Hospital, este pequeno mundo. O Hospital é retrato ou espelho do mundo, no sentido de que recebe, normalmente, amostras de todos os tipos de moradores da cidade, do município, mas também no sentido de evidenciar frutos de alguns de seus vícios ou falhas. Mesmo sem mencionar os contextos delicados da AIDS, o alcoolismo, a fome e a falta de higidez, os abortamentos mal realizados, a violência interessada ou gratuita, os encontros e desencontros do trânsito, tudo isto e mais explodem suas granadas nos ProntosSocorros mais próximos ou mais abertos. Esta observação é encaminhada diretamente para promover a medicina preventiva, encorajar a previsão epidemiológica, reforçar um mínimo de disciplina sanitária na organização da cidade, desde o sistema dos buracos do asfalto, a exterminação dos ratos, a distribuição da água potável encanada, até as ramificações da rede de esgotos, o saneamento básico, sem falar no policiamento da ordem e da desordem, como o ordenamento do desenvolvimento sócio-econômico em geral. A idéia do hospital como um “mundo em miniatura” (microcosmo, diziam os alquimistas a respeito do ser humano) significa várias coisas: que, para o seu interior, convergem doentes de todas as idades, classes (em princípio, pelo menos para o hospital público), sexos, proveniências, pessoas que não se teriam encontrado de outro modo; que nele colaboram profissões bastante diversas, e se encontram profissionais de saúde e pacientes, cada um com seus problemas e condicionamentos. Sem falar dos numerosos visitadores, alguns deles motivados pelo zelo religioso de sua denominação. Nestas condições, será o hospital um lugar que se presta para educação sanitária regional? Para experimentar um justo balanço entre financiamento provado e verbas publicas? Para detectar pontos fracos das estruturas sociais através da incidência de doença? Nesta última perspectiva, por exemplo, a análise de epidemia de cólera que castigou a cidade de Paris, em abril de 1832 (atingindo 13 mil vítimas, das quais 7 mil morreram logo), serviu para observar que esta moléstia tocou a parte mais miserável da população, de condições sanitárias impróprias. A questão dos suicídios reclama tratamento específico, mas conexo, como a dos homicídios, São Paulo sendo capital do crime de sangue, distanciando-se um pouco Rio de Janeiro, Nova York, Los Angeles e Chicago. Queremos agora focalizar a questão um pouco mais ampla da violência, especialmente da violência urbana, constante fornecedora dos Prontos-Socorros das capitais. Precisamente tencionamos relacionar esta violência, com o desempenho das mídias, freqüentemente prontas para repercutir de bom grado o crime, explicando e ilustrando as astúcias dos criminosos. Lê-se, por vezes, que certos psicólogos advogam os filmes de violência como substituto dos atos de violência, aos quais aspira o inconsciente (Aristóteles e os psicanalistas modernos falariam em catarse).
Relatos pormenorizados nos Estados Unidos da América provam, pelo contrário, que a violência cinematográfica ou televisiva excita a agressividade e aumenta as manifestações locais da violência. O fenômeno é amplamente documentado, notadamente para West-wood, bairro de Los Angeles, onde se situa a Universidade Califórnia UCLA. Após a primeira projeção do filme violento “New Jack City”, 1.500 manifestantes entraram num louco quebra-quebra, sem outra motivação objetiva. O “New York Times” citou, no mesmo sentido, Charles Norman, educador de jovens delinqüentes de Los Angeles: os filmes bangüê-bangue excitam a imaginação dos candidatos à delinqüência e violência, e surgem idéias em vista de montar novas expedições criminais ou empreendimentos fraudulentos. Ilustrações paralelas verificam-se para Brooklin (New York), Chicago (Illinois), Sayreville (New Jersey), Lãs Vegas (Nevada). Roubos e hominídios gratuitos, incêndios voluntários, estupros, assaltos à mão armada etc., na película, não apagam, antes, incentivam as tendências sádicas e subversivas, apesar de palpites que pretendem o contrário. Flora Lewis, senior columnist do “New York Times”, observa que “a realidade cotidiana imita o que se torna cada vez mais difícil qualificar de arte...” Existe um limite além do qual o realismo não é mais arte nem divertimento, mas apenas voyeurisme (desvio) sadomasoquista, maneira de encorajar o crime por procuração... Não é o espírito mercantil o principal culpado, mas o consentimento público na abolição dos valores. Conquanto persistirá a demanda, haverá uma oferta destes espetáculos nocivos”. Amanhã virá uma ética do consumidor, para completar a ética do cidadão votante. Ajudar a humanização do hospital, entretanto, redunda direta e indiretamente na humanização da sociedade ao redor, além de oferecer, como os visitadores da Pastoral da Saúde sabem, um dos pontos mais alcançáveis da cidade doente. Hubert Lepargneur, sacerdote camiliano, teólogo moralista.
A maior mágica do “Magic” Johnson Há quase 10 anos, como médico infectologista e cidadão, venho me preocupando com a incontrolada difusão da infecção devida ao vírus da imunodeficiência humana (HIV), causador da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). Desde o início desse embate e diante da inexistência de outras alternativas válidas, venho prestigiando a educação da comunidade, a transmissão de informações corretas e o pedido de cooperação dos mais expressivos disseminadores como as bases da prevenção da grave e inexoravelmente fatal enfermidade citada. Ao lado disso, sustento todas as argumentações nos mecanismos fundamentais de propagação, representados pelo relacionamento sexual, pela toxicomania e pela hemoterapia. O trabalho não está sendo, aqui e no exterior, bem sucedido, essencialmente porque depende da mudança de comportamento de pessoas e, ainda mais, dos que praticam
relações sexuais que envolvem riscos e incorrigíveis drogados, configurando tudo isso contexto pleno de enormes e dificilmente solucionáveis percalços no campo da saúde pública. Sem superdimensionar moralismo, religiosidade, preconceito e outras composturas, quanto ao relacionamento sexual, afigura-se patente que, sob os pontos de vista médicoassistêncial e sanitário, impõe-se exclusivamente comportamento responsável, com manutenção de parceiro único, respeito ao romantismo e à afetividade, repúdio à liberdade e à libertinagem e, também, rejeição a atos anormais. Esta linguagem não permite contestação. Os que não a utilizam, em virtude de diversos motivos, contribuem infalivelmente para o atual e impressionante crescimento da AIDS. Abstinência, repressão, “sexo seguro” e defesa do emprego sistemático e amplo da camisinha, sem apreço ao que é imperioso, constituem exemplos de visões e atitudes inócuas. Quanto ao preservativo, vale frisar que ele não é infalível, e as 14% a 20% de falhas como anticoncepcional documentam essa afirmação. Agora, um eminente atleta foi atingido. Ele afirma ser heterossexual, mas, de qualquer forma, agiu irresponsavelmente. Conformado e sincero, revelou-se promíscuo e desobediente. Pela notoriedade que possui, patenteou circunst6ancia primordial, e ajudará a destacar o mérito de relacionamento sexual responsável. Aparecendo como exemplo do dano que sofreu e, a partir daí, tornando-se pregador da obediência às premissas irrecusáveis, Earvin “Magic” Johnson executará a sua maior mágica. Vicente Amato Neto, médico e professor universitário.
Seminário Nacional de Instituição de Saúde Nos dias 7 a 12 de outubro de 1991, realizou-se o I Seminário Nacional de Instituições de Saúde, em Garibaldi RS, promovido pela Conferência dos Religiosos do Brasil, através do Grupo de Reflexão de Saúde. Reuniram-se 100 religiosos e religiosas de todo o Brasil, para refletir sobre sua caminhada nas instituições de saúde; analisar as práticas e a compreensão da política de saúde; aprofundar a mística que os sustenta no seu compromisso na área da saúde; celebrar as conquistas, dificuldades e desafios, e programar linhas gerais de atuação. Nossa sociedade vive numa macroestrutura onde a tônica é a modernidade. Caracteriza-se pela razão técnico-científica que possibilitou as sucessivas revoluções industriais, a partir do século XIX. Surge o capitalismo, que privilegiou a concentração das riquezas, comandada pela lei do lucro. Esse processo gerou a sociedade de classes, onde a minoria detém em suas mãos o ter, o saber e o poder. Capital e trabalho se tornaram antagônicos. Nós, religiosos que trabalhamos em instituições de saúde, sentimos na pele esse antagonismo, porque lidamos com instituições ou trabalhamos nelas: a quem estamos servindo? Ao povo ou ao capital? A que Deus veneramos? O Deus de Jesus Cristo ou o deus-dinheiro, o mercado? Como de praxe, nosso método de trabalho dói ver-julgar-agir. Ver - Num primeiro tempo, o Padre Roque Grazziotin, sociólogo,nos ajudou a analisar a conjuntura sócio-política e eclesial, a partir de um trabalho de grupos, cada grupo
recordando os aspectos econômicos, políticos, sociais e ideológico-eclesiais da realidade. E chegamos à conclusão de que o sistema vigente é concentrador, excludente , dependente e associado. Num segundo tempo, o Padre Christian de Paul de Barchifontaine, camiliano e Mestre em Administração de Saúde, analisou a política de saúde dentro da modernidade. A modernidade é um processo histórico de vida. Por isso, aproveitando um esquema de Frei Luiz Augusto de Mattos, teólogo, que esquematizou muito bem o cerne da questão, podemos dizer que “a modernidade que se caracteriza pela razão, autonomia,individualismo, secularização, democracia, liberdade, pluralismo, poder... , cooptada pelo sistema vigente (capitalismo) – é responsável, a nível político, por uma formação social, que é dinamizada pela lógica do lucro, da produção, da eficiência, do quantitativo, da competitividade, do consumismo, da exploração, da injustiça, da concentração”. Em seguida, Pe. Christian tentou explicar como as instituições hospitalares, submetidas ao deus-mercado, entraram na privatização, nos convênios, em lugar de cultuar o Deus vivo nas pessoas humanas, e tentar entender melhor o que é Sistema Único de Saúde, INSS, municipalização, Conselhos Municipais de Saúde e as leis que fundamentam os direitos da população a se atendida. Julgar – Frei Luiz Augusto de Mattos ajudou a refletir sobre o serviço dos religiosos nas instituições hospitalares, centrando sua apreciação num enfoque éticoteológico. Lembrou que toda instituição corre sobre os trilhos do sistema capitalista. Por isso, as instituições de saúde se vêm caracterizando como: um centro de interesses ideológicos, políticos, econômicos e sindicais, mais que uma instituição curativa; um lugar de trabalho para os sãos, mais que um lugar de tratamento para enfermos; um mundo de tratamento centralizado no médico, mais do que no doente; uma expressão de técnica e de ciência mais avançada, antes que uma realidade humana, onde não “se encontra tempo” para as pessoas; um ambiente baseado sobre relações funcionais, mais que pessoais (basta pensar nos paternalismos abertos e ocultos, nos tratamento sem que o paciente é visto como um caso interessante ou um número, mais que uma pessoa); um lugar que desumaniza a morte, em vez de ajudar a morrer com dignidade; um lugar de mundo do trabalho que não escapa ao risco da discriminação, da omissão, do clientelismo etc. Em seguida, Frei Luiz apontou alguns desafios à vida religiosa nas instituições hospitalares: a) serviço pela humanização – Logicamente, o conjunto de relações tem que ser orquestrado por princípios como: direito à vida do ser humano, pela promoção de seus direitos inalienáveis; integração humanizadora, a partir da dimensão comunitário-solidária; conquista da libertação no trabalho e do trabalho, visando um serviço criativo, livre e humanizador; busca de uma ética do prazer, da gratuidade, a celebração e da fantasia, para acabar com toda manipulação, massificação, tecnificação, rotinização... Estes
princípios capacitam os servidores ao exercício do ouvir, compreender, dizer a verdade, defender o sofredor, não aceitar a ética da morte; b) mística da esperança e experiência de salvação – A vida religiosa na instituição hospitalar está desafiada a cultivar a expei6encia mística, porque, assim, a presença de Deus se torna mais intensa e efetiva, o que possibilitará doar-se com mais generosidade, em comunhão com o outro sofredor. E mais: um ambiente de desesperança e isolamento, a mística será e dará força para reanimar corpos, humanizar convivências, redefinir estruturas e trabalhar, esperançosa e honestamente; c) perspectiva crítico-dialogal-construtiva diante do progresso científicotecnológico – O Magistério já tem sabiamente reconhecido a importância da ciência e da técnica no serviço e promoção do desenvolvimento integral da pessoa humana. O que falta é: 1) superar uma visão da lei natural fisicista (biologicista), fixista, para se ter critérios fundamentais mais condizentes com a evolução do conhecimento sobre o ser humano, no que diz respeito, por exemplo, à reprodução; 2) exercer um questionamento do projeto da modernidade no que tem de vontade de poder, em vista da dominação lucrativa. Em nome do processo evangelizador nas instituições de saúde, há que descobrir como reposicionar-se diante dos avanços científicos e técnicos. Fugir dessa tarefa-missão é perder a oportunidade de viabilizar uma compreensão clara, crítica e testemunhal no seio da sociedade moderna. Agir – Como objetivo geral, viver a mística do Reino de Deus, a partir da formação global e da integração dentro do processo histórico, para ser presença evangélica libertadora nas instituições de saúde e sociedade, pela promoção da vida. Como ação, a nível pessoal, cultivar a mística (fé e vida), a reflexão, o diálogo e a auto-formação, através da atualização e formação, participação em eventos, organizações, movimentos, CRB, programações, e o exercício o diálogo e revisão periódica (quem). E fazê-lo na comunidade religiosa, instituições, Conselhos Municipais, meios de comunicação social, província etc. (onde), permanentemente (quando). Como ação de caráter comunitário, repassar e partilhar o conteúdo do que se aprendeu, ofereceu aos Conselhos Provinciais subsídios da saúde, participar de reciclagem, estudos da CRB e congregações, exercitar o diálogo e a análise crítica dos contextos e, como sugestão, libertar as Irmãs para integrarem “equipes” (o que). Faze-lo na comunidade religiosa, nas equipes de saúde da Província, nas instituições, na saúde comunitária, na programação da igreja local e CRB regional (onde),permanente e sistematicamente (quando). A nível regional, animar, mobilizar e integrar os Grupos de Reflexões de Saúde (o que), em cada Regional (onde), conforme o programa do GRS (quando). A nível nacional, promover o II Seminário Nacional de Instituições de Saúde (o que), a cargo do GRS Nacional (onde), em 1992 (quando). Finalizando, deve-se lembrar, no Brasil, vivemos um momento de profunda crise, não só econômico e social, mas sobretudo uma crise moral e ética. Os valores básicos de uma sociedade, como o respeito à dignidade da pessoa humana, o cumprimento das leis e a justiça social, estão distante de nossa realidade. Para reverter esse quadro de descrédito nas instituições públicas, torna-se imperativa a participação da sociedade organizada, exigindo seus direitos, exercendo o controle e a
fiscalização das ações e serviços essenciais, como são os de saúde. Que possamos “nos expor ao Deus sempre maior”, sempre a nós desinstalar e desconcentrar, explodindo nossos conceitos e representações, surpreendendo-nos onde menos esperávamos por ele, impedindo-nos de identificá-lo com suas mediações, e fazendo-nos mergulhar na historia humana, para vivê-la intensamente, pois aí, e somente aí, podemos encontrá-lo” (Miranda).
O aborto diante da doutrina cristã Ao colocarmos o problema do abortamento diante da doutrina cristã católica, segundo aquilo que neste momento nos interessa, podemos formular com a Igreja uma resposta simples e ao mesmo tempo incisiva: o abortamento provocado diretamente é um mal moral intrínseco, que, portanto, não se justifica. Este posicionamento da Igreja é enfatizado muitas vezes apenas em sua dimensão negativa, isto é, enquanto diz não ao abortamento. Com isto, ficam perdidas muitas das grandes afirmativas que a Igreja traz nesse campo em favor da vida. Nesta reflexão, queremos exatamente evidenciar algumas dessas grandes afirmações, para podermos usufrui melhor das riquezas que a Igreja oferece ao anunciar o Evangelho de Jesus nesta matéria. Algumas atitudes básicas – Para se compreender bem o que afirmamos, quando negamos o abortamento, é preciso talvez retomar o grande ponto de partida que é a defesa da vida humana, o valor maior que possuímos. A afirmação desse valor nos leva a inquirir, com a máxima atenção, sobre os modos como a vida se dá, se promove e se defende. Nesse ponto, nos encontramos na necessidade de um profundo diálogo com as ciências, diálogo que pertence às mais remotas tradições da Igreja. Especificamente no diálogo com as ciências biomédicas, essa tradição passa por grandes clássicos do pensamento teológico, como Santo Alberto magno e São Tomás de Aquino; chega a expressões mais recentes, como a inesquecível atuação do Papa Pio XII, e atualmente com João Paulo II. Por isso mesmo, não podemos nos fixar em teorias e afirmações do passado, como a do “homúnculo”, a da animação retardada e diferenciada para o homem e a mulher, como se estas fossem verificações que mostrariam incoerência da Igreja em sua proposta moral. O progresso das ciências é desejado e saudado com alegria, como grande contribuição para compreendermos cada vez melhor as dimensões, os sentidos e as tarefas que temos para promover e defender a vida. O Papa João Paulo II é muito claro em incentivar esse diálogo, ao discorrer Sobre Problemas de Fé e Ciência (“Osservatore Romano”, ed. port. 27-XI-88). Entretanto, além das ciências biomédicas, existem muitas outras ciências, como a filosofia, a antropologia, a psicologia, a sociologia (apenas para citar algumas), que oferecem também contribuições indispensáveis para a especifica apreciação teológicamoral do abortamento que a Igreja faz. Estas ciências têm o mérito de esclarecer o contexto mais amplo de situação e de sentido que tem o conceito como vida humana, e a partir de onde dimensionamos melhor sua interpelação ética. Resulta dessa atitude de diálogo outra atitude básica que acompanha a apreciação moral do abortamento. É uma atitude de indignação ética diante de um número tão grande de abortamentos provocados e do contexto mais amplo que permite entrever uma lógica extremamente agressiva à vida na sociedade. Dar-se conta da agressividade e negatividade desse contexto acaba sendo um passo indispensável para se perceber as grandes afirmações
que a Igreja se empenha em fazer diante do abortamento provocado. Três são as expressões mais significativas desse contexto que gera indignação. a) O primeiro é o descompromisso macro-social com a vida, especialmente a nível político-econômico, que é responsável pelo escândalo das diferenças de distribuição de renda no Brasil. A relação desse descompromisso social com o problema do abortamento provocado está muito clara nas estatísticas que apontam 20 milhões de crianças abandonadas entre nós. Se assim se tratam as crianças nascidas, o que esperar das que estariam por nascer? O abortamento do conceito se mostra, portanto, participante de uma lógica que aborta os neo-natos, porque aborta suas próprias mães. b) O segundo é o descompromisso da relação entre o masculino e o feminino. De um lado, um machismo cego, que se exime de qualquer responsabilidade diante da gravidez e da educação da criança. De outro, um liberalismo que legitima a privatização da fecundidade e que domina o corpo da mulher ou o abandona à sua própria sorte. c) O terceiro é uma desvalorização da vida em geral, que favorece uma mentalidade abortiva como algo natural, normal e inquestionável. Começamos hoje a nos despertar desse torpor, pelos grandes alertas da ecologia, e alimentamos a esperança de que se perceba que, na devastação da vida, o ser humano como tal é o primeiro a ser atingido. Propostas fundamentais da Igreja – Subjacente à negação ética do abortamento, a Igreja tem, dentro desse quadro, afirmações de grande profundidade, que cumpre resgatar. Não vamos entrar aqui nas afirmações especificamente teológicas, como as de cunho bíblico, dado o pouco espaço para tornarmos compreensível o discurso a esse nível. Mas existem três propostas da Igreja que nos parecem fundamentais e extremamente importantes para serem aqui ressaltadas. 1ª A primeira é a proposta da fecundidade como responsabilidade social em diversos níveis. O nível micro-social do casal humano, primeiro instância inalienável pela qual se propõe que passe a responsabilidade de procriar, supõe outro nível midi-social, como a família e os grupos humanos ou comunidades que cercam o casal. Se não houver aqui um ambiente propício e incentivador da fecundidade, esta, sem dúvida, se complica de muitas formas para o casal. Da mesma maneira, é preciso pensar e propor a responsabilidade da fecundidade ao nível da grande sociedade. Quando, por exemplo, as leis trabalhistas se mostram adversas à maternidade, não apenas desestimulam a procriação, mas também insinuam de alguma forma o abortamento. Tenho receio de que o futuro vá julgar nossa civilização como uma civilização infecunda e esterilizadora. É sintomático que, em uma cidade como Paris, tenha sido necessário aparecer um out door com a inscrição: “Tenha um bebê. É lindo ter um bebê!” 2ª a segunda é a proposta de uma profunda reciprocidade entre o masculino e o feminino na gestação e educação dos filhos. Em outros termos, é a proposta de que os homens, a seu modo, se engravidem com suas mulheres. Não se trata então de postular o reconhecimento de a mulher ter o direito de gerir seu próprio corpo, porque esta seria exatamente uma forma cínica e disfarçada de legitimar seu descompromisso com ela. Mas se trata de assumir as atitudes e
correspondentes tarefas que evidenciem o corpo social que nós, homens e mulheres, constituímos e pelo qual nos fazemos fecundos. 3ª A terceira é a afirmação e proposta do momento da fecundação como o momento ético a partir de quando se impõe a responsabilidade de defender a vida humana presente como vida pessoal. Nesse ponto, as conquistas das ciências biomédicas têm apresentado com extrema riqueza elementos que ajudam a evidenciar a unidade do processo que vai da fecundação ao nascimento. O imperativo ético é então, de defender ali a vida já presente e em formação. Tarefas éticas no plano social – Uma apreciação moral do problema do abortamento traz, como se percebe, um lastro de valores da vida a serem defendidos com coragem, e nos colocam, correspondentes, diante de tarefas amplas dentro da sociedade. Numa formulação didática, podemos condensar essas tarefas em três grupos principais: A defesa social da vida humana aparece como a mais abrangente e fundamental. Se a vida já nascida não vale nada, o que dizer da vida nãonascida? Nossas convicções de fé que dizem respeito ao nascituro devem, portanto, se traduzir em práticas sociais que propiciem um ambiente favorável aos já nascidos. Mostrando que viver é bom, garantimos que vale a pena nascer. As tarefas sociais que emergem nesse quadro são amplas, especialmente se consideramos a gravidade da violência e desvalorização da vida que hoje se experimenta com evidência. Voltamos aqui aos pontos responsáveis pela indignação ética com que iniciamos esta reflexão. A defesa social da vida humana, enquanto tem diante de si o abortamento, passa pela tarefa de suprir estruturalmente (e não acomodada apenas em paliativos) as necessidades básicas de vida da população. São tantas as pessoas que alegam “razões sociais” para abortar... Nossa indignação ética contra o abortamento nos leva às raízes do mal. A defesa social da vida passa também pela tarefa de defender política e juridicamente a vida humana, de uma forma construtiva. Seria ingenuidade ignorar que estamos constantemente em meio a conflitos na vida social. No caso concreto dos dramas que envolvem o abortamento, é preciso buscar formas de defender e promover as vidas humanas ali conflitadas. A chamada “legalização” do abortamento é saída simplista, que oculta não apenas o aviltamento da dignidade da pessoa humana expressa no nascituro, mas esconde também a violação dos direitos fundamentais da mulher de não ser usada e de não ser largada na vida por sua própria conta. A insurreição da mulher contra o que se chama de “excesso de legislação sobre o útero feminino” deve se vista como uma acusação ao farisaísmo que impõe os fardos sem ajuda a carregá-los. A educação para os valores humanos que criam condições propicias à vida reúne outro grupo de tarefas éticas no enfrentamento das questões em pauta. É preciso, neste sentido, ir além de uma moralizante consideração apenas do que se passa na grande mídia, particularmente a televisão. Esta, de fato, expressa algo de mais profundo que vem acontecendo. Vivemos hoje um ethos de descompromisso, acompanhado de uma sede desenfreada de competição.
Todos conhecem a batizada “lei de Gérson” de tirar vantagem em tudo. Hoje, alguns segmentos sociais já começam a anunciar uma urgente necessidade de reverter este ethos, pois começamos a tocar as raias do insuportável, pelo fato de ninguém pensar senão em si e em seus interesses, em todos os níveis da convivência social. Corrompemos, com isso, o coração de nossa dignidade humana, a capacidade de nos relacionarmos de modo construtivo e fecundo. As tarefas éticas que se abrem nesse campo são eminentemente educacionais. E não se poderia esquecer um grupo de tarefa bem mais imediatas, no caso do abortamento, que são desenvolvidas por programas de formação e informação para a paternidade/maternidade responsável. O controle da natalidade traz de novo armadilhas que é preciso desfazer. Como já fizemos notar acima, contamos hoje com uma grande aliada na sensibilidade ecológica para resgatar, especificamente para nos humanos, o habitat adequado para nossa fecundidade, bem como os valores de nosso corpo e do funcionamento de nosso organismo. Nesse ponto, sabem os senhores médicos, com precisão científica, a devastação que causa na mulher um abortamento. Concluindo esta reflexão, podemos perceber como a doutrina cristã em torno do problema do abortamento é uma ampla afirmação da vida e da dignidade da pessoa humana, em todos os sentidos e níveis. A acusação do abortamento como um crime significa um apelo insistente a que cheguemos às raízes mais profundas que ameaçam a vida nascida e por nascer, em nosso meio. Na solidariedade social, que atinja também as dimensões do masculino e feminino, temos um caminho para assumir a vida como um dom de Deus, e para fazer dela uma grande festa. Márcio Fabri dos Anjos, sacerdote, Doutor em Teologia Moral, diretor do Alfonsianun, de São Paulo.
Este trabalho foi apresentado no fórum de temas médico-sociais intitulado “Abortamento provocado: reflexões sobre atitudes da sociedade”, promovidos pela Associação Paulista de Medicina, em São Paulo, em 19 de agosto de 1991.
Medicina natural a serviço do doente Quem cura tem razão. Durante milhares de anos, prevaleceu este princípio simples e dele se desenvolveu a medicina baseada na experiência. Não era importante para o doente se a terapia podia ser “explicada”. Para ele, era importante ser curado, sem efeitos colaterais. Para a medicina acadêmica, científica, não é mais decisivo se a terapia ajuda ou não o paciente. Em primeiro lugar, agora, é preciso explicar, se possível, o efeito da terapia. Dessa maneira absurda, “científica”, um tesouro imenso de terapias utilizadas durante milênios quase se perdeu. Somente a medicina natural salvou algo deste tesouro, porque ela se opôs frontalmente aos ditames da medicina científica. Ë mérito de médicos marginalizados se hoje temos à nossa disposição terapias naturais eficientes como, por exemplo, as terapias desenvolvidas por Kneipp, Kollath, Bicher, Benner, Hahnemann, Priessnitz e outros. A medicina acadêmica esqueceu o princípio da integralidade – Devido a sua especialização, a medicina acadêmica concentrou-se, cada vez mais e mais, em sintomas, e esqueceu que o homem é uma unidade de corpo, alma e espírito. Para ela, a doença é uma
disfunção local limitada. Portanto, trata esta manifestação local da doença, isto é, o sintoma. O objetivo é fazer o sintoma desaparecer. Para descrever a diferença entre a medicina acadêmica e a medicina natural, podemos tomar como exemplo um resfriado. Para a medicina acadêmica, o resfriado é uma infecção local da mucosa nasal. Esta infecção é provocada por um vírus. Conseqüência lógica: utilização de medicamentos que inibem a infecção e diminuem o inchaço, suprimindo com relativa rapidez os sintomas. Contra os vírus não existem medicamentos eficazes. Contra este o organismo precisa se debater sozinho. Ele consegue isso somente com uma boa defesa imunológica. Sem esta defesa, muitas vezes, aparecem outras complicações. A medicina natural vai mais a fundo – Ela não fica só diagnosticando um catarro. Ela indaga porque o doente não conseguiu combater o vírus. A causa com certeza está na fraqueza da defesa imunológica. Portanto, é tratada esta “doença básica”. O médico começa com uma indagação rigorosa a respeito de relações mais profundas. Ele procura eliminar estas conexões, a fim de impedir complicações e uma ampliação do quadro clínico, com novos sintomas. O tratamento local produz diminuição de sintomas. É o caminho mais rápido e, para o paciente, muitas vezes o mais cômodo. Entretanto, a médio e a longo prazo, é um caminho perigoso. A supressão dos sintomas geralmente enfraquece ainda mais a defesa imunológica. Doenças iatrogênicas (provocadas pela intervenção médica e farmacêutica) não podem ser descartadas. Calcula-se que, de cada 10 leitos hospitalares, quatro são ocupados por doentes portadores de doenças iatrogênicas. “Nihil nocere”- em primeiro lugar não prejudicar – Este é um princípio que os médicos seguiram durante milênios e que a medicina integral obedece até hoje. Os princípios tradicionais incluem também a exigência de procurar eliminar as causas da doença. Nós sempre apontamos para possíveis efeitos colaterais, mas não fazemos isso para deixar o doente inseguro. Também não aceitamos a acusação de estarmos provocando pânico, e nos opomos energicamente ao conceito generalizado de que não existe terapia sem certo risco. É preciso ressaltar os efeitos curativos de remédios naturais. Não é verdade que esses efeitos terapêuticos – inegáveis – sejam simples efeitos e placebo*. A homeopatia clássica comprova que uma terapia biológica não provoca doenças adicionais. Os sintomas podem, e até devem, piorar. Isso mostra que o corpo está reagindo, isto é, que a defesa do próprio organismo está sendo ativada. Esses processos, desejados e naturais, não podem ser comparados com os efeitos colaterais produzidos pelos produtos químicos. No caso de sintomas agudos, onde existe, perigo de vida, é claro que precisamos aceitar os riscos para proporcionar uma ajuda rápida ao doente. Quando, porém, não se trata de um caso de emergência, não existe desculpa para receita medicamentos com graves efeitos colaterais conhecidos, apenas porque – segundo princípios errados – a medicina natural é ignorada mesmo quando seria a terapia de escolha. Valorizar o “médico interior” - A defesa imunológica e as forças internas de cura podem ser chamadas de “médico interior”. A ele cabe um papel muito importante na manutenção da saúde e na cura real da doença. Durante muito tempo, a medicina acadêmica desprezou arrogantemente esta força vital. A medicina acadêmica acreditava (erroneamente) que as doenças só podiam ser curadas pelo médico e suas terapias. A prática mostrou que isso está errado. A medicina acadêmica recomeçou, finalmente, a se preocupar com a defesa imunológica e a imunidade. Mas é preciso constatar que ela entende pouquíssimo do mecanismo da auto-cura. Durante tempo excessivo, preocupou-se pouco ou nada com o “médico interior”.
É bem verdade que, no campo da defesa imunológica, a medicina acadêmica aproxima-se automaticamente da medicina natural, que se baseia sempre no fortalecimento e ativação da defesa do próprio organismo. Para isto, está a nossa disposição uma série de terapias, como, por exemplo, a fitoterapia, a terapia pela água segundo Kneipp, a acupuntura, a homeopatia etc. Se necessário, podemos empregar, simultaneamente e de forma passageira, medicamentos químicos que combatem os sintomas. Contudo, esta terapia precisa ser combinada com tratamento que procure ativar o “médico interior”. Desta forma, começa a aproximação ou complementação entre a medicina acadêmica e a medicina natural. Medicina integral: a medicina do futuro – Os alopatas bitolados e os fanáticos da medicina natural – que consideram corretas apenas sua própria prática – precisam, finalmente, perceber que estão na barca errada. Medicina acadêmica e medicina natural não precisam se excluir mutuamente, mas podem, muito bem, se complementar. Em muitos casos, é a combinação das duas orientações que traz o melhor efeito. Está na hora de os dois grupos se encontrarem para descobrir a melhor maneira de ajudar os doentes que sofrem. Precisamos de um trabalho conjunto, e isto requer compreensão e reconhecimento mútuos. Grandes médicos, como Hufeland, já mostravam o caminho há 200 anos. Tudo o que ajuda o paciente – e já mostrou o seu valor na prática – precisa ser integrado à medicina.Isso é a medicina integral usada com sucesso em centros de cura da Europa. O que, antigamente, era visto com ceticismo ou até descartado, hoje encontra aceitação cada vez maior. Não apenas os médicos naturalistas, mas também os alopatas com visão mais ampla, começaram o trabalho em conjunto a serviço dos doentes. Já é visível uma nítida opção pela medicina integral, que reúne sob essa expressão diversos conceitos, como medicina natural, medicina alternativa, medicina biológica, medicina holística. *placebo é uma substância sem efeito, aplicada como medicamento, Seu efeito é sugestivo. G.R. Brem é fundador da Clínica Vista Sana e teve este artigo também publicado no “Caderno Contact”n.º 67.