resposta a essa pergunta depende muito do tipo de pessoa que sou agora e como vivo e enfrento a morte, hoje.

CONCLUSÃO Sobram muitos desafios... Apelo fundamental para a valorização do ser. Muito mais importante que acrescentar anos à vida é acrescentar vida aos anos. . Como ser mais no processo de envelhecimento, quando, á primeira vista, é uma trajetória certa para o ser menos? . Como enfrentar o desafio da busca dramática de um sentido de vida, neste momento particular da vida carregada de anos, quando tudo parece sem sentido ou significado, numa sociedade que esconde, marginaliza, escamoteia o idoso e também o processo do morrer? . Como ver a morte como um estágio final de crescimento e não simplesmente a redução ao nãoexistir, ao não-ser, ao nada? . Educação para o ser, preparação para o envelhecimento e morte: como agir dentro de uma sociedade onde o fazer e o ter são absolutizados? O envelhecer e o morrer estão na trilha do ser, e somos unilateralmente manipulados, educados para o ter e o fazer. A sabedoria que é refletida nos raios de luz do entardecer da vida não teria algo a nos dizer sobre isto? A dimensão mística do sofrimento e da dor Deus não quer o sofrimento. E isto está certo. Deus não é carrasco nem vigador. Mas há outro lado, a frase de Jesus: “Só ganha a vida aquele que estiver disposto a perdê-la”. E outra frase: “Quem não renunciar a tudo não pode ser meu discípulo”. E ainda: “Quem quer ser meu discípulo, tome a sua cruz, todos os dias, e siga-me”. Renunciar a tudo por causa do Reino. Vender tudo para comprar o tesouro. Abandonar tudo para poder experimentar o conhecimento de Cristo. Estar crucificado com Cristo para poder sentir a força da sua Ressurreição! “Vivo, mas já não sou eu que vivo: é Cristo que vive em mim”. Todas estas frases são do Novo Testamento. Elas abrem um horizonte, apontam um rumo: desapropriar-se de tudo, inclusive de si mesmo, para que Deus possa tomar conta, ocupar o vazio e encher tudo com a sua Vida e com o seu Amor. Este é um processo doloroso e penoso, cheio de dor e sofrimento, mas que resulta em vida, alegria, liberdade, serviço e ressurreição! O deficiente físico, exatamente por causa da sua deficiência, tem mais condição e predisposição para entrar por este caminho e, de fato, por ele entra e experimenta. Por causa da sua deficiência física, ele percebe melhor a relatividade das coisas, consegue desapropriar-se com mais facilidade. Penso até que aqui está um aspecto muito importante da missão mais profunda da vida humana. Revelar a todos nós a face de Deus pela redescoberta da vida, da alegria, da liberdade, do serviço e da ressurreição. Deus não quer a dor e o sofrimento! Mas quando o fogo do amor de Deus e do amor ao próximo começa a queimar a madeira molhada e verde de nossa lenha, aí só sai fumaça negra que machuca os olhos e faz sofrer. Aí, aparece a verdadeira deficiência de todos nós (deficiência física


ou não) e aparece o que somos: vivemos alienados e oprimidos, fechados e marginalizados, separados de nossa origem, que é Deus, e distante do outro que é nosso irmão. Retificar o galho que cresceu torto é extremamente doloroso! Gerar vida nova é doloroso! Morrer torturado numa cruz é doloroso! Deus não quer a dor. Ele quer retificar galho. Ele quer gerar vida nova, Ele quer Ressurreição! No meio das cruzes da deficiência física, só sinto vida nova, a força da Ressurreição! Frei Carlos Mesters Transcrito de “Cartas Abertas”, setembro de 1986.

ENFRENTANDO A MENTALIDADE AIDÉTICA Hubert Lepargneur Em 1985, examinamos neste lugar os conceitos fundamentais da ética. Em 1986, os principais problemas da bioética e moral hospitalar. O ano de 1987 foi reservado a temas de moral social. Cabe, em 1988, completar com assuntos que ainda não encontraram espaço nos boletins anteriores, ainda que de interesse de nossos leitores. Começamos hoje com uma reflexão bastante concreta sobre o defrontar com aidéticos. Recente pesquisa de Rendy Shilts (“And the band played on”, N.Y., St. Martin's Press, 1987, 630 p.) aponta quem, provavelmente, foi o disseminador n.º 1 do vírus HIV da Aids na América do Norte e talvez no Ocidente desenvolvido. O Center for Disease Control (Atlanta, EUA) suspeitou, desde 1962, que um só indivíduo tinha tido vinculo com 9 dos 19 primeiros casos de Aids em Los Angeles, com 22 primeiros aidéticos de Nova Iorque e com 9 outros doentes espalhados: no total, 40 dos primeiros 248 casos norte americanos. R. Shilis conseguiu identificá-lo como sendo Gaetan Dugas, um louro comissário de bordo da Air Canadá. Costumava oferecer-se nas escalas: «Sou o mais elegante». Após muitas viagens e promiscuidade, desenvolveu o sarcoma de Kaposi, câncer da pele ainda não vinculado à desconhecida doença (junho de 1980). Foi avisado de que podia contagiar parceiros sexuais; não se importou. Avaliam-se seus parceiros sexuais em 250 por ano («Time»,l9/10/87) até a morte, em março de l984. Pode-se pensar não apenas nos contagiados diretos, mas também nos indiretos, sobretudo numa época em que nada se sabia sobre Aids. Uma das primeiras e mais brilhantes novelas tendo por eixo central o drama do aidético, se não propicia novos dados médicos, compartilha o drama interior num enfoque não destituído de valor para nós. A narração de Juliette M. vem crua, densa, precisa, a partir dum telefonema anônimo: «Sou uma mulher que conhece bem alguém de quem a senhora foi próxima. Quer paz? Vai ter muita. Eu vou morrer. Fui amante de P., com ou antes da senhora. Depois de mim, será a vez da senhora». Apesar de entreter uma atividade sexual desenfreada, quase promíscua, e das advertências dos meios de comunicação, onde Juliette trabalha com extraordinário brilho, asta mulher de 29 anos nunca pensou no perigo ou em proteção alguma, a partir da convicção visceral, sempre cultivada, de que a desgraça que se abate sobre os outros «não pode ocorrer comigo»: sou diferente, duma essência superior, querida do Destino. Este argumento fraco e capcioso pesa sobre muitas práticas individuais (e nacionais). Desde o momento em que a pessoa se sabe soropositiva e ameaçada, enfrenta duas grandes tentações, talvez mais fortes do que a da conversão a Deus, que o piedoso visitador quiçá projeta.


Ao se convencerem de seu novo destino, de quase pestífero, alguns vão escolher a vingança (transmitir o vírus letal ora à toa, ora a pessoas julgadas desprezíveis), outros vão preferir apressar a própria morte, inevitável, reduzindo o caminho da cruz que não chega a ser via sacra (Juliette, «Pourquoi moi? Confession d'une jeune femme d'aujourd'hui», Paris, R. Laflont, 1987, 215 p.). «Por que eu teria protegido contra mim homens que tinham como única motivação desfrutar iodo beneficio sem nunca partilhar?» (154). «Entre a cólera e o desejo de vingança, acalmar-me-ia um pouco apenas ao me imaginar contaminando Michel B.» (161). «Possa a doença tornar-se minha força...» (163). Ao cair, pretende arrastar uma porção de imprudentes. A Aids obceca como poucas doenças, sobretudo suas vitimas: não sem razões. Com cinismo, próximo da coragem de enfrentar e revelar a verdade (191), Juliette dá a dica a recentes parceiros que, pontualmente, seguem o esquema de E. Kübler-Ross ao, primeiro, rejeitar a eventualidade da contaminação aidética («Eu, não»), significativa de morte. Após a penosa aceitação da realidade, não se extingue a luta. «Viver é como submeter-se a uma chantagem. Exige-se sempre mais de você. Tira-se tudo aos poucos, a juventude, a saúde, as relações: continua-se a pagar, até não ter mais nada sobre os ossos. Então a própria vida pode deixar-nos» (200). Experimentar grave doença é exercício de despojamento interior e, por vezes, de abandono externo. «Havia muito tempo, estava no centro dos acontecimentos, freqüentadora das pessoas importantes... Compartilhei bastantes noites com muitos homens, mas não tinha mais ninguém para confiar-me, ninguém a quem telefonar, ninguém para pedir a compra de remédios, o preparo de um chá ou dum suco. Imagem de minha vida: um deserto cercado de miragens» (200). Nem o médico, «do alto de sua saúde» (notável e feliz expressão) podia imaginar... «Uma desafiante, eu, estava sendo eliminada. Dá lugar para outra. Isto é a vida. Não sentia amargura, surpresa antes. Tudo foi tão rápido» (208). Como no famoso esquema de Kübler-Ross sobre os moribundos, após a negação e a raiva, a barganha (“vou comportar-me....”), ocorre certa calma. «Não me indignava. Tinha entrado numa zona tranqüila de desapego, quando a doença e o estado do corpo medem a importância de cada coisa, quando a gente se lembra de que a vida é, antes do mais, o poder de respirar e ficar de pé, o resto, ambição, rivalidades, sendo apenas distrações para pessoas sadias. Não estarei mais entre elas. (202). «A liberdade se conquista quando não se receia mais nada. O vírus em mim tinha eliminado todos os medos, menos o maior, absoluto, o da própria morte» (146). E só esperar um pouquinho. «Depois, serei como uma pedra que mergulha na água, deixando a superfície recobrar seu aspecto liso" (171). Qualquer morto, mesmo se se acha(va) famoso ou indispensável, que se tranqüilize: não será apenas prontamente substituído, ou quase, mas esquecido. E a vida. Com pouquíssimas exceções. O óbvio enfim desvelado ao moribundo, porém, não é necessariamente evidente para a família, os amigos, os cortesãos: quem vai ou pode discernir? Entre o leito da verdade sem máscara e a suave mentira, de que margem dispõe o capelão, o visitador bem intencionado? Num certo modo, a Aids radicaliza um ministério que deve exercer-se na modalidade dialogal; isto é, não convêm projetar nossos esquemas, sem tentarmos entrever« a realidade vivida pela consciência alheia. Foi isso que tentamos sugerir nesta nota.


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