Economia da saúde Uma epidemia de cólera ensaia recepcionar, em junho, os 12 mil participantes estrangeiros da Rio-92. Uma epidemia em todo o Brasil. A cama já feita: o cinturão de miséria das áreas metropolitanas superpovoadas e sem defesa sanitária. É a chamada poluição da pobreza: falta de água encanada e de esgoto coletado. Essa poluição não dá foto nem voto: simplesmente mata. A falta de latina, agravada pela falta de proteína, mata seis crianças por dia na Grande São Paulo, cartão-de-visita da prosperidade nacional. A essa tragédia dá-se o rótulo escapista de “mal de verão”. Simples caso de desidratação. Pois que venha o mundo inteiro discutir a ecologia da pobreza em tempo de cólera. Em matéria de resgate ambiental, a prioridade brasileira não está nas árvores da Amazônia; esta nas crianças de São Paulo. Ou de Recife: 60% da população vegeta em favelas espalhadas pelos aguadouros da Veneza brasileira. Endereço predileto do vibrião colérico. Relatório da Organização Mundial da Saúde não deixa por menos: a cólera ameaça executar verdadeira devastação no Brasil. Em apenas mil dias, a infestação poderá Mattar 30 mil pessoas, hospitalizar 3,5 milhões, e alojar-se, sem manifestação imediata, em mais 30 milhões de brasileiros. Em tal cenário, tido já como verossímil, a perdas econômicas diretas seriam da ordem de US$ 12,5 bilhòes. O cálculo é da Secretária Nacional de Saneamento. Inclui gastos com serviços de saúde, quebras de horas trabalhadas, cortes de exportação de alimentos, encalhes de frutas, verduras e legumes, e perdas com o turismo receptivo. É bom lembrar que os prejuízos econômicos da falta de saneamento básico já batem ponto nos estragos da hepatite, esquistossomose, leptospirose e outras endemias urbanas e rurais. A falta de saneamento, segundo a OMS, responde por 65 das internações hospitalares no Terceiro Mundo. O Brasil programou-se para investir US$ 3,5 bilhões por ano em saneamento. Este ano, contenta-se com US$ 1,6 bilhões. A chamada economia da saúde é um novo ramal da moderna teoria do desenvolvimento. A matéria exige a releitura de Ronald Coase, 81 anos, economista inglês da Universidade de Chicago. O professor Coase é o último ganhador do Prêmio Nobel de Economia. Ele nos ensina a fazer do saneamento básico uma prioridade econômica em regime de cruzada nacional. Joelmir Betting, publicado na edição de 8 de março de 1992 do “Jornal do Commercio”, de Recife. Hospital universitário polivalente A estrutura de um hospital universitário apóia-se em três funções, uma das quais, a nosso ver, é mais crucial do que as outras.Precisa atender bem os pacientes, e isso vem em primeiro lugar. As demais atividades, representadas por pesquisa e formação ou aprimoramento de profissionais, só podem ser satisfatoriamente levadas a cabo se a primeira missão for cumprida a contento, pois não é viável investigação científica quando o atendimento afigura-se inadequado e só é cabível ensinar pessoa a atuarem com capacidade através de exemplos; caso contrário, vamos elevara dogma o famoso brocardo lusobrasileiro: faça o que eu digo, ma jamais o que eu faço. Temos a convicção de que o Hospital das clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, consegue, apesar de tudo e do confuso sistema de saúde vigente no Brasil, atingir as metas citadas. Nele há o melhor atendimento possível à espantosamente grande clientela, são executadas buscas de novos conhecimentos em nível
respeitável, de molde a merecerem divulgação por meio de publicações de reputação internacional, e sucede preparo ou aperfeiçoamento de recursos humanos. Isso causa orgulho para médicos, para todo o pessoal que no Complexo trabalha e para os usuários, desde que não valorizadas as opiniões de mal intencionados, por motivos políticos ou critérios injustos. Muitos recentemente, ocorreu nessa instituição algo inusitado: instruiu-se nela um capelão hospitalar. A área de atuação religiosa dentro dos hospitais é extremamente necessária e possui condicionantes próprios, por vezes complicados. Nos estados Unidos da América do Norte implantou-se, inclusive, disciplina especifica nesse contexto, ministrando cursos, em geral ecumênicos, e promovendo ação prática, tipo Resid6encia, dos serviços de apoio espiritual aos enfermos. Um componente acentuado, no mundo, a respeito das normas aptas a reger a efetivação de tais tarefas, situa-se em jamais admitir proselitismo quando atendidos os enfermos que, por suas condições, podem não se nortear por meio de livre arbítrio, capaz de permitir decisões quanto à troca ou escolha da natureza ou estilo de entidade religiosas. Sucedem também outras dificuldades, vinculadas à interação com o testamento médico e às orientações clínicas. Enfim, é um novo mister que vai ocupando seu espaço e, há pouco, vimos o Diácono Anísio completar sua preparação inteiramente no Hospital das Clínicas. Ele ingressou no Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde, dedicado especificamente a doentes, completou o diaconato em estágio como o dos profiddionais que trabalham no setor da saúde e , finalmente, recebeu o Diaconato na linda capela da instituição. Despontou assim mais um capelão especializado em amparo nosocomial, auspiciosamente demarcando mais um exemplo da capacidade do nosso abnegado e polivalente Hospital das Clínicas de levar à comunidade que serve colaboradores indiscutivelmente eficientes. Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak, médicos e professores universitários da faculdade de Medicina da USP. Uma solenidade inédita Há certos fatos que merecem ficar gravados na (quase cinqüentenária) história deste Hospital das Clínicas. A solenidade de Ordenação Diaconal, que teve lugar em nossa capela, no último dia 5 de abril de 1992, certamente é um deles. Numa manhã de domingo ensolarada, os som das vozes melódica do Coral HC, o camiliano Anísio Baldessin, 28, galgou um importante degrau na vida religiosa, sendo ordenado Diácono em cerimônia presidida por Dom Antonio Gaspar, Bispo Auxiliar de São Paulo. Cerca de 200 pessoas, entre funcionários, paciente e amigos, estiveram presentes na solenidade, compondo, juntamente com o coral, os agentes da pastoral, as voluntárias e demais pessoas envolvidas, um ambiente de harmonia e sensibilidade. Foi a primeira vez, desde a fundação da capela, em maio de 1945 (e pela qual já passaram 36 padres até hoje), que algo toa significativo aconteceu. O trabalho de caráter religioso no Hospital das Clínicas sempre foi considerado complemento importante das atividades aqui desenvolvidas. Ele tem por objetivo proporcionar apoio, conforto, solidariedade e orientação espiritual, não só aos pacientes como também às suas famílias e servidores do complexo. E nós, conforme palavras do Prof. Dr. Vicente Amato Neto, Superintendente do Hospital das Clínicas, “que formamos recursos humanos de múltipla
natureza, aprimoramos médicos e outros profissionais da área da saúde, agora contribuímos também para a formação de um religioso ligado à mesma área”. O Prof. Dr. Vicente Amato Neto sempre procurou apoiar todas as atividades religiosas no Hospital, desde o início de sua gestão como Superintendente, quando promoveu a reforma e recuperação de nossa “capelinha”, como ele carinhosamente a designa. A ordenação também foi motivo de emoção e orgulho para o Padre Leocir Pessini, o “Padre Léo”, que acompanhou e orientou o agora Diácono Anísio, nestes cinco anos especialmente dedicados a esta instituição. Para o Diácono Anísio o momento foi de grande satisfação, pois pôde, conforme seu desejo, dividi-lo com as pessoas que fazem parte de seu dia-a-dia, e que muito o auxiliaram par aa plena realização das atividades a que se propôs. Publicação no “Boletim do Hospital das Clínicas” da FMUSP, n.º 7865. Santo Domingo e Pastoral da Saúde Durante a 30ª Assembléia Geral da CNBB – Conferência Nacional dos bispos do Brasil, reunida em Itaici, SP, de 29 de abril a 8 de maiôs, seus participantes dedicaram boa patê de seu tempo ao estudo de temas relacionados com a IV Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, a ser realizada em Santo Domingo, na República Dominicana, na América Central, em outubro próximo. Houve proposições formuladas em trabalhos de grupos e por oradores que falaram no plenário; uma comissão de redação apresentou essas proposições de forma mais orgânica. Elas, agora, constituem subsídios para os delegados brasileiros a Santo Domingo. No intuito de animar, refletir e dialogar sobre as propostas que se relacionam diretamente com a Pastoral da Saúde, quero ressaltar alguns pontos do tema “Pela defesa da vida e da pessoa”. A sociedade contemporânea, também na América Latina, é ameaçada por aquela que pode ser denominada cultura de morte, pelas múltiplas formas de sacrifício da vida humana aos ídolos da riqueza, do poder e do prazer. “A vida humana, hoje, vem sendo desprezada e até eliminada, desde a concepção até as mais cariadas formas de destruição. O Deus da Vida exige o respeito e a promoção da vida em todas as suas formas e estágios” (Diretrizes Gerais da Ação Pastoral, n.º 20). A defesa da vida e da dignidade de cada pessoa humana é o principal serviço que a Igreja é chamada a prestar à humanidade. Os principais direitos a serem promovidos são: o direto à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe, depois de se gerado; o direito de viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a amadurecer a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e obter dela o sustento próprio e de seus familiares; o direito de fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente sua sexualidade. Como prestar esse serviço? Conviria refletir, a propósito, sobre alguns pontos. 1) Toda questão social gira em torno do mundo do trabalho. Sem verdadeiro equacionamento da política salarial, não há como encontrar solução para tão grave problema. É indispensável que se estabeleça a prática de um justo e eqüitativo salário. O salário infra-humano conduz à instabilidade social, à violência, à doença, à própria morte. Chame-se a atenção para a gritante desproporção entre salários exorbitantes e salários insuficientes, de miséria e de fome.
Temos que nos empenhar por criar mentalidade e estruturas – a partir da pastoral evangelizadora da Igreja – que atinjam as estruturas do poder, das decisões. 3) Treze anos depois de te sido proposta, a opção preferencial pelos pobres se faz mais urgente, porque o nível de vida dos pobres se deteriorou muito mais, após uma década pedida, a concentração da riqueza aumentou, e os parcos recursos de nossos países foram carreados para as nações ricas, sobretudo através dos serviços da dívida externa. Vai aparecendo, cada vez mais claramente, que os mecanismos da economia de mercado produzem “massas sobrantes” sempre maiores no Terceiro e também no Primeiro Mundo. O sistema capitalista (neo-liberal) torna necessário o sacrifício de vidas humanas par garantir seu modelo de desenvolvimento. 4) Quando se fala em defesa da vida e dos atentados contra ela (o aborto, por exemplo), não se pode esquecer do crime das esterilizações em massa, destruindo homens e mulheres como mediadores da transmissão da vida. É preciso denunciar a campanhas anti-natalistas nacionais e internacionais. 5) Há que dize uma palavra mais clara contra os “cultivadores” de entorpecentes, como fonte de lucro e mio de vida do mundo de hoje, sem condenar apressadamente os costume dos povos indígenas. 6) É necessário promover uma educação que crie consciência e a aprimore no sentido de valorizar a vida e a dignidade da pessoa humana. 7) Como condição inalienável da defesa da vida e da pessoa; há que criar e manter condições adequadas e acessíveis no tratamento da saúde e na prevenção das doenças, ainda mais hoje, diante dos espectros da AIDS, cólera, câncer etc. A Igreja há de assumir a Pastoral da Saúde como premência factual e como exigência evangélica (Mt 25,36). Que esses pontos, extraídos do subsídio “Contribuição para a IV Coner6encia Geral do Episcopado Letino-Americano” possam servir para nossa reflexão e ajudar na elaboração de nossas prioridades e pistas para ação em nosso trabalho, na nossa missão de pastoral da Saúde, em comunhão com a Igreja. Christian de Paul de Barchifontaine, sacerdote camiliano capelão do Hospital das Clínicas de São Paulo e coordenador da Pastoral da Saúde na CNBB. 2)
A morte asséptica Como a morte é experimentada pelos profissionais que se relacionam com ela em seu dia-a-dia? Neste artigo algumas conclusões de uma pesquisa realizada junto a enfermeiros de um hospital universitário. Minha convivência e coexistência com profissionais da área de saúde puseram-me muitas vezes frente ao problema de viver a morte. A expressão “viver a morte”pode ser entendida pelo menos de duas maneiras: podemos compreende-las como assistir ou sofrer a morte dos outros; mas também podemos entende-la como viver a nossa própria morte, enquanto vivemos. Parece que é um fato para o qual atentamo pouco: o de estarmos, ao mesmo tempo, vivendo e morrendo. Vive e morrer são correlatos. Enfrentar-negar a morte é mais visível nos profissionais da saúde, mas, entre todos nós, o sil6encio e a negação envolvem a morte.
Dentre os mecanismos de defesa utilizados pelo ego para lidar com a dor, temos a negação por atos e palavras e a evasão. Estes mecanismos puderam se identificados como formas pelas quais os profissionais de saúde lidam com experiências de mote. Os dados aqui relatados não são o resultado de uma pesquisa planejada; a amostra, oriunda da população de enfermeiros de um hospital universitário, não é uma amostra casual e representativa. Foi constituída por aquelas enfermeiras que atenderam a um convite para conversar sobre o tema morte. É, pois, um amostra de pessoas motivadas e sensíveis ao tema. Não pretendo fazer generalizações, mas descrever um fato.Não tenho elementos para falar de sua generalidade. A negação da morte Foram realizados três encontros nos quais pedimos que os participantes comentem experiências de morte. Pudemos elaborar uma síntese desses encontros, e desejo comentar dois aspectos que deles sobressaíram: a negação e o significado da morte. Enfrentar a situação de morte é sentido pela enfermeira como um comportamento que é esperado dela, inerente ao seu papel, ao passo que ao médico é permitido sair da situação, uma vez atestado o óbito. Queixam-se as enfermeiras dos seguintes comportamentos de evasão dos médicos. 1) o óbito é comunicado aos familiares pelo controle de leitos, seção administrativas que chama pacientes para internação ou avisa as famílias sobre altas, estados agravados, nascimentos e motes; 2) os médicos têm dificuldade de falar com pacientes ou familiares sobre quaisquer dados negativos: resultados maus de cirurgia, câncer inoperável, óbito; 3) se um paciente em hemodiálise é considerado desenganado, afastam-no da “máquina’e, apesar de saberem do mau prognóstico, mant6em uma dieta e medicação paliativa, mas não mais se aproximam de seu leito. Não acreditamos que a evasão seja mecanismo de defesa exclusivo dos médicos. Parece-nos que, entre eles, a evasão é menos encoberta e facilmente percebida – é, por isto, apontada como muito freqüente pelas enfermeiras, cujos próprios mecanismos de evasão (trabalhar em outros locais, por exemplo) não lhes afloram à consciência. Por outro lado, as enfermeiras identificam como comportamentos mais usados entre elas alguns que podem ser classificados com de negação por ação e por palavras. Foi freqüente neste grupo a verbalização da necessidade de “ser forte”, “trabalhar como se nada tivesse acontecido”, “trabalhar ativamente em outras tarefas”, “cuidar do resto da enfermaria”. Isto fica principalmente evidenciado – e neste abrande também a equipe médica – se o óbito se verifica na unidade de terapia intensiva ou na sala de cirurgia.A defesa contra a dor e o fracasso se instrumentaliza em ação imediata e compulsiva, ligar aparelhos, fazer massagem cardíaca, intubar etc. Encontrou-se também no hospital um sistema de comunicação, um jargão próprio da equipe de saúde, que permite, quando a mote não pode sr negada, uma série de eufemismo que ajudam a disfarçar. Hoje, entre médicos e enfermeiros, o paciente não morre: “vai a óbito”, “tem uma parada cardíaca”, é “SWAT negativo” ou, se está para morrer, é “paciente ora das possibilidades terapêuticas”, “está com síndrome de JEC” (Jesus está chamado). O preparo do morto, para se entregue à funerária, é dito “fazer o pacote”. O significado da morte
Para o profissional da equipe de saúde, a morte do paciente pode significar a ruptura de um vínculo ou um fracasso. Aos poucos, a formação humanista começa a penetrar as escolas de enfermagem, enfatizando o papel expressivo de enfermeira, nem como a relação de ajuda, como uma de suas funções. Para as enfermeiras comprometidas, com esta formação, a morte de um paciente é o rompimento de um vínculo, é a quebra de um elo. Mas, queixam-se elas, “não estamos preparados para isso”. “Quem dá apoio para enfermeira que vê a morte todos os dias?” “A enfermeira profissional se torna fria; não está preparada para se envolver”. O que se percebe é que as enfermeiras deste hospital sentem que não têm formação suficiente para poder lidar com situações que envolvem emoções mais profundas. Para o médico, a morte como ruptura de vínculo, é cada vez mais episódica na atual forma de medicina supertecnológica. A estrutura do macro-hospital não propicia vínculos com pessoas porque não internam pessoas: internam “casos”. A ruptura do vínculo médico-caso, quando ocorre morte do portador do caso, proporciona ao médico a vivência de um fracasso. A equipe de saúde tem por objetivo a luta contra a morte. A luta é incessante, e cada vez a equipe de saúde sabe mais. A tecnologia altamente sofisticada permite diagnósticos precoces, cura doenças antes consideradas incuráveis, transplanta órgãos, substitui vasos importantes, recupera paradas cardíacas (ressuscita), enfim, não permite que as pessoas morram em paz. Mas, às vezes, fracassa, com o fracasso, a impotência, a depressão, a negação, a evasão. Que hipótese podemos sugerir para esses comportamentos de negação da morte ou de ela ser sentida como um fracasso?A prática médica define-se em contexto mais amplos da estrutura social, onde se insere. A moderna medicina na tecnológica que possibilitou os avanços acima referidos no domínio das doenças significou também a transformação progressiva da medicina artesanal por novas modalidades de organização de seu trabalho. Já discutimos em outro trabalho a ética artesanal e a ética burocrática (1) na prática dos profissionais de saúde. As relações interpessoais foram possibilidades em outro momento. Hoje, não há vínculos com os pacientes – as relações são fragmentárias e impessoais. A ética artesanal é incompatível com a racionalidade da produção, com a ênfase na quantidade, com o foco na produção e não no produto do trabalho. O corpo distante Polack (2) focaliza o distanciamento em relação ao corpo, que esses processos tecnológicos introduziram. Testemunho deste distanciamento, os cursos, médios relegam, hoje, à segundo plano o ensino de semiologia: o médico novo afasta-se do corpo. Reportando-se ao dito atrás, não há vínculo a romper, o vínculo não se formou. O acima exposto é apenas um fragmento do real. Certamente o que ocorre no hospital universitário, de tecnologia muito sofisticada e onde as relações profissionais são altamente burocratizadas, é diferente do óbito em um pequeno hospital provado ou do óbito no domicílio. A morte é um fato natural e como tal é transclassista. Mas é também um fato social e cultural. Como fato social é estratificado, como ato cultural está coberto de valores e significados. A apreciação das dimensões cultural e social da morte,no contexto em que examinamos os fatos, permite compreender a negação e a alteração do significado – da quebra de um vínculo para um fracasso. As relações sociais, no macro-hospital moderno, são parciais e impessoais,isto é, estabelecem-se na base dos papéis complementares e não entre pessoas totais. A morte do paciente pode ser sentida como o fracasso no desempenho do papel profissional. Negar a morte é eximir-se do confronto com o fracasso. Mas, atrás dessa negação, há algo mais.
Dizem as enfermeiras: “Não são apenas os médicos e as enfermeiras que negam a morte; a nossa sociedade também nega”; “a morte é escondida das crianças: dizemos que os mortos estão dormindo, que viajam, mascaramos a aparência da morte etc.” Há, pois, pó parte das enfermeiras, consciência da negação em nossa sociedade. O que lhes escapa é a explicação para esse fato. A transformação das relações sociais nos hospitais (que afasta os profissionais dos moribundos) e o processo de negação da morte devem ser vistos como produtos de um mesmo contexto: a sociedade industrial capitalista. Caracterizam as condições de vida na nossa sociedade, com suas mudanças muito rápidas: a impessoalidade e fragmentação das relações humanas, a indiferença afetiva, a massificação e coisificação do indivíduo, o anonimato nas grandes concentrações urbanas; a solidariedade não é mais a solidariedade mecânica (por identificação) mas orgânica (com complementaridade de funções). Do ponto de vista psicológico, o homem contemporâneo é um homem em crise de identidade. O eu se organiza através da capacidade de construir seqüências. Da historicidade, ou seja, de se inserir em uma sucessão imaginária de momentos presentes, ponte entre o que foi (passado) e o que será (futuro). Na nossa sociedade de massas, com processo acelerado de mudanças, devido ao progresso tecnológico, é mais difícil a integração do eu, a constituição da identidade, já que esta construção necessita da relativa estabilidade de um tempo objetivo (sustentado pelo outro, pela cultura). Por outro lado, a identidade, quando construída, se vê constantemente posta à prova pela mudanças da realidade objetiva. Os projetos do que serei (a continuidade do eu no futuro) são abalados a todo instante, e a sucessão de momentos imaginados não tem mais um sereno projeto arquitetônico, tão firme quanto os momentos que foram (passado). A morte, nesse contexto, não é o momento tranqüilo que uma série de momentos já “experienciados imaginariamente preparou; a mote é como um vento que derruba um frágil castelo de cartas de baralho em precário equilíbrio (a trajetória da vida); ela é sentida como a interrupção de um processo e não como o fim necessário (desejado) de uma seqüência de momentos que a preparou. É, como a morte do outro é, pelo menos, parte da nossa própria mote, há a negação. Do ponto de vista sociológico, esta sociedade não tem lugar para os mortos: são seres que não respondem aos seus condicionantes – que não competem, não correm, não ligam para o tempo nem para o dinheiro. Os mortos são marginais do sistema a nos lembrar que, por mais que nos empenhemos no processo competitivo de luta por ter, possuir, vencer, um dia seremos um marginal um despojado. Não há como não encarar nossa projeção nesse “não ter”. Só há que nega-lo. Diz Áries (3): “A pessoa é tentada a admitir que o veto que atinge hoje a mote é um elemento estrutural da civilização contemporânea. O desaparecimento da morte na linguagem e nos maiôs familiares de comunicação pertenceria, assim como a prioridade do bem-estar e do consumo, ao modelo das sociedades industriais”. Hoje, quando se questiona a sociedade industrial capitalista, suas conseqüências e valores, é compreensível e não deve ser acidental este súbito interesse pela morte. Este interesse sugere uma ruptura do sil6encio imposto pela sociedade. A contestação da sociedade industrial começou por negar o que ela coloca como valores positivos; e agora reexamina também as suas próprias negações. Célia A Ferreira Santos, professora de EERP-USP e autora de “A enfermagem como profissão”, publicou este artigo na “Folha de São Paulo”, edição de 16 de janeiro de 1983.
AIDS e charlatanismo Para enfrentar terapeuticamente a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV),motivadora da inexoravelmente fatal síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), deixando de lado as afecções oportunísticas causadoras da mote, duas ordens de providências, até mesmo associáveis, afiguram-se fundamentais: a) utilização de medicamento ativo contra o vírus; b) uso de recurso para recompor a defesa imunitária abalada em virtude da ação do agente etiológico sobre os linfócitos T4. A gravidade desse processo mórbido e a existência de pouquíssimos fármacos, só parcialmente efetivos no que tange ao HIVB e exemplificados pelos AZT, DDC e DDI, sustenta apreensões e angústias, gerando condutas que se contrapõem aos irremovíveis preceitos científicos e irregular mercado de trabalho. Câncer, leucemia e outras enfermidades de há muito criam situações congêneres, mas sem dúvida a vigência do HIV e da AIDS deram nova e bem mais pujante dimensão às impropriedades em tela. É perceptível, de maneira cada vez mais evidente, que recomendações ilegais e inaceitáveis avolumam-se. Receitas advindas de farmacêuticos, de profissionais não credenciados e inclusive de médiuns tornaram-se comuns. Ervas, táticas de caráter psicogênico para estimular imunidade, formulações homeopáticas, produtos derivados de fungos, porções misteriosas, massagens, exercícios de visualização e proposições da medicina tibetana ilustram a parafernália estabelecida. É fácil perceber que,por vezes, devem ter vínculo com essas recomendações interesses lucrativos e abertura e amplos mercados de trabalho, no expansivo contexto da AIDS. Médicos, familiares, amigos e diferentes profissionais da área da saúde devem constituir retaguarda concreta para infectados ou aidéticos; por seu turno, psicológico e psiquiatras precisam ensina-los a entender que tratamentos obrigatoriamente dependem de respaldo científico, norteado por normas claramente definidas e incondicionalmente respeitáveis. Além disso, vale frisar que estudos relativos a seres humanos só podem ter luar em instituições credenciadas pelo Conselho Nacional de Saúde e após aprovação dos respectivos projetos por parte de Comissões de ética. Algo diferente disso não passa de criticável charlatanismo, digno de adequadas medidas coercitivas policiais, jurídicas e a cargo de Conselho de Medicina ou Farmácia. O autor do texto é o médico e professor universitário Vicente Amato Neto, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Igreja e pastoral da saúde Muitas pessoas se perguntam o que é a Pastoral da saúde e como se insere no contexto da atuação da Igreja no Brasil. No intuito de esclarecer, apresentamos, didática e objetivamente, a questão em dois grandes momentos: a ação pastoral da Igreja no Brasil, hoje (I) e a Pastoral da Saúde (II). I – O objetivo geral da ação pastoral da Igreja no Brasil, para o período 1991-94, elaborado na 29º Assembléia Geral da CNBB (abril de 1991) e aprovado pelo Conselho Permanente da entidade, em 28 de junho do mesmo ano, é o seguinte: Evangelizar com renovador ardor missionário, testemunhando Jesus Cristo, em comunhão fraterna, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, para formar o Povo de Deus e participar da construção de uma sociedade justa e solidária, a serviço da vida e da esperança, nas diferentes cultura, a cainho do Reino definitivo. Evangelizar é a palavra-chave. E o que é evangelizar? “Evangelizar é colocar a Boa Nova como fonte de esperança no meio de tantos conflitos que surgem no coração do homem e na sociedade desigual, impedindo a
realização do projeto de Deus”. (cf. Diretrizes gerais da ação pastoral da Igreja no Brasil 1991-94, Documentos da CNBB n.º 45, pág. 17). Ao desvendar os caminhos da evangelização (II parte), são elencadas seis dimensões da evangelização. “As seis dimensões adotadas como quadro referencial da Ação Pastoral, sem esgotar o mistério da Igreja, têm a função de mostrar, ao mesmo tempo, a variedade de aspectos e a unidade dinâmica que deve existir ente eles. De fato, elas se interpenetram e se exigem mutuamente” (n.º 75). E quais são essas seis dimensões? Linha 1: dimensão comunitária e participativa. Linha 2: dimensão missionária. Linha 3: dimensão bíblico-catequetica. Linha 4: dimensão litúrgica. Linha 5: dimensão ecumênica do diálogo religioso. Linha 6: dimensão sócio-transformadora. E onde se situa a Pastoral da Saúde? N a Linha 6, dimensão sócio-transformadora. Como entender essa dimensão? Ela engloba a presença da Igreja no mundo, no meio das sociedades, em que “ela deve agir como fermento na massa, contribuindo para que essas sociedades humanas se organizem em conformidade com as exigências e valores do Reino de Deus. Solidarizandose com as aspirações e esperanças da humanidade, é levada pela fome e sede de justiça a colocar-se a serviço da causa dos direitos e da promoção da pessoa humana, especialmente dos mais pobres, denunciando as injustiças e violências, para que possa surgir uma sociedade verdadeira justa e solidária” (n.º 101). Qual a abrangência dessa dimensão? Desenvolve-se, sobretudo, “em três áreas de capital importância para a presença do Evangelho na sociedade: nas áreas da educação, da comunicação social e da pastoral social” (n.º 104). Nesta dimensão, “a comunidade cristã situa-se e age profeticamente em áreas de fronteira”. A Pastoral Social apresenta várias ramificações, tais como: pastoral da mulher marginalizada, pastoral da terra, pastoral operária, pastoral do menor, pastoral dos pescadores, pastoral do migrante, pastoral da criança e pastoral da saúde, entre outras, além de organismos como Caritas, Ibrades e Ceris – Centro de Estatística Religiosa e investigações Sociais. Vejamos, agora, como entender a Pastoral da Saúde. II – O que é Pastoral da Saúde? É a presença evangelizadora da Igreja no mundo da saúde, através de três dimensões: 1. Pastoral da Saúde comunitária: popular, preventiva, curativa, integrada, educativa, transformadora e organizativa. 2. Pastoral dos enfermos: vivência da solidariedade junto aos doentes, quer a nível hospitalar, domiciliar ou comunitário. 3. Pastoral da Saúde institucional: que tem uma atuação política junto às instituições que cuidam da saúde do povo, tais como Ministério da Saúde, Secretaria Estaduais e Municipais de saúde e instituições de ensino na área da saúde (faculdades de medicina,enfermagem etc.), que foram profissionais da saúde.
E quais são os objetivos da Pastoral da Saúde? O objetivo geral é contribuir na promoção,prevenção e recuperação da saúde de todas as pessoas, dentro de sua realidade, para que tenham a vida em abundância que caracteriza a realização do Reino de Deus no mundo. Seus objetivos específicos são: fortalecer a conscientização sobre os direitos à vida e deveres de lutar por condições dignas de viver: terra, trabalho, salário justo, habitação, alimentação, lazer, transporte, educação, saneamento básico e participação no pode de decisão; ajudar o povo a ser sujeito de sua saúde (e não objeto); capacitar o povo para desenvolver ações básicas de saúde, formação de agente de saúde entre pessoas indicadas pela comunidade; apoiar a organização do povo na reivindicação de seus direitos; articular a saúde comunitária com instituições de saúde, movimentos e organizações que [promovem a vida; resgatar e valorizar a sabedoria popular, sua fé e religiosidade; centrar todo esforço na educação transformadora, a partir da comunidade, ob o critério de três dimensões: justiça, solidariedade e mística; preparar agentes de saúde para anunciar a Boa-Nova ao homem, diante do confronto do sofrimento, a doença e a morte; proporcionar assistência psico-espiritual aos enfermos, nas instituições hospitalares e a domicílio; relacionar-se com instituições (ministérios, secretarias, hospitais, escolas , editoras etc.) que exerçam atividades ou tomem decisões no campo da saúde, a fim de promover e defender a vida. Eis, em síntese, todo um horizonte a ser iluminado pela Boa-Nova. Como cristãos, temos o convite e o desafio para atuarmos com garra, coragem e criatividade, para gerar vida e saúde, vencendo a cultura da morte no compromisso coma cultura da vida. Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine, sacerdotes camilianos, Capelães do Hospital das Clínicas de São Paulo. Mensagem aos trabalhadores Subscrita pelas Comissões da Pastoral Operária e da Terra, pelo Conselho Nacional dos Leigos e Pastoral dos Pescadores, pelo Serviço Pastoral dos Migrantes, Caritas Brasileira e Pastorais da Mulher marginalizada, do Menor, da SAÚDE, da Criança, pelo Centro de Estatísticas Religiosa e Investigações Sociais e por Dom Luiz Demétrio Valentini, do Setor Pastoral Social da CNBB, foi divulgada a seguinte mensagem aos trabalhadores, por ocasião do dia 1º de Maio: 1Como representantes das Pastorais e dos Organismos do Setor Pastoral Social da Confer6encia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),neste Primeiro de Maio, nos dirigimos a todo o povo brasileiro. Queremos denunciar o agravamento da situação que está oprimindo o povo e apontar os motivos de esperança que estão nos animando na luta por melhores condições de vida. 2A crise econômica vem destruindo as condições de vida do povo. Hoje, 40% da população economicamente ativa (PEA) recebe um salário
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mínimo ou menos. A renda média dos trabalhadores, que, nos piores anos de recessão, 1982-83, teve uma baixa de 10%, em 1990-91, atinge uma queda de 19%. O desempregado assola o país. Aumenta a cada dia o número dos que trabalham sem carteira assinada. Cresce a economia informal, na qual se encontra,m aproximadamente 50% dos trabalhadores. O Governo Federal se submete ao FMI e às suas políticas de privatização e recessão. Sucateira serviços a que o povo tem direito por lei: educação, saúde, previdência social. Esse modelo neo-liberal de desenvolvimento exclui da cidadania grandes parcelas da população trabalhadora. Ele produz doenças crônicas e é gerador de morte para a maioria de nosso povo. Deteriora-se o sistema de saúde, chegando à beira do colapso. Prova disso, entre outras coisas, é a impossibilidade de conter o surto de cólera que se alastra por algumas regiões do país pelo vergonhoso estado de saneamento básico e de educação para a saúde de nosso povo. Além das mortes que causa, deixa milhares de pescadores e marisqueiros em situação difícil, uma vez que caiu o consumo dos seus produtos. A violência no campo toma novas formas: escravidão e migração crescente, além da repressão impune às lideranças. Em 26 anos, tivemos 1.861 assassinatos de líderes e trabalhadores rurais, mas apenas em 13 casos os assassinos foram condenados. Para esses casos, a justiça é extremamente lenta. No entanto, os juizes, em grande parte, estão sendo ágeis em decretar despejos de posseiros, mesmo de forma ilegal, como nos casos de ocupações antigas. A reforma agrária se inverte, e a concentração das terras aumenta. As migrações, se por um lado constituem uma busca de sobrevivência e da terra prometida, por outro lado revelam uma nova face da violência. Milhares de homens e mulheres cumprem, todos os anos, a rotina forçada de deixar para trás a família e a terra de origem rumo às regiões distantes, onde permanecem até oito meses a fio. A cada saída, aumentam as dificuldades e diminuem os rendimentos. A corrupção e a impunidade tomam conta do país. Numerosos escândalos envolvendo auxiliares diretos do presidente da República, ministros e altos escalões do Governo Federal, servem para indignar ainda mais o trabalhador que está desempregado ou ganhando um salário de miséria. A tudo isso, juntemos o descaso com que são tratados os menores em nosso país: o aproveitamento de meninas através da prostituição; o assassinato indiscriminado de jovens e adolescentes e a exploração da sua força de trabalho. Tanto nestes como em outros casos, a questão dos meninos e meninas de rua vem sendo considerada cada vez mais como caso de polícia, quando na realidade é fruto de uma situação sóciopolítica. O mais grave é que o quadro até aqui desenhado ocorre em nome da modernização brasileira, a qual, na verdade, está levando o Brasil a um claro sistema de apartação social. Na ótica dos trabalhadores, a modernização significa melhor acesso à alimentação, emprego, salário
digno, saneamento básico, saúde, casa para morar, terra para trabalhar, tempo para lazer, avanço tecnológico, democracia e soberania plenas. 10Diante dessa situação, reafirmamos o compromisso de continuar nossa luta. Encontramos sinais de esperança que nos animam e mostram que os trabalhadores podem dar uma grande contribuição para a solução de nossos problemas: - os agricultores que, apesar do desestimulo da política agrícola, souberam plantar e colher a safra deste ano: - os assalariados urbanos e rurais, que resistem na conquista e defesa de salários dignos; - a solidariedade dos trabalhadores do campo e da cidade,que se manifesta concretamente na relações de autêntica promoção humana, como: na comercialização direta, nas roças comunitárias, na organização comunitária para sobrevivência e desenvolvimento infantil,na medicina caseira e em outras formas alternativas de sobrevivência; - a luta heróica dos aposentados pelo reajuste dos 147%. 11De maneira concreta, neste Primeiro de Mais, conclamamos todos a assumir a Campanha “SOS – salário Mínimo”, que luta por um salário digno para o trabalhador brasileiro”. 12Que a celebração deste dia nos reanime a continuar unidos e firmes na luta pela construção de uma sociedade justa e solidária. Nossa Senhora,q eu soube denunciar os poderosos que oprimiam o povo, inspire nossa ação e fortaleça a nossa esperança. “Brasília, 1º de maio de 1992.” Responsabilidade católica no hospital A questão é muito freqüente para não ser respondida. Religiosos e religiosas assumem ainda a direção de muitos estabelecimentos de saúde no País e nem sempre os médicos que neles atendem são tão obedientes quanto eles no tocante às diretrizes da ética católica. Que fazer? Duas coisas: voltar os princípios para refletir e saber situar nosso comportamento no seu contexto real. Cada um é responsável pelo que diz, faz ou não faz, mas nem tanto pelos outros, ainda que subordinados de um modo ou de outro. Subordinados? É normal que a direção administrativa dum hospital ou duma clínica assuma plenamente as diretrizes de suas convicções ético-religiosas e deseje contratar apenas médicos imbuídos dos mesmos princípios de ação. Mas a direção administrativa não se confunde rigorosamente com a direção clínica, nem a consciência do contratado com a consciência do contratante, sem hipocrisia nenhuma. Cada um tem seu lugar distinto no organograma, sem negar que a maior convergência possível constitua uma meta não descartável. Posição análoga, ainda que um pouco diversa, é a da enfermagem: cada um segue sua consciência, mas existe uma subordinação da enfermagem aos médicos. Por discutida que ela esteja hoje, essa situação também é indescartável: existe uma equipe solidária,quando funciona, com um responsável pelas decisões. Cada um pode sair, mas não a qualquer momento nem sem condições. O médico é juiz da terapia ou cirurgia no caso concreto. Basta que haja uma possibilidade sobre muitas para que determinada operação seja tolerável ou aconselhável ou
evitável (entre dois males, escolhemos o menor), para que as outras pessoas, de fora não possam criticar ligeiramente ou radicalmente, salvo abusos qualitativa e quantitativamente chocantes, sem ambigüidade concebível. Dispomos para o Brasil de estatísticas consternadoras sobre as percentagens de ligaduras de trompas ou de cesáreas, que exprimem uma situação inadmissível.Considerando caso por caso, o juízo é mais delicado, deve ser mais reservado. O contexto pesa sempre, quanto mais numa situação em que a opção de contrato com médicos é restrita. Entre um médico perfeitamente de acordo com as normas da Igreja católico apenas de nome, a direção católica não hesita; mas uma escolha tão límpida pode ser menos freqüente do que se pensa. Não podemos tornar-nos inquisidores odiosos de outra época, ao fiscalizarmos aquilo que talvez ultrapasse nossa competência e, portanto, responsabilidade rigorosas. Esc6andalo público exige reação pública da pessoa ou entidade responsável aos olhos da lei ou do público; mas, entre o desejável e o proibido, quem vai medir aos centímetros a largura do tolerável? O que se pede a cada um é coer6encia consigo mesmo e esforço para moralizar o canteiro do mundo sobre o qual trabalhamos ou velamos, mas talvez o canteiro do mundo seja muito extenso para nossa capacidade real. Se forçamos a dose de vigilância, como vai ficar o mínimo de confiança no outro que sadias relações exigem? Resposta de mineiro? Mas quem pode decidir por outro numa linha de arestas como essa? Nossa moral deve ser tão humana quanto rigorosa, não mais rigorosa do que humana. Não vamos carregar sozinho o pecado do mundo. Entre o proibido pela ética católica, cabe também discernir, à luz da razão e do bomsenso, uns mais e uns menos. Esterilizar uma mulher (e vejamos sua idade), sem seu consentimento, e até seu conhecimento prévio, é de outra gravidade do que consentir numa ligadura a uma mulher sem marido, sem saúde, sem dente, sem trabalho... outro que o cuidar de muitos filhos. O DIU é normalmente abortivo, todos os DIUs, segundo certa avaliação. Outros peritos, a priori tão gabaritados quanto os primeiros, afirmam que certos DIUs, em cobre ou outro produto, seriam espermicidas, portanto não permitiriam a fecundação. Em questão de fato, a Igreja não tem carisma especial face à ciência; deve documentar-se junto aos peritos, e não impor uma solução intuitiva fora de sua compet6encia. Isso não nos impede de defender com argumentos a posição que achamos mais certas: a solução vale o peso dos argumentos que a fundamentam. Esses problemas concernentes aos inícios da vida vão-se prolongar por muito tempo. Reúnem-se doutos congressos a fim de provar que a Razão Natural e a Ciência apóiam as soluções eclesiais; pode ser. A “razão filosófica”, porém, não desfruta da mesma força convincente para todos os cérebros, por diversos motivos que não vem ao caso detalhar. Quanto à moral que brotaria da Ciência,nossa época é mais do que cética. Em diversos países, a prática (uso e abuso) do aborto convenceu ânimos hesitantes de que uma legislação muito permissiva era nefasta e condenável; a disputa vai prosseguir. Por nossa parte, fomos impressionados ao participar, no fim do ano passado, por três dias, de um seminário convocado por associações de feministas aborcionistas (com perdão da palavra de que elas não gostam, nem um pouco), tendo sido o único presente franca e declaradamente anti-aborto; esse tríduo envolveu mais de 35 profissionais do mundo da saúde, do direito, da política e do feminismo militante. Parecia um dado de consenso que o embrião não passasse de “parte do corpo da mulher”; esta poderia dispor dele como bem entendesse (sem atenção sequer à opinião do pai), ainda que estivesse também do consenso geral que o aborto é um mal, muito desagradável para todos. Acreditamos cada vez mais
que esse ponto delicado do aborto constitui uma pedra de toque do pensa e da prĂĄtica cristĂŁos no mundo moderno. Hubert Lepargneur, sacerdote camiliano, teĂłlogo moralista.