Pluralismo Religioso no Hospital Pluralismo religioso é uma das características dos nossos hospitais brasileiros. A doença escolhe suas vítimas sem se preocupar com sua religião. Não pergunta primeiro se é católico ou protestante, judeu ou ateu, pentencostal ou espírita, da umbanda ou do candomblé. Entre os pacientes se encontram pessoas de todas as religiões e de nenhuma. De modo geral, os hospitais brasileiros, especialmente os grandes hospitais públicos, são instituições secularizadas. Como Pe. Júlio Munaro colocou muito bem, são centros terapêuticos onde a ciência, a técnica e a competência na cura são altamente valorizadas. Muitas vezes, a contribuição religiosa é valorizada, mas, muitas outras vezes, é apenas tolerada e até hostilizada. De modo geral, o direito das pessoas a uma assistência religiosa durante sua permanência num hospital é respeitado, pelo menos na medida em que isto não atrapalhe a boa ordem e a administração do hospital. Alguns pacientes vão querer exercer este direito. Outros pacientes vão querer assistência neste sentido. É importante saber respeitar sua opção. O respeito pelo paciente é uma atitude fundamental para uma abordagem cristã da questão do pluralismo religioso no hospital. O respeito pelo paciente, como pessoa, também é fundamental quando se procura reconciliar a tensão entre o direito que o paciente tem à assistência religiosa e o direito de não ser agredido nas suas convicções por agentes de pastoral, ordenados ou não, excessivamente zelosos. Dentro do pluralismo, diálogo e convivência se tornam viáveis quando é possível descobrir pelo menos alguns pontos em comum. Quando o agente de pastoral, por exemplo, comunga com o objetivo básico do hospital como lugar terapêutico, através do diálogo, pode conseguir muitas concessões no sentido da humanização da administração da instituição. Se o agente assumir atitudes críticas da instituição e sua finalidade, mais provável é que se produza uma situação de conflito. De modo geral, estes conflitos surgem quando o conceito moderno do hospital é questionado ou rejeitado de uma de duas maneiras. A primeira rejeição vem da vertente pré-moderna e surge a partir de uma desconfiança na medicina tecnológica e científica,por exemplo, por parte de pentecostais, sejam católicos, sejam protestantes, que confiam tanto na cura através da oração que desafiam e, normalmente, desfazem o trabalho terapêutico da medicina científica. Esta busca de uma cura mágica ou religiosa é uma volta para uma medicina pré-científica, que confia mais no poderes ocultos ou espirituais que nos esforços dos agentes humanos. A segunda rejeição, que também gera conflito, vem da vertente pós-moderna e emerge da desilusão com uma medicina tecnológica e científica, praticada dentro de um modelo empresarial visando a maximização do lucro. Enquanto o agente de pastoral está satisfeito em aceitar uma situação em que pacientes passam semanas inteiras em macas no pronto-socorro, recebendo tratamento paliativo, sem incomodar a administração do hospital, perguntando por que é assim, evita-se conflito. Mas se questionar esta situação ou tomar providências para chamar atenção para a situação dos doentes, conflito e desarmonia se tornam inevitáveis. O ecumenismo é uma das heranças importantes que recebemos do Concílio Vaticano II. Valorizando o pluralismo como um enriquecimento, a reconciliação, superando todas divisões e todos os conflitos, foi um dos grandes sonhos do Concílio. O diálogo foi um dos grandes instrumentos propostos pelo Concílio e por Paulo VI para alcançar este objetivo. O desafio é como dialogar com situações conflitivas? Dentro do mundo do hospital, o diálogo ecumênico procede em duas frentes: *como mundo médico-técnico secularizado: - aberto ao diálogo, - indiferente, - hostil à religião. *com as religiões: - abertas ao diálogo, - proselitistas.
Fundamental num trabalho de diálogo é uma atitude de escuta e de comunicação. Uma coisa é escutar e comunicar com quem está aberto, outra é tentar escutar e comunicar com quem agride ou quem o trata com indiferença. O maior desafio do pluralismo, no hospital brasileiro, no momento, a meu ver, não é diálogo com o pessoal do mundo médico-técnico, secularizado, mas aberto a escutar e comunicar, nem o diálogo com as outras religiões que também se abrem para uma troca de pontos de vista. O maior desafio ou vem do setor do mundo médico-técnico secularizado que está hostil ou indiferente à religião, ou vem das religiões proselitistas. Neste contexto é importante distinguir entre a evangelização e o proselitismo. Ë uma questão de respeito pela autonomia das pessoas; é questão de propor e não impor. Para enfrentar estes desafios, tenho duas propostas concretas. A Igreja precisa investir na profissionalização dos agentes de Pastoral da Saúde, para que possam assumir as suas tarefas no hospital, instituição terapêutica, com a mesma competência que os outros profissionais na área da saúde. Não é porque estão trabalhando na área da religião que podem dar-se ao luxo de serem incompetentes! Junto com a profissionalização do agente de Pastoral da Saúde, deve-se pensar na elaboração de um Código de Ética para o Agente de Pastoral de Saúde. Este código deve ser ecumênico, produzido com a participação de agentes de Pastoral da Saúde das diversas tradições eclesiais, visando a valorização do paciente e da contribuição da religião a uma medicina holística, uma medicina que se preocupa com a pessoa na sua totalidade.
Leonard M. Martin – Redentorista, doutorado em Teologia Moral, na Faculdade N. Sra. Da Assunção, São Paulo.
Catedrais Modernas da Dor É melhor a morte do que a vida cruel, o repouso eterno do que uma doença constante (Ecl. 30,17). Esta citação do Livro do Eclesiástico, que serve de introdução a esta reflexão, expressa muito bem o grito sufocado do resgate urgente da dignidade de centenas ou talvez de milhares de doentes que se deparam com a realidade do sofrimento sem perspectiva, em hospitais, nas terapias intensivas. Trata-se de uma interrogação a respeito do sentido da vida frente a esta realidade sofrida, uma questão que, sem dúvida, tem implicações éticas para além das questões de ordem técnica no mundo médico hospitalar. Numa primeira aproximação sobre o que entendemos por ética nesse contexto, precisamos ampliar o horizonte da compreensão para além daquilo que, de costume, miopemente abordamos como sendo ética. Não raro, entre os profissionais da saúde, identifica-se ética com a proibição repressora, com a norma, com a lei, com o sigilo profissional, com o que é certo ou errado, com o que é bom ou ruim, com o que deve ser feito e o que deve ser evitado, com a defesa dos interesses de uma determinada classe profissional etc. É verdade que a ética tem a ver com tudo isso também, mas se faz necessário resgatar o elemento fundamental e essencial, que é a pessoa humana. Desnecessário é enfatizar que passamos por uma verdadeira crise de humanismo. Fala-se insistentemente de ambientes desumanizados, tecnicamente impecáveis, mas sem «alma humana». A pessoa humana deixa de ser o centro de interesses e preocupações e passa a ser instrumentalizada, em função de um determinado fim, que pode ser o aprendizado, o status, o ganho monetário etc. A manipulação, sutilmente, de uma forma refinada, se faz presente e rouba aquilo que é mais precioso da vida humana - a sua dignidade. O ser humano é coisificado, e as coisas facilmente são sacralizadas! É do bojo dessa situação que surge a importância de se reacender a sensibilidade ética, vista como um brado pela dignidade humana. Ao se falar em dignidade humana, estamos falando de respeito pela pessoa e pelos seus direitos, entre eles o direito à vida, expresso no direito à saúde. Numa sociedade desigual e injusta, onde
«poucos têm muito e muitos têm pouco», seria ingênuo acreditar que todos os seres humanos são, no concreto da vida, tratados igualmente. Os problemas em nível de macroestrutura (sociedade) interferem e condicionam a microestrutura (no caso, o hospital). Num contexto social que endeusa o poder, o ter e o prazer, soa romântico e fora de moda gritar pelo servir, pelo ser e pelo amar. Como se pode ser quando se valoriza o ter? O que significa o amor, na busca frenética do prazer? É possível redirecionar o poder-dominação para o poder-serviço? Todos esses questionamentos são de fundamental importância numa visão antropológica que procura salvaguardar a pessoa na sua globalidade constitucional, como ser físico, psíquico, social e transcendente. Considerar a pessoa não simplesmente como um organismo biológico, um amontoado de carne e de ossos, é uma árdua tarefa. Uma visão holística, multidisciplinar, é imperiosa. Ser gente é ter um corpo, é possuir um psiquismo e um coração. É poder relacionar-se com os outros e cultivar uma esperança e uma fé. O ser humano é um todo uno, um nó de relações. É zelando e promovendo esta unidade nos seus distintos aspectos que estaremos proporcionando uma abordagem profissional humanizada, profundamente solidária, geradora de vida e de saúde. Junto com esta visão ética da pessoa humana é preciso encarar de frente a especificidade do mundo hospitalar (e nele as terapias intensivas) e o sofrimento humano. O hospital é um microcosmo do macrocosmo, isto é, nele encontramos, em dose concentrada, um resumo do que de mais nobre, de mais bonito e de incrível a sociedade tem, bem como o que de mais triste, degradante e violento nela existe. Ele aceita e acolhe indistintamente a todos. Nele nos defrontamos com a realidade nua e crua, sem disfarces ou máscaras, com aquilo que as pessoas são: nem maiores nem menores do que elas mesmas. É uma realidade contrastante que nos provoca. No hospital nos defrontamos com o santo e o bandido, o crente e o ateu, a criança que apenas exalou o primeiro vagido de chegada e que se torna um sussurro de adeus por outro lado, com o idoso que, no vigor dos seus 90 anos, ainda luta para viver mais; tantas mulheres querem ser mães e não podendo por outro lado, tantas outras podendo e jogando fora vidas incipientes. Em situações de emergência, chega alguém que fez de tudo para tirar a própria vida, e os profissionais fazendo o possível e o impossível para que continue a viver. É um contraste chocante provocador de indignação ética em muitas instâncias, mas que nos convoca a ser arautos destemidos da vida e não da morte, da esperança e não do desespero, da solidariedade e não da indiferença. O ideal seria que não adoecêssemos e nem precisássemos de hospital. Ninguém vai ao hospital por prazer ou para férias e, muito menos, para descansar (infelizmente, já vi gente pobre feliz por ficar no hospital e triste quando teve alta...). Trata-se de uma necessidade de preservação da própria vida. Neste contexto, existe sempre a presença inoportuna o sofrimento, que nos amedronta. É uma surpresa que foge a todo e qualquer planejamento, de sabor amargo para alguns, que se revoltam, e também de resignação («a gente tem que sofrer») por parte de quem só sofreu; de reencontro para outros, que o assumem como sendo uma oportunidade educativa e um desafio de crescimento. O sofrimento provoca compaixão, suscita respeito, a seu modo nos intimida e nos transforma em «radares» de alta sensibilidade. Provoca compaixão, isto é, empatia, traduzida em ação e não simplesmente numa exclamação anestesiadora da consciência - «que pena! Que dó ! » -, mas que não move uma palha sequer para amenizar a dor. Suscita respeito também. Em quem muito sofre acabamos colocando uma auréola de sacralidade. De uma criança vítima de AIDS, por exemplo, os profissionais não se intimidam em dizer que «é uma santinha». O sofrimento também nos infunde medo, porque vemos, como num espelho, a fragilidade, a vulnerabilidade, a mortalidade elementos de nossa condição humana que não gostamos de ver lembrados. Talvez esta seja uma das razões de os pacientes terminais serem esquecidos: eles nos confrontam com o nosso próprio fim.
O sofrimento de perder a própria vida, em nossa realidade, é vivenciado sempre mais na instituição hospitalar e, nela, especificamente na unidade de terapia intensiva. Contrariamente à sua finalidade de abrigar somente os doentes que têm reais chances de recuperação e de cura, estas, por vezes, abrigam pacientes terminais de AIDS, de câncer etc. Trabalhando, vivendo e (por que não dizer?) também sofrendo há dez anos junto com profissionais, com doentes e com familiares nas UTls - que já foram denominadas de «modernas catedrais do sofrimento» -, constatamos uma necessidade imperiosa de resgatar o humano em meio a toda a habilidade técnica. Não raro nos defrontamos com excelentes técnicos, conhecedores exímios dos aparelhos que manipulam com maestria, mas parecem calouros na arte de confortar e de ir ao encontro das pessoas sofredoras, que perdem sua identidade e são identificadas friamente como um caso ou um número. Não se trata de má-fé, mas de despreparo humano e ético. Quem foi preparado para perguntar ao paciente quais suas necessidades e seus valores ou direções de tratamento a tomar em situações dilemáticas de fim de vida? Sempre se decide por ele! Onde ficam a sua autonomia e sua liberdade? Como acontece a comunicação com os familiares, que, na espera do melhor, temem o pior, em momentos de morte do ente querido? Existe espaço físico para se trabalhar a dor e o sofrimento da perda, sem que a dor e as lágrimas sejam espetáculo para outros, nos corredores e nas escadas? Como preservar a privacidade e o pudor dos doentes nas UTIS? Estas são algumas perguntas inquietantes, quando pensamos em proporcionar dignidade humana nesta hora crítica. Não podemos esquecer que, junto com o sofrimento físico, urge cuidar do sofrimento social, psíquico e espiritual. Além disso, é necessário realçar e cultivar a sabedoria de integrar a morte na vida, não como inimiga, mas como parte integrante da mesma. Eufemisticamente, diz-se que a pessoa não morreu, mas teve «alta celestial». A morte não é doença e não deve ser tratada como tal. Vendo-se a morte como doença, é preciso encontrar cura. Facilmente, nessa perspectiva, se esquece que podemos ser curados de uma doença mortal,sim, mas não de uma existência mortal. É este jogo perigoso da imortalidade que abre a porta para manipulações no fim da vida. Justifica-se com muita propriedade técnica a «obstinação terapêutica» e tratam-se assuntos eminentemente éticos como sendo técnicos, encompridando~se um penoso processo de sofrimento, agonia e morte, mais que de vida propriamente dita. Ouvimos freqüentemente o ditado «Enquanto há vida, há esperança». Perguntamos: que tipo de vida? Que qualidade de vida? Será que, em muitas instâncias, não se força um limite? O antigo pedido do doente ao seu médico - «Salve-me, doutor!» - mudou para «Salve-me dos aparelhos, doutor!» Não é à toa que ouvimos pedidos angustiantes de doentes que foram tão maltratados em vida - um verdadeiro «vale de lágrimas» -, que nessa hora crítica imploram ajuda na única solução entrevista de simplesmente desistir de viver. Cicely Saunders, a fundadora do moderno hospice, com razão afirma que, quando uma pessoa quer ou pede a morte, alguém ou a sociedade como um todo, em quase todo caso, falhou em ajudá-la. O sofrimento silenciado em meio aos barulhos ritmados dos respiradores e circuitos eletrônicos dos aparelhos que suprem funções vitais, temporariamente, não é esquecido pelos profissionais que procuram servir com competência e amor, colocando «o coração nas mãos» (Camilo de Léllis). Iluminadora é a afirmação do dr. A. Helleger, um dos fundadores do Instituto Kennedy de Bioética, de Washington:«..,perto do fim da vida, uma pretensa cura significa simplesmente a troca de uma maneira de morrer por outra. Cada vez mais, nossas novas tarefas serão de acrescentar vida aos anos a serem vividos e não acrescentar anos à nossa vida... mais atenção ao doente e menos à cura por si mesma. Nossos doentes precisarão mais de uma mão caridosa do que de um escalpelo prestativo. Não é o momento de pôr de lado esta medicina de atenção, que não exige muita tecnologia... Redescobriremos nossas velhas virtudes judaico-cristãs de atenção aos outros ou pediremos a «morte suave» (eutanásia) dos tecnólogos... Nossos problemas serão cada vez mais éticos e menos técnicos...» Entramos aqui num terreno melindroso, complexo, de questões profundamente polêmicas e intrincadas, que os mais apressados logo rotulam como sendo questionamentos de mentalidade eutanásia, mas que outros, entre os quais nos incluímos, vêem como a preocupação de proporcionar uma morte humana, procurando salvaguardar o «direito de morrer com dignidade e em paz».
Leo Pessini, sacerdote camiliano, capelão do Hospital das Clínicas, da faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo.
Pastoral em Ambiente Secularizado Os hospitais de hoje, diferentemente dos hospitais do passado, são um ambiente secularizado. E nisso refletem o microssistema que se integra no macrossistema, que é a sociedade de hoje, também secularizada. É nesse contexto que a Igreja deve atuar. Para saber como fazê-lo, é necessário levar em conta que seus representantes encontrarão nos hospitais: - pessoas procurando uma finalidade existencial e eterna nesta vida; - pessoas trabalhando como assalariadas (profissionais da saúde); - pessoas obrigadas a estar no hospital (pacientes). Ambiente de sofrimento O sofrimento constitui um drama terrível para o ser humano, e a morte representa o seu ponto culminante. A consciência do sofrimento e do que ele representa gera no homem conflitos profundos, que podem levá-lo a perder o encanto pela vida e a clamar pela morte. A doença, quando se abate sobre a pessoa humana, abala e transtorna toda a sua existência, chegando mesmo a perturbar o seu relacionamento com Deus. A sensação de abandono se apodera dela. Sente-se só e impotente. Diante disso, surge a importância do agente de pastoral. O próprio Cristo sentiu a necessidade da presença de alguém que lhe desse apoio e fosse uma presença amiga. Secularização A realidade espiritual tem vários rostos e formas de exercícios. Ela nunca é neutra e tem sempre um significado social. Ela pode ser um conjunto de convicções definindo tal ou qual humanismo. Ela pode ter por centro uma certa imagem da sociedade, e se dar à tarefa de unir os homens (ideologias, utopias...). Ela pode tomar a forma de uma sabedoria (oriental ou outra...). Pode fazer parte das correntes animistas africanas. Pode achar sua expressão numa das grandes religiões (cristianismo, judaísmo, islamismo), apresentando, no interior de cada uma delas, ramificações diversas. Ela se expressará segundo ritos, práticas e costumes, adaptados a cada um de seus rostos. Não devemos esquecer que estamos numa sociedade onde o monopólio da definição do sentido não está mais nas mãos das instâncias religiosas somente. Setores da sociedade e da cultura são subtraídos à autoridade das instituições e dos símbolos religiosos, no processo que chamamos de secularização. Há, mesmo, nesse processo, o pluralismo. As mensagens religiosas entram em concorrência, da mesma maneira que os grupos não religiosos entre si e com as mensagens religiosas.Isso significa que há sempre, e sem dúvida mais que nunca, busca de sentido; a dificuldade é achar o caminho nesta floresta de verdades locais. Se você troca de sistema, você troca de verdade! E na nossa sociedade, que se torna cada vez mais multi-racial, a coexistência nem sempre é pacifica! Nessa quermesse de significados, cada um deve tentar encontrar o seu caminho. Importa, no entanto, que o sentido do homem não seja perdido. E, no universo do hospital e da saúde, cada um sabe quanto esta questão é importante para os profissionais da saúde e para os pacientes. É uma questão de ordem espiritual! A importância do espiritual afeta todos os homens. Falar de «espiritual» é falar deste lugar expressivo onde o homem diz os desejos do seu coração e as exigências da sua razão, sua fragilidade, ao mesmo tempo em que sua força, o caminho que ele está percorrendo, o que a estrutura, suas razões de viver e suas razões de esperar, suas tentativas para decifrar, com seus irmãos na humanidade, o enigma humano. É o lugar privilegiado onde se constroem pouco a pouco gestos de liberdade, pelos quais o homem se ergue na altura de homem. Tirar a um ser essa capacidade espiritual é fazer dele uma pedra, e fazer da humanidade, um deserto.
Aqui é importante o relacionamento humano, antes de tudo, e não simplesmente tentar distribuir sacramentos e até, de certa forma, agredir com ritos etc. O fundamental é não ter medo de conversar e discutir com os profissionais da saúde. Eles também precisam falar do «espiritual» da vida deles. Algumas questões precisam ser respondidas: qual o sentido do sofrimento para os capelães, para os profissionais da saúde? Qual a nossa conduta frente às queixas dos pacientes e ao desânimo dos profissionais lidando com pessoas que sofrem? Mais que evangelizar, precisamos humanizar. Novamente somos colocados frente a questionamentos: Como humanizar um ambiente de sofrimento? Como são formados os profissionais nas Faculdades de Medicina, Enfermagem, Psicologia, Serviço Social...? Segundo a ideologia, o profissional é formado: . para produzir - fazer; . para concorrer - pisar no outro para subir; . para concentrar o saber, a informação; . para ser dependente - de outros profissionais e de códigos de ética. Sobra pouco tempo e ar, em seu período de formação, para que se preocupe em também aprender o relacionamento humano, inter-pessoal, classe profissional. Qual o lugar ocupado pela deontologia, ética ou bioética nos currículos de formação profissional para os que se dedicarão à área da saúde? Cuida-se de doenças, esquecendo-se das pessoas pacientes ou colegas de trabalho). Interfere também, na atuação da Igreja junto às instituições hospitlares, a visão que os profissionais da saúde têm do capelão e da própria Igreja. Ao ler ou ouvir certos capelães, a imagem que, não raro, é passada ainda é a de uma Igreja comprometida com ritos mágicos e não com a vida das pessoas – síntese integrada do físico, psíquico, social e espiritual. Para muita gente, quando se fala em ritos, dá-se logo uma conotação negativa. Seriam formalismos vazios, sem sentido e vida. Aqui, entendemos ritual como uma maneira de tornar tangível, sensível em palavras e ações, aquilo em que acreditamos. O objetivo do ritual é de reunir as pessoas e interpretar, através de atos simbólicos, as experiências de suas vidas numa perspectiva de fé. Os ritos que são vivos enriquecem e aprofundam as vidas das pessoas e têm um efeito confortador e purificador para os participantes. Perguntemo-nos, então: Qual a participação dos profissionais nos nossos ritos? Qual a nossa participação na vida do hospital com a reflexão bioética? Mística cristã Toda prática da Pastoral da Saúde deve ser orientada a favor da plenitude da vida. A mística cristã é uma força ou um espírito de vida que mantém viva a vontade de trabalhar pelo Reino de Deus. É uma mística que encoraja e desinstala o agente da neutralidade, do egoísmo, da discriminação, da intolerância, do mito da superioridade, levando-o a uma profunda e verdadeira adesão a Jesus Cristo, pela inserção ou aproximação sensível junto ao que tem vida diminuída e ameaçada. O agente da saúde não pode omitir-se em viver uma experiência espiritual que o faça co-criador ou co-responsável pelo surgimento de mais vida para os sem-vida ou de vida precária e ameaçada em sua história. Todo profissional da saúde cristão deveria ser agente de pastoral no desenvolver de suas atividades: -no relacionamento com os colegas de profissão e trabalho, -no relacionamento com os funcionários do hospital, -no relacionamento com os doentes. Propostas concretas Para estimular a Pastoral da Saúde, creio ser conveniente adotar os seguintes caminhos: . um melhor conhecimento dos profissionais que trabalham no hospital;
. ser presença visível nas unidades de internação, no setor administrativo, e ter sempre disponibilidade para o atendimento; . não ter medo ou complexos frente aos profissionais (daí a importância da preparação do capelão); . participar dos cursos de educação em serviço, em especial sobre relacionamento humano, ética profissional e bioética; . fazer Pastoral da Saúde também junto aos profissionais da saúde. Esse trabalho reverterá em beneficio dos pacientes. Um profissional precisa sentir-se bem para atender humanamente (satisfação no trabalho); . aproveitar os momentos mais sensíveis, . para celebrações, mensagens ou palestras: Natal, Páscoa, Semana da Enfermagem, Dia do Médico, da Nutricionista, do Serviço Social, Dia do Enfermeiro etc.; . estar presente nos momentos importantes da vida dos profissionais: batizados, casamento, velório, missa de 7º dia; . aproveitar os meios de comunicação social do hospital para colocar mensagens, artigos de reflexão; . valer-se também da contribuição dos profissionais para enriquecimento de nossa literatura cristã, convidando-os para participação em nossas reuniões, reflexões ou congressos etc. Christian de Paul de Barchifontaine, sacerdote camiliano, capelão da Hospita1das Clínicas, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo
Os órfãos que a AIDS vai deixar em todo o mundo A situação dos doentes de AIDS no mundo está-se agravando de forma dramática, segundo revelaram estudos da Organização Mundial da Saúde. E com uma peculiaridade, em determinadas regiões, capaz de provocar conseqüências que afetam não somente as pessoas portadoras do mal, mas também seus descendentes. Diz recente relatório da OMS que um número superior a 10 milhões de crianças ficará na orfandade, na próxima década, em razão da morte dos pais, provocada pela AIDS. A Organização Mundial da Saúde está mesmo revendo os números que ela própria revelara anteriormente. Suas estimativas iniciais já estão superadas em cerca de 2 milhões de novos casos do mal. E, acentua o estudo, se a atual tendência de crescimento da população de aidéticos se mantiver, o total de casos previstos para o ano 2000, antes entre 15 e 20 milhões, também terá de ser revisto. Ao divulgar essas informações, o diretor do Programa Mundial de Luta contra a AIDS, da Organização Mundial da Saúde, Michael Merson, diz que os novos números são reflexo do constante aumento da epidemia em países em desenvolvimento, citando, em especial, os da África, notadamente ao Sul do Saara, e da Ásia. No mundo desenvolvido, ao contrário, a OMS observa uma diminuição no número de casos positivados da doença. As novas previsões do organismo internacional de saúde se baseiam em informes recolhidos nos dois últimos anos. Eles indicam, por exemplo, que, nos países ao Sul do Saara, o número de pessoas infectadas saltou de cerca de 2,5 milhões, em 1987, para perto de 5 milhões, atualmente. Nesses países, em razão da forte concentração populacional na zona rural, é também nela que se mostra mais acentuada a média de contaminação: já é de um adulto em cada 40. No Sudeste Asiático, informa o relatório, o aumento de pessoas afetadas pela AIDS, nos grupos de viciados em drogas injetáveis e prostitutas, é considerado extremamente elevado: há confirmados cerca de 500 mil casos. Nos anos anteriores, não se havia detectado ali um caso sequer. Outra previsão atualizada da Organização Mundial da Saúde em relação ao problema: deve aumentar, em todo o mundo, o contágio entre mulheres e crianças. (Extraído do noticiário dos jornais)
Deus precisa de você
Só Deus pode criar, mas você pode valorizar o que Ele criou; Só Deus pode dar a vida, mas você pode transmiti-la e respeitá-la; Só Deus pode dar a saúde, mas você pode orientar e guiar; Só Deus pode dar a Fé, masvocê pode dar seu testemunho; Só Deus pode dar a esperança, mas você pode restituir a confiança ao irmão; Só Deus pode dar amor, mas,você pode ensinar seu irmão a amar; Só Deus pode dar a paz, mas você pode semear a união; Só Deus pude dar a alegria , mas você pode sorrir a todos; Só Deus pode dar força, mas você pode apoiar quem desanimou; Só Deus é o caminho, mas você pode indicá-lo aos outros; Só Deus é a luz, mas você pode fazê-la brilhar aos olhos de seus irmãos; Só Deus é vida, mas você pode restituir aos outros o desejo de viver; Só Deus pode fazer milagres, mas você pode ser aquele que trouxe os cinco pães e os dois peixes; Só Deus pode fazer o impossível, mas você poderá fazer o possível; Só Deus se basta a si mesmo, mas preferiu contar com você.
Vigilância e rigor em campo novo Os problemas levantados no campo da saúde, notadamente aqueles que convergem na bioética, encontram freqüentemente um pluralismo de abordagem e de solução. As incertezas envolvidas exigem rigor redobrado de seriedade ética a fim de frustrar manobras ideológico-políticas, desprovidas de proveito público, assim como confusões em que incidem pessoas de boa fé insuficientemente esclarecidas. Eis duas exemplificações. O Neue Zuercher Zeitung, considerado o principal jornal suíço, em sua edição de 19 de outubro de 1989, demonstrou a rara honestidade mediática de publicar a retificação a uma prévia informação errônea. Com outros órgãos de imprensa menos escrupulosos, tinha divulgado a alegação que os Estados Unidos compravam bebês nos países da América Latina para usá-los em transplantes de órgãos que beneficiavam ricas famílias norte-americanas. Amostra das «medidas ativas» produzidas pelo serviço de contra informação da KGB, instituição não desativada por M. Gorbachev, a notícia tinha sido divulgada através do Interpress Service (sediado em Roma desde 1964 e interessadíssimo na América Latina). Contraponto (edição brasiliense dum relatório mensal sobre as «medidas ativas» publicado em Luxemburgo, Counterpoint) nos informa que a mesma fonte tinha difundido no mundo que crianças mexicanas estavam sendo roubadas e vendidas nos Estados Unidos. Alguém nos afirmou que tal comércio existe; esperamos provas para acreditar no que tanto satisfaz ao antiamericanismo, secretamente magoado pelo fracasso do marxismo. Se a ética é, no fundo, una, a bioética deve se proteger das inverdades semeadas para fins espúrios. O meio para tanto? Imediatamente, pelo esforço crítico de documentação que tenta recortar e avaliar as informações, recorrer a fontes múltiplas e não interdependentes. A longo prazo, pela educação democrática generalizada; uma democracia vale segundo o nível da informação e probidade de seus participantes. A desconfiança diante da produção comprovada da desinformação não elimina a necessidade de reconhecer os erros porventura cometidos. Houve realmente, no ano passado, na Grã-Bretanha, extração de rins de turcos desprevenidos que caíram numa armadilha montada por patrícios, não sem envolvimento da responsabilidade de alguns médicos britânicos. Na Alemanha Federal, o conde Rainer von Adelsmansfelden caiu no tráfico aqui mencionado. Em país disciplinado, delitos isolados de fato ocorrem, mas são punidos tão logo descobertos, de modo que nunca chegam a se propagar como prática corriqueira. Semeiam grave e profunda confusão os artigos que, a despeito de qualquer malandragem que seja, apontam que «ela se comete em todo país». Talvez, mas existe um mais e um menos nada desprezíveis e uma reação social de capital importância. Nação sadia não admite a
impunidade generalizada. Uma coisa é um deslize considerado como criminal, imediatamente reprimido quando descoberto; outra coisa é a banalização da mesma atuação com conivência, pelo menos passiva, da opinião pública e das autoridades constituídas. Em outubro de 1989, o holandês Reiner Groote Beverborg comprou por 34.000 dólares o rim duma conterrânea, que ele revendeu a uma rica família árabe por 57.000 dólares: pelo visto, o trato não decorreu em nuvens brancas. Ainda neste campo do transplante, uma pessoa bem intencionada me falou em tráfico de órgãos admitido na França. Estranhei porque a legislação francesa proíbe terminantemente toda e qualquer comercialização de órgão ou tecido de ser humano. Nem a doação de sangue ou de sêmen é retribuída; o sangue não pode ser vendido. Questionada, a pessoa falou então em embriões congelados. Para que haja tráfico de órgãos, estes embriões devem transitar contra remuneração, praticamente para fins de transplante ou uso ora terapêutico ora cosmético. De fato, existem (lastimamos a situação, mas ela é legal) uns 10.000 embriões em azoto líquido na França. Nem por isso admitimos que haja tráfico de órgãos, o processo não tendo fim ou modalidade comercial, mas finalidade de implantação uterina. Se não fizermos um esforço de rigor na descrição ou denúncia, na discussão bioética, entretemos uma confusão que não se coaduna com os alvos humanizantes da bioética nem respeita as normas de qualquer moral digna do nome. Para não fugirmos das dificuldades do assunto, não escondemos que a sorte dos embriõe s chamados sobressalentes (porque os pais não vão usá-los, se se pode dizer) nos deixa perplexos: para eles, solução ideal não há. Ainda que insuficiente, uma comissão de bioética vinculada à Comunidade Européia tenta propor regulamentações sobre desafios emergentes e processos discutíveis que ela não se acha habilitada a impedir. Somos contrários à existência de embriões sobressalentes, mas não é lícito confundir os problemas. Os interesses bioéticos dos países do Primeiro Mundo correspondem a um nível de desenvolvimento que não se coaduna com os problemas mais urgentes da salvaguarda da vida na América Latina. São, porém, problemas reais e não faltam esforços para tentar dominá-los através de soluções aceitáveis por éticas sérias, mas diversas, desde que nenhuma autoridade é capaz de congregar imediata unanimidade sobre seu veredicto. A irrecusável modernidade nos constringe a distinguir a ética que cada um deve seguir conforme sua consciência e pertença religiosa, e uma ética comum em elaboração, que a duras penas procura seus fundamentos, suas expressões, normas e consensos, através duma situação complexa e em rápida evolução. Hubert Lepargneur, sacerdote camiliano, teólogo moralista.