icaps-089

Page 1

Perfil do Capelão Hospitalar As reflexões que apresentamos neste texto são uma síntese dos resultados do III Encontro de Capelães Hospitalares do Brasil, realizado em São Paulo, dias 4 a 8 de março de 1991, na sede da União Social Camiliana (veja texto mais completo na página 2). Na ocasião, procurou-se definir o perfil do capelão hospitalar, tendo-se como pano de fundo a realidade brasileira. Quem é – O capelão hospitalar é alguém que tem preparação humana e teológica pastoral específica (competência), com mandato eclesial para atuar no universo hospitalar. Qualidades específicas – Há pelo menos 10 qualidades específicas requeridas para o exercício desse mandato, a saber: ser humano, sensível e solidário. O capelão hospitalar, acima de tudo, precisa ser gente, possuidor de personalidade de escutar e acolher as vozes do sofrimento, de compreende e de servir (ajudar). Deve ser alguém que seja uma presença significativa, e procure defender a dignidade da pessoa humana, seus valores de fé, liberdade e visão de mundo; ser vocacionado (carisma e fé). O capelão hospitalar sente-se chamado por Deus a partir da realidade do sofrimento para gerar vida e saúde, procura ouvir os apelos de deus no coração da vida: do nascimento`a morte. É continuador da ação misericordiosa e libertadora de Cristo para com os doentes,no hoje de nossa história, a exemplo do bom Samaritano (Lc 10, 29-37); agente de transformação: profeta. É alguém que nutre uma indignação ética frente ao descaso em relação à vida humana. Sua missão profética se constitui de: a) denúncia do que contradiz o projeto de vida de Jesus; b) anúncio de uma nova realidade na perspectiva do Reino; c) vivencia dessa novidade no seu dia-a-dia (presença questionante). É defensor de políticas de humanização que coloquem o doente como razão de se e existir do hospital e dos doentes; profissional com formação específica e permanente. O capelão hospitalar procura integrar conhecimento das ciências humanas (psicologia, sociologia etc.) e biológicas com a formação teológico-pastoral. Atualiza-se constantemente frente ao novo. É um profundo conhecedor dos problemas de bioética levantados pelo progresso técnico-científico na área da saúde. Conhece a realidade da saúde e a estrutura de funcionamento do hospital; espiritualidade pascal. É presença evangélica geradora de vida e esperança em meio à dor, sofrimento e morte. É alguém que ora a partir do doente e com o doente. Cultiva uma dimensão orante da vida a partir da experiência do sofrimento humano, numa perspectiva de ressurreição. Tem sensibilidade para resgatar a dimensão celebrativa da vida (liturgia), levando o doente a Cristo, e Cristo ao doentes, bem como procura ajudar os profissionais da saúde a resgatarem o sentido humano e cristão do trabalho; educador, comunicador e evangelizador. O capelão hospitalar desenvolve novas lideranças na área da saúde, na dimensão humana e ética: agentes de Pastoral e profissionais da saúde que promovam a vida, desde seu início até o momento da morte.é um entusiasta anunciador da Boa Nova do Reino, para que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jô 10,10). No seu modo de ser, agir e falar, comunica ternura, esperança, fé, alegria e um sentido de vida; líder e inovador. É alguém que coordena, dinamiza, anima e une, humaniza e evangelicamente, a forças vivas presentes na instituição hospitalar. Estimula iniciativas voluntária que testemunham gratuidade e solidariedade no meio hospitalar;


ecumênico. Num contexto pluralista, onde se encontram diferentes visões de é, o capelão hospitalar é capaz e dialogar, cooperando no objetivo comum de servir ao doente, preservando a própria identidade de fé; participante. O capelão hospitalar é alguém capaz de trabalhar em equipe, buscando assessoria competente nas áreas afins (interdisciplinaridade), e também colabora no encaminhamento de soluções a problemas que atingem sua área específica (fé e moral). Deve ser capaz de delegar responsabilidade e também assessoria-se de um Conselho Pastoral; inserido na conjuntura eclesial. O capelão hospitala da Igreja, integrado na Pastoral de conjunto com conhecimentos teológicos atualizados. Sensibiliza a comunidade para se compromete solidariedade com seus membros doentes e, ao mesmo tempo, facilita a reintegração do doente na família e comunidade. Leo Pessini e João Inácio Midner, Capelão do Hospital da Clínicas, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo. Encontro de capelães hospitalares Coordenado pelos Padres Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine, realizou-se, dias 10 e 11 de março último, em São Paulo, o IV Encontro de Capelães Hospitalares do Brasil. Com a participação de 60 interessados, procedente de várias regiões do Países, foram desenvolvidos os temas “A relação de ajuda na abordagem pastoral”e “Bioética: desafio para a Pastoral”. Coube ao Pe. Júlio Munaro, provincial dos Camilianos no Brasil, abrir o Encontro, falando sobre os desafios que se abrem, hoje, à Capelania Hospitalar (texto na página seguinte), seguindo-se a apresentação do tema “A relação de ajuda na abordagem pastoral (teoria e exercício práticos)”, pelo Pe. Ademar Rover (texto também já publicado pelo ICAPS). O tema “Visão panorâmica da bioética: história, abrangência, desafios emergentes para a Pastoral” foi apresentado pelo Pe. Leo Pessini. O Pe. Christian de Paul de Barchifontaine falou sobre “A bioética à luz do Evangelho”. “Conteúdos éticos do Código de Ética Médica de 1988 e suas implicações pastorais” foi o tema da palestra do Pe. Leonardo Martin, redentorista. O último tema foi um painel de discussões sobre a Associação de Capelães Hospitalares do Brasil,organização do serviço de Capelania e perfil do capelão hospitalar, a cargo dos Padres Sidney Carlos Destry Carlos Destry, João Inácio Mildner, Christian de Paul de Barchifontaine e Leo Pessini. Esta edição do Boletim ICAPS está publicando, em sua primeira página, um texto referente ao perfil então traçado do capelão hospitalar. Conforme se observou, tem crescido a cada Encontro o interesse pelo tema, bem como o aproveitamento. Para este último evento, foi feita uma seleção prévia dos inscritos, com o que se ganhou no desenvolvimento dos trabalhos. Foi igualmente notado o aumento das inscrições: elas somaram apenas três, na primeira realização... Outro aspecto a destacar é o ecumenismo do Encontro: estiveram presentes nove pastores (batistas e adventistas do sétimo dia) que prestam serviços em hospitais ligados à Golden Cross e Amico. Percebe-se que também eles se estão organizando para a prestação de assistência pastoral. No entanto, verificou-se forte a dificuldade de uma Associação de Capelãees Ecumênica, dadas as implicações com o direito canônico e a CNBB. O caminho a seguir, portanto, é que os católicos insistam em sua organização, bem como os evangélicos. Poderão vir a ser planejados futuros encontros, se considerados oportunos, correspondendo


a interesses comuns, mas existem dificuldades operacionais, específicas de cada tradição religiosa. Definiu-se que será dado andamento aos trabalhos até aqui realizados pelo Pe. Sidney Destri, sob a coordenação do Pe. Christian, já que, como coordenador geral da Pastoral da Saúde da CNBB, está em contato mais direto coma entidade o que facilitará o diálogo com os Bispos sobre o assunto. Como resultado prático do IV Encontro ficou o desafio de organiza um curso específico para formação de capelães hospitalares. Já se tem a semente da metodologia que pode ser adotada, através da experiência que se faz no Hospital das Clínicas de São Paulo, com seu Curso de Pastoral Clínica, no campo da formação teórico-prática, há cerca de dois anos. Ponto também levantado e que quer maior conscientização é a insensibilidade das instituições hospitalares na área pastoral, em termos de recursos materiais e bastante a realidade, sob esse aspecto, conforme o hospital seja público, privado com fins lucrativos, particular sem fins lucrativos ou filantrópicos. Na maioria das instituições, onde existem capelães atuando em tempo integral, não existe acompanhamento ou supervisão. Constatase, também, que os capelães são, em geral, pessoas idosas, que já deram o melhor de si em agora, como se estão aposentado ou já aposentados, se dedicam aos doentes. O V Encontro já está marcado para 9 e 10 de março de 93. O desafio da capelania hospitalar Nas últimas décadas, sobretudo a parti do Concílio Vaticano II, o serviço religioso hospitalar sentiu a necessidade de submeter-se a profunda renovação. Tal necessidade de renovação decorreu, fundamentalmente, da nova eclesiologia e, em essência, de duas coisas básicas; Igreja-Povo de Deus e Igreja comunhão e participação, com o conseqüente espaço aberto aos leigos na ação pastoral. Outra idéia determinante para a renovação é a do ecumenismo, associado a uma novo enfoque soteriológico ou de teologia da salvação. A Igreja Católica não constitui o único reduto de salvação. Outras religiões também podem servir de caminho para Deus, e mesmo os ateus de boa fé podem salvar-se. No passado, o serviço religioso hospitalar católico centrava-se no sacerdote, e voltava-se para o doente e os sacramentos que lhe deviam se ministrados. Hoje, o serviço religioso já não é exclusividade do sacerdote. Os leigos também têm sua parte. Igualmente, o doente e os sacramentos mantêm seu lugar de destaque, mas o serviço religioso ampliou seus horizontes de ação. O serviço religioso já não é mais algo à parte, estanque, desligado da função terapêutica do hospital e da vida dos profissionais da saúde. Passou a ser o serviço de animação espiritual de todo o hospital, que, por sua natureza, tem o doente como centro. É a conseqüência lógica de que ninguém se salva e santifica singularmente, sem conexão com os outros, ma como povo (cf. Lumem gentium 9). O serviço religioso não é o único a exercer influência espiritual sobre o doente. É o ambiente todo, e é todo ele que deve ser animado espiritualmente, se quisermos que a ação alcance sua plena eficácia. O doente já não e desmembrado em corpo e alma, como se constituíssem duas partes autônomas. O ser humano passou a ser visto como uma unidade indivisível. Os cuidados somáticos não podem prescindir da realidade psico-espiritual e vice-versa. Graças a isso, o serviço religioso ganhou espaço e significado no hospital. Os sacramentos, cm sua ação ex opere operato, perderam ênfase, e cederam espaço à fé e à evangelização, e estas incidem no doente e em suas atitudes de vida. A nova concepção de saúde, que inclui o bem-estar psicológico, incorporou a religião no âmbito da


saúde e da terapia. O fator religioso, como elemento profundamente influente na psique do doente, passou a ser parte integrante da atividade terapêutica. Esta colocação amplia a função do serviço religioso, mas sem diminuir a sua especificidade. Antes amplia e a reveste de novo significa. É a fé em dinâmica vital. Esta mudança de função do serviço religioso requer do capelão nova postura e preparação específica. No passado, qualquer sacerdote, em qualquer momento de sua vida, podia passar tranqüilamente da paróquia ou outra atividade ministerial para a missão de capelão hospitalar. Hoje, isto é, impensável, salvo inconsciente da realidade hospitalar e de suas exigências. Com o novo conceito de Igreja-Povo de Deus e Igeja-comunhão e participação, o sacerdote já não detém o monopólio pastoral, embora, como ministro ordenado, tenha alguns poderes ou funções exclusivas. Os leigos ganharam espaço, e entraram, de fato e de direito, na equipe de capelania. E não exercem apenas tarefas materiais, como levar os doentes à capela ou avisar o sacerdote de que algum doente deseja confessar-se. O leigo é envolvido na ação pastoral propriamente dita, com funções que, em muitos pontos, se igualam às do próprio ministro ordenado. Claro que também o leigo reverá ter preparação adequada, tanto teológica quanto prática. Não pode ser um agente improvisado, mas consciente e devidamente habilitado. Característica fundamental do serviço religioso são os valores da fé, tornados presentes e atuante no ambiente hospitalar. E a sua contribuição específica no hospital como um todo e na ação terapêutica, Disto não pode abrir mão. O agente religioso, ordenado ou não, deve ser pessoa de fé, vocacionada e consciente de sua missão. Se lhe faltar essa característica, não poderá integrar a equipe do serviço religioso. Nem lhe basta formação religiosa genética. Deve conhecer os aspectos religiosos implicado na realidade da saúde e da doença, da vida e da morte, e estar preparado para vale-se deles pastoralmente. Também não lhe basta formação teórica. Deve estar preparado para a ação, seja com o doente, seja com o pessoal, como também para dar sua palavra de esclarecimento diante do inúmeros problemas de ordem ética que envolvem o mundo da saúde. O serviço religioso não pode exorbitar de suas funções, como não deve abdicar delas, mas saber reivindicá-las inteligentemente. A animação do serviço religioso hospitalar requer criatividade e determinação. Sem isso, torna-se impossível imprimi-lhe a vitalidade transformadora que lhe é própria. O segredo para manter acesa esta animação fundamenta-se na consciência da missão e na preparação adequada. Todo o agente do serviço religioso deveria assumir como próprias as palavras do profeta Isaías: “o Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu; enviou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração, a proclama a liberdade aos cativos... a fim de consolar todos os enlutados... e dar-lhes o óleo da alegria em lugar do luto, uma veste festiva em lugar de um espírito abatido”(Is 61, 1-4). Sem vitalidade interior, fundamentada em fé autêntica e em esperança segura, é impossível realizar grandes coisas a serviço do Reino. O agente de Pastoral deve ser um apaixonado de Deus, como São Paulo, disposto a apostar tudo para a salvação do homem. A consciência da missão, porém, encontrará dificuldade pata se transformar em ação eficaz sem uma conveniente preparação teológica e pastora. Uma pesquisa realizada, alguns anos atrás, revelou que existe um relação íntima entre a realização pessoal do agente do serviço religioso hospitala e a qualidade de sua preparação específica. Só uma conveniente preparação teológica e prática, humana e funcional, põe o capelão ou o agente do serviço


religioso hospitalar à altura de sua missão. Sem isso, não será um bom ministro da graça de Deus, e acabará por sentir-se frustrado em sua missão. Todos sentimos que a capelania ou servi;co religioso hospitalar no Brasil precisa melhorar. Esta percepção já um grande passo. Aliás, é esta percepção que nos trouxe aqui. O encontro anual de capelães hospitalares, que já está se tornando rotina, deve engajar-se de corpo e alma nesta tarefa. Chegou o momento de tomarmos iniciativas práticas. A primeira, a meu ver, é a de monta um esquema de formação de pessoal especializado, com um curso acad6emico específico. E o caminho que a Igreja está seguindo em outros países. No Brasil,não faltam possibilidades para tanto. Cabe a nós assumir este desafio. Júlio Munaro, provincial dos camilianos no Brasil, e coordenado da Pastoral da Säude da Arquidiocese de São Paulo. Viver é conviver Não está nada fácil amar. Teremos que nos livrar de uma palavra que algum dia,, nos oi útil: libertação. Porque também a idéia da libertação foi capturada pelo domínio que nos aprisiona, o domínio da objetividade. Nossa vontade de libertação tornou-se mais que uma presa do repertório da sedução tecnológica de nosso tempo. Somos seduzido pela tecnologia porque ela encarna a promessa moderna de nos livrar da morte: a sofisticação tecnológica entre o homem e os elementos essenciais da vida, criando possibilidades infinita de comércio e de consumo (e com isso mascarando o tédio em que se transforma a vida tornada um fato banal), nos seduziu com a promessa de que poderemos viver sem a necessidade de representações para a morte. Um mundo de superfícies claras e lisas – sem fantasmas, sem medos, sem buracos negros: a tecnologia em suas mais avançadas manifestações, da cibernética à bioenegia - parece capaz de nos liberar desses fantasmas, de tudo o que é desconhecido, e nos colocar no caminho da pura exterioridade. Da pura objetividade. É assim que a vida se torna um fato banal, em vez da preciosidade e da graça divina que sempre representou para o homem. Pó um lado, iludimos nossas consciências da mote; por outro, banalizamos a vida, condição necessária para a ordem numa sociedade que, de fato, produz a morte como fato comercial o tempo todo , e progride a partir dela. A tecnologia, a liberação prometida pela tecnologia e a liberação moral que ela acarreta, possibilita que ampliemos indefinidamente o repertório de nossos gestos e os limites de nossos corpos até que nos acreditamos poderosos contra o medo. Nossas relações amorosas não mais sucumbirão ao tédio do cotidiano massacrante, ao medo da perda e da solidão: estamos aparelhados para fazer da convivência um eterno espetáculo de variedades. Assim, não precisaremos de nada: nada que não possa ser adquirido num bazar qualquer. Assim, não precisamos de amor e dos riscos, do outro e dos perigos ao contato com o outro, das estradas que o outro nos revela em direção ao novo e à vida – único poder real que possuímos não contra a morte, ma diante do fato inevitável que ela é, e diante de nossa pequena dimensão individual frente à morte. Assim, não precisaremos da ate, da música e da poesia. Nem da experiência mística, da magia, das utopias. Libertados do emaranhado de nossa subjetividade pelos avanços da tecnologia, estamos de todo desejo, fonte de angústia e de criação. A tecnologia não suprime o desejo – mas é versátil o suficiente para se colocar sempre diante do desejo e se oferecer como objeto de infinitas faces coloridas. E assim adaptar o desejo às suas pobres dimensões, Fazer do tempo um eterno presente. Um aqui e agora sem mais demandas, sem sugestões transcendentais.


Se o progresso das ciências do comportamento, dos costumes sociais e da chamada civilização caminha no sentido de fazer com que as relações ente os homens se tornem cada vez mais objetivas, tanto pior para nossas subjetividades. Tanto pior para o amor. O superhomem ideal deste final de século (e de milênio) seria uma espécie de pura exterioridade tudo nele deve ser objetivado nas formas do gestos compreensível, da palavra conveniente, da ação produtiva, do olhar decodificado. As relações objetivas são mais práticas, rápidas, eficientes e funcionai – ideais para as necessidades de desempenho do homem moderno. Liberado da sua subjetividade (não é esse o grande ideal, por exemplo, das psicologias behavioristas?), libertado de tudo o que é nele obscuro e confuso, de tudo o que a consciência não vigia, tudo o que é medo e angústia, carência e tédio, passado inútil e mal-digerido-liberadom portanto, da subjetividade e da possibilidade (apavorante) de encontro com a subjetividade alheia, o homem moderno poderá viver afinal diante de si mesmo. Uma espécie de observador de sua exterioridade, contemplando narcisisticamente seu repertório de técnicas de comunicação e produção de prazer sempre renováveis, sempre descartáveis para iludir o tédio das relações objetivas. Mas a subjetividade é mais difícil de se controlar do que parece. A única forma de relacionamento humano que vale a pena cultivar, a única capaz de nos ajudar a sobreviver ao tédio e à solidão é aquela onde existe espaço para sermos subjetivos. Nada a ver com a atitude “salve-se quem puder” que predomina nas formas de relacionamento modernosas, nada a ver com a atitude “defender o meu e que se dane o outro”, propagada na forma de amizade colorida que a própria indústria do consumo ajuda a tornar moda. Minha subjetividade, minha possibilidade de ser sujeito de mim, requer a morte do outro? Se for assim, então qualquer projeto de prazer compartilhado de libertação sexual, orgasmo total etc. deve mesmo se restringir ao campo da tecnologia e não ao campo do encontro, do que pode vir a ser o encontro e plena expressão subjetiva de suas ou mais pessoas. É claro que fica difícil falar em subjetividade na sociedade da obsolescência programada. É claro que parece impossível pensar em relações livres dos papéis objetivos a que estamos condicionados, numa sociedade de estatísticas e de exigência de plena normalidade, uma sociedade em que até as minorias devem se encaixar nos clichês que as tornem compreensíveis, classificáveis e passíveis de um lugar de pesquisa de mercado (uma forma interessante que se inventou para transformar toda diferença numa variação banal em torno da média, da moda, da norma). É claro que fica estranho se tentar ser objeto da própria vida e continente da subjetividade do outro, numa sociedade que programa a morte em larga escala diariamente, e tenta transforma-la num fato banal, somando orgulhosamente os números da produção da bomba de nêutrons ao Produto Interno bruto das grandes nações. Por outro lado, é por isso mesmo que a subjetividade se torna subversiva. Uma relação que permita a expressão da minha subjetividade me deixa irremediavelmente diante do meu desejo. Assim, fica muito mais fácil ajustar as melhores demandas do meu inconsciente às medíocres ofertas de prazer planejada pelos técnicos da indústria cultural e da propaganda do bem0viver moderno. Uma ralação que contenha a sua subjetividade pode transformar você num ser incômodo, uma espécie de sujeito incorruptível, impossível de ser pervertido pela tecnologia. Capaz de distinguir o essencial da vida e do desejo, das balelas que tentam lhe impingir como pobres substitutos dessas coisas essenciais que o progresso social vem tentando matar. Texto publicado originalmente no caderno “Folhetim”, da “Folha de São Paulo”, em sua edição de 8/11/1981.


Saúde comunitária – Aratiba, RS. A grande maioria da população brasileira está na obrigação de recorrer à mediação alternativa para ter um pouco de saúde. Por ocasião de um curso no Sul do País, fui convidado para conhecer, de 14 a 16 de outubro, uma experiência inédita de saúde alternativa comunitária em Aratiba, RS, a 36Km de Erechim. Pela novidade – e, quem sabe, dar idéias para outras experiências – vou transcrever o relato da experiência, apresentado no II Fórum sobre Religiosidade e Saúde Popular, de Passo Fundo, em novembro de 1990. Antes, gostaria de apresentar a comunidade de Aratiba. Aratiba é um município de 13 mil habitantes, dos quais 1.900 na sede municipal e 11.100 na zona rural. Esta é composta de 56 comunidades com capela, salão paroquial, campo de futebol e pista de bocha. Em relação à experiência, convém perguntar por que os trabalhadores assumiram o trabalho de saúde. Por causa dos problemas que os trabalhadores rurais enfrentavam para o atendimento à saúde, no início da década de 80, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aratiba iniciou um trabalho de conscientização e organização, formando uma comissão de saúde, com o objetivo de discutir nas comunidades a forma de resolver a questão. Após muitas reuniões e debates em todo o município, decidiu-se convocar os trabalhadores rurais para uma grande assembléia, que aprovou a criação e uma associação com a finalidade de começar a busca pelo direito de assistência gratuita. Assim, oi criada a ACHA– Associação Comunitária Hospitalar de Aratiba. Ao iniciar-se o atendimento no hospital da Associação, logo se verificou que somente isso não resolvia o problema da falta de saúde da população, já que ao hospital chegam os doentes para a cura. Percebeu-se, assim, que só o atendimento gratuito não era suficiente. Por isso, procuraram-se outras saídas. Inicialmente, foram criados conselhos comunitários de saúde, com a finalidade de discutir os problema nas comunidades, apontar soluções e leva-las para a CIMS – Comissão Institucional Municipal de Saúde. A criação dos Conselhos foi a forma encontrada para faze a população participar do Projeto de Saúde do município. Através dessa conscientização, as comunidades se organizaram para exigir a criação da CIMS, com a participação popular. Encontrou-se, no início, resistência das autoridades do município, que defendiam uma CIMS formada por representantes das entidades e um dos trabalhadores. Mas, nesse altura, a população já estava consciente de seus direitos, e exigiu a participação dos trabalhadores rurais pro regiões, como já se tinham organizado. Forçou-se, dessa forma, a prefeito a convocar a população e entidades para a criação da CIMS. Os agricultores conseguiram a participação de 20 representantes, que indicaram uma chapar e assumiram a direção do órgão. Com a direção da CIMS, se estava garantindo a direção da política de saúde município. Após esses passos da organização, a ACHA priorizou a elaboração de um plano de formação. Com o plano, as comunidades indicaram representantes para participar de um grupo de formação de agentes comunitários de saúde, com a finalidade de repassar conhecimentos de prevenção das doenças, primeiros socorros, uso de tratamento natural e educação para uma alimentação correta. Assim, formaram-se os agentes de saúde comunitária, os quais, além de aprender e repassar os ensinamentos para a saúde, têm a função de promover a discussão, nos grupos de famílias e nas comunidades, sobre a situação sócio-política e religiosa atual, criando a consciência de que a saúde é uma questão social.


Atualmente, é grande o grupo de lideranças formadas através da ACHA, garantindo, assim, a política de saúde no município e espalhando um novo conceitos e saúde, surgindo grandes lutas por direito à terra, à casa, preço justo, etc., entendendo-se que, para se ter saúde, se necessita de melhores condições de vida. Base na fé – O trabalho sem saúde alternativa comunitária exige muita fé, sendo a fé responsável pela realização de muitas curas. Durante os cursos, foram usados textos bíblicos, principalmente passagens de curas realizadas por muitas pessoas e pelo próprio Cristo, que fez a primeira cura pela terra e pela água (Jô 9, 6-7). Com isso, os agentes solicitaram a realização de cursos bíblicos para uma maior formação, com a participação de outros membros das comunidades. A população passou a vê as curas não mais como bruxarias ou ateísmo, mas como bênçãos, como práticas e ações com resultado positivos, resgatando a religiosidade popular e recuperando o saber do povo. O avanço da consciência criou a necessidade de se investir na formação da base, e esta se deu através de reuniões nas comunidades para repasse de ensinamentos de recursos caseiros, como conhecer e entender o próprio organismo, causas da doença e providências a serem tomadas. Além do repasse de conhecimentos práticos, criou-se o espaço para discussões políticas, e despertou-se o interesse para o conhecimento técnico. Além de reuniões nas comunidades, são realizados seminários de aprofundamento, assembléia para planejamento, avaliação, tomada de decisões e mobilização para conquista de direitos. Incentivou-se a recuperação da sabedoria popular, através de um levantamento, dos recursos para curas, pela população transmitidos pelos antepassados, com a finalidade de registrar esses conhecimentos, evitando-se a perda da sabedoria popular, no futuro. Com este avanço da população, há a necessidade de se buscar sempre mais conhecimento. Assim, a população força a ACHA a avançar em buscar de um novo modelo de saúde, não esperando solução apenas por parte dos profissionais. Atualmente, um grupo menor de agentes consegue atuar, por exemplo, no campo da homeopatia, então exercida só por médicos. Como a região é rica em ervas medicinais, aprendeu-se a extrair a essência das ervas para a composição dos remédios. No trabalho e atendimento às gestantes e aos recém-nascidos. Com isso, diminuíram bastante as internações de crianças. Para preencher os requisitos de um trabalho alternativo em saúde, em 1991, a ACHA promoveu um curso supletivo de auxiliar de enfermagem, num linha popular, dando formação técnica e política para os atendentes de enfermagem do hospital da ACHA, para outras pessoas que queriam aderir a essa linha e alguns agentes comunitários de saúde de Aratiba. A fim de garantir a continuidade da direção desse trabalho pelos agricultores, montou-se a seguinte estrutura: a assembléia geral, formada por 1.030 famílias associadas; 53 Conselhos Comunitários de Saúde, 210 lideranças que já passaram por cursos de formação da ACHA; 22 membros da diretoria; administração e coordenação do hospital da ACHA. Assim organizada, a ACHA caminha com os seguintes objetivos: a curto prazo, luta por assistência gratuita, formação para prevenção das doenças, atenção às estantes, conscientização e formação popular, assimilação de um novo conceito de saúde, acompanhamento aos agentes e comunidades, fé e reza popular, discussão técnica, política e social. A longo prazo, o objetivo é a mudança do sistema econômico-político-social. Christian dePaul de Barchifontaine, sacerdote camiliano, capelão do Hospital das Clínicas de São Paulo e coordenador da Pastoral da Saúde da CNBB.


O preço de uma vida A civilização ocidental parte do princípio, ético e lógico, de que vidas humanas não têm preço. Cada um de nós é fundamentalmente único, e qualquer perda dessa natureza é incalculável. O mínimo esforço é sempre válido para salvação, e tudo o que precisar ser feito nesse sentido é imperativo inadiável, em tal contexto. Isso não quer dizer que nossas normas deontológicas neguem a inevitabilidade da morte, algum dia e em alguma hora, e apenas defendem que, enquanto for viável, há que se lutar pela sobrevivência . Essa posição contrasta com sistema onde tudo é apreçado e apreçável, onde todos os produto dependem de regulação por mercados e onde as considerações econômicas constituem o motor fundamental das decisões. Fica, então, criado um conflito prático e comportamental, pois as coisas das quais depende o atendimento à saúde custam e, freqüentemente, muito. Novos antibióticos, novos recurso para diagnóstico por imagem e novos tipos de intervenção cirúrgicas, além de procedimentos que envolvem equipes constituídas por numerosos profissionais capazes, dedicados longamente às suas especialidades, encarecem cada vez mais a prática da medicina. Assim, tanto os cidadãos que exercem tais atividades, como os fornecedores de insumos para que as providências sejam viáveis, consideram necessária a devida compensação econômica das habilidades e investimento que fizeram em pesquisa, em aperfeiçoamento pessoal e em tempo roubado de ações mais prazerosas. A solução mágica de tantos países, calcada no fato de que isso deveria ser custeado por toda a coletividade,a caba comumente em situações comparáveis à do nosso Sistema Unificado de Saúde (SUS): A remuneração é insuficiente, particularmente quanto aos salários. Os vendedores de máquinas e de remédios defendemse, e estipulam mecanismos de acerto de remuneração, ao lado de outros truques que hoje tornam alguns fármacos bem mais caros, grama pó grama, que o ouro. E eles sabem como vender seus produtos, apelando até para a diminuição de produção para atender só os que podem despender; para eles não vale a história de que a vida tem preço, uma vez que, se alguém não pagar o que solicitam, o medicamento não vai estar disponível. Quem perde são as pessoas envolvidas no tratamento de pacientes e que ao podem ou devem abandona-los; quem mais sofre é a enfermagem, absolutamente indefesa em virtude de várias dificuldades que prejudicam a profissão, temendo-se, em muitos lugares do mundo e não só aqui, a extinção da categoria. Não temos a pretensão de indicar, nestas poucas linhas, a solução do dilema; todavia, seguramente, afirmamos que, numa sociedade capitalista, impõe-se atribuir à área da saúde proventos claramente suficientes, sem esquecer o indispensável apoio aos recursos humanos, desde que o atendimento é essencialmente serviço e não maquinaria. Vicente Amato Neto e Jayr Pasternak, médicos e professores universitários. Caminhos atuais da bioética no mundo No campo da atualidade bioética, chamamos a atenção para três abordagens diversas, três estilos de norma, sem exclusivismo. 1. Sínodo europeu, Roma em fins de 1991 – a declaração final do último Sínodo, apesar de dirigida especialmente aos europeus, oferece alguma matéria a nossa atenção. Diz notadamente: “A Igreja deve se guardar (no cumprimento de sua missão) de voltar atrás para formas do passado que, hoje, poderiam se revelar negativas para ela”. Isso vale no setor da Pastoral Sanitária. Sem destacar as obrigações estaduais (prementes no campo sanitário), o Sínodo pede: “Proceder-se-á com uma consciência


2.

3.

lúcida à introdução da economia de mercado e à livre empresa nas nações da Europa central e oriental. Orientar-se-ão essas normas econômicas para o bem comum”. Mais adiante, a Assembléia recomenda “que, todo ano, um dia ou uma semana da vida seja celebrada em todas as paróquias... O direito à saúde e, na medida do possível, seu restabelecimento, devem ser assegurados. A solicitude do conjunto da sociedade e da missão pastoral da Igreja devem exercer-se no tocante a todos os atingidos pela doença, notadamente pelas enfermidades característica de nossa época. Os profissionais a saúde devem receber uma formação no campo da moral e da bioética”. Em seguida, anuncia-se o Ano mundial da família para 1994. O estilo é de recomendação à consciência e de disciplina intereclesial, mas a norma vem pronta de cima. Projetos legislativos de bioética, no estrangeiro – Enquanto isso, os estados mais preparados pensam em disciplinar a matéria de maneira mais sistemática, por via legislativa implementável pelo direito, desta vez. Não é aconselhável apressar uma legislação imatura em campo tão delicado, sobretudo quando inexiste firme tradição de aplicação da lei e exagerada politização circunstancial do Legislativo. Na França, os pesquisadores, longe de se acharem fora da ética, reclamam uma lei de deontologia determinando suas responsabilidades perante a legislação comum. Três projetos estão sendo discutidos. 1) Uma lei garantiria o direito das pessoas: interdição de comercializar o corpo humano no varejo das peças de posição, anonimato das doações de órgãos, proteção ao patrimônio genético, proibição da locação de útero. 2) Uma lei regulamentaria as técnicas de fecundação in vitro, limitaria o uso das impressões genéticas e o uso do diagnóstico pré-natal (para evitar a seleção de bebês). 3) Uma lei disciplinaria a pesquisa e a experimentação. Em campo biomédico, pela lei Caillavet, de 1976, sobre os transplantes de órgãos, a rança inovou, mas está investigando e consultando bastante antes de engajar mãos adiante o futuro. Está influenciando também a Comunidade européia, que, previsivelmente, emitirá pareceres antes de impor qualquer regulamentação comum, ainda fora de seu alcance. Procure-se nesta perspectiva o que as democracias avançadas podem e devem admitir ou recusar, por lei, no campo bioético, minimizando as oportunas proibições. A matéria é notoriamente conflitual, sobretudo a respeito do estatuto do embrião congelado e da eutanásia, sem falar no aborto. A elaboração da norma é ,portanto, delicada, difícil, lenta, porque precedida de inúmeras discussões que tendem a reunir o maior consenso possível. Achara, lei muçulmana – Aplicada oficialmente nos países que se auto declararam islamitas (Arábia Saudita, Mauritânia, Paquistão, Sudão e Irã), está sendo ardentemente pedida pelo partido islâmico PIS na Argélia e por outros movimentos islamitas radicais no mundo todo. Escolhemos para ilustrar o gênero o caso da Mauritânia, citando o “Jornal Oficial da República Islâmica de Mauritânia” (n.ºs 608-609, de 29/2/1984). Lembramos previamente o contexto de intolerância, expresso pelo artigo 306: “Todo mulçumano culpado de crime de apostasia, ora por palavra, ora por ação, será convidado a se arrepende num prazo de três dias. Após


o qual, é condenado à morte como apóstata; seus bens serão confiscados para o Tesouro”. Agora, vejamos vereditos aplicáveis em relação à vida, manutenção e transmissão. Artigo 307: “Todo mulçumano maior de idade de um ou outro sexo, culpado de crime de adultério, será punido publicamente, se solteiro, pela flagelação de cem chicotadas e por um ano de xadrez.A pena de lapidação será pronunciada contra o casado ou divorciado. Se a melhor for grávida, esperar-se-á o parto antes de aplicar a lapidação ou flagelação”. Artigo 308: “Todo mulçumano maior de idade que terá cometido um ato impudico ou contra a natureza, com indivíduo de seu sexo, será punido de morte por lapidação pública”. Artigo 341: “Todo mulçumano maior de idade que terá voluntária e conscientemente consumido álcool será punido por uma flagelação de 14 chicotadas”. Roubos de objetos nos hospitais ou de verbas em instituições de previd6encia social não teriam sanções? O artigo 351 é taxativo: “Quem subtraiu fraudulentamente algo que não lhe pertencia é culpado de roubo, e será condenado à amputação da mão direita. Na segunda vez, será amputado o pé esquerdo. Na terceira vez, será amputada a mão esquerda. Na quarta vez, será amputado o pé direito”. A norma não se discute porque Alá a revelou diretamente a seu Profeta. Hubert Lepargneur, sacerdote camiliano, teólogo moralista.

E AGORA, DOUTOR? Perdão, Doralice. Na verdade, eu estava cego. Preocupado com os males do corpo, esqueci seu espírito, ainda mais doente. Como pude descuidar-me da alma se, naquele dia, quando você se obstinava contra seus pais, traía seu sofrimento? É o eterno engano dos cirurgiões, que palpam tumores, e não se lembram de que há um coração oculto vibrando em ânsia, sonhos e sofrimentos. Você tentou suicidar-se bebendo soda cáustica. Era o que tinha à mão na modesta cozinha onde sua mãe passava os dias. Fiquei imaginando que problemas tão graves a levaram, aos 16 anos, a desistir da vida. Que choques emocionais, conflitos de sentimentos, teriam ferido tão profundamente o cerne de sua própria existência, ainda tênue e indefinida? Por que você não respondia aos insistentes apelos de sua mãe? Porque? Procuraria saber, quando não houvesse mais perigo, e você estivesse livre das dores físicas. Fosse qual fosse o motivo, não seria tão grave assim. Você, chegando à idade adulta, veria como é banal e sem importância o que parece grave e assustador na juventude. No momento, precisava salvar-lhe a vida. Você tinha a boca, o esôfago e, certamente, o estômago queimados. Não conseguia engolir, babava. Era preciso fazer outra boca no abdome. Você não teria mais paladar, não conheceria o sabor dos pratos, não poderia beber água quando tivesse sede. Os alimentos seriam jogados diretamente no estômago. Sob o efeito do anestésico, você dormia serenamente. Lembro-me de que parei alguns instantes, o bisturi esquecido na mão, a contemplar seu corpo jovem, tão belo, e senti remorso, como vândalo a desfigurar suas formas perfeitas. Um traço de sangue riscou seu ventre. O estômago estava queimado e retraído. A princípio, pensei em alargar o


estômago. Passaria um fio pelo nariz, que seria apanhado através da abertura do estômago. Amarraria sondas cada vez mais grossas até dilata-lo completamente. Esperança vã. O esôfago estava fechado. Teria de retira-lo e substituí-lo por um pedaço de intestino. Uma ponta seria costurada na boca e a outra no estômago. Operação grave. Deveria abrir o pescoço, o tórax e o abdome. Era preciso retirar uma costela. O pedaço de intestino iria passa por trás do coração. Você necessitava estar bem preparada: corrigir a anemia e esterilizar os intestinos, destruindo os micróbios. Luta árdua, de seis hora. Quatro cirurgiões, dois litros de sangue, vários litros de soro. Tubos grosso de borracha furavam-lhe o peito, entre as costelas. Aparelhos de vácuo mantinham pressão negativa nos pulmões, garantindo a operação. Quando tudo ia se ajustando, você contraiu pneumonia. Tossia a todo instante. A sonda do nariz, que levava alimento além das costuras, e era sua garantia, saíram num acesso de tosse. Os ponto, forçados deram em abscesso. A infecção abriu a sutura. A comida não ia ao estômago, escapava pelo pescoço. Longos dias de penosos curativos, mas a fístula não fechava. Você precisava ser operada novamente. Três horas foram gastas para consertar as emendar e passar novo tubo. Tínhamos uma grande aliada: sua juventude. Em pouco tempo,você se restabelecia, tudo ia bem. De repente, nova dificuldade. A comunicação que se abria no estômago começara a fechar-se, mal permitindo a passagem de um pouco d’água. Alimentos eram retidos. Somente nova operação poderia corrigir o defeito. Pela terceira vez, você desfilou pelos corredores, adormecida na maca. Mais duas horas de cirurgia, anestesia, oxigênio, soros e transfusões. Nem parecia mais a mesma, quase caricatura do que fora. Magra, olhos salientes, rosto afinalado, destacando o nariz. E novamente você triunfou, resistiu, restabeleceu-se rapidamente. Curta alegria. A nova passagem começou a estreitar-s a pouco a pouco. Você precisava ajudar com a mão, comprimido com força o bocado de comida, para forçá-lo a descer. Por fim, só conseguia ingerir líquidos. Radiografias mostraram estreitamento fechando-se cada dia mais. Eu deveria operá-la pela quarta vez. Agora tudo era mais difícil. Foram horas de trabalho penoso. Tecidos duros, irreconhecíveis, atravessados por cicatrizes em todas as direções, terminada a operação, a passagem ficara ampla e fácil. Felizmente, tudo correra bem. Agora você engolia qualquer alimento sem dificuldade. O pedaço de intestino posto no lugar do esôfago desempenhava perfeitamente sua nova função. Os alimentos deglutidos passavam rapidamente ao estômago, sem dificuldade. Você começava a ganhar peso e força, recuperando os 12 quilos pedidos. Seis meses internada, quatro vezes operada, 30 radiografias, seis litros de sangue, muito mais do que possuía em seu corpo, dias e noites de cuidados e dedicação de médicos e enfermeiras, era o balanço sumário de sua cura. Apresei-me em dar-lhe alta, satisfeito pelo resultado do enxerto, e por vê-la retornar à vida. As minúcias da técnica, as complicações, o funcionamento do novo esôfago absorvia minha atenção. Ao despedir-me, pedi que voltasse dentro de três meses para novas radiografias de controle. Você, que tanto sofrera e raramente ria, deu-me o pr6emio do sorriso. Agradeceu, Foi embora. O êxito o caso animava-se a apresenta-lo num próximo congresso médico, como coroação final. Você, porém, reservara para si o último ato. Em sua breve existência, na pequena experiência de sua imaturidade, veio ensinar a homens velhos e calejados que é


inútil reparar o corpo sem lancetar também os abscessos da alma. Dias após haver-nos deixado, recebi chamado urgente para ir ao pronto-socorro. Você se suicidara, bebendo formicida. Ao afastar o lençol branco que a cobria, admirei-me de vê-la tranqüila, quase feliz. Desaparecera aquela tristeza infinita que eu atribuía ao sofrimento físico. Pequei sua mãozinha inerte, passei os dedos por seus cabelos úmidos, por seu rostinho ainda quente, como o fizera tantas vezes. Baixei a cabeça e, em profunda tristeza, pedi-lhe perdão. Perdão, Doralice: na verdade eu estava cego. Salomão A. Chaib, Médico, livre docente de Clinica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.