Como dizer a verdade ao doente? Iniciemos nossa reflexão com a exposição de uma experiência de uma amiga psicóloga. “Foi marcada como de rotina e ocorreu no hospital uma consulta para o Sr. Antônio, paciente de radioterapia. No dia da consulta, pela manhã, fui procurada pela família de Antônio, dois genros, uma filha e uma sobrinha (todos médicos). Vinham me perguntar se iria contar a ele sobre seu diagnóstico, dizer-lhe que tinha câncer, e prepará-lo para a morte. Contaram-me que ele era muito frágil emocionalmente e que, por isso, o estavam poupando da verdade. Ele não poderia saber de nada, pioraria, se não, pioraria o seu estado e talvez nem suportasse o stress”. “Tentei conversar com ele, tranqüilizá-lo, explicando que dar diagnósticos não era minha função e sim do médico de Antônio, e que estava ali para auxiliar as pessoas a viverem com uma qualidade de vida boa dentro das possibilidades limitantes da doença. Eles saíram ainda preocupados em me dizer quais tenham sido as mentiras inventadas, e que eu não os desmascarasse, pois não queriam que ele sofresse”. “Pela tarde, chega Antônio para a sessão terapêutica. Entrou calmo e confiante, e me disse, entre muitas coisas, que tinha um câncer, mas que a família não queria que ele soubesse, pois escondiam exames, trocavam bulas, inventavam diagnósticos e se contradiziam muito. Ele, contudo, não queria desmantelar as mentiras, pois sentia que a família não suportaria discutir o assunto com ele, e que seria um sofrimento que ele queria evitar para todos, mas que era muito bom ter alguém para falar sobre isto abertamente,pois lhe faria um grande bem”. Notem a incoerência desta situação! Quem estava protegendo quem contra o sofrimento? Quem estava parando para ouvir as necessidades reais do doente? Isto é um exemplo de quão importante é ouvir e entender o que o paciente quer, que necessidades apresenta, e não tentar protege-lo à nossa maneira e segundo o que nós cremos ser sua necessidade. Ninguém ouve o que o doente tem para falar e do que ele necessita.
Mentalidade latino-americana Este relato é uma amostra qualificada de uma mentalidade muito forte entre nós, latinos, de escondermos a verdade ao doente. Num passado não muito distante, acreditavase que, quanto menos o doente soubesse de sua condição, maiores chances teria de recuperação. Hoje estamos frente a uma tendência de abertura e honestidade com os pacientes a respeito de sua condição. É bom lembrar que, nos países desenvolvidos da Europa e nos EUA, vai ganhando terreno a reivindicação de que o doente tem o direito de saber a verdade a respeito de sua condição, finalidade, bem como prognóstico do tratamento. O caso relatado reflete a mentalidade de, em boa fé, poupar o doente da verdade, sendo esta vista de antemão como prejudicial. Como linha de ação é salutar ir sempre na direção da verdade e, excepcionalmente, se justificariam casos em que é melhor não comunicá-la. Na prática, o que acontece é exatamente o inverso. Parte-se do princípio de nunca dizer a verdade, e excepcionalmente esta é comunicada. Deve-se dizer que esta postura é muito cômoda e vai de encontro às nossas angústias, mais do que ajudar o paciente, uma vez que nos desobriga de ficar com a pessoa num momento em que talvez ela tenha que chorar sobre a “verdade-surpresa” no momento
de choque. Falamos sobre o tempo... esporte... família...e, quando surge alguma porta a respeito de sua condição, mentimos ou desviamos o assunto. Será que é melhor para o doente? É importante ressaltar que o doente tem o direito de saber a verdade. O Código de Ética Médica Brasileira (1988) diz, em seu artigo 59, que é vedado ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal”. A depressão por que passam os pacientes após o diagnóstico de uma doença fatal, em grande parte é causada pela conspiração do silêncio. Entrevistas com pacientes terminais ou em estado grave revelam que eles não desejam continuar na dúvida a respeito de sua condição.
Algumas pistas de ação A questão não deveria ser “devemos ou não dizer”? Mas, antes, como partilharemos a verdade com o doente, levando em consideração sua condição psicológica, valores familiares, culturais e religiosos. Não se tem uma receita pronta para ser aplicada indistintamente. O paciente tem o direito de saber a verdade. Não temos o direito de tirar a esperança de ninguém, mas igualmente não devemos acrescentar ilusões. São geralmente desastrosas as práticas de enganar. O doente necessita de esperança sim, mas não pede para ser enganado. A preparação para estes momentos críticos da vida deve começar bem antes da situação de doença, quando se tem saúde. Por que não conversar sobre isso nas reuniões familiares? Em muitos casos de pacientes terminais, a verdade, embora difícil, é o melhor presente e gesto de amor que podemos comunicar. Muitas coisas materiais (dividas, herança, distribuição de responsabilidades etc.) precisam ser colocadas em ordem para se evitarem brigas ou separação na família, posteriormente. Quem é o responsável primeiro de dizer a verdade é o médico, mas também quem esteja mais próximo do doente, com ciência do médico, pode comunicar. Cada caso é diferente e precisa ser tratado de forma especial. A nossa tendência – ou melhor, tentação – é sempre decidir pelo doente (paternalista) o que é ou não o melhor, como se ele, pelo fato de estar doente, tenha perdido o uso da razão e se infantilizado. Ë necessário parar e perguntar o que ele quer saber. Notar que é mais fácil decidir pelo doente do que decidir com ele, mas certamente não é esta a melhor postura.
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Para refletir em grupo
Que lições podemos tirar do caso apresentado?
Se um parente seu estivesse com uma doença grave, e quisesse saber o que tem, você teria coragem de lhe comunicar a verdade? Sim? Não? Por que? Não temos o direito de tirar a esperança, mas não devemos acrescentar ilusões. Discutir.
Leo Pessini, sacerdote camiliano, capelão do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Informações sobre a Maçonaria A Maçonaria se originou na Idade Média como corporações de construtores. As raízes são cristãs, e mesmo católica, porque as confrarias de construtores poderiam ser comparadas a uma ordem terceira: uma verdadeira instituição da Igreja, patrocinada pelos “quatro santos coroados”. Tinham regras de vida própria, suas orações à Virgem e aos santos, suas reuniões na proximidade das obras de catedrais. No entanto, foi somente em 1376 que a palavra freemason apareceu pela primeira vez nos manuscritos ingleses. Como existe hoje A partir do século XVII, as lojas inglesas começaram a recrutar membros que não pertenciam à Maçonaria do ofício. Passam a ser aceitas pessoas notáveis, pensadores, homens influentes. Esses maçons aceitos logo seriam majoritários, o que viria a gerar uma profunda mudança no plano religioso e filosófico da organização. Por essa época, porém, a Maçonaria ainda era cristã, porque congregava católicos, anglicanos e protestantes – um primeiro pluralismo de tipo ecumênico. Tradicionalmente, o nascimento da Maçonaria especulativa se situa no dia 24 de julho de 1717, quando os membros das quatro lojas de Londres fundaram a Grande Loja de Londres. No início do ano de 1723, apareceram as constituições de Anderson, que definiram a Maçonaria como “o centro de união e o meio de conciliar uma verdadeira amizade entre as pessoas que teriam ficado a uma distância indefinida”. Essas constituições representavam um código de tolerância e de ecumenismo bastante inovador para a época. A Maçonaria do “Século das Luzes” desabrocha num ambiente filosófico que se torna cristão, mas fortemente tingido de deísmo. Na França, numerosos eclesiásticos entraram para a Maçonaria nesse período. A maioria das lojas européias contava com bispos, abades, teólogos, religiosos e sacerdotes em eu meio. Condenações De sua parte, governos católicos, protestantes e mulçumanos já haviam proibido a Maçonaria nos seus territórios, principalmente por causa do segredo. A justificativa para o interdito era porque a faculdade de se reunir e se associar se submetia a sua licença. A isso
acrescentem-se algumas depravações místicas dos teósofos e dos iluminados ou dos aventureiros do paranormal. Os maçons foram, por isso, objetos de proibições e de condenações, tanto civis quanto religiosas. A primeira excomunhão foi lançada por Clemente XII, em 1738. Ele considerava que os maçons eram suspeitos de imoralidade e que, onde havia um segredo escapando à Igreja, também havia, necessariamente, o mal. Eram igualmente suspeitos de heresia, porque os maçons agrupavam “homens de todas as religiões e de todas as seitas”. Daí, para os crentes, o risco de “contágio”. Havia, enfim, também um motivo político para considerar a atividade como ilegal, porque vários estados já haviam proscrito e banido as sociedades maçônicas como contrárias à segurança dos reinos. Esse foi certamente o início do contencioso entre a Igreja e a Maçonaria. Posicionamento atual da Igreja A Congregação para a Doutrina da Fé, em 26 de novembro de 1983, em documento aprovado e mandado publicar pelo Papa, afirma categoricamente: “Os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão”. Dizia ainda: “Não compete às autoridades locais (Bispos, Padres derrogar este juízo da Igreja Universal”). Os princípios maçônicos sempre foram considerados como irreconciliáveis com a doutrina da Igreja. A título de exemplo, vamos enforcar quatro princípios: “a existência de uma força superior, o Grande Arquiteto do Universo”. É um Deus vago, indefinido, que apenas cria e rege o universo, mas que não se manifesta pessoal e diretamente. Este princípio está em contradição com nossa crença de ver a feição humana em Jesus Cristo; “livre pensamento”, ou seja, “liberdade absoluta de crer no que se queria, ou de não crer em nada”. Para nós, ao lermos o Evangelho de São João, vamos notar que tudo se baseia na fé; “tolerância mútua que implica na não existência de verdades absolutas”. Para a Maçonaria, tudo é relativo, nesse sentido, a Igreja seria “apenas uma instituição religiosa, ao lado de muitas outras possíveis e válidas”; “a autonomia da razão”, que não reconhece quaisquer verdades a não ser as fundadas na razão e na ciências. Daí as dúvidas levantadas: será que a ciência é capaz de explicar como é que Deus se torna homem? Ou como ele ressuscita? A Igreja Católica não deseja polemizar com ninguém. Ela não interfere nas normas de outras instituições. Quer, no entanto, ter o direito de não ser obrigada a aceitar doutrinas que sabe ser contraditórias.
O futuro Segundo teólogos e historiadores das religiões, católicas e maçons deveriam aprender a se conhecer melhor. O problema da dupla pertença mereceria ser reconsiderado pela Igreja e, todo caso, aprofundado pelos teólogos e historiadores das religiões. Fontes: 1. Jornal Opnião – 29/7 a 4/8/90, p. 10 2. La Libre Belgique- 2224/7/90 – p. 13 Christian de Paul de Barchifontaine, sacerdote Camiliana, capelão do Hospital das Clínicas, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Evangelizar e ser evangelizado pelo doente terminal Na visita ao hospital, o agente de Pastoral da Saúde encontra uma grande variedade de pessoas doentes. Nesta colocação, quero focalizar uma categoria especial: o paciente terminal e, entre os pacientes terminais, de modo especial, as vítimas da Síndrome da Imunideficiência Adquirida (SIDA), conhecida no Brasil como AIDS. Um dos motivos básicos que levam o agente de pastoral a assumir o trabalho hospitalar é a evangelização do doente, e este é o segundo aspecto que quero abordar: o que significa evangelizar o doente, principalmente quando este paciente é terminal ou é portador do vírus da AIDS? O terceiro ponto que quero desenvolver é conseqüência de uma correta compreensão do que significa evangelizar, e a importância de o agente de pastoral se deixar evangelizar pelo doente. O agente de pastoral e o paciente terminal Quem é o paciente terminal? – Num certo sentido, todos nós somos pacientes terminais, pelo menos no sentido de que, mais cedo ou mais tarde, vamos todos morrer. Num sentido mais restrito, porém, o paciente terminal, no contexto hospitalar, é aquele acometido de uma doença para a qual não há cura, e que já entrou no processo de se desligar deste mundo. Às vezes, é fácil identificar este paciente: os médicos, enfermeiros, parentes, o próprio doente sabem e estão de acordo que esta é a situação. Freqüentemente, porém, o caso é muito mais complexo. Pode haver muitos sinais de que o doente está caminhando para um desfecho fatal da sua doença, mas não há consenso entre os envolvidos de que esta é a doença que vai matar a pessoa. A ciência médica da atualidade é altamente sofisticada e poderosa, mais ainda não é infalível. Um médico pode achar muito provável que uma determinada doença seja fatal, dadas as circunstâncias de um caso específico, e ao mesmo tempo reconhecer uma margem, mesmo pequena, para esperança, Mas, mesmo que o médico esteja pronto para reconhecer que o paciente esteja em fase terminal,ainda há outra pessoa importante a ser considerada: o próprio doente. Se o médico precisou de tempo para chegar à conclusão de que uma doença será fatal neste caso, não é para estranhar que a pessoa para quem este estado de coisas tem um significado existencial decisivo também precise de tempo para chegar a esta mesma conclusão.
Nesta situação, o agente de pastoral pode desempenhar um papel muito importante se souber ser sensível à complexidade da situação e tratar o doente não simplesmente como objeto da sua solicitude, mas como pessoa capaz de ser sujeito da sua doença, do seu tratamento, do seu viver e do seu morrer. Assumindo seu morrer – Se já é difícil para uma pessoa idosa, chegando ao fim de uma vida cheia de experiências, preparar-se para a morte, pode-se imaginar como é difícil para um jovem que se vê obrigado a preparar seu morrer, exatamente quando seus amigos e irmãos ainda estão se preparando para viver. Esta é, muitas vezes, a situação da vítima de AIDS: uma pessoa nova, fulminada na flor da sua idade. Respeitar o paciente terminal como sujeito da sua vida exige que o agente de pastoral aprenda a entender e respeitar as diversas fases pelas quais a pessoa doente é capaz de passar neste processo de enfrentar a morte. Neste ponto, a Dra. Elisabeth Kübler-Ross (1) tem nos ajudado muito, identificando as fases pelas quais passam as pessoas no processo de assumir seu morrer: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Nem todas as pessoas passam por estas fases, nem nesta ordem, mas uma consciência destas etapas pode ajudar muito o agente de pastoral a entender melhor as reações das pessoas com que estão lidando. Este entendimento é fundamental para a comunicação autêntica que está na base da verdadeira evangelização. Trabalhar com o paciente terminal não é fácil porque mexe com um dos grandes tabus da nossa civilização: a morte. Trabalhar com paciente terminal sofrendo de AIDS é mais complicado ainda, porque devido à projeção da doença como sendo sexualmente transmissível, mexe-se com outro grande tabu: o sexo. Ter consciência destas coordenada é fundamental para o agente de pastoral que queira trabalhar com o paciente terminal, especialmente com os jovens que estão morrendo de AIDS (2). Evangelizar o paciente terminal Uma das funções do agente de pastoral junto ao paciente terminal é evangelizá-lo. Certas confusões, porém, surgem em relação ao significado que damos à palavra evangelização e, não raras vezes, confunde-se evangelização com doutrinação. Aqui não temos espaço para uma análise detalhada, mas quero chamar a atenção para um dinamismo fundamental no processo: a dialética entre o evangelizar e ser evangelizado. Fundamental no evangelizar é levar Cristo à pessoa a ser evangelizada: pela presença amorosa, pelos serviços prestados, pela palavra, pela oração e pela celebração dos sacramentos. Fundamental no ser evangelizado é reconhecer Cristo onde ele está, e deixar-se interpelar por este Cristo que, às vezes, se manifesta de uma maneira inesperada. Evangelizar pela presença – O agente de pastoral faz presente o Cristo, sendo sinal visível e eficaz deste mesmo Cristo. Desde nosso batismo, a vida que vivemos é a vida de Cristo. O desafio é deixar transparecer esta vida em nossa maneira de nos comportar. Para conseguir isso, é necessário tentar, pelo menos, assumir a mesma atitude deste Cristo, como São Paulo nos pede em sua Carta aos Filipenses (2,5-11). De um lado, é uma atitude de despojamento, do outro é uma atitude de respeito, de escuta, de abertura que supera preconceitos. Se não respeitamos o doente, se não o escutamos, e não conseguimos superar nossos preconceitos, dificilmente nossas palavras e nossas orações terão muito efeito. O principal, aqui, é saber estar presente, estar atento e escutar.
Evangelizar pelos serviços prestados – Normalmente, pelo menos o hospital, os serviços médicos são assumidos pelos profissionais da área de saúde, e é importante que o agente de pastoral não se intrometa no que não é da sua competência. Isto não significa, porém, que o agente de pastoral não deva estar atento e disponível para ajudar nas pequenas coisas que facilitam a vida das pessoas e, principalmente, dos doentes. Evangelizar pela palavra – É pela presença amorosa e pela ação serviçal que a evangelização se desenvolve. A palavra assume sua importância neste contexto encarnacional: a palavra humana de amizade, de apoio, de compreensão e a palavra de Deus na Bíblia, que ilumina esta vida, às vezes sofrida, às vezes profundamente feliz, apesar do sofrimento. A evangelização tem um conteúdo doutrinal importante, mas na evangelização do doente, terminal ou não, a comunicação de conteúdos precisa ser adaptada à situação concreta das pessoas. Seguindo o exemplo de Paulo in 1 Coríntios 3,1-3, leite se dá a crianças e carne a quem tem condições de comê-la. Evangelizar pela oração e pala celebração dos sacramentos – O chão do qual brota a credibilidade da nossa palavra é a presença amorosa e a ação serviçal. É neste mesmo chão que crescem e florescem a verdadeira oração e a autêntica celebração dos diversos sacramentos. Se a nossa presença é fria e nosso serviço sem coração, dificilmente nossa oração pessoal ou litúrgica com os doentes terminais terá grande valor. Ser evangelizado pelo paciente terminal Aqui queremos refletir brevemente sobre duas questões ligadas com nosso tema: o que significa ser evangelizado pelo paciente terminal? E por que é importante se deixar evangelizar por ele? Que significa ser evangelizado? Já notamos acima que, no processo de evangelização há um dinamismo fundamental: a dialética entre evangelizar e ser evangelizado. No evangelizar, notamos que é fundamental levar Cristo à pessoa a ser evangelizada, e que, no ser evangelizado, é fundamental reconhecer Cristo onde ele está, e deixar-se interpelar por este Cristo onde ele estiver. Queremos agora aprofundar um pouco mais o que significa este ser evangelizado do agente de pastoral. A abertura para ser evangelizado vem de uma humildade que reconhece que a vida crística que está em nós ainda é bastante rudimentar, e que esta vida precisa crescer e se desenvolver até alcançarmos a maturidade da plenitude de Cristo (cf. Hei, 4,13). O pouco do mistério do Cristo que conseguimos penetrar em nossas vidas precisa ser constantemente complementado por outras facetas deste mistério encarnadas nos outros, inclusive e especialmente nos que sofrem. A parábola do Juízo final em Mt. 25,34-46 nos ensina isso de uma maneira bastante dramática. O mistério escondido desde a eternidade em Deus (Hei. 3,9) se manifesta no rosto do faminto, no migrante, no doente, no prisioneiro, naquele que é tão pobre que nem roupa tem. Ser evangelizado implica em abrir os olhos para reconhecer o Cristo onde ele está, e preparar-se para um encontro com ele. Na dinâmica da evangelização, o Cristo que estamos levando ao doente terminal já está lá à nossa espera. Mais ainda, já vem ao nosso encontro.
A Bíblia no processo evangelizar-se evangelizado – A Bíblia é uma fonte privilegiada de inspiração para o agente de pastoral. Muitas vezes, é lendo a Bíblia que se encontra a motivação necessária para ir ao encontro do doente, cujo sofrimento é tão intenso que nos machuca também. Muitas vezes, a palavra de Deus, escrita na página, se torna uma luz para iluminar a situação de dor e desolação, e sugere pistas sobre como nos relacionarmos com a pessoa na sua angústia. É um instrumento poderoso de evangelização que nos permite levar Cristo aos outros e, ao mesmo tempo, encontrá-lo nos outros. Neste relacionamento como doente, e principalmente com o doente terminal, rapidamente se percebe que enquanto é verdade que é Bíblia que ilumina a vida, também é verdade que partilhar as experiências críticas da vida e morte das pessoas ilumina nossa leitura da Bíblia, mostrando riquezas insuspeitas. O texto continua o mesmo, mas nossa perspectiva mudou, nossa sensibilidade se aprofundou, e nossa leitura se transformou para sempre. Por que se deixar evangelizar pelo paciente terminal? – Se evangelizar é apenas uma questão de doutrina, de transmitir determinadas verdades de que nós já temos posse, obviamente o paciente terminal, debilitado e fatigado pelo seu sofrimento físico e emocional, tem condições de nos ensinar muito pouco. Mas se evangelizar é primordialmente comunicar aos outros o Cristo que está em nós, não há motivo para que o paciente terminal não possa ser evangelizador poderoso. Pela própria maneira de viver sua morte, nos revela, encarnadas, facetas do mistério da morte e ressurreição do próprio Cristo, se tivermos olhos para perceber. O agente de pastoral que se abre para esta revelação se transforma, e por isso é importante se deixar evangelizar. Transformado pelo encontro com Cristo no paciente terminal, a vida crística do agente se aprofunda e se enriquece de tal maneira que tem muito mais a oferecer aos outros no futuro. Na dinâmica do amor, este é o motivo fundamental para ter abertura a ser evangelizado: receber para poder dar, receber o Cristo no sacramento da sua verdadeira presença no outro, para poder se transformar num sacramento da verdadeira presença de Cristo para os outros. Leonard M.Martin, sacerdote redentorista, doutorado em Teologia Moral.
Nascer Desfavorecido Profundamente enraizado no sistema econômico e político, estabelecido no século passado, o mundo atual está separado entre a opulência excepcional do mundo industrializado e a expansão da pobreza e privação nos paises menos desenvolvidos. Este fenômeno é ainda mais agravado pela fragilidade interna das sociedades do Terceiro Mundo, resultante de anos de estagnação e sujeição histórica dentro do sistema capitalista triunfante. Devemos lembrar-nos que a população mundial atual é de 5 bilhões de pessoas, ou seja, o dobro da população de 1950. No ano 200 será superior a 6 bilhões, dos quais mais de três quartos no Terceiro Mundo, onde terá lugar 90 por cento do aumento populacional previsto para a próxima década. Certos grupos sociais de risco – mulheres, crianças, pessoas idosas, inválidas, refugiados – suportam todo o peso da pobreza. Nem minoritários nem marginais,
representam uma população numerosa e em crescimento constante, calculada em 1 bilhão de indivíduos em todo o mundo, a maioria dos quais vive em países em desenvolvimento. As suas condições de vida são precárias, sofrem de exclusão e de alienação cultural, e não participam de maneira nenhuma das decisões relacionadas com o seu presente e o seu futuro. Esta é a situação atual da metade da população do Terceiro Mundo e de 70% da população da África. A recessão, o fardo das dívidas e a explosão urbana (em certas cidades do mundo em desenvolvimento metade da população vive em favelas) tudo contribui para esta pobreza extrema que tem efeitos desastrosos para a habitação, a saúde, o emprego, a nutrição e a educação. Às condições de alojamento e de saúde que afetam 2 bilhões de pessoas no mundo, 60% da população dos países em desenvolvimento, juntam-se uma situação ambiental perigosa e a fome. Tal como comunicou a Comissão Bruntland: “Há agora mais pessoas com fome no mundo do que jamais houve”. Uma mulher pobre nascida num país em desenvolvimento tem 150 vezes mais probabilidades de morrer devido a causa ligada à maternidade do que uma mulher nascida num país industrializado. A maior parte das 500 mil mortes maternas anuais ocorrem em países em desenvolvimento. As causas diretas desta situação são a falta de informação e de serviços apropriados e má nutrição. Por exemplo, na Ásia do Sudeste e na África, 65% das mulheres grávidas sofrem de anemia nutricional. Mas há também a falta de dinheiro. A maioria das mulheres, mesmo chefes de família, têm problemas para encontrar emprego, e a prostituição aumenta de maneira contínua, especialmente na Ásia e na África. Além disso, as tradições campesinas de solidariedade e auxílio mútuo estão tão enfraquecidas que já não são capazes de proteger as mulheres. Na base de tudo isto está uma longa história de desigualdade sexual que a crise econômica parece agravar ainda mais, apesar de tímidas alterações sociais aqui e ali, invariavelmente deformadas, algumas vezes com um elemento de feminismo importado. Assim, as mulheres pobres são especialmente vulneráveis, e isso repercute sobre os seus filhos. Em 15 anos, a mortalidade infantil foi reduzida à metade, mas as perspectivas não são boas, pois vários milhões de crianças que sobrevivem crescem em condições que as impedem de realizar o seu potencial físico e mental. Além disso, nos países em desenvolvimento, em cada três crianças uma morre antes de atingir os cinco anos, e 45% de tais mortes são causadas por diarréia e infecções intestinais. Infecções respiratórias e carência nutricionais que estão estreitamente ligadas a condições de vida em favelas são as outras duas causas importantes de morbidade e mortalidade em crianças pequenas: matam 3 milhões todos os anos. A par de campanhas de vacinação enérgicas que conseguiram nos últimos 10 anos obter resultados consideráveis, com 46 milhões de crianças vacinadas por ano, quase 2,8 milhões de crianças ainda morrem de doenças evitáveis, tais como poliomielite, tétano, sarampo e tuberculose, Outros 3 milhões de crianças sofrem de seqüelas de tais doenças durante toda a vida. A má nutrição é um fator agravante que provoca uma insuficiência de peso em recém-nascidos, um terço dos quais pesam menos de 2.500 gramas, e facilita doenças infecciosas em crianças pequenas. Segundo se prevê, haverá 1,2 bilhões de pessoas idosas em 2025, das quais 70% em países em desenvolvimento. A sua situação nestes países é particularmente alarmante, pois muitas delas deixam as suas aldeias para engrossar as enormes populações das favelas que rodeiam as grandes cidades.
Tal como assinalou recentemente o Dr. Hirosshi Nakajima, diretor geral da OMS, em muitos países em desenvolvimento as pessoas idosas seguem os jovens para as cidades, onde são obrigadas a lutar por um espaço vital nas periferias. Pior ainda, têm poucas possibilidades de arranjar trabalho em zonas de grande desemprego. Este é um dos problemas mais urgentes, dado que, no ano 2030, perto de 65% da população mundia l viverá em cidades. Na ausência quase total de solidariedade e proteção social resultante da fragmentação da estrutura familiar, a situação das pessoas idosas torna-se rapidamente trágica. O mundo tem atualmente cerca de 500 milhões de pessoas deficientes, e calcula-se que este número duplicará no ano 2000. Quatro quintos delas vivem no Terceiro Mundo, e destes um terço são crianças. Tem a mesma dificuldade em escapar à pobreza e em progredir que outros grupos de risco. Além disso, o ciclo vicioso de pobreza e o enfraquecimento das estruturas sociais e cultuais criam situações que geram deficiências. Os refugiados, que representam atualmente entre 13 e 14 milhões atualmente entre 13 e 14 milhões de pessoas, estão bem presentes na Ásia, África e América Central. As migrações de massa são um novo fenômeno causado pela natureza mundial da economia e da sociedade. A última década conheceu grandes fomes causadas por um meio ambiente hostil, que lançaram vagas sucessivas de seres humanos para países visinhos, que dificilmente podem alimentar a sua própria população. Além da procura dum melhor nível de vida, guerras e repressões violentas também enviaram populações inteiras para o caminho do exílio. A amplitude do problema pode ser espantosa, como no caso dos 3 milhões de afegãos refugiados no Paquistão, 75% dos quais são mulheres e crianças. A situação é ainda mais dramática devido ao fato de o Afeganistão se debater numa guerra civil que não tinha provocado e que expulsou das suas terras e lares pelo menos 2 milhões de pessoas que procuram refúgio em outros lugares no seu próprio país. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a situação só pode ser melhorada se as grandes potências fizerem um esforço determinado para conseguir uma paz duradoura. A melhoria das condições de vida dos grupos sociais de risco é uma condição prévia para a saúde no mundo e deveria ser uma prioridade absoluta para as autoridades em qualquer parte. Dar a mais de 1 bilhão de pessoas pobres condições de vida aceitáveis é realmente um problema assustador. A OMS identifica prioridades e atividades para realizar através dos seus programas. Mas o verdadeiro êxito neste domínio depende de alterações radicais a nível mundial e nacional, e que deviam ser de três ordens: encorajamento do desenvolvimento comunitário coordenado e multisetorial dentro de cada país; ajuda na reestruturação do sistema político e econômico mundial para corrigir o grave desequilíbrio Norte-Sul e dar aos povos do Terceiro Mundo uma possibilidade de se pôr de pé; transformação da nossa maneira de pensar, para poder estabelecer novas formas de desenvolvimento, cooperação e solidariedade em todo o mundo, capazes de enfrentar os desafios do nosso tempo. Fredj Stambouli, professor de Sociologia de Universidade de Tunis, na Tunísia, e membro da Comissão de Orientação do Programa Mundial da Organização Mundial de Saúde de Combate à AIDS.
Este artigo é transcrição de texto com igual título, publicado na edição de março/90 da revista “A Saúde no Mundo”.
O Arquipélago de Bailique O estuário do Amazonas, as ilhas e a faixa de terra de sua margem esquerda que vai até o rio Araguari são chamadas de Grande Arquipélago do Bailique. Bastante populosa – cerca de 6 a 7 mil habitantes – a região conta com 32 Comunidades Eclesiais e Base, das quais 11 fizeram parte do nosso roteiro. Nossa missão desta vez, além do costumeiro trabalho (consultas, palestras de saúde, aplicação tópica de flúor oral, colheita de exames preventivos do câncer ginecológico e celebração da Eucaristia), destacou-se para honrarmos um compromisso com o Prof. Dr. Languillon – médico, conselheiro da OMS e da Ordem dos Cavaleiros de Malta – que nos visitou em junho deste ano. Nossos recursos financeiros estão zerados. Mas, quando a gente trabalha pelos pobres, Deus provê... Era o que rezava Dr. Cândia e o que sempre pude constatar. Foi nesta confiança que partimos. A dívida ficaria para ser pensada na volta. Além da Ângela Rizzi, e equipe então contou com a participação das técnicas em hanseníase Rosângela Maria Gurgel e Ana Lúcia N. Souza, lotadas no Setor de Dermatologia do governo. Nas comunidades visitadas, constava a presença de 28 pacientes já registrados, que precisavam de controle, pois há muito tempo que não aparecem em Macapá, no Serviço de Hanseníase. De fato, 25 deles foram encontrados e revistos, assim como foram examinadas outras 347 pessoas, com quatro casos novos, sendo também realizadas 28 baciloscopias de 5 mitsudas. As distâncias são enormes. Perdemos o controle do combustível, precisando contar com a colaboração de terceiros para “empréstimo” de outros 100 litros de óleo diesel. Infelizmente, uma das Comunidades precisou ser cortada, devido às distâncias. Foram nestas regiões que vieram se instalar antigamente “foragidos” do Sanatório de Marituba, em Belém, deixando uma herança de hanseníase que perdura até hoje. Com sua face e membros deformados, mas com um coração de ouro, testemunham para tantos a sua capacidade de amar... Um dos pacientes, Sr. Manoel Farias, no dia de nossa visita, fora buscar sua mãe, Da. Gregória A. Farias, que subitamente adoecera, distante a 6 horas de canoa a remo, trecho que teve de fazer empurrando a “montaria” no Igarapé dos Macacos devido à baixa água nas estações de marés quebradas. Agradecia a Deus por ter conseguido forças para tanto e por sair ileso das “ferradas” de arraia, tão freqüentes num simples banho nestes igarapés. Deus nos protege quando trabalhamos para o bem, dizia-me chorando. Celebrei com a família o sacramento da Unção e, no dia seguinte, Da. Gregória falecia, vítima de acidente vasculo-cerebral. As moças da equipe se encarregaram do devido preparo do corpo e sua sepultura. Por ser litoral e Equador, as marés são enormes. Há uma diferença de nível que chega a passar de seis metros, entre a maior maré do inverno e a mais baixa do
verão. Então a maioria das casas não consegue fazer trapiche, e o acesso às residências se faz com os pés na lama. No período das chuvas (inverno), tudo fica alagado e costuma-se comentar que, no Bailique, se morre duas vezes: uma vez em vida e outra no cemitério, quando o cadáver se afoga nas enchentes. Cada comunidade se esmerava em nos receber e nos tratar bem. Na Comunidade do Buritizal, permanecemos para as refeições na casa da hanseniana D. Nilce, líder do local e que há muito tem um apreço especial pela equipe do Hospital São Camilo, onde antigamente teve sua acolhida. O dia 28/10 – Dia Mundial das Missões – não poderia ser mais bem comemorado, com todo desempenho da equipe e a celebração da Santa Missa num dos recantos mais distantes de nosso País. Essa parece ser a nossa tarefa. Algo muito feliz bate em nossos corações, pois, sem dúvida, é um privilégio o desempenho desta função. Nosso Senhor progressivamente vai nos ajudando a nos adaptarmos às realidades andar sobre troncos de buriti ou e açaí, dormir com uma serenata de porcos debaixo da casa, picadas de bijogós (mutuca verde), de mucuins e carapanãs, ajeitar-se nos sanitários, tomar banho no rio, dormir na rede, gostar – repito, gostar e muito – do peixe e farinha e, principalmente, enfrentar as maresias com mais coragem. Percebo que até isso faz a gente ganhar mais fé. “Pois aprendi (aprendemos) a adaptar-me às necessidades; sei viver na necessidade e na fartura. Estou habituado (ou nem habituando) com toda e qualquer situação: viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece” (Ef. 4,11-13). Só me falta ainda a paciência de “ficar frio” com o atraso na hora marcada. No último dia, deveríamos partir às 16 horas, por causa da maré, que posteriormente impediria nossa saída. A Missa foi então marcada para as 15 horas. Quando estava dando a bênção final é que então chegavam os participantes... A paisagem do Bailique só se vê em contos de fadas. Com o mar à vista, a maresia (ondas encrespadas pelo vento forte) não é para se brincar. É a região das parorocas. Nossa viagem de ida foi bem experimentada por tais realidades. As meninas passaram mal com náuseas e vômitos. Eu, já macaco velho na história, não me abalei, mas rezei bastante para que nossa volta fosse mais serena. E, de fato, o dia parece ter sido encomendado. Quanta beleza em sete horas de viagem... É assim, trabalhando para o Senhor, vamos descobrindo seus mistérios em nossas vidas... Que enchem os corações de qualquer um que tiver a simplicidade de aceitar o convite do Pai: “Senhor se Tu me chamas Eu quero Te ouvir Se queres que eu Te siga Eu respondo: eis-me aqui...” Raul Matte
Eficácia e Humanismo em Medicina À medida que se aperfeiçoam os instrumentos da medicalização e sua eficácia, crescem também as críticas contra a iatrogenia (efeitos negativos da terapia) e, não raramente, uma desconfiança sistemática sobre o progresso das ciências biomédicas aplicadas. Existe porventura uma ética do progresso biomédico? Obviamente sim. O campo da experimentação, notadamente, é muito investigado do ponto de vista moral; as regras e recomendações não faltam, ainda que suas implementações sejam por vezes incertas. Uma recusa drástica da inovação, entretanto, num banho de desconfiança no tocante ao progresso, à modernidade, ao cambiamento dos hábitos e estruturas, nos parece uma atitude ideológica preconcebida, de duvidosa justificação e pouca eficácia. Positivo é apenas o alerta ao sentido crítico, solicitado pela avaliação das inovações, cujo efeito a longo prazo dificilmente se antecipam. Ao nível da clínica diária, chamamos a atenção sobre um relacionamento esquecido na apreciação da atuação médica. Durante séculos, mil6enios, o poder dos profissionais da medicina era vizinho do zero; reconfortavam com palavras, compressas e chás, mais tarde, aliviaram com dietas e sangrias. Várias funções eram simultaneamente desempenhadas por Cristo ao curar doentes e/ ou expulsar demônios. Ocorreu entre aquela época e a nossa uma tremenda especialização das funções, inerente ao melhoramento das competências. A divisão das tarefas da saúde não cessa de prosseguir: o dentista comum não trata de canais, o cirurgião de transplante cardíaco não faz o transplante de rim ou de fígado. Esta evolução é perpassada por dois a priori valorativos, tão óbvios que passam despercebidos: o culto da vida pela vida e a perseguição de sempre maior eficácia. Hoje estamos concebendo restrições ao “culto da vida pela vida”, e opomos fortes resistências, mais isto não invalida a relevância e imprescritibilidade da força que impele para constante progresso do saber e do fazer. Ao comentar a bem-aventurança dos que choram, São Tomás nos surpreende ao afirmar que ela visa especialmente aqueles cuja vocação é recuar as fronteiras da ciência. Quando nosso espírito encontra nova verdade, novo horizonte do saber, nosso ser se encolhe na defesa da fortaleza do já adquirido. A novidade perturba a segurança de nossa rotina, inaugurando o luto dos conceitos ultrapassados: daí nossas lágrimas. À luz destas observações, voltamos a considerar as críticas hoje endereçadas às práticas médicas. A especialização orienta o generalista a tentar diagnosticar e curar o doente através de seu corpo. Não pretende intrometer-se no psiquismo sem óbvia necessidade: não em razão de sistemática desumanização ou perversão congênita, mas por respeito pela competência de outros profissionais e pelo pudor do paciente relativamente ao que não se vincula claramente à doença tratada. O que atrai o povo no curandeirismo, nas sessões espíritas ou pentecostais de cura, na macumba ou em outras seitas milagrosas, é a abordagem holística (global) dos mal-estares do corpo e da alma, sem que haja necessidade de distinguir competências muito específicas. Em vez de denunciar o progresso tecno-médico,
seria mais oportuno reconhecer a complementaridade dos papéis, o caráter inevitável das especializações que reforçam a competência, a necessidade para o perito de não desconhecer os limites de sua capacidade e de nunca esquecer que o ponto de vista ético sobejar a qualquer atuação humana, abrangendo a totalidade da situação concreta. Recusamos, portanto, posições como a seguinte, de um discípulo de Heidegger: “O sentido fundante de toda a modernidade é o domínio sobre uma natureza externa objetivada e uma natureza interna reprimida. A razão destrói a humanidade, que ela havia tornado possível. Na modernidade, toda racionalidade: o direito,a moral, a arte, a ciência foi submetida aos ditames da racionalidade instrumental. A expressão teórica suprema é a própria ciência moderna, que, entendida positivisticamente, troca a aspiração ao conhecimento teórico do mundo por sua utilização técnica”. Concordaria por ventura o autor em retroceder ao estádio técnico do homem neandertalense, isto é, com o mínimo desta razão humana, (que passa naturalmente do saber à técnica) que doravante convém reprovar, mas sem a qual não se entraria nos jogos da filosofia? Sem a qual o mesmo autor não prosseguiria deste modo: “O avanço do processo de racionalização significa, modernamente, o avanço do absurdo (...) A dominação da natureza desemboca numa expressão ilimitada sobre todas as dimensões da vida humana e produz a dominação do homem sobre o homem (...) A história mundial não só é o progresso na conscientização da liberdade, mas, justamente, o contrário, a totalização progressiva da dominação” (Síntese, jan-abril, 1989). Recusamos vincular tão fatalisticamente progresso médico e alienação humana, admitindo apenas o desafio colocado desde 1955, em termos mais moderados, pelo Dr. Maurice Vernet: “A multiplicação dos conhecimentos não permite abraçar as perspectivas de conjunto tão amplamente quanto no passado (...) Os progressos da ciência parecem haver conduzido a considerar o ser vivo apenas como indivíduo na massa, abandonando aos filósofos o cuidado da investigação própria ao conhecimento do homem como pessoa” (L’âme et la vie, introd.) Como disse recentemente um sacerdote médico: “O médico, tentado pelo domínio sobre a vida, não está incentivado para levar em conta o que escapa à ciência e a seu poder. O sentido profundo vivido pelo doente escapa à medicina apesar de ser essencial”. Divórcio dramático, insolúvel? Não, porque o que foge à ciência médica não escapa necessariamente à pessoa do médico, agente ético. A medicina pode e deve tornar-se sempre mais eficaz, mas nada impede que cresça também, devido à formação e/ou intuição ou espiritualidade, o humanismo do médico que se relaciona com o doente, pessoa dotada de sensibilidade, convicções religiosas e outros valores culturais. Hubert Lepargneur, sacerdote camiliano, teólogo moralista.