0 PRIVILÉFIO DE VIVER A MEDICINA De autoria de Carlos da Silva Lacaz, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, este texto foi publicado originalmente na edição de 19 de fevereiro último de "O Estado de São Paulo ". O exercício da prática médica, do «ofício divino», como referiam os antigos, é o único que comporta uma deontologia formulada em código. O amor e o desejo de servir sem limites a todo aqueles que sofre são os ingredientes essenciais à vida do médico. Este tem de ser um homem de virtudes, e a primeira delas é a justiça, o respeito aos direitos alheios, à vida e à honra de seu semelhante. Depois; é o altruísmo que firma a solidariedade para com o enfermo, fazendo nossa a alegria pela saúde que renasce. A Medicina é e continuará a ser a ciência do próximo, a arte do próximo, a religião do próximo, uma dimensão alta da própria existência humana. Dura e triste é a solidão dos doentes. E o que eles mais pedem é aquele primeiro fundamento da Medicina que nos deixou Para- celso: o amor, o especial amor que rompe ou procura. Romper aquela solidão espessa e opaca, dentro da qual vivemos uma dor individualizada e incomunicável. A 14 de julho, a Igreja nos faz lembrar de nossos irmãos doentes ou agonizantes, dedicando-lhes a celebração eucarística. Cedo ou tarde ficaremos doentes. Esta é uma realidade inevitável da vida humana. Cristo deixou-nos uma ordem explícita: «Curai os enfermos». E o padroeiro dos pacientes, dos hospitais e dos enfermeiros é São Camilo de Léllis, nascido em 1550 na pequena cidade de Bucchianico (Itália). Faleceu em 1616, aos 65 anos. Em 1746, foi canonizado por Bento XIV. Aos 17 anos, alistou-se, juntamente com o pai, entre os soldados assalariados pelos venezíanos na guerra contra os turcos. Apresentando um processo supurativo no pé, procurou em Roma o Hospital São Tiago. Não possuindo recursos para pagar o tratamento, permaneceu como enfermeiro, Envolveu-se, porém, em várias aventuras, mas Deus não o abandonou, até que, em 1575, nele cresceu profundo sentimento religioso, devotando-se especialmente à causa específica do atendimento direto, completo e abnegado dos doentes, principalmente dos incuráveis, dos moribundos e dos portadores de moléstias contagiosas. Logo arregimentou inúmeros seguidores. Hoje, os camilianos constituem imensa ordem religiosa, prestando valiosa assistência espiritual aos que sofrem e cuidados de enfermagem e de ensino na área da saúde. Os que se dedicam com verdadeira vocação à Medicina, vivendo-a em toda a sua grandeza, não podem permitir que a mesma se transforme em negócio, e o médico de profissão em médico de indústria. Ferrando de Magalhães assinala que, na velha Faculdade de Medicina de Lille, os novos médicos eram levados ao altar, para jurar o catecismo da Medicina, que é o juramento hipocrático. O amor á profissão e a consciência do dever cumprido conduzirão os verdadeiros médicos ao martírio voluntário do devotamento. Tenho afirmado várias vezes que quem não ama seu semelhante nunca poderá ser um bom médico. Não há medicina sem charítas. Esta palavra, que vem nas traduções bíblicas como «caridade», na verdade não significa bem isso. Sua verdadeira tradução é o amor. Toda questão está, realmente, em se poder amar. Mas, infelizmente, nem todos o conseguem. Este fenômeno do desamor e da brutalidade, do desespero e do sangue, estende-se a todos os quadrantes do mundo, divide os irmãos, golpeia as mais antigas instituições jurídicas, rastreia de ódio as religiões e parece resumir, como numa cena apocalíptica, o epílogo irreversível da derrota final do próprio homem. Mas o verdadeiro médico, este deverá ficar à margem desta maré montante da violência organizada, para se consagrar, de corpo e alma, a todo aquele que sofre. Só o amor solidário será, ainda e sempre, o sentimento redentor de «um bicho da terra tão pequeno», como o pôs em verso o gênio maior de nossa língua. Só assim teremos o enorme privilégio de viver a Medicina, já definida como a ciência da Humanidade, com os olhos sempre voltados para o nosso semelhante, vivendo o tormento dos desesperados, o martírio que grita e o martírio que é mudo. O CAPELÃO NO PROGRAMA DE TRANSPLANTE Leo Pessini A doença e hospitalização São, quase sempre, experimentalmente como uma crise. Existe uma grande necessidade de ajustamento a mudanças e perdas. Mudanças de ambiente, de estilo de vida e de hábito; perda da saúde, do controle sobre si mesmo e sobre as coisa. Além disso, a doença e hospitalização , provocam, tanto no paciente quanto nos seus familiares, medo do desconhecido, questionamentos sobre a vida e a morte, perguntas a respeito de valores e sentido da vida, possibilidade de continuar vivendo normalmente ou a dura realidade de enfrentar limitações inesperadas.
Dentro desse contexto de necessidades humanas e emocionais, que se experimenta como uma crise, existe uma profunda necessidade de apoio. Um tratamento humano, psicológicos, é de fundamental importância. Essencial também é a utilização dos sistemas normais de apoio, como família, amigos e recursos da comunidade. Não menos importante como parte do seu sistema de apoio, tanto interno quanto externo, é levar em conta os valores humano -espirituais e questionamentos a respeito da vida, a dimensão transcendente, espiritualmente em situação da vida da pessoa. Especialmente em situações de doenças crônicas, quando existem sofrimento intensos, dor, sentimentos de raiva, revolta, culpa, medo, esperança, paz e conforto, percebe-se um íntimo relacionamento desses sentimentos com temas do sentido e finalidade da vida, freqüentemente expressos e trabalhados pelos símbolos religiosos e tradições de fé. O capelão leva a sério a abordagem globalizante acima descrita, trabalhando justamente o aspecto psicoespiritual da pessoa humana. Ele procura mobilizar e fazer agir, de acordo com as necessidades das pessoas, a dimensão espiritual que se encarna dentro de uma realidade muito específica e concreta realidade muito específica e concreta. Procura ser o “psicoterapeuta da transcendência”. Como membro da equipe multidisciplinar, considerando a vida a partir de uma perspectiva globalizante, para além do meramente físico-biológico, o capelão procura trabalhar justamente as situações-limite. Feitas estas considerações – que no fundo mostram a importância de se levar em conta e trabalhar a dimensão psico-espiritual da pessoa, que desempenha um papel importante no encaminhamento do homem na direção da saúde ou do assumir realidades adversas -, o Serviço Pastoral procura atingir, em sua atenção nos serviços de transplante, os seguintes objetivos: oferecer ao receptor, doador e seus familiares o conforto da própria religião, em toda as fases do transplante; facilitar o processo de reflexão a respeito de valores envolvidos no transplante, bem como no ato de se tomar certas decisões éticas; apoiar a pessoa no processo de questionamento a respeito do mistério do sofrimento e da morte, à luz do mistério pascal (Páscoa) ou da visão de fé do próprio paciente; ajudar as pessoas a enfrentar a realidade, trabalhando o aspecto da esperança, especialmente na agônia fase da espera do transplante; ajudar os profissionais da saúde a descobrirem o calor humano e cristão do seu trabalho, facilitando a criação de um ambiente onde todos possam viver harmoniosamente e servir com alegria. Para o cumprimento de tais objetivos, o capelão desenvolve as seguintes atividades junto ao receptor, doador e respectivos familiares e profissionais da saúde, em toda as fases do processo: visitas periódicas (diálogo); orações (salmos, textos bíblicos, mensagens apropriadas etc.); sacramentos (Reconciliação, Comunhão e Unção dos Enfermos) para os católicos.
OS TRANSPLANTES E ALGUMAS QUESTÕES A história dos transplantes no Brasil se iniciam em 26 de maio de 1968, no Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O primeiro deles foi realizado pelo prof. Euríclides de Jesus Zerbini, que implantou um novo coração em João Ferreira da Cunha ( conhecido por seu apelido de João Bioadeiro). O paciente sobreviveu apenas 27 dias. Em outros países, já se pesquisava e faziam transplantes desde bem antes. Os primeiros transplantes em seres humanos, os de córneas, aconteceram por volta de 1880, os de rins vieram um pouco mais tarde, em 1956, até chegarem aos do coração, em 1967, com a pioneira e bem sucedida experiência do prof. Christian Barnard, na África do Sul. Atualmente, e também no Brasil, se fazem os mais diferentes transplantes: de pulmões, fígado e pâncreas, por exemplo. Entre nós, além de pioneiro, o Hospital das Clínicas de São Paulo, também é a instituição que mais transplantes realiza por ano, respondendo por 25% das intervenções desse tipo efetivadas em todo o país. A questão dos transplantes ainda comporta, no entanto , alguns problemas, levantados especialmente questionamentos éticos. Ocorrem mesmo casos de aparecerem anúncios em jornal, oferecendo córneas e rins transplante, mediante pagamento e garantindo sigilo absoluto. Contam-se casos de presidiários que também agem dessa forma, quer para obter retribuição financeira, quer para lograr redução de suas penas. E já se revelaram mesmo situações envolvendo irmãos, pais e filhos, em que as doações se fizeram como se fossem negócios, com o estabelecimento de valores bem definidos para a cessão dos órgãos.
Não se restringem, porém, apenas a essa área os aspectos éticos que os transplantes levantam. O primeiro deles é o que diz respeito ao “custo social dessa técnica, que privilegiaria alguns poucos, embora absorvendo recursos elevados, enquanto a população, em geral, padece de males endêmicos, que a medicina já consegue superar com relativa facilidade. Ainda ocorrem mortes por falta de atendimento médico, por desnutrição... Enquanto ainda persistem discussões quanto ao momento em que a retirada de um órgão pode ser feita, sem mais dúvidas, de alguém que se dispôs a doá-lo, acrescentam-se, por exemplo, mais estas questões éticas, que requerem análise mais profundas: em que condições os transplantes são justificáveis? A quem os transplantes devem beneficiar e como escolher aqueles que vão recebê-los? Quem tem direito a doar órgãos para os outros? De quem nós temos o direito de dispor dos órgãos? Onde e como se poderá obter órgãos para os que necessitam de transplantes? Se alguém supõe que para cada uma dessas questões há, sempre, uma resposta pronta e definitiva, propomos um caso, sugerido exatamente para despertar a atenção para os problemas mas éticos envolvidos e apresentados no livro “Bioética e saúde” ( edição do CEDAS – Centro São Camilo de Desenvolvimento em Administração de Saúde). Uma senhora de idade sofre de doença renal crônica e tem duas opções: submeter-se ao transplante de rins ou fazer, pelo resto de sua vida, 6 horas de hemodiálise a cada vez, três dias por semana. O único doador com boas chances, segundo os médicos, é sua própria irmã, mulher de vida ativa, mãe de crianças pequenas e envolvida em várias atividades. A doença leva vida sedentária e até poderia suportar bem a diálise. A irmã se diz disposta à doação, mas o marido é contra e afirma mesmo que, no fundo, a esposa tem receio de dizer não à irmã. O próprio médico, após haver dialogado com a possível doadora e aconselhado que ela procurasse o auxílio de um psiquiatra, tem sérias dúvidas quanto à sua vontade de efetivamente doar o rim à irmã. Agora a questão: o teste de compatibilidade indica que o rim é o ideal para o transplante, e o médico se vê frente a quatro alternativas. Qual escolher: dizer à mulher que seu rim oferece a compatibilidade ideal? Dizer à possível doadora da compatibilidade, mas dizer à irmã doente que não existe a compatibilidade exigida para o sucesso da operação/ Dizer à possível doadora que a compatibilidade é inaceitável? Dizer que a compatibilidade é boa, mas que ele, como médico, não fará o transplante por não estar convencido de que ela está mesmo disposta a fazer a doação? As questões, aí, são propostas ao médico. E se fossem feitas a você, que atua na Pastoral da Saúde e fosse consultado pela possível doadora? Que resposta daria?
PASTORAL DA SAÚDE E PASTORAL VOCACIONAL Arlindo Toneta «O Espírito Santo está suscitando hoje, na igreja, uma diversidade de ministérios, também exercidos por leigos, capazes de rejuvenescer e reforçar o dinamismo evangelizador da Igreja» (Puebla, 858). Relendo os textos bíblicos que narram os apelos vocacionais, nota-se que o chamado está profundamente enraizado na realidade social e humana. E certo que o chamado vocacional é uma iniciativa de Deus, mas percebe-se que Deus chama a pessoa para confiar-lhe uma missão, que vai ao encontro de uma necessidade da comunidade. Cremos, portanto, que o chamado é precedido por uma necessidade concreta de uma pessoa, grupo ou sociedade, que afronta o Plano de Deus. Antes de qualquer chamado especial, brilha o Plano de Deus: que todos os homens vivam a fraternidade na liberdade, na justiça e na paz. Faz parte do Plano de Deus que o homem tenha um trabalho para ganhar o pão, possa comer dele e, em conseqüência, possa ter saúde e vida para louvar a Deus e servir os seus irmãos. Quando os homens se afastam da sua vontade, ele toma a iniciativa de chamar alguém, em geral do meio dos transviados, para reconduzilos. Vejamos, por exemplo, o chamado de Moisés: Deus criou o homem para ser livre diante dele e dos seus irmãos. Contrariando esse Plano, os egípcios escravizaram os hebreus. Os oprimidos gritaram a Deus, e Deus, que é pai atencioso, ouviu o clamor de seu povo e buscou liberta-lo. Como Deus não é paternalista, quis que houvesse a participação dos oprimidos no processo da libertação. Por isso, chamou Moisés, um dos oprimidos, para animar e coordenar o povo hebreu, na busca da liberdade perdida.
O mesmo esquema aparece nos outros chamados vocacionais narrados nos textos bíblicos. A Bíblia foi escrita para os homens e não para Deus; pode-se crer, portanto, que ai surge uma orientação para nós, os agentes da Pastoral Vocacional e da Pastoral da Saúde. Lançando um olhar sobre a realidade sanitária do povo brasileiro, ainda vemos verdadeiros desertos, ou seja, locais onde não há qualquer tipo de assistência e orientação. Além disso, vemos as injustiças, a fome e a ignorância semeando a doença e o sofrimento. Aguçando nossa sensibilidade e os nossos ouvidos, captamos o clamor dos doentes abandonados nos hospitais e nas casas, que morrem sem atendimento de um sacerdote, conforme seu desejo. Ouve-se igualmente o grito dos desassistidos que mendigam um pouco de saúde nas portas dos hospitais e postos de saúde. A luz da história, esse olhar e ouvir têm sabor de pessimismo. No entanto, á luz da Palavra de Deus, que quer vida e saúde para todos (cf. Jo. 10,10), é realidade existencial em contradição com o Plano de Deus. Sabemos que Deus não é paternalista e, assim, não virá resolver os nossos problemas sem nossa participação. Sabemos que os poucos camilianos existentes no Brasil e os membros de outros institutos religiosos engajados no campo da saúde, bem como os leigos inseridos nesta pastoral, estão fazendo maravilhas. Louvado seja Deus! A realidade, porém, nos recorda o Evangelho que diz: «A colheita é grande, mas poucos os operários! Pedi, pois, ao Senhor da colheita que envie operários para a sua colheita»(Mt 9,37s). Quem deve pedir? O papa os bispos, os padres e religiosos (ai)? Sim, eles devem pedir, mas não só eles. Ousamos dizer que, mais do que eles, devem pedir operários para o campo da saúde os camilianos e os agentes da Pastoral da Saúde, que têm a graça de experimentar quanto agrada a Deus e aos doentes o seu trabalho em prol da saúde do povo. Pedir vocações de que forma? Pedir, rezando para o seu aumento e santificação. Pedir, apoiando e animando um (a) jovem ou adulto a visitar os doentes. Pedir, querendo bem aos seminaristas. Pedir, falando aos jovens e adultos sobre as inúmeras necessidades no campo da saúde. Pedir, lançando o apelo direto, sus quando chamou os seus discípulos (cf. Mt 4,18-22). Deus deposita a semente da vocação no coração dos jovens, mas confia a toda a Igreja (padres e leigos) a missão de cuidar da sementeira, para que não faltem, nunca, operários para a sua messe. Por que, então, faltam operários - padres, religiosos (as),leigos (as) consagrados ou não - para atuarem no campo da saúde? Cremos que isto se deve, sobretudo, à nossa pouca dedicação para invertermos essa situação de carência, pois Deus ajuda quem se ajuda. Senhor dá messe, animai os padres, religiosos e leigos a trabalharmos em favor das vocações, para que a Pastoral da Saúde não estacione ou venha a morrer por falta de operários! JULIANA, UMA HISTÓRIA DE AMOR... Este texto tem apenas a assinatura singela do primeiro nome da autora. Ela quer ser identificada apenas como Lívia, que é o seu nome verdadeiro. Livra reside em São Paulo e Juliana já completou cinco anos de idade. Aqui estou, tentando pôr em palavras tudo o que venho sentindo e aprendendo desde que ela surgiu em nossas vidas: Juliana, um anjinho de sete meses de idade, a menina que eu tanto sonhava ter um dia, a pessoinha que hoje sei respeitar, minha filha excepcional. Quantas vezes, conversando com amigos sobre Juliana, e o que ela me tem feito crescer, sugeriram que escrevesse um livro... A principio, a idéia me agradava... até que ganhei e li o livro de Iva Folino Proença - «Posso ajudar você? » em que descreve sua experiência de vida nestes últimos 27 anos, desde que nasceu seu filho também excepcional. Percebi, então, que, para se escrever um livro, é preciso ter como base resultados concretos e a certeza da vitória, após enfrentada a luta proposta. Eu estava apenas começando. Por isso, abro mão da idéia, hoje, esperando que, um dia, tenha reunido resultados tais que mereçam tornar-se um livro. Limito-me, agora, a contar simplesmente o que para mim é uma história de amor. Juliana nasceu e, desde o instante em que a vi, na sala de parto, notei que havia algo diferente com ela. Aquele sentimento eufórico que sempre esperei ter no momento em que tivesse uma filha (eu já era mãe de um menino) jamais senti, pois, desde os primeiros minutos, a preocupação tomou conta de meu intimo. Assim que voltei para o quarto, comentei minhas suspeitas com minha mãe e meu marido, mas ambos as acharam sem fundamento. Eu, por minha vez, tentava esquecer tudo o que me afligia e curtir o fato de ter tido a menininha com que sempre sonhara. - Que besteira a minha em pensar nisto! O normal era ter um filho normal... Todos tinham. Eu mesmo já tivera um mais que normal. Por que a Juliana não o seria também? !? Fazia o jogo dos que me visitavam e, ás vezes, me deixava levar pela euforia daqueles que, nem em sonho, poderiam imaginar o que realmente eu estava sentindo. Mas o esquecimento de minhas suspeitas durava pouco: a cada quatro horas, lá vinha ela, Juliana, para mamar, e tudo recomeçava em minha cabeça.
Por fim, o jogo foi aberto e tudo veio à tona. Depois da conversa com o pediatra, eu queria morrer. Não podia ser verdade que aquilo estivesse acontecendo comigo! A realidade chegou tão inesperada que me derrubou. E do degrau em que me encontrava na escada da vida rolei, caí e só parei porque não havia mais o que descer. À minha frente não existia perspectiva alguma, já que o plano vertical não mais fazia parte do meu mundo. Como era possível que Deus, em toda sua bondade, fizesse isso comigo? Por que? E, assim, uma onda de porquês inundou os meus dias. No inicio, só interrogações. Mas, com o passar do tempo, ia conseguindo respondera minhas próprias perguntas e, em cada resposta, reencontrava um pouco mais de mim mesma. E me tornava um pouco mais forte para enfrentar aquela barra. As perguntas se seguiam: - Por que Deus, que gerou um filho tão perfeito, me mandava um imperfeito? E logo chegava a resposta: Cristo foi perfeito para desempenhar o papel que só cabia a ele, e Juliana é perfeita para o pedaço da história que lhe cabe. - Por que minha cruz era tão mais pesada que a dos outros? Como poderia dizer isso, se jamais havia carregado a cruz de alguém? E como saber se era pesada demais para mim, se não havia sequer tentado carrega-la? - Por que não aceitar uma pessoa que nasce com uma anormalidade qualquer, quando somos tão vulneráveis a ela? Podemos contrair uma doença tal que nos deixe, quem sabe?, ainda mais limitados do que aquele que relutamos em aceitar. - Por que dizer que Juliana é imperfeita, quando ela se aproxima muito mais do que nós das expectativas de Deus? - Por que se confunde imperfeição com anormalidade, palavras tão distintas? - Por que as pessoas têm que ser como queremos? - Por que não conseguimos respeitar o indivíduo que existe em cada corpo, independente da sua capacidade intelectual ou produtiva? - Por que só amamos filhos que temos como perfeitos, quando Deus nos tem a todos como filhos e nos ama como tal, apesar de sermos imperfeitos? E assim por diante... Quantas perguntas me fazia! E, pior que a ansiedade que havia em encontrar respostas para minhas perguntas, era o que eu descobria de mim mesma nesse processo louco. Como eu era pequena! E quanto havia, ainda, para crescer! Mas eu queria crescer... O desafio estava lançado. Era preciso definir para mim mesma o que eu realmente sentia em meio a tanta confusão. É desagradável saber que precisamos fabricar razões e motivos para amar alguém, quando este sentimento deveria ser tão natural e espontâneo. Eu amava minha filha. Por que, então, lançava mão desses expedientes? O que eu realmente sentia por ela? Eu não conseguia compreender. O tempo se incumbia de dar as definições. Aos poucos, Juliana deixava de ser imposição para voltar a ser uma opção de vida. Eu lia muito e, na medida em que dominava o assunto «mongolismo», mais fácil era aceitar a idéia de ter uma filha excepcional. Pessoa anormal, mas perfeita; não doente, mas diferente. E ser diferente não é um grande problema! Ao descobrir que não seria um grande problema em minha vida, aceitei de coração esse fato. Senti que estava de volta àquele degrau de onde havia caído. Estava novamente pronta para continuar. Com a aceitação, todo aquele questionamento, a necessidade de encontrar respostas e tudo o mais de inseguro se acabou. E o que senti de gratificante foi a certeza de amar minha filha com todas as minhas forças, porque eu a aceito como é. O verdadeiro amor só existe com a aceitação e apenas agora posso dizer que conheço e sinto o que é amar de verdade. Hoje, por ter certeza desse amor por ela, não tenho medo do que penso e sinto. Por ter descoberto e aceito a minha pequenez como gente, enfrento as minhas fraquezas e, por causa de Juliana, me torno mais forte em cada fraqueza. Ao aprender o que significa a palavra entusiasmo (in Theos asmo = com Deus na alma), sei bem o que reconquistei, e não quero perdê-lo. Espero jamais dizer não às propostas da vida, e tenho certeza de que, quando dizemos sim e aceitamos o que surge, não faltam mãos amigas a nos sustentar e apoiar. Termino aqui este meu depoimento, tendo como lema do meu caminho futuro e desconhecido uma dedicatória que recebi: «O grande estimulo da vida é saber que existem pessoas que acreditam em nós e esperam da gente grandes coisas». Dedico estas linhas a quatro pessoas: a Maria, minha querida «secretária», pau para qualquer obra; ao meu marido, que jamais deixou de ser o segundo prato da balança que nunca chegou a desequilibrar; a minha mãe, que,
sempre ao meu lado, soube falar quando eu precisava escutar e soube calar quando eu precisava sentir; a minha sogra, que sempre me transmitiu a sensação de me achar capaz de grande coisas. O CÂNCER É EVITÁVEL Júlio Munaro Apesar de todos os progressos da medicina, o câncer continua sendo uma das moléstias mais perigosas para o homem de hoje, tanto pelo número de vitimas fatais que acarreta, quanto pela carga de sofrimento que provoca e os altos custos de tratamento que implica. O câncer não distingue idade, sexo ou condição social. Prolífera em todas as partes do corpo, sem distinção, desde a pele até o cérebro e os ossos. Devemos admitir, porém, que também este mal tem suas preferências. No mundo feminino, por exemplo, prevalece o câncer ginecológico, sobretudo nas mulheres de vida sexual ativa, Mas este tipo de câncer pode ser eliminado, como tantos outros, quando descoberto e tratado a tempo. Se descuidado, torna-se fatal. No Estado de São Paulo, morrem cerca de 1.100 mulheres por ano, vitimas deste mal. Todas estas mortes, geralmente de mães de família, poderiam ser evitadas, desde que as mulheres fizessem um exame preventivo periódico, isto é, de ano em ano ou, no máximo, de dois em dois anos. O processo é simples, rápido, eficiente e de custo muito baixo.. No entanto, dos 9,2 milhões de mulheres que deveriam submeter-se anualmente a este exame, apenas 880 mil o fazem, isto é, menos de 10%. Um índice baixíssimo, se levarmos em conta a gravidade do risco. Mas, o que é pior, 550 mil são atendidas pelo setor assistêncial privado e só 330 mil pelo setor público. Em última análise, as mulheres de mais elevadas condições sociais enfrentam o problema por própria conta, enquanto as de menores recursos - que são a imensa maioria - ficam a descoberto, porque os serviços públicos são insuficientes, embora caiba justamente a eles a principal responsabilidade, por se tratar de prevenção de doença. Como disse, o teste é simples, rápido, eficiente e de baixo custo, o que evidencia uma omissão injustificada dos serviços públicos. Em nosso Estado não faltam recursos materiais nem humanos para que a lacuna venha a ser sanada, e a curto prazo. Felizmente, a Secretaria de Saúde do Estado está pensando seriamente no assunto e, pelo que sabemos, está montando um esquema que viabilize o atendimento de todas as mulheres que quiserem submeter-se ao teste. Será um passo significativo para a melhoria da saúde da mulher paulista, sobretudo se houver uma boa campanha de esclarecimento ao público. Mas também esta parece estar sendo preparada, embora o governo receie que o recato da mulher paulista, sobretudo das mulheres pobres e menos esclarecidas, venha a se constituir no maior obstáculo para o tipo de exame em questão. Trata-se dum traço cultural não desprezível e deve ser preservado, mas sem levá-lo ao extremo de pôr em risco a saúde e a própria vida. Não aceitamos, porém, que a mulher paulista e brasileira, de qualquer condição social, seja tão pouco sensata. O que, de fato, está faltando são os serviços públicos necessários. Desde que o governo os instale e faça funcionar com eficiência, a população saberá utiliza-los. Prova disso é que, nas favelas onde existem e funcionam, as mulheres os procuram. As mortes, a nosso ver, não acontecem por preconceito, mas por falta de serviços. Enquanto não existirem estes, é omissão recriminar aqueles. São Paulo tem tudo para sair do impasse e dar um exemplo de bom atendimento de saúde para o Brasil inteiro. MODERNIDADE EM ÉTICA-SAÚDE Hubert Lepargneur Que significa a modernização na área da Saúde, do ponto de vista ético? A questão ultrapassa a bioética. Somos ainda convencidos de que o conceito que melhor sintetiza o significado da modernidade é o tempo de «secularização», que nos abre as três perspectivas seguintes: 1) Mudança na dinâmica conceitual e axiológica ( = dos valores). Não vamos dizer que ela desapareceu. O motor da cultura secular, porém, sem ser oposto, manifesta sua nítida originalidade ao focalizar dois valores: a eficácia e o igualitarismo. A perseguição da eficácia da ação deixa de lado as «essências» (até o «intrinsecamente bom ou perverso» no campo da moral) e não se preocupa particularmente com os sentimentos, nobres ou interessados. Interessa o que funciona, o que resulta em frutos de melhor conforto e menor pena. Procura, portanto, melhorar a vivência presente e do próximo futuro, de maneira tangível, sem recuar o desfrutar para uma escatologia indefinidamente adiada. Sem que seja rechaçada, a esperança é por vezes suspeitada de traduzir uma impotência presente antes que um domínio futuro de incontestável consistência.
A partir do fim do século XVIII, o principio da igualdade entre os cidadãos forneceu carne histórica à valorização cristã, por vezes um pouco esquelética, da eminente dignidade da pessoa. O impacto no campo da saúde, mesmo se demorou um pouco, não é menos evidente que no campo político. «Faço caridade» quando quero, a quem eu quero, mas hoje, a qualquer instante, qualquer indivíduo levanta-se a reclamar por «seus direitos»: quem não percebe a mudança da problemática? 2) o progresso técnico-científico adquiriu uma enorme relevância cultural. Pode-se discutir suas difíceis relações com a ética e sobre os limites que certas visões humanistas queriam impor-lhe. Mas a campanha sistemática para denegri-lo como tal («a ciência não passa de um mito», «mergulha na ideologia e num precário relativismo», «nova religião atéia, dogmatismo camuflado, inseguro e orgulhoso»...) ou acusá-lo de sacrificar os pobres aos ricos, não passa de um combate obscurantista de retaguarda. Todo progresso cultural beneficia primeiro os ricos e poderosos (quem pode mudar esta lei natural, mesmo se comporta umas raras exceções?), mas deve atingir em seguida, o mais rapidamente possível, as camadas sociais menos favorecidas e soldáveis. Servir os povos não leva a denegrir a ciência e bloquear a tecnologia, mas, antes, condenando apenas o obviamente contra produtivo, alargar a faixa dos beneficiados. Servir o povo não aconselha abrir fogo contra os promotores do saber-poder humano, mas, antes, providenciar ao progresso uma abertura mais amplamente humana. A inveja nem sempre é boa conselheira, sobretudo quando mascarada. Lastimamos o desperdício de esforços aparentemente bem intencionados, investidos em lutas contraproducentes. Será hoje tão difícil escolher com exatidão o campo de batalha quanto vencer no confronto? O despojo do inimigo errado não serve para ninguém. 3) Da absolutização «deontológica» à abertura «teleológica». Como não usamos termos difíceis senão por necessidade, vamos explicar. A pessoa insegura é dogmaticamente rígida numa compreensível defesa. A deantologia, cujos serviços são inegáveis em ambientes culturais que não possuem as condições de seu ultrapassar, reflete a afirmação de deveres que nem sempre são justificados fora do principio de autoridade. A moral «teleológica» considera os fins (telos), mas sobretudo os resultados previsíveis da ação e da omissão, comparando-os. «Esta teoria é tradicionalmente empregada na teologia moral católica para determinar a quase totalidade das normas morais, com a exceção do campo da sexualidade, do matrimónio, da vida», observa o Pe. Salvatore Privitera (Palermo), único moralista italiano a declarar-se publicamente «teleólogo» («La sfida dell'ingegnaria genetica», págs. 172 e 183). Uma cultura secular aberta a uru empirismo que se revelou fecundo requer uma ética atenta aos resultados. Isto é, após a afirmação «deontológica»: «Isto é contra a lei natural, isto é a vontade de Deus», a modernidade secular pede ingenuinamente: por que? O nó profundo de muitos dos atuais debates éticos nos aparece aqui. Não queremos apor ingenuamente «moral deontológica» e «ética teleológica», mas não nos parece provado que o questionamento das razões do proibido seja irrelevante ou imoral «em si». O problema é evitar o circulo vicioso que foge do questionamento pela imposição duma cosmovisão fechada, e portanto tautológica ( = repete o mesmo sem prova). Se estamos com a verdade que temer? Se uma opção é errada, não haverá meio de mostrar que, no conjunto, seus frutos são ruins? Convém tentar isto, porém, sem indevida simplificação. Entre ciência e ética, parece que o eventual desentendimento pode se resolver pelo diálogo, por assim dizer, a fim de elucidar até onde a redução metodológica (só se admite ver certos aspectos, previamente definidos, da realidade) é necessária e válida: sem ela não existe ciência humana, porque apenas Deus é capaz de pensar o conjunto da realidade numa só idéia. Enquanto que o horizonte moral não pode excluir nada que interessa o ser pessoal. Evidentemente, nenhum sistema moral dispensa a liberdade humana ou torna bom o indivíduo que recusa o bem. Mas a restrição à liberdade ou a confusão dos valores não é irremediavelmente embutida na modernização no campo das práticas atinentes à vida e à saúde.