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Um Brado pela Dignidade Humana Numa primeira aproximação sobre o que entendemos por ética, precisamos ampliar o horizonte de compreensão para além daquilo que costumeiramente abordamos miopemente de Ática. Não raro identifica-se ética com proibição, com a norma, a lei, o sigilo ético, com o que é certo ou errado; com o que é bom e o que é ruim; o que deve ser feito e o que deve ser evitado, a defesa dos interesses de uma determinada classe profissional. É verdade que a ética tem a ver com tudo isso também, mas se faz necessário primeiro resgatar o elemento fundamental da questão ética, que é pessoa humana, em vista da qual deveria girar tudo o mais. Desnecessário enfatizar que passamos por uma verdadeira crise de humanismo: fala-se insistentemente de ambientes desumanizados, tecnicamente perfeitos mas, sem alma humana. A pessoa humana deixou de ser o centro de interesse e preocupações e passa a ser instrumentalizada em função de um determinado fim, que pode ser o aprendizado, status, ganho monetário etc. A manipulação sutilmente se faz presente e rouba aquilo que é mais precioso da vida humana – sua dignidade. A ética procura ser fundamentalmente um grito pela dignidade humana. Ao se falar em dignidade humana, estamos falando de respeito pela pessoa e seus direitos, entre eles o direito à saúde, que é básico para a aquisição de outros direitos. Este direito afirmado na teoria é negado na prática. Numa sociedade desigual e injusta, onde “pouco têm muito e muitos têm pouco”, seria ingênuo acreditar que todos são tratados da mesma maneira. Os problemas ao nível de macro-estrutura (sociedade) interderem e condicionam a micro-estrutura (no caso, o hospital). Numa sociedade que endeusa o poder, o ser e o prazer, soa romântico e fora da realidade gritar pelo servir, ser e amar. Como ser quando só se valoriza o ter? O que significa o amar, na busca frenética do prazer? É possível redirecionar o poder-dominação para o poder-serviço? Todas estas questões são de fundamental importância numa visão antropológica que procura ver a pessoa na sua globalidade, como ser físico, psíquico, social e espiritual. O considerar a pessoa não simplesmente como um corpo, um amontoado de carne e ossos é um grande desafio. Uma visão holística, multidisciplinar, é imperiosa. Ser gente é ter corpo, é possuir psiquismo e coração, é poder relacionar-se com os outros e cultivar a esperança, uma fé. O ser humano é um todo uno, um nó de relações. É zelando e promovendo esta unidade que estaremos proporcionando mais vida e saúde e não simplesmente administrando doença. Um mundo à parte Um outro elemento a ser levado em conta, junto com esta visão integral da pessoa humana, é a especificidade do mundo hospitalar e a realidade do sofrimento humano. O hospital é um microcosmo do macrocosmo, isto é, nele encontramos em dose concentrada um resumo do que de mais nobre, mais bonito e incrível encontramos na sociedade, bem como o que de mais triste, degradante e violento nela existe. Ele aceita a todos. Nele nos defrontamos com a realidade nua e crua, sem disfarces ou máscaras, que caem por terra sem pedir licença. É uma realidade contrastante que nos questiona. Nele nos defrontamos com o santo e o bandido, o crente e o ateu, a criança que apenas exalou o primeiro vazio de chegada e que torna-se um grito de Deus e o velhinho que, no vigor dos seus 90 anos, ainda luta para viver. Em situações de emergência, aparece alguém que fez tudo para tirar a vida e nós, profissionais, fazemos o possível e o impossível para que eles continuem a viver; tantas mulheres querendo ser mães, e por problemas de esterilidade não podendo, e tantas outras, podendo, jogando fora vidas incipientes. É um contraste chocante, provocador de indignação ética em muitas instâncias, mas que nos convoca a sermos arautos da vida e não da morte, da esperança e não do desespero. Ninguém vai ao hospital por prazer ou para férias e muito menos para passear. Trata-se de uma necessidade de preservação da própria vida. Neste contexto, há uma presença sempre inoportuna do sofrimento que nos amedronta. Situações de dor e sofrimento nos provocam profundamente como seres humanos, tornamo-nos radares da alta sensibilidade. É frente a esta realidade existencial que trabalhamos.


O sofrimento provoca compaixão, suscita respeito e a seu modo intimida. Provoca compaixão, isto é, simpatia traduzida em ação e não simplesmente uma exclamação anestesiadora de consciência: “que pena”, “que dó”... Suscita respeito também. Em quem muito sofre acabamos colocando uma auréola de sacralidade. Uma criança que nasce com seríssimos problemas genéticos, por exemplo, os que a cuidam não se intimidam em dizer “é um(a) santinho(a)”. O sofrimento também nos infunde medo, porque nos vemos como um espelho a fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade, condições que não gostamos de ver lembradas. É procurando traduzir em gestos concretos o valor da pessoa humana que somos também a nível de auto-cuidado que estaremos melhor preparados para servir à vida, com humanismo e competência. Leo Pessini, sacerdote camiliano, capelão do Hospital das clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Aborto Compreender com amor e não julgar é a tese deste sacerdote. Assunto polêmico e sempre em evidência nas discussões, especialmente quando se trata da defesa dos direitos da mulher, o aborto é tema de uma dissertação apresentada pelo padre Christian de Paul de Barchifontaine à faculdade são Camilo de Administração Hospitalar, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Administração Hospitalar e da Saúde. Ë um alentado trabalho, com o título de “Ponderações psicossociais sobre o aborto provocado”, constituindo mais uma valiosa contribuição para a apreciação do problema e, especialmente, trazendo novas luzes para o encaminhamento da questão. Fundamentalmente, o autor busca demonstrar, como ele próprio afirma, que “existem condições psicossociais importantes afetando a mulher nesse processo”. E, também, oferece para reflexão alguns aspectos nem sempre levados em conta na abordagem do problema, especialmente quando, em nome da moral e de princípios religiosos, se estigmatiza a mulher levada, por razões as mais diversas, ao aborto. Particular destaque é dado, no texto, a um dos pontos mais polêmicos em toda discussão sobre o tema: quando se dá, efetivamente, o início da vida humana? Após apreciar as diferentes correntes de pensamento nessa área, o autor vai além da visão puramente biológica e surge a necessidade de se focalizar a mulher em seu integral complexo de vida, com necessidades biológicas, de sociabilidade e espirituais. Por isso, advoga a tese de que, mais que simplesmente “se iniciar”, a vida é algo que “se transmite”. Daí se derivam, em seu entendimento, outros componentes a avaliar em relação ao aborto, pois, como acentua, “a transmissão da vida é uma tarefa da humanidade, através de relações amorosas entre os homens e sua sociabilidade”. Em outras palavras: só pode haver, verdadeiramente, vida digna desse nome quando a mulher pode dar a seus filhos condições sociais de acolhimento. Para a realização do trabalho, além da pesquisa bibliográfica habitual em textos dessa natureza, bastante rica e ampla, o autor se valeu de entrevistas com mulheres que sofreram a experiência do aborto e se dispuseram a compartilhar sua vivência e com profissionais da saúde que também vivem, no exercício da medicina, o problema. O texto se encerra com conclusões e sugestões para que se possa abordar a questão do aborto, e especialmente ver a mulher que se submeteu a ele, com uma nova ótica, mais cristã e humana, buscando, acima de julgamentos sobre a moralidade ou imoralidade do ato abortivo, compreender e acolher as mulheres que o praticaram. As razões Admite o autor que oi motivado para a escolha do tema, que sabe sempre suscitar apaixonados posicionamentos, por sua inquietude face à situação a que são submetidas as mulheres que abortaram. Além disso, o aborto é algo sempre presente nos hospitais, especialmente como recurso de recuperação para pacientes que, atendidas em clínicas clandestinas, tiveram complicado seu estado de saúde, em razão das inadequadas condições do atendimento recebido nesses locais. Embora admitindo a possibilidade de serem superestimados os números relativos a casos de abortos no Brasil (as cifras variam de 400 mil mulheres mortas anualmente, em decorrência dos 5 milhões de abortamentos feitos a cada ano, até a afirmação de que, para cada nascimento, ocorrem no


País dois abortos), padre Christian enfatiza que “existem posições unilaterais e redutivas, manipulação de dados, interesses camuflados, intrsnsig6encias e ataques pessoais”, na abordagem do problema. Nem sempre, porém, se atenta, diz ele, para “a carga afetiva, o caráter angustiante e a dimensão inconsciente na qual o aborto se vê envolvido”. Por isso, dificulta-se o que deveria ser fundamental: “um diálogo construtivo e uma melhor defesa da vida humana»“. Quando começa a vida? Um dos pontos básicos do trabalho diz respeito á discussão sobre quando efetivamente começa a existir vida. E o próprio autor considera que esse é um dos elementos mais críticos no debate sobre o aborto. Ele admite que assim é pelo fato de a atitude de um individuo sobre esse aspecto determinar também seu posicionamento sobre o problema. E coloca a questão: «estamos falando sobre seres humanos, com vida e direitos próprios, ou sobre um conglomerado de células que podem estar á disposição da vontade das pessoas diretamente envolvidas»? Citando Daniel Callahan, o trabalho aponta as três escolas básicas de opinião que tentam definir o status do feto: . a escola genética, que considera como ser humano todo individuo que se está desenvolvendo, portanto, desde o momento da concepção, já que tem definido o seu código genético. Assim, crescimento e desenvolvimento seriam apenas a explicitação do que já está escrito no código genético desse individuo particular. A Igreja perfilha essa tese e equipara o aborto ao homicídio, classificando ambos como crimes nefandos; . a escola desenvolvimentista, que entende ser necessário um certo grau de desenvolvimento para que um individuo possa ser considerado ser humano. Assim, a fertilização apenas estabelece as bases genéticas de um ser; essa escola, pois, defende a tese de que a vida começaria a partir da nidação, ou a partir da formação do córtex cerebral, ou a partir da constituição física do feto, ou, ainda, somente a partir de sua expulsão do útero materno. ISSO porque o potencial genético do ser ainda não se concretizou, por não haver interagido com o meio ambiente; . a escola das conseqüências Sociais, que define o feto na base das conseqüências sociais que as questões relativas ao assunto suscitam. Por isso, ao invés de procurarem determinar momentos exatos, os adeptos dessa escola alteram a questão a ser respondida. Não mais se questiona «quando a vida começa» e sim «quando começa a vida humana». Essa nova visão estabelece que, se certos tipos de fetos constituem problemas no momento de serem definidos, é preferível não defini-los como humanos. O importante, então, não'seria a dimensão biológica ou desenvolvimentista e sim os desejos da sociedade em termos de normas sociais e morais. A essas três escolas, o trabalho, depois de discuti-las amplamente, acrescenta uma quarta, que denomina de escola do vinculo, já que é essa característica que define o significado de uma vida humanizada. E propõe que se retorne á questão: «quando ela se inicia». A resposta seria, para os adeptos da escola do vinculo, que a vida humanizada, do ponto de vista biológico na verdade nunca se inicia, ela se transmite nas características do homem (razão, responsabilidade, liberdade, condições sócio-políticas e econômicas). Do ponto de vista filosófico, a vida humanizada começaria no momento da convocação á palavra: relacionamento humano, amor. As entrevistas Parte essencial do trabalho consiste na apresentação das entrevistas com oito mulheres que abortaram. Todas têm acima de 25 anos de idade e pelo menos o segundo grau completo. Corri profissionais da área da saúde; as entrevistas foram feitas com cinco pessoas (três médicos e duas enfermeiras-obstetrizes). O resultado das entrevistas com as mulheres que abortaram permite ao autor afirmar que «existem condições psicossociais que afetam a mulher no processo de abortamento». Dai sobrevir uma carga de sofrimento e mágoa, sofrida por todas as que viveram esse processo. «Nenhuma mulher aprecia o aborto, enfatiza o Trabalho, ela o faz com muito sentimento de culpa e carregando uma grande dor». A principais causas alegadas para o abono podem ser resumidas, segundo as entrevistas, na falta de condições físicas, psíquicas e sociais para levar a termo uma gravidez e criar o filho. O texto insiste


em que pesam psicologicamente nessas causas: relações difíceis com o cônjuge ou companheiro, o despreparo para a maternidade, a necessidade de continuar os estudos e as exigências do trabalho. A maioria dessas causas, assim, poderia ser superada com uma mudança do sistema social que rege as nossas vidas. Observa também o autor que a culpa e medo de morrer no ato cirúrgico do aborto geram um estado emocional que deixa marcas profundas na mulher e que permanecem para o resto de sua vida. A depressão e a psicossomatização depois do aborto são sinais de feridas sofridas por essas mulheres. Também lhes causa sofrimento o fato de, na situação, terem de agir quase sempre sozinhas. Torna-se difícil para a mulher falar antes do aborto, por medo de preconceitos e dos julgamentos. Se lhe fosse permitido compartilhar suas angústias nesse momento, certamente ela se sentiria melhor. As comissões hospitalares de bioética poderiam ser, então, um espaço privilegiado para ajudar a mulher a não carregar sozinha o seu drama. «Trata-se de ajudar a mulher, não de tirar-lhe a responsabilidade. Não podemos minimizar a dignidade valores do papel materno”- destaca o trabalho, que preconiza “uma atitude tolerante e compreensiva por parte da sociedade em seu conjunto, no que se refere ao direito dessa mulher, enquanto ser humanos, de ver sua decisão respeitada e realizada”. Isso porque, justifica, “ser mãe é uma opção pessoal e não vocação fatídica”. Algumas sugestões Na conclusão do trabalho, padre Christian apresenta alguns pontos para reflexão, a título de sugestões, tais como:  nunca se deve julgar a mulher que passou pelo aborto,porque não somos capazes de dimensionar o quanto ela sofreu e sofre em razão dessa experiência;  é preciso lutar por uma transformação global da sociedade, criando condições físicas, psíquicas, econômicas e sociais que permitam uma melhor convivência das pessoas e condições para gerar um filho. Todos nós somos responsáveis pela mentalidade abortista em que vivemos. Essa transformação global poderia começar pela formação de comissões hospitalares de bioética e pela vivência dentro dos hospitais, de valores como participação, justiça social e humanismo;  deve-se reconhecer a dignidade da mulher como pessoa humana, com os mesmos direitos e deveres que o homem tem na sociedade, eliminando-se a sua marginalização, especialmente pela reformulação da política das empresas, com planejamento incluindo a licença-maternidade.  é essencial garantir o acesso de todas as mulheres à informações científicas e segura todos os métodos anticoncepcionais, para o que se exige um projeto governamental que utilize todos os meios de comunicação social;  é preciso haver maior liberdade para a mulher falar sobre o processo de aborto;  sendo o aborto uma cirurgia, deve ser realizado num hospital. A posição da Igreja sobre o Aborto A posição do Magistério católico no século XX foi resumida no Concílio Vaticano II: “Tudo o que atenta contra a própria vida, como qualquer espécie de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário... tudo o que ofende a dignidade humana... todas essas práticas e outras semelhantes são afetivamente dignas de censura. Deus, que é o Senhor da Vida, confiou aos homens o nobre encargo de preservar a vida... Por isso, vida deve ser protegida com o máximo cuidado desde a concepção. O aborto como o infanticídio são crimes nefandos”. Em relação ao aborto terap6eutico, a Igreja Católica costuma responder, através de seus moralistas, pela distinção entre o voluntário direto e o voluntário indireto. Matar diretamente o feto é sempre proibido e nunca exeqüível. A extirpação de um câncer do útero, porém, ou a preservação da vida da mãe exige por vezes medidas que não matam diretamente o embrião, mas têm por lastimada conseqüência (”indireta”, porque não querida por si) a expulsão do


mesmo, não viável. As hipóteses fisiológicas clássicas são de gravidez ectópica, que deixa poucas chances ao embrião e ameaça à vida da mãe, e do útero canceroso, cuja remoção pode salvar a mãe. A Dolorida Experiência que Quem Fez um Aborto No depoimento que prestou, uma das entrevistadas (que chamaremos aqui de Cíntia), revela o que sente uma mulher que aborta. Assistente social, com 35 anos de idade, casada e mãe de duas filhas, ela se mostra decidida em suas opiniões, fala com objetividade e procura não mostrar sua emoção. Há cinco anos, Cíntia engravidou pela terceira vez.Lembrou-se das duas primeiras ocasiões. Viveu a experiência sem preparo algum, pois havia casado grávida e não pudera curtir o período de gestação, pois ela e o marido estudavam na época. Após o primeiro filho, colocou o DIU, mas, quatro meses depois, engravidou novamente. Carregou essa gravidez terminando a faculdade. “Foi triste demais”, disse. Quando surgiu a terceira gravidez, pensou: “Recomeçar tudo outra vez, criança chorando, me desdobrar, será que vou conseguir trabalhar e cuidar de tudo?”Outro elemento que interferiu: quando nasceram as duas filhas, ficou gordinha, de mal consigo mesma. Conseguiu equilibrar-se fazendo regime. Consultou uma ginecologista que lhe disse: “Terceira gravidez, com 29 anos, vai deformar um pouquinho seu corpo”. Isso acabou com ela. Um terceiro elemento que pesou na sua decisão de abortar foi o fato de ela estar em seu primeiro emprego, e sua situação econômica começava a melhorar. Sentiu que não tinha mais condições psicológicas para ficar em casa, presa, sem poder fazer o trabalho de que gostava, pois não havia ninguém para tomar conta do filho, embora as duas filhinhas estivessem na escola maternal. Foi muito difícil a Cíntia tomar a decisão, no fim do terceiro mês, Ela não sentia a criança mexer na barriga, não sentia vida. Seu marido a apoiava. Mas ela ficou na dúvida: fora criada na religião católica e esta é contra o aborto, isso é pecado, um dia pagaria caro de qualquer forma, Pensou: “Se eu abortar, não irei me arrepender, terei algum problema comigo mesma? Mas, se eu deixar, vou ter problemas comigo mesma, com a criança, encarando-a como bloqueadora de uma fase de minha vida”. Quando se decidiu, Cíntia ficou mais tranqüila e procurou um médico e uma clínica. Foi com o marido e sentiu-se como se fosse um animal: era um ambiente frio, num porão, com atendimento despersonalizado. Parecia mais um filme de terror. Depois do aborto, sentia dores, estava sempre se questionando. Havia um forte sentimento de culpa: “Será que vou pagar pelo que fiz?”Cíntia tem um sobrinho que é o marco do que seria seu filho. “Quando minha irmã trocava fralda, eu pensava: graças a Deus que me livrei disso. Mas agora penso como seria o meu filho, hoje!” Embora seja uma pessoa sensível e franca, Cíntia sempre foi considerada agressiva. Isso a incomoda um pouco, mas nunca parou para pensar se a sua agressividade teria aumentado depois do aborto. Não sabe se foi somatização ou coincidência, mas, logo depois do aborto, teve um tumor no ovário e precisou extraí-lo, assim como a uma trompa. “Foi um choque passar de novo por uma cirurgia e cesárea”. Aproveitou para fazer laqueadura. Esse episódio foi carregado durante muito tempo por Cíntia como um pagamento pelo pecado que ela cometera. Depois do aborto, não houve mudanças significativas no relacionamento com o marido. Cíntia recebeu uma educação rígida e repressiva. Foi criada à imagem da mãe: cuidar da casa, da roupa, da louça, dos filhos. No início do casamento ficou em cada para cuidar das filhas: “Quase morri. Fui obrigada a ficar em casa e foi início do fim do seu casamento”. Seu marido acha bonito a mulher ficar em casa. Para Cíntia, a discriminação da mulher na sociedade continua, apesar dos discursos em contrário. A licença-maternidade de 120 dias estabelecida pela nova Constituição piora a situação da mulher. Com 90 dias já era difícil. Passou pela experiência de pedir emprego, batendo de porta em porta, com 28 anos de idade, casada. As portas se fechavam com medo de que ela engravidasse. Quando fala de qualidade de vida, Cíntia diz: “Quando abortei, não pensei na qualidade de vida para a criança que ia nascer. Pensei em mim mesma, ai ser privada por mais alguns anos da minha profissão”. Para ela, a independência econômica é importante. Com mais uma criança, iria ter dificuldades financeiras ainda maiores, parando de trabalhar. Ela insiste na qualidade de seu


relacionamento com as filhas,que é bem melhor quando trabalha fora. Em casa, ela fica nervosa, frustrada e irritada. A respeito dos métodos anticoncepcionais, insiste sobre a liberdade que se deve dar à mulher de ter ou não filhos. Ela foi radical, fazendo laqueadura: “E se depois eu quiser um outro filho, casandome de novo?” Em termos afetivos, a mulher fica mais solta no relacionamento, sem medo, vivendo o momento presente. Por que passar pelo aborto? Os pais deveriam educar os ilhós sobre todos os métodos. O governo também, através dos meios de comunicação social. Atualmente o estado, através dos Serviços Unificados de Saúde, está passando uma informação pelos postos de saúde, nas creches, e Cíntia descobriu métodos que não conhecia, discutindo com a enfermeira. “Se eu soubesse de todos os métodos, talvez nunca tivesse passado pelo aborto!” Os políticos têm medo de defender uma posição, para não se indispor com a Igreja Católica: “Será que não é pecado, será que não iria para o inferno?” Cíntia está tentando transmitir todo o seu conhecimento para as filhas, para que elas não passem pela mesma experiência. É a favor da legalização do aborto, junto com medidas que diminuam o seu número, como melhoria das condições sócio-econômicas da população, escolaridade e informação sobre todos os métodos anticoncepcionais. Para a mulher falar antes de abortar, a legalização daria uma abertura, uma tranqüilidade, porque, atualmente, ela tem medo das repercussões, da fofoca dos julgamentos até das amigas. A Opinião dos Profissionais Para as entrevistas com os profissionais da saúde, o autor do trabalho conversou longamente com dois médicos gineco-obstétras, duas enfermeiras obstetrizes e uma médica pediatra (o único entrevistado solteiro), com idades entre 33 e 42 anos. Todos trabalham em hospitais particulares e governamentais,a tendendo mulheres com complicações resultantes de aborto malfeitos, geralmente em clínica clandestinas ou por curiosas. Houve relutância inicial em falar sobre o assunto, dificuldade que também admitiram ocorrer com as mulheres que abortaram, sugerido que esse problema se deve à impessoalidade do tratamento recebido (geralmente o Pronto-Socorro), pelo fato de a mulher não querer reconhecer e assumir que praticou um aborto e pela marginalização a que se sente submetida na sociedade. Baseado em sua experi6encia, os profissionais identificam como principais causas do aborto: a falta de condições sócio-econômicas para se criar mais um filho, a criança ser um estorvo para o bemestar econômico ou para a promoção profissional, a falta de informações sobre os métodos anticoncepcionais (identificada em todas as classes sociais), a irresponsabilidade do pai, que não deseja assumir a paternidade, o medo de enfrentar uma situação radical na família e falha dos métodos contraceptivos. Quanto aos sentimentos da mulher que aborta, dizem que poucas falam sobre assunto antes de se submeter à operação abortiva, por medo. As que conversam sobre o problema salientam que tiveram medo de morrer, de se arrepender mais tarde e que ficaram desesperadas pela “obrigação” de abortar e por terem de enfrentar todo o processo sozinha. Depois do aborto, os sentimentos mais comuns dessas mulheres foram a culpa e a angústia, que provocaram depressão. Elas mencionaram ser o aborto uma experi6encia traumatizante, gerando medo de uma nova gravidez. A respeito do início da vida, todos concordaram que ela começa com a concepção, mas que, também, é necessário oferecer condições dignas de vida para a mãe e a criança,insistindo na importância do relacionamento entre mãe e embrião, relação de acolhimento, amor e carinho. Os métodos anticoncepcionais foram apontados como meio para diminuir o número de abortos, para o que seria de muita utilidade uma maior amplitude da informação a respeito, através de consultas médicas e pelos meios de comunicação social. Os cinco profissionais entrevistados manifestaram-se a favor da legalização do aborto. Seus argumentos são sentidos de que se deve evitar a “industria do aborto”, garantir segurança médica a todas as mulheres, evitando complicações de saúde, e mortes, bem como eliminar a idéias de culpa na mente da mulher que aborta, valorizando a sua liberdade pessoal. Os entrevistados admitem, no entanto, que a legalização, por si só, não resolve a questão, se não for acompanhada por medidas que amenizam as verdadeiras causas de tantos abortos. Assim, é preciso


lutar por melhores condições sócio-econômicas, por uma melhor qualidade de vida para a mulher, num processo que permita vivência em família e um conhecimento melhor das pessoas com as quais vive. É preciso providenciar escolaridade, educação sexual, informação e acesso a meios anticoncepcionais etc. Questionados se fariam o aborto em mulheres sem condições psicossociais para criarem o filho, todos responderam negativamente, mas admitiram sem mais receio que indicariam um colega que certamente o faria. Ecologia, Problema de Todos. Nos últimos trinta anos, a ecologia foi tomando corpo e hoje transformou-se em clamor universal. O homem está se dando conta de que a Terra, que é seu meio ambiente insubstituível, dispõe de recursos limitados. Qualquer abuso pode tornar-se fatal. A ordem bíblica “crescei, multiplicai-vos, possuí a terra” oi cumprida quase à risca pelo homem, mas sempre de forma ordenada e conveniente. O seu esforço tornou a terra mais acolhedora, extraiu Del amil utilidades e, graças a isto, conseguiu melhorar sua própria vida, tanto em quantidade, quanto em qualidade. Hoje, a média de vida nos países desenvolvidos aproxima-se dos 80 anos, com conforto que a humanidade jamais conheceu igual. Os países em vias de desenvolvimento lutam para chegar lá. A massa humana cresceu assustadoramente no último século e já se aproxima dos 5,5 bilhões. Ninguém mais se contenta em sobreviver, como aconteceu durante milênios. Todos querem progredir e usufruir o mais possível dos bens terrenos. O consumismo deixa atrás de si resíduos volumosos e perigosos. Ninguém mais sabe como se livrar delas. O entulho atrapalha todo mundo. Mas não é só. A própria produção acarreta desgaste da natureza, com a seqüela sem fim da população do ar, da água e do próprio solo. A erosão da camada fértil da terra e a ampliação fértil da terra e a ampliação dos desertos preocupam muito. A destruição de florestas não se faz sem conseqüências. Muitas espécies vivas já desapareceram e outras estão a caminho do fim. Os defensivos agrícolas matam mais do que convém e o equilíbrio biológico se ressente. O esforço humano para tornar a terra mais habitável e a vida humana mãos segura e de melhor qualidade está se aproximando das fronteiras do risco e, em muitos pontos, já o ultrapassou, com evidentes ameaçadas para todos. Face a esta realidade, estão surgindo, no mundo inteiro, movimentos de caráter ecológicos e nos países desenvolvidos os chamados “partidos verdes”, que se propõem defender a natureza, alcançando sucesso crescente, embora nenhum deles tenha ainda chegado ao poder.É um indicador de que o problemas está sendo percebido de forma cada vez mais aguda. A Igreja Católica celebra todos os anos no dia 1º de janeiro o Dia Mundial da Paz. O tema deste ano voltou-se para a ecologia: paz com Deus e com a criação. Se o homem não cuidar melhor da criação pode comprometer o plano de Deus e meter-se em dificuldade sem conta, com riscos para a própria paz da família humana. Em 1982, a Igreja Católica do Brasil dedicou a sua já tradicional Campanha da Fraternidade à ecologia com o slogan: “Preserve o que é de todos”. Foi a primeira grande tomada de posição nacional. A consciência do problema, na época,não era tão aguda. Hoje, muitos se dão conta de que, se continuarmos a agredir a natureza, este patrimônio comum, todos sairemos perdendo. O que está em jogo não é apenas a vida, a saúde e o bem-estar dos outros. Eu mesmo pagarei esta conta. Júlio Munaro, Provincial da Ordem no Brasil e coordenador da Pastoral da Saúde na Arquidiocese de São Paulo. O Casal, Imagem de Deus. No ano em que a Campanha da Fraternidade focaliza o tema «Mulher e homem, imagem de Deus», cabe evocarmos uma latino-americana que, embora tenha terminantemente recusado o matrimônio, promoveu neste continente uma imagem enaltecida da mulher. Pensamos em Sor Juana lnés de la Cruz (1648-1695), religiosa mexicana (da Nova Espanha mais exatamente), da Ordem das Jerônimas, de ilustre brilho no mundo da poesia. E verdade que ela entrou na vida religiosa mais por amor ás letras que ao Cristo Crucificado, mas, após ter freqüentado a elite de seu pais, aceitou em 1693 abandonar a carreira literária para se recolher em piedade. Dois anos mais tarde, ocorreu em seu


convento uma epidemia que ia matar 90% das freiras. Ao cuidar delas, Sor Juana acabou contraindo a misteriosa doença e morreu dela a 17 de abril de 1695, facultando-nos a evocação de seu nome entre os agentes da Pastoral Sanitária. Após as cinco edições de suas obras do século XVII, foi esquecida no século seguinte e redescoberta no século XIX, enfim recentemente reerguida, sobretudo pela obraprima de Octávio Paz (Sor Juana Inés de la Cruz o las trampas de la fé, México, 1985). No vigor de seus 41 anos, a poetisa erudita do convento mexicano tinha refletido sobre o que seria uma «boa morte», preocupação nem de todo fora da atualidade. « Da minha parte posso assegurar que as calúnias algumas vezes me mortificaram, mas nunca me causaram dano, porque eu tenho por mui néscio aquele que, tendo ocasião de merecer, dispensa o trabalho e perde o mérito. Parece como os que não querem conformar-se com a morte e ao fim morrem sem que tenha servido sua resistência para evitar a mono, mas ao contrário, para roubar-lhes o mérito da conformidade e de tornar triste morte a morte que poderia ser boa» (Sor Juana Inés de la Cruz, Letras sobre o Espelho, São Paulo, lluminuras, 1989, p. ltJ4). Permanecendo no mesmo tema, se a alegria de viver nem sempre recusa a morte, muitos rejeitam, hoje como ontem, a filosofia da irmã Juana Inés, expressa no findar dum soneto evocador de uma rosa: «Vê o que a experiência te aconselha, que é fortuna morrer sendo formosa e não ver o ultraje de ser velha». As técnicas do prolongamento artificial da vi a fizeram ultimamente progressos de gigante, como os artifícios para se entreter a forma, senão a formosura, enganando por algum tempo o próprio calendário. Alargando a problemática, a Igreja não há de recusar uma colaboração sempre mais realista ao promover o ser feminino ainda inferiorizado no hospital como em toda parte. Ao provar sua competência, a mulher serve seu sexo como, ao promover a equiparação, o homem dignifica sua espécie. Ainda exemplar a energia a menina Juana que, enganando a mãe aos três anos de idade, pede à professora da irmã mais velha que lhe ensine a ler. Aos dezenove anos, recusa o caminho que vai da casa paterna ao altar, do altar ao quarto do marido, à cozinha e «á roupa suja das crianças ». A alternativa cristã do século XVII, porém, era uma só : o claustro. Previamente Juana tinha-se antecipado sobre os tempos ao invadir o campo da biblioteca, então reservado aos adultos de sexo masculino, antecâmara do domínio dos espíritos, das idéias, isto é, do poder sócio-político também. Ainda hoje, se no pessoal a serviço dos doentes, distinguirmos uma polarização científica na orientação das terapias e uma polarização humanitária mais personalizada, nos cuidados diários e na assistência corriqueira, reparamos que o primeiro posto é prevalentemente ocupado por homens e o segundo assumido por mulheres. Talvez com razões, mas a colaboração deve eliminar o espírito de prepotência. A ética que serviu ontem para conter os passos e a voz da mulher, para que ela sirva obediente e muda na sociedade (não precisamente muda entre elas), recomenda doravante mais equitativa partilha das tarefas e responsabilidades, das promoções e recompensas. A «imagem de Deus» é bifocal, não no sentido que o dualismo provenha duma imagem de verdade e de seu reflexo imaginativo e servil, mas no sentido da dupla de dois seres complementares, sejam eles casados ou não. Todas as épocas respeitaram na mulher a mãe - real ou virtual -, isto é, celebraram a fecundidade da própria espécie (os generais, em particular, enalteceram o papel das genitoras dos soldados da nação). O passo especifico em que se esforça nossa época visa promover a mulher como pessoa humana, ultrapassando uma retórica mais generosa, romântica e eventualmente piedosa, na celebração de louvores do que na concessão de direitos. Juntos para fomentar e preservar a vida, mulher e homem completam-se, também, a fim de restaurar a saúde e elaborar as normas de boa conduta dos vivos, até as fronteiras com a morte. Ainda hoje, porém, qual é o peso das mulheres para uma liturgia que nos faz rezar (a 27 de dezembro de todo ano): «Pai, dispusestes que vosso Filho, ressuscitado dos mortos, aparecesse em primeiro lugar aos apóstolos?»... Mais correto seria enunciar que a primeira e a última visão dum ser humano é feminina. Hubert Lepargneur, sacerdote camiliano, teólogo moralista.


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