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A AIDS NÃO PASSA DE UMA CONTINGÊNCIA HISTÓRICA Júlio Munaro O aparecimento da AIDS, considerada no inicio como doença de homossexuais - pois era deles que provinha a quase totalidade de vitimas -, fez com que alguns grupos religiosos, sobretudo os que propõem uma ética sexual mais rígida, assumissem uma atitude negativa diante do fenômeno, enveredando por caminhos moralizantes e, em muitos casos, condenatórios. Para os mais afoitos, o castigo de Deus era evidente, numa espécie de versão moderna de Sodoma e Gomorra. Com o passar do tempo, os ânimos serenaram, e a razão voltou a desempenhar o seu papel. A própria evolução da AIDS contribuiu para isso. Viu-se que não se trata de doença exclusiva dos homossexuais, e que a causa da moléstia não provem deles. Bastou isso para que a AIDS perdesse sua força moralizante da sexualidade. Hoje, constata-se com evidência que «o perigo da AIDS não é argumento necessário nem suficiente para fundamentar o comportamento sexual correto». A AIDS não passa de uma contingência histórica. Não é um principio metafísico nem um dado antropológico estável. Como apareceu na vida do homem, também vai desaparecer. Mas não è bem assim com a sexualidade. Ela é parte integrante do ser humano. Nasceu com ele e haverá de acompanhá-lo enquanto sobreviver. E nesse enfoque de permanência que se fundamenta a ética sexual. As contingências desempenham papel ético secundário, nunca determinante em linha de principio. A descoberta científica que elimina um efeito maléfico ou indesejado não altera o principio ético. Seria como dizer que relações fora do casamento são imorais apenas pelo risco de gravidez. Eliminado este, tudo passaria para a normalidade. Cairíamos numa ética utilitarista, imediatista e extremamente vulnerável. A própria ética ou não ética da sexualidade deve fundamentar-se em razões bem mais sólidas que o risco da transmissão da AIDS e suas conseqüências para o indivíduo e a sociedade. A chamada liberalização da sexualidade nas últimas quatro ou cinco décadas pôs em crise alguns valores tradicionais a ela ligados, como a continência, o amor e a fidelidade, que, felizmente, estão reemergindo vigorosamente do limbo em que foram relegados como tabus de épocas obscurantistas. Mas devemos tomar cuidado para não atribuir essa retomada de valores ao aparecimento da AIDS. A reação já estava presente quando a AIDS entrou em cena. A onda de que a liberalização da sexualidade seria a panacéia para todos os recalques que entravam a pessoa já estava perdendo sua força. Se, de um lado, a ciência d emonstrou a amplidão das interferências sexuais na vida do ser humano, de outro também percebeu as suas limitações. A ganância material e a sede de poder, por exemplo, são bem mais determinantes no comportamento individual e coletivo do que o fator sexo. A história de hoje, como de todo o passado, demonstra isso com evidência. A sede incontida de poder e a sofreguidão insaciável de bens materiais é muito mais prejudicial para a humanidade em seu conjunto que a liberalização sexual que ai está. Pode-se afirmar que não é a sexualidade que instrumentaliza o poder e a riqueza, mas estes que prevalecem sobre aquela. A AIDS chama a atenção sobre alguns comportamentos sexuais, mas pouco ou nada diz dos malefícios da ganância e do abuso do poder em relação á preservação da vida e dos seus valores. O último relatório da Unicef demonstra que o problema da divida externa foi responsável pela morte de mais de 500 mil crianças no ano passado. E quem ignora o número de vidas ceifadas em nosso pais pela péssima distribuição de renda encalacrada em nosso sistema econômico ou as tensões e mortes que a falta de uma reforma agrária continuará provocando? POLÍTICA DE COMBATE À AIDS Vicente Amato Neto É imperioso que, sem perda de tempo, a coletividade e as autoridades progridam mais efetivamente no combate á seqüência epidemiológica da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). A situação é preocupante e há necessidade de atuação mais rápida. A AIDS está ai c veio para ficar. Existem, ao que parece, centenas de milhares de pessoas contaminadas pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV-1), que origina esse mal, e prevê-se que, nos próximos anos, milhões de indivíduos estarão nessa condição. A doença demora bastante para manifestar-se e é de letalidade muito alta. Alguns princípios devem nortear lima ação racional: . o controle precisa ser efetuado com base em dados científicos e objetivos. A responsabilidade, a propósito, é da sociedade como um todo e de cada cidadão para consigo mesmo; . este trabalho não pode, no entanto, respaldar discriminação, imposição de normas comportamentais ou constituir instrumento de educação moral e cívica. Ninguém consegue ser totalmente neutro em assuntos que envolvem sexualidade, doença e morte, mas è essencial um esforço em nível de saúde pública, para que as condutas adotadas possuam sustentação lógica, com alheamento de considerações abstratas e de outras menos racionais;


. não é aceitável, no contexto do combate á AIDS, perseguição a autonomias individuais e grupais na prática ou realizar triagens ideológicas, políticas e econômicas de quaisquer espécies. A defesa das liberdades, de uma luta antitabu, abrange implicações progressistas. Entretanto, nem por isso, a sociedade tem o direito de ignorar a catastrófica realidade que è a expansão da AIDS e não pode desconhecer o dever de citar explicitamente o comportamentos de risco ligados á aquisição da enfermidade. Nisso não existe julgamento moral, pois o enfatizado são ratos biológicos perfeitamente documentados e conhecidos, que vigoram independentemente de nossas opiniões. Definidos esses postulados e levando-se em conta que a epidemia é fundamentalmente de transmissão sexual, com possibilidade de contaminação via sangue e derivados transfundidos, contato com sangue e material biológico contaminado ou transplante de órgão, deduzimos que a disseminação é fácil de enfrentar em alguns aspectos e extremamente difícil de ser coibida em outros. No começo da epidemia, a circunstância de ter incidido mais em grupos discriminados, ou seja, homossexu ais masculinos e drogados, fez com que se misturassem conceitos e posicionamentos sobre comportamentos socialmente não aceitos, e disso resultou uma indesejável hesitação na prevenção. Agora que a moléstia já passou a atingir significativamente heterossexuais e não viciados, exaltando o caráter epidêmico em expansão, o processo despertou o interesse do conjunto de toda a população, e o ponto fundamental, digno de insistência, è a profilaxia da contaminação. Quem já está infectado depende da evolução natural da virose e não conta, hoje, com recursos curativos eficientes; para os demais, não há vacina eficaz e até persistem dúvidas quanto ao advento, pelo menos a curto prazo, de imunizantes realmente úteis para prevenção da doença. Reafirmamos que o cerceamento da progressão da AIDS depende de se conseguir menor número de contaminações por via sexual e de transmissão pelo sangue, no que tange a drogados e transfundi-os. Como obter este desiderato? Propõe-se educar, insistir na informação correta e pugnar pela conscientização. Tudo isso é válido. Afigura-se, porém, esdrúxulo imaginar que, no inicio de 1989, exista alguém, no Estado de São Paulo, sem instrução acerca da AIDS. Poderá inclusive ter sido alvo de desinformação, por dados aqui e ali não claramente expostos, nas diferentes linguagens inteligíveis para cada segmento da população. Todavia, certamente existe o problema tangível da falta de interesse e capacidade da conscientização pessoal e de promover mudanças do comportamento individual. A sociedade como um todo e as autoridades que a representam são obrigadas a trabalhar nesse sentido. A esta altura, contrair AIDS por via sexual ou uso de droga é, também e principalmente, responsabilidade de cada indivíduo. A coletividade deve fazer sentir ao doente que lamenta o fato e o seu destino, dando-lhe o apoio de que necessita, considerando haver no comportamento que o levou á enfermidade uma não desprezível dose de irresponsabilidade, frisando a posição da comunidade, decididamente contra as modalidades comportamentais que conduzem á lamentável situação. As campanhas educativas precisam salientar isso com meridiana clareza. Em relação á contaminação por via sexual, é imprescindível dizer que: . a abstinência é recurso preventivo seguro; . a atividade com parceiro fiel não contaminado, comando com fidelidade reciproca, é também maneira segura de não contrair AIDS; . a atividade com mais de um parceiro envolve riscos, que aumentam à medida que cresce o número; . o coito anal corresponde a maior risco; . o uso de camisinha é recurso valioso na diminuição da propagação da doença, considerado em nível coletivo, esperando-se queda na disseminação da epidemia quando o emprego for generalizado, na vigência dos comportamentos que impliquem em risco. Sob o ponto de vista individual, a camisinha não é, infelizmente, meio preventivo inteiramente seguro: risco de má colocação, ruptura e esquecimento de utilizá-lo fazem com que esse instrumento profilático fique menos confiável. Como a difusão pela via sexual é certamente a mais importante na manutenção da epidemia, com repasse a todos dos pontos antes apontados, convém usar tudo o que é disponível em mídia, tais como jornais, rádio, televisão, outdoors em locais de trânsito intenso de pessoas e distribuição de folhetos em locais como feiras, parques de diversões, portos, aeroportos, cinemas, teatros, comícios e museus, por exemplo. Outros locais de concentração de indivíduos, onde se presuma haver maior propensão a relacionamento sexual promíscuo, merecem ser igual c intensamente atingidos por informações. São eles, a titulo de ilustração, zonas de meretrício, locais onde fazem trottoir prostitutos e prostitutas, motéis, inferninhos, boates, danceterias e gafieiras. Campanhas precisam ser feitas, em caráter continuado e curricular, em todos os níveis educacionais, com divulgação, ao mesmo tempo, de informações reais referentes á sexualidade e em tom não policialesco exclusivamente quanto a drogas. Uma, particularidade pede atenção. E ela a ida de trabalhadores para o exterior e, mais formalmente, para a África, com probabilidade, nos retornos, de pioras dos índices de infecção e de participações maiores do HIV-2.


Em relação à transmissão através de toxicômanos, é muito difícil obter colaboração em qualquer programa. Algumas propostas são factíveis: . advertência impressa na seringa e seu invólucro, para não reutilização; . instruir no sentido de evitar os«rituais de sangue» nas sessões de injeção; . incentivar o combate á produção, tráfico e consumo, de um modo geral. A transmissão por intermédio de sangue e derivados é, seguramente, a mais acessível a métodos de controle adequados e passível de providências efetivas pelas autoridades, no campo da saúde pública. Infelizmente, se esse mecanismo de veiculação desaparecesse, pouca diferença faria nas cifras da epidemia. Enfim, è obrigatório que o sangue e derivados a serem transfundidos, sem viabilidade de eliminação do HIV-1, passem pela triagem por teste sorológico apropriado. Isso aumenta muito a segurança e, tristemente, não assegura prevenção absoluta: alguns informes contidos na literatura científica mostram que o risco de passagem da infecção após a administração de sangue tido como anti-HIV negativo, mediante aplicação das melhores técnicas possíveis, é de 1/40.000 transfusões. É evidente que isso, em comparação ao perigo de 80% ou mais, quando se transfunde sangue anti-HIV positivo, evidencia claramente a conveniência de se praticar exame seletivo e seu extremo valor na análise risco/beneficio. Incrementar a prova para antigeno não parece, hoje, ser tática apta a alimentar significativamente a eficácia da prevenção da difusão transfusional. É indispensável constante avaliação dos testes disponíveis no mercado, além de controle de sua qualidade pelo Estado, não se confiando apenas nos elementos fornecidos pelas firmas produtoras. Cada prova, idealmente, deveria ser monitorada em laboratórios oficiais e estatais, lote a lote, ocorrendo publicamente as análises. As Secretarias de Estado da Saúde caberia apreciar a categoria dos profissionais e instituições que executam os exames, educando-os e analisando-os freqüentemente. Painéis com soros complexos permitiriam auditorias em bancos de sangue públicos ou privados e em laboratórios. Essa vigilância não policial, mas dotada de caráter instrutivo e critico, propiciaria mais segurança a quem leva a cabo as provas, ficando patente a imposição de impedimentos aos incompetentes e desleais em área na qual rigor e compostura irretorquível são indispensáveis. Testes confirmatórios precisam estar disponíveis com facilidade, para aferir a realidade dos iniciais, de triagem. Condições para ajuizar sobre reativos e métodos são essenciais em termos oficiais, incluindo a rede governamental nos cuidados. Seria extremamente valioso estudo concernente aos soros falso-positivos e definição das razões pelas quais eles o são, assim como é oportuno enfoque do «Westernblot» não confirmatório para a infecção pelo HIV-1. Em relação aos hemofílicos, as Secretarias são os organismos exigidores de que tais pacientes recebam unicamente produtos obtidos de doadores anti-HIV negativos e que, ainda assim, fiquem «tratados» por calor e detergente, apesar dessa inumodológia não garantir total êxito preventivo. Sistemas de atendimento a hemofílicos, no Serviço Unificado de Saúde, que minimizem o uso desse fatores, requerem incentivos. Nos bancos de sangue, suplementarmente, é impreterível averiguar a intimidade dos resultados divergentes de testes sorológicos e checar prevalências justamente para descobrir divergências. Acerca dos doadores, estimular autoexclusão, entrevistar previamente e cumprir exame físico são posturas defensáveis, permanecendo acessíveis os números de excluídos por intermédio desses critérios. Expostas as ponderações atinentes aos setores de atuação, cumpre discutir aspectos da política de combate à AIDS e do atendimento aos pacientes, que merecem e necessitam de atenção em todos os níveis a cargo não só do Estado e da esfera pública. Grupos empresariais da medicina que não queiram acolher aidéticos e outros enfermos com doenças infecciosas suscitam penalidades, e a melhor sanção a impor reside na rescisão de convênios pelas firmas usuárias. Por seu turno, entidades contratadas pelo SUDS e pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INMPS) devem ser instadas a prestar serviço a esses enfermos. Coordenação das ações pelas Secretárias é recomendável, tendo doente e médico acesso a fármacos e médicos diagnósticos e terapêutas, ficando ainda facilitado o uso a participação em tratamentos investigacionais. Aliás, é urgente a constituição de grupos multi-institucionais, subordinados às Secretarias, para desenvolvimento de protocolos colaborativos e pesquisas relacionadas com a afecção, englobando desde as questões puramente biológicas até as psicológicas e sociológicas. Se não sucederem essas investigações, que permitem delinear nossa realidade, estaremos condenados eternamente a depender de tecnologia do exterior para controlarmos epidemia que, aqui e agora, tem aspectos que diferem das condições vigentes em outros lugares. Há que obter, sobretudo das instituições universitárias ou governamentais ligadas à medicina preventiva, programas cientificamente embasados, para permitir luta coerente e produtiva frente à AIDS. Não podemos fugir dos fatos. A humanidade terá que conviver com a AIDS por longo tempo e talvez para sempre. Enquanto novos fatos não modificarem essa perspectiva, seja por alteração do agente biológico ou por progressos científicos, as coletividades devem organizar-se e preparar-se para uma batalha permanente, contínua e mutável contra o mal.


Não existe vetores ou hospedeiros intermediários a serem combatidos: existem transmissores humanos, estando alguns já doentes e dignos de cuidados. A AIDS determina que enxerguemos a nossa realidade e tantas atividades lícitas e elícitas de nossa sociedade num flash cruel, e faz como eu ela precise conscientizar0se disso e preparar-se, cobrando das autoridades dotadas de credibilidade e da comunidade como um todo providências para que a transmissão arrefeça. Esse é o âmago da questão. A disseminação da AIDS tem que diminuir.

OS 12 PASSOS DOS AA 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

Admitir-se que é impotente perante o álcool – que perdeu o domínio sobre sua vida. Vir a acreditar que um poder superior a ele mesmo pode devolver a sanidade. Decidir entregar sua vontade e sua vida aos cuidados de Deus, na forma concebida por cada um. Fazer um minucioso e destemido inventário moral dele mesmo. Admitir perante Deus, perante ele mesmo e perante outros ser humano a natureza exata de suas falhas. Prontificar-se inteiramente a deixar que Deus o remova de todos esses defeitos de caráter. Humildemente rogar que Deus o livre de suas imperfeições. Fazer relação de todas as pessoas que prejudicou e se prontificar a reparar os danos causados. Fazer reparações diretas dos danos causados às pessoas, sempre que possível. Continuar fazendo inventários pessoal e, quando estiver errado, admitir prontamente. Procurar, através da prece e da meditação, melhorar seu contato consciente com Deus. Depois de experimentar um despertar espiritual, graças a esses passos, procurar transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as atividades.

EUTANÁSIA EM CHAVE DE LIBERTAÇÃO Márcio Fabri dos Anjos

A eutanásia é uma questão que se coloca hoje de forma cada vez mais contundente. Os recursos técnicos com que se desenvolve a medicina ampliam cada vez mais o poder do homem em interferir, sob diversas formas, em algo que anteriormente estava reservado com mais predominância a variáveis biológicas: o momento da morte. No campo da medicina, meios sofisticados garantem a possibilidade não só de se produzir uma morte suave, poupando ao paciente um tempo de dor e de limitações, mas também de se afastar ou retardar o Processo terminal. São muitas as questões que daí decorrem. A reflexão ética tem-se desdobrado a partir de uma interdisciplinariedade entre as diversas ciências que possam colaborar em vista de um procedimento humano e cristão nessa área. A pergunta que aqui nos colocamos vem, principalmente, de uma inquietação quanto a um enfoque da eutanásia exclusivamente dentro do campo da biomedicina. Somos assim impulsionados a contribuir a que o trato do tema supere o intimismo ético que reduziria a questão simplesmente á relação médico paciente. Entendemos que o contexto mais amplo em que a eutanásia se concretiza oferece uma coordenada importante para a sua apreciação ética. A eutanásia, de fato, é um conceito abstrato, a serviço da configuração de sujeitos e situações concretas. A espinha dorsal da questão pode ser percebida na situação difícil de vida em que o indivíduo se encontra e para a qual se propõe uma saída pela morte suavizada. Ora, isto nos leva a perceber que o contexto mais amplo em que a eutanásia se situa são situações difíceis de vida. Parece útil discorrer sobre algumas destas situações. Ao entender a eutanásia como «morte suave, feliz», a primeira situação que nos ocorre para contextualizá -la é o seu contrário. Parece importante falar, então, da morte infeliz, dolorosa, que chamaríamos de «mistanásia». Isto nos remete, dentro da área da biomedicina, aos pacientes terminais sofredores, seja pela convicta recusa em não se interferir no processo de morte, seja pelo mau atendimento médico-hospitalar. Mas nos remete também muito além da área hospitalar. E nos faz pensar na morto provocada de formas lentas e sutis por sistemas e estruturas. A mistanásia nos fazer lembrar os que morrem de fome, cujo número apontado por estatísticas é de estarrecer. Faz lembrar, de modo geral, a morte do empobrecido, amargado pelo abandono e pela falta de recursos os mais primários. Mas também nos remete aos mortos nas torturas de regimes políticos fortes e que os deixam por fim como «desaparecidos». Nesses casos, a mistanásia (do grego mis = infeliz) é uma verdadeira «mustanásia», morte de rato de esgoto (do grego mys = rato).


Na linguagem médico-hospitalar, existe uma contraposição à eutanásia, que consiste no prolongamento artificial da vida, para além do que seria o processo biológico comum. A vida é mantida por aparelhos e recursos técnicos, diferindo e protelando ao máximo a morte biológica. Este procedimento pode ser chamado e «distanásia», morte afastada, distanciada. A maravilha dos recursos técnicos que podem assim afastar, por um tempo ao menos, a morte biológica nos faz lembrar a contradição dessa experiência ao nível social, quando vemos a vida humana sendo ceifada antes do tempo. Pelos neologismos tirados do grego, poderíamos chamar a isso de «anacrotanásia», uma morte fora do hoje e, no caso, totalmente precoce. Lembramos a mortalidade infantil, que, no Brasil, tem uma das taxas mais altas do mundo; a expectativa de vida, que em algumas partes do mundo não supera os 45 anos de idade; a morte antecipada pelas más condições de segurança no trabalho, pela loucura e desorganização do trânsito; pela falta de uma medicina preventiva, o que escancara o flanco da vida ás doenças, muitas delas de saída já fatais. O discurso seria longo para repassar todas as instâncias em que a saúde pública é manipulada segundo interesses que fazem a morte de muitos. E, depois de tudo isso, ainda restaria lembrar a guerra, uma realidade amarga que destrói vidas jovens, quando não explode indiscriminadamente a vida a vida de tantos civis. Um dos recursos para a suavização da morte hospitalar é o anestésico. Essa técnica de eutanásia nos remete a outro grande problema social de morte que vem pelo mundo da droga. Poderíamos chamá-la de «narcotanásia». Não se trata aqui simplesmente de pensar uma morte dopada. Pela trilha da droga, é a própria vida que se dopa, que se torna alienada. O viver e o morrer se tornam uma fantasia, uma viagem. A morte vem como uma «idiotanásia», uma morte de idiota. A pergunta que dai deriva para nossa sociedade é de onde se propaga essa força que impulsiona á narcose do espírito humano não simplesmente diante da dor e do sofrimento, mas também diante do prazer e da criatividade realizadora. Seria grande ingenuidade pensar que o contexto mais amplo em que se situam a eutanásia e a distanásia hospitalares dispensasse de se refletir seriamente sobre esses temas. O fato de termos um paciente em nossa frente e a nosso cuidado traz suas questões sobre o melhor modo de se respeitar o ser humano. Assim, é fora de dúvida que o mundo médico-hospitalar tem suas próprias questões que merecem nossa atenção. Mas seria igualmente impróprio querer pensar a eutanásia somente dentro dos limites médicos. Acredito que, de fora, da dimensão social, venha ao menos uma critica à sofisticação com que a morte é afastada e a vida simplesmente biológica é mantida (distanásia). A gritante contraposição entre eutanásia e mistanásia nos incomoda para sabermos se as motivações últimas da eutanásia obedecem realmente a impulsos de respeito ao ser humano ou se simplesmente mascaram a hipocrisia de uma sociedade que teme o sofrimento, mas apenas sobre a pele de alguns poucos privilegiados. Às vezes, encontramos os meios de comunicação social fazendo grande alarde sobre a temática da eutanásia em nome do «direito que todo ser humano tem a uma morte feliz». O que isso significa diante da mistanásia? Procurando aprender também do esforço e seriedade no ambiente médico-hospitalar, toda a solicitude que ali se encontra para que as pessoas sejam humanamente bem acolhidas na vida e na morte será vista como um exemplo para que, na sociedade, se lute igualmente a fim de que o viver e o morrer sejam revestidos de dignidade. 0 OITAVO DIA DA CRIAÇÃO Leo Pessini A revolução que, silenciosa e rapidamente, começa a fazer parte da vida humana, não sem espanto e questionamentos, é a revolução biológica. Ela promete alterar o futuro da medicina e o conhecimento da própria base genética da vida.«O Admirável Mundo Novo» entrevisto por Aldous Huxley, em 1927, deixa de ser mera ficção cientifica e começa a tomar-se realidade. Em muitos aspectos, as descobertas na área da-biologia e da genética influenciarão a vida da humanidade, daqui para a frente. Quem não fica surpreso com os progressos obtidos na área da fecundação artificial? Fala-se de mães de aluguel, bancos de sêmen, bebês de proveta... Já temos no mundo lima população de aproximadamente 5 mil desses bebês, os quais jamais teriam vindo à luz, não fossem os conhecimentos adquiridos pelo homem acerca da reprodução humana. Comenta-se a possibilidade de criar, em laboratório, um híbrido homem<hipanzé - um macaco sapiens. A engenharia genética, anjos utilizada apenas em plantas e animais, começa a ser aplicada no ser humano. No final de 1988, por exemplo, nos EUA, a Comissão de Ética e Regulamentação do Instituto Nacional de Saúde autorizou o transplante de uma bactéria para o corpo humano, para combater o câncer. E está sendo preparada uma experiência histórica no mesmo instituto, em Washington: dez pessoas não identificadas aceitaram ser os


primeiros mutantes da espécie humana. São cancerosos em fase terminal, aos quais não restam mais de três meses de vida. Logo modificarão seu patrimônio hereditário, através do enxerto, em seus cromossomos, de um gene retirado de outro ser vivo. Alguns vêem nisto lima nova etapa do Gêneus: no sétimo dia, Deus descansou; no oitavo dia, o homem toma conta das coisas e reprograma a si mesmo... Os peritos afirmam que existem em torno de 3.500 doenças incuráveis, de origem genética, que infernizam a humanidade. A esperança de cifra seria justamente o conhecimento do código genético. Só para lembrarmos algumas destas enfermidades, estão nesse rol o diabetes, o mal de Parkinson, a doença de Alkzeimer... Mas é aqui, também, que surgem questões éticas seríssimas. Hoje, já podemos analisar o DNA de um adulto ou de um feto, identificando-se muitas doenças genéticas, sem que haja, aparente, o menor sintoma elas. Surgem, no entanto, dificuldades: deve-se diagnosticar, quando não se sabe curar? Deve-se interromper uma gravidez, quando se descobre que a criança que vai nascer tem, nos seus cromossomos, um erro que, no entanto, lhe permitiria viver normalmente vários anos? A pesquisa continua num ritmo fascinante. Na área da biologia molecular, trabalha-se, nos grandes laboratórios, não somente para detectar doenças estritamente hereditárias, mas também em cima de testes que permitiriam identificar simples predisposições, revelar fragilidade a relação entre vários genes diferentes etc. Já se fizeram algumas descobertas importantes nesta área . A chamada “descoberta do século” foi a descrição do DNA por Watson e Crick, em 1953, que lhes valeu o Prêmio Nobel. O DNA é a molécula mestra da vida, encontrase no núcleo das células de todos os organismos vivos – animais, aves, plantas , bactérias etc. Ele está distribuídos no núcleo da célula humana pelos 23 pares de cromossomos. Apresenta-se segmentado em unidades que são os genes. O ser humano possui mais de 100 mil genes, que são como os tijolos que realizam a construção de nossa individualidade. Ao conjunto de todos esses genes dá-se o nome de genoma humano. O segredo a ser decifrado está na longa molécula do DNA. Nesta fita química estão inscritas as etapas de nossas vidas. Ela é o suporte dos genes que recebemos de nossos antepassados. É aí que repousam dezenas de milhares de instruções que definem nossa características físicas, e dirigem a fabricação de proteínas, aquelas fundações sobre as quais nosso corpo é construído. Bastaria decodificar o programa para prever doenças muito antes de elas aparecerem. Isto já está sendo feito. Restaria, então, modificar os dados para que elas fossem eliminadas para sempre. O homem já aprendeu a destrinchar a cadeia vital do DNA, a recopiá-la e a transferir pedaços dela de uma para outra criatura. Agora, está em condições de alterar a natureza, reprogramando qualquer organismo vivo. Pesquisa os genes das bactérias, a fim de produzir medicamentos e vacinas; modificar a estrutura molecular das plantas, para criar híbridos mais produtivos, fabrica novas raças e tipos de animais... O ser humano será, naturalmente, o próximo da lista. Está em curso nos EUA, Europa e Japão o projeto chamado Genoma Humano, que visa fundamentalmente decifrar o código genético, isto é, mapear os genes humano. Este projeto, que empenhará 3 bilhões de dólares em 15 anos de pesquisa, é considerado o terceiro mais importante do século, juntamente com o Projeto Manhattan, de que resultou a bomba atômica, e o Projeto Apolo, que levou o homem a pisar no solo lunar. É um gigantesco empreendimento, para decodificar a integralidade das informações inscritas nos cromossomos, ou seja, o equivalente a mais de 3 bilhões de caracteres, o mesmo que uma enciclopédia cujos volumes atingiram a altura de um prédio de três andares... Quando o genoma estiver determinado, será possível localizar a origem de muitas doenças e distúrbios genéticos. Pode ser que os cuidados pré-natais incluam a cartografia do genoma do feto, um futuro próximo. Com isto, será possível determinar quem irá ter certas doenças, muitos anos mais tarde, e oferecer a possibilidade de alterar a ação de alguns gens, a fim de evitar tais males. Teríamos, então, a chamada terapia genética e, mesmo, transplantes de genes... Tal aplicação revolucionaria a medicina, que até o momento se ocupa principalmente em lutar contra as conseqüências ou supressão de defeitos genéticos ( por exemplo, a insulina para diabetes). Não se trataria mais de simplesmente cuidar de órgãos doentes. O objetivo seria desmontar a loteria da hereditariedade e de duas injustiças distribuídas ao acaso. A medicina está no início de nova revolução que vai mexer profundamente na estrutura corporal e mental do ser humano. Seria o fim da fatalidade? O homem, para saber de seu destino, até pouco tempo, consultava os astros. Agora, tem de consultar os genes... Parece não haver muitas dúvidas: o homem do século XXI será dono de seu destino. Ele se mostrará capaz de intervir diretamente no mecanismo da vida, seu futuro e saúde. Há perspectivas e conseqüências imprevisíveis sobre as quais se debruçam pesquisadores e filósofos. Essa revolução chama-se medicina genética. Que pensar de tudo isto? E os riscos de manipulação genética? Não existiria a tentação de formar uma nova raça, como foi tentado por Hitler? Que significa salvaguardar a dignidade do ser humano neste contexto? Estes e outros questionamentos sérios são levantados hoje pela Bioética, literalmente “a ética da vida”.


Não podemos desprezar o valor das descobertas da biologia e da genética, que, sem dúvida, trazem benefícios. Mas esta “revolução” carrega em seu bojo também seríssimos riscos e problemas de manipulação e poder. A flora com toda força a questão ética. Inúmeros países já têm seu comitê nacional de bioética. Entre eles. Os EUA, a França e a Europa Unida. Neles se reflete sobre estes avanços no conhecimento da biologia humana e suas implicações na vida do homem, e se elaboram normas éticas neste contexto de fascínio científico de possibilidades infinitas de recriar a vida e o risco de manipulação. Cientistas de renome – como Jacques Testart, na França, e Jeremy Rifkin, no EUA – questionam muitos procedimentos da biogenética, realizados em nome de salvar a humanidade. É tarefa da Bioética orientar os progressos da biogenética, o saber biomédico e tecnológico para promover e proteger a vida e não manipulá-la. A Bioética, nesse sentido, não é assunto apenas para as elites. Não podemos fechar os olhos ao que está acontecendo no campo da biologia e da genética, pois estaremos ao sabor de manipulações, explorações e discriminações que espezinham a vida ao invés de exaltá-la.

SER DEFICIENTE NUMA SOCIEDADE EM DESENVOLVIMENTO Hubert Lepargneur A desgraça biológica é freqüentemente agravada pela deficiência das estruturas naturais de sustento: a família em primeiro lugar e as organizações de ajuda aos diversos tipos de deficiências. Por meritórias que sejam, as instituições privadas são precárias, fracas, insuficientes. No bicentenário da Revolução Francesa, que pregou liberdade, igualdade e fraternidade, a tentação é grande de encher uma boa lista de direitos para serem reivindicados. A politização da ação caritativa ganha o setor marginal da vivência dos doentes crônicos e outros deficientes físicos ou mentais. Apelamos para algumas objetividade a fim de lançar neste delicado campo um olhar ao mesmo tempo crítico e benevolente. Conhecemos a situação de dramática carência de certos desfavorecidos entre os desfavorecidos (empresta-se aos ricos) e tentemos conciliar uma exatidão realista com uma prospectiva aberta à eficácia. O exagero desgasta inutilmente energias. Ter razão apenas em discurso ou sobre o papel de poucos serve às necessidades sofridas. A temática libertadora fez passar do paternalismo à reivindicação dos direitos - Não esqueçamos. Primeiro, que na fase – de difícil total superamento – do paternalismo (a caridade usa os meios da época), a alternativa era receber o que se oferecia ou ficar sem nada. A utopia pode-se imaginar rapidamente, mas a conscientização social e a organização histórica são processos lentos. Até uma revolução se prepara de longe, mesmo se eclode sem sobreaviso. A reivindicação de diretos só pode ser eficaz quando recebida por uma sociedade que aceita despertar para o problema e capaz de movimentar-se em direção à satisfação das necessidades denunciadas. Da tese da conspiração à educação e programação das solidariedade – A ideologia da “dependência”( não avaliável aqui) deu novo impulso à velha temática da “conspiração” (ironizada por Umberto Eco em seu “Pêndulo de Foucault”). A aplicação em nosso campo soa estranha: os sadios conspirariam contra os deficientes, como os ricos os pobres e o Primeiro Mundo contra o Terceiro. Não é bem assim ( falta lugar para analisar). Desencadear a agressividade dos menos favorecidos tornou-se oportuno; resta canalizar a energia em vias realistas da verdade e justiça, a fim de que não se perca em vãs batalhas, mas desemboque numa solidariedade aos poucos conquistáveis. A paciência pedagógica como sabedoria política – Existem leis do desenvolvimento das nações cuja utilização é mais profícua que o desrespeito. Teoricamente, uma sociedade se desenvolve como um organismo incapaz de atender primeiro a necessidade que lhe parecem periféricas e de pouca utilidade para a coletividade. Na prática, uma sociedade cresce através de seus elementos mais potentes que, infelizmente tendem a limitar ao máximo a distribuição da riqueza obtida. A oportunidade luta para mais justa distribuição tem pouco a ganhar que exige capital, liberdade de empreendimento, eficácia. A equitativa distribuição do nada é nada. Mais vale admitirmos que , antes de investir enormes verbas no conforto não vital de 10% improdutivos da população, uma sociedade em desenvolvimento atende às necessidades nem sempre menos urgentes das massas que contribuem para a economia nacional. Sem excluir toda pressão sócio-política, desde que o interesse não costuma ceder espontaneamente , o atendimento às necessidades dos deficientes só pode ser progressivo, através da conscientização democrática que educa o sendo da solidariedade. Dependência e interdependência - Entende-se que deficiente não seja a agressividade, mas a inspiração maniqueísta tende a exagerar a responsabilidade social na gênese das deficências e a ignorar que seu alívio passa não apen as por maior justiça social, mas sobretudo, pela vontade política da promoção solidária e por certa prosperidade do conjunto social. Os direitos «subjetivos» não deixam de ser medidos pela capacidade social. O fato de que a motivação principal do ser humano seja o próprio interesse (bem ou mal concebido) não invalida a base da democracia sadia, que


é a informação exata e ampla do maior número: a verdade também motiva. Por isso, a denúncia e a reivindicação devem contextualizar-se e procurar aliados antes que suscitar oponentes. Se pede aos cidadãos comuns e a seus dirigentes alargar o horizonte para englobar os menos favorecidos, como os deficientes, cabe aos lideres desta categoria situar-se também no âmbito fia dinâmica real do bem comum. E mister distinguirmos uma esperança razoavelmente combativa e uma utopia excessiva e injustamente agressiva que prepararia novas frustrações.


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