OS DEZ MANDAMENTOS DO REMÉDIO Os autores destes “dez mandamentos”, para quem receita ou toma remédio, são os drs. Max Grinberg e George W. Cunha, do Instituto do Coração, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Vale a pena conhecer esses “mandamentos”. Mais que isso, vale a pena segui-los à risca. I Amarás a tua saúde sobre todas as coisas Nem sempre o remédio é tudo. É importante também cumprir fielmente todas as orientações adicionais à receita médica. Se assim for recomendado, esquece o sal, diminui o açúcar, bebe apenas socialmente, para de fumar. Não deixes de fazer a consulta para revisão periódica de saúde. Enfim, amigo, cuida-te! II Não tomarás o seu santo remédio em vão Não tomes remédio por conta própria ao aparecimento de pequenos sintomas que desaparecem com simples mudança de hábitos, boa alimentação, vida regrada e prática de exercícios saudáveis. Evita auto-meditação, mania que pode virar doença. III Guardarás domingos e festas de guarda Descansa do trabalho e do excesso de responsabilidade. Repouso e lazer são ótimas vitaminas para combater o estresse. Custam mais barato e funcionam bem. Corpo e mente agradecem antecipadamente. IV Honrarás a receita Segue o que diz a receita. Não aceites substituições indevidas na farmácia, cuidado com a “empurroterapia”. Verifica o nome na caixinha, dosagem, quantidade, prazo de validade. Se houver dúvidas, pede sem constrangimento para falar com o doutor farmacêutico. Ele é a pessoa capacitada a te orientar e sua presença na farmácia é obrigatória por decreto-lei. Na hora de pagar, se achares necessário, confere o preço no “Diário Oficial”, que deve estar no balcão. Em casa, deixa a caixinha do remédio em lugar bem visível, por exemplo, perto do local das refeições, mas longe de alcance das crianças. Assume o compromisso sagrado de não esquecer, combine com alguém de casa mais lembrado para perguntar-te diariamente: “Já tomaste teu remédio, hoje?” Não suspendas o medicamento por tua conta. Em caso de reação adversa, comunica imediatamente ao médico. Certifica-te por quanto tempo deves tomar o remédio. Não economizes comprimidos para que a cartela ou vidro dure por mais tempo. Toda vez que terminares de tomar uma medicação, fecha a embalagem, lava a colher-medida, assim evitarás perdas, estragos ou contaminações. V Não matarás O medicamento que cura é o mesmo que pode matar. Não cries o hábito de indicar remédios. Uma sugestão leiga é arma perigosa e a vítima pode ser o teu amigo. Com arma não se brinca, o tiro pode sair pela culatra. Só médico tem esse porte de arma para legítima defesa da saúde e está devidamente habilitado para seu correto uso. VI Não pecarás contra a castidade Não saias por aí seduzindo alguém para caie n tua receita. Resiste à tentação de cantar as pessoas para que tomem exatamente os teus remédios. Só porque oram ao teu consultório, tu não te diplomaste. Não te consideres autorizado a receitar só porque a crença popular diz que de médico e louco todos têm um pouco. Evita a ocasião de pecado. Afinal, dizem que o inferno está cheio de pessoas bem0intencionadas, que só querem ajudar...
VII Não roubarás o tempo do médico Quando ores à consulta médica, sê prático. Conta objetivamente ao teu médico sobre o que tomaste e o que estás tomando, efeitos colaterais e se costumas cumprir à risca o que te é recomendado. De preferência, leve uma listinha dos remédios e junte os últimos exames e receitas. Sê honesto, evite furtar o espaço de outro cliente, se não pretendes tomar o que te vai ser receitado. VIII Não levantarás falso testemunho Jura sempre falar a verdade e somente a verdade para o teu médico, que não é sacerdote, mas é confessor. Não venhas com conversa de que o medicamento não faz efeito, só porque não o tomaste direito. Não ponhas a culpa no marido que não comprou o remédio, na esposa que não avisou na fora certa ou no médico que não explicou direito. IX Não desejarás a receita do próximo Receita é como escova de dentes: cada um tem que ter a sua. Uma pessoa possui um organismo completamente diferente da outra. O que é bom para teu conhecido não servem de modelo só porque, um dia, sentiram exatamente a mesma coisa. Sem falar que muitos remédios não devem ser tomados junto com outros. Lembra-te de que eles podem causar alergia, dor de estômago, náuseas, manchas na pele e com certeza, anemia... no bolso. X Não Cobiçarás as coisas alheias Muita gente fica de olho nos regimes de emagrecimento instantâneo, vitaminas estrangeiras que combatem falta de memória, cansaço e envelhecimento cremes eliminadores de celulite, remédios milagrosos de certas plantas. E quem não gostaria de se beneficiar deles? Mas será que funcionam mesmo? Uma boa dose de credulidade nunca fez mal a ninguém. Antes de experimentar, pergunte qual a opinião de teu médico. Lembra-te de que pode ser apenas um modismo, sonho, passageiro, como chuva de verão.
FRATERNIDADE NA VIDA HOSPITALAR 1. Relacionamento humano No âmbito do relacionamento humano, uma das condições necessárias para que tudo corra bem é a tão propalada humanização. Assim, temos uma série de orientações para que a humanização se desenvolva e amadureça. Entendemos por humanização no hospital o tratamento de todo o pessoal de trabalho, com muito respeito, justiça e dignidade, de modo que, sentindo-se bem, trabalhando em harmonia entre si, estando satisfeito, possa servir os doentes com mais desembaraço, alegria e, consequentemente, o desempenho será melhor. Quando as pessoas se relacionam bem, têm a satisfação de se encontrarem, trabalharem juntas, forma-se um clima propício ao bom entendimento e as forças se multiplicam. Forma-se uma atmosfera familiar, descontraída e participativa. Os sorrisos transparecem fáceis, e as animosidade ficam ausentes. É o que afirma um funcionário: “estou solicitando apenas o que tenho certeza de que vocês pediriam se nossas posições fossem trocadas. Então, tratem-me como gostariam de ser tratados, se vocês vestissem o rótulo de “empregados”. Fazendo assim, uma condição mais humana substituirá outra mais estereotipada, ou seja, a condição de pessoa no lugar da de empregados. O local de trabalho e as pessoas que nele atuam é humanizado se forem satisfeitas as necessidades psicológicas e sociais dos participantes. Se as pessoas se sentem realizadas e felizes de estar juntas, de trabalharem unidas, não só o rendimento é maior, mas sentemse valorizadas. Ao contrário, num ambiente onde as animosidades são freqüentes, as
pessoas não são respeitadas em seus direitos, crescem a desunião e o descontrole das atividades. Uma das formas de integrar o pessoal de trabalho é criar momentos de encontros descontraídos, através de comemorações religiosas ou de datas significativas. II – Relacionamento evangélico A conviv6encia fraterna e mais exigente que a humanização, fundamentada sobretudo na justiça, que é constituída por algo mais, que é o amor. A amizade é um bem importante no viver do ser humano, mas o amor cristão tem muito maior profundidade, exige abertura e doação para com todas as pessoa, até para com os inimigos. Lembremonos das palavras de Jesus: “Ouvistes o que foi dito: “amarás o teu próximo e aborrecerás p teu inimigo”. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem. Deste modo sereis filhos do Vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,43). Esta é a perspectiva cristã: “ama o próximo como a ti mesmo”. É a abertura de coração para com todo, doentes e funcionários, católicos e não católicos, para formar um ambiente de compreensão e fraternidade. Essa é também a atitude exigida para quem quer e sabe viver num mundo pluralista e bastante secularizado. Assim agiam os primeiros cristãos observados pelos pagãos: “veja com ele se amam!”. Uma das coisas mais difíceis, num ambiente hospitalar, é a comunicação e ajuda entre as classes sociais. O mundo científico e técnico prima pela separação e isolamento das classes: existe a sala dos médicos, as enfermeiras, o lugar próprio para o pessoal da limpeza etc. essas diferenciações culturais, profissionais, financeiras, necessárias para o desempenho das diversas funções hospitalares, podem tonar-se centros de egoísmo e de interesses classistas, onde a convivência fraterna, a abertura, a comunicação e a fraternidade são rompidas. As pessoas não se sentem mais aceitas, valorizadas e amadas, mas diferenciadas e até desprezadas. A vida fraterna é quebrada. É preciso superar esses entraves de puros interesses financeiros. A pessoa humana é o valor primário e central. Sem vida comunitária, não há Igreja. Gosto muito da afirmação do Padre Afonso Pastore: “O homem caminha para o encontro existencial com Deus na fraternidade total. O diálogo deve ter em mira e perseguir essa vocação profunda do homem. É diálogo o que deve levar ao encontro de Deus na comunidade fraterna. Um Deus sem comunidade não é Deus de Jesus Cristo, e uma amizade sem Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo não é comunidade do Reino de Deus”( A palavra redescobre a vida, Edições Louva-a- Deus, 1990, pág. 116). Talvez esse seja o principal motivo por que Deus está tão distante do mundo do trabalho. A concorrência e a competição são a rejeição da fraternidade. Ao invés do amor recíproco, é oficializado o comportamento do “quem pode mais chora menos”. Por que o trabalho com funcionários, no hospital, é tão difícil e pouco participativo? A vida em abundância que Jesus promete não é uma vida em comunidade fraterna? Não se entende Jesus senão numa vida comunitária. Falar do amor a Deus e ao próximo, que é o primeiro e maior dos mandamentos, é viver uma experiência desse amor no dia-a-dia. Caso contrário, o cristianismo torna-se um ensino bonito, mas não passa de uma idéia. Firmino W. Pasqual é sacerdote camiliano, capelão da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
INTERPELAÇÃO SOCIAL DA ÉTICA MÉDICA A reflexão deste breve ensaio nascem de um contexto latino-americano e se alimentam em concepções cristãs. Sua finalidade é, em grande linhas, colocar a pergunta sobre o social na ética médica. De fato, a ética médica parece estar mais freqüentemente pensada e aplicada ao nível das relações médico-paciente, dentro das fronteiras hospitalares. Seu ponto de encontro com o social está, sem dúvida, muito desenvolvido nas implicações jurídicas da prática médica. Chega-se a confundir, às vezes, a própria ética médica com a deontologia (legal0 da prática médica. Entretanto, a dimensão parece estar menos presente no eu estatuto específico enquanto ética. Buscamos então recolher aqui alguns elementos metodológicos em vista de uma ética médica que resgate a dimensão social em sua própria construção ética. A REALIDADE SOCIAL: UM PONTO DE PARTIDA. Para uma releitura da ética médica na América Latina, um ponto de partida indispensável é a consideração de seu contexto social. Surpreendemente, esse contexto não se desenha apenas com as cores da nobreza. Grandes e sofisticados centros hospitalares se concentram em cidades como São Paulo, Rio, Buenos Aires, além de outras menos conhecidas. Ali se desenvolvem pesquisas avançadas nos campos mais atuais da biomedicina e reúnem condições para a aplicação técnicas médicas ao mesmo nível dos importantes centros médicos do Primeiro Mundo. O valor das conquistas científicas que isto representa deve ficar muito claro. E que fique também claro que as possíveis críticas à ética médica a partir do mundo dos pobres não significa renunciar à cientificidade e ao progresso. O ponto crucial do contexto começa exatamente pela disparidade entre os “mundos” sociais de ricos e pobres, que simplesmente divide as chances de vida entre as pessoa. Este fato tem uma incidência direta nas questões do mundo médico-hospitalar e abre o caminho para questões agudas no campo da própria ética médica. Não é possível ter uma idéia mais exata desta disparidade sem falar em números e estatísticas que os maios de comunicação não hesitam em divulgar. Os números da pobreza no Brasil, por exemplo, indicam que cerca de 33% de sua população está sobrevivendo com um salário mensal abaixo de US$ 50 ( cinqüenta dólares), isto é, um salário de indigência. O resultado imediato é a fome e a doença, com sinais indisfarçáveis no seu próprio corpo já em 1989 havia cerca de 13 milhões de brasileiro maiores de 18 anos com seu peso abaixo do normal. Esta situação não é obra do acaso. As políticas de saúde na América Latina, de modo geral ( exceto Cuba), obedecem a um sistema político e econômico em que a vida e a saúde da população não são uma prioridade. Conforme uma leitura teológica da libertação, elas estão inseridas em um “sistema” causador de morte para grandes maiorias. Diante deste quadro, emerge uma questão de fundo sobre a relação entre indecência social e ética médica. Trata-se de uma questão metodológica que tem, por sua vez, uma resposta implícita, segundo a forma de se conduzir a ética médica. Um pressuposto freqüente é assumir os campos da ética social e da ética médica como perfeitamente separáveis. Eles se tocariam apenas desde o ponto de vista material, como no caso de pobreza extrema que gera doença e morte, ao mesmo tempo que impede o acesso aos recursos médicos-hospitalares.
Deixando de lado uma discussão sobre a formalidade específica de cada um desses dois campos éticos, podemos nos concentrar melhor sobre alguns aspectos da dimensão social da ética médica. A QUESTÃO SOBRE O SUJEITO A experiência amarga dos pobres no campo da saúde faz levantar uma primeira questão ao conjunto da ética médica. Que qualidade pode ter uma ética médica ao simplesmente desconhecer a discriminação brutal com que as práticas médico-hospitalares envolvem as pessoas? E que vitalidade teria uma ética médica que se mostrasse incapaz de ao menos colaborar para uma transformação das disparidades? Estas questões são mais profundas do que à primeira vista transparece. Elas se desdobram em muitas outras e tocam em duas dimensões extremamente importantes. Uma diz respeito aos sujeitos implicados na ética médica, e a outra, às estruturas sociais em que se dão as relações entre tais sujeitos. A pergunta sobre os sujeitos implicados na ética médica é um assunto antigo e em grande parte conhecido. A história da ética médica desde o juramento de Hipócrates, mostra claramente uma centralização na pessoa do médico. O outro sujeito, o doente , entra como um “paciente” associado a uma relação paternalista , humanitária ou autoritária, em que a figura central é sempre a do médico. Chega-se a transformar a ética médica em deontologia médica, entendida, como um código a ética e as leis civis, muito voltada para a defesa das conveniências e interesse de classe dos médicos. Os tempos atuais têm recuperado a importância do doente como sujeito nas relações, especialmente no processo de tomada de decisões. Mas, embora isto já seja um grande avanço e uma conquista a ser garantida, é, ao mesmo tempo, cisto como apenas meio caminho andado. Viktor Von Weizacker, um autor da década de 1940, já tecia críticas interessantes neste sentido . Santo Spinsanti resume sua contribuição em três pontos principais: “tem caráter ideológico (isto é, mascara e justifica as relações de poder como são exercidas concretamente na sociedade e na profissão)”; “foi historicamente ineficaz para prevenir abusos gravíssimos, como acontece sob o nacional-socialismo”; “traz o debate sobre a humanização da medicina para um nível muito superficial, sem atingir a raiz dos males da medicina”. Sua proposta é partir de uma crítica epistemiológica em que reexaminam as bases antropológicas da medicina e, consequentemente, da ética que a rege. Explora, em seguida, o potencial psíquico do ser humano e as diversas dimensões que compõem sua integridade. No contexto em que vivemos e pelas sensibilidades teológicas que desenvolvemos, estas observações se mostram mais do que simpáticas. Mas, a partir sempre da experi6encia amarga dos pobres, a descoberta do sujeito-doente na ética médica caminha mais rapidamente adiante. Embora reconheça a importância da parceria da medicina com a psicologia para descobrir a potencialidade do sujeito na superação da doença e da morte, os pobres levam a considerar os sujeitos nas relações macro-sociais. A questão passa do sujeito-indivíduo para os sujeitos sociais, grupos e classes de pessoas que surgem na relações médico-sanitárias, carregando em sua saúde conseqüência muito negativas de uma rede de relações sociais. Então a fome passa a ter cor na pele das pessoas, e muitas doenças passam a ter sua classe social. A consideração dos sujeitos sociais na ética médica a induz a recuperar sua força crítica dentro dos processos sociais mais amplos em que se insere; pode
também ajudar a ética médica a superar uma visão míope que tornaria o corpo médicohospitalar impossibilitado de receber e acusar as discriminações sociais mais absurdas em que atua. O DESAFIO DAS ESTRUTURAS SOCIAIS A recuperação dos sujeitos (pensados como indivíduos ou como grupos sociais) na ética médica chama a atenção para as estruturas sociais que configuram e permeiam as práticas médico-hospitalares e o mundo da saúde. Estruturas sociais são formadas por um conjunto de instituições e práticas no plano nacional e internacional e que orientam ou organizam a vida econômica, social e política. Daí resulta uma “ordem social” que não é, por esse fato, necessariamente justa. A experiência latino-americana das estruturas no campo sanitários e médicohospitalar é desastrosa. Já fizemos notar que os fatos mostram como a “ordem social” não prioriza a vida e a saúde de todos. Neste pressuposto – que, pelo limites deste ensaio, fica mais sugerido que demonstrado – se coloca a questão sobre a relação entre as estruturas so ciais injustas e a ética médica. Em uma visão metodológica, parece correto, por um lado, reconhecer que a ética tem sua especificidade segundo os distintos campos em que se aplica. Assim, se poderia concluir que a ética médica não pode ser confundida com ética no campo comerciário, político, econômico. Seriam campos materiais distintos. Mas, por outro lado, a vida humana não acontece de forma tão fragmentada, de modo que fosse possível isolar-se de ma inter-relação entre os diversos “campos”. Quando a medicina deixa de tratar simplesmente de doenças e passa a cuidar de pessoas doentes, depara-se com sujeitos que carregam em suas vidas a rede de relações sociais em que vivem ou adoecem. A experiência de vida dos sujeitos conjuga os “campos materiais” que a metodologia distingue. Os distintos sistemas de ética, mesmo quando centrados sobre os “objetos”, contornam este faro, dando importância às “circunstâncias” no juízo ético. A partir de uma visão dos “sujeitos”, a ética médica encontra neles, implicada em suas condições de saúde, a organização social que promove e condiciona suas vidas. Tirarlhe a capacidade de perguntar sobre a produção social da saúde e sobre as raízes sociais das doenças seria reduzir a ética médica à ingenuidade. Consequentemente, cabe à ética médica chamar também a atenção dos médicos e profissionais de saúde sobre as estruturas sociais e seus desafios éticos mais amplos em suas práticas biomédicas. Assim, não é possível continuar sendo ética uma ética médica que não se preocupe com a injustiça social que a rodeia. Porque, de um modo ou de outro, tal injustiça também a invade e permeia. O Código de Ética Médica publica em 1988 no Brasil parece captar em parte esses conceitos, ao proclamar que “a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza”. E na apresentação do Código, a “saúde do ser humano” não é definida simplesmente como ausência de doença, mas como vida ‘resultante das adequadas condições de alimentação, habitação, saneamento, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso a posse da terra e acesso a serviços de saúde”. Definitivamente, é uma visão que insere a medicina, e consequentemente a ética médica, no conjunto da organização social. E quem conhece a precariedade injusta das condições sociais de saúde, percebe imediatamente o desafio ético desta inserção. ÉTICA MÉDICA: UM COMPROMISSO SOCIAL. O alargamento da questão dos sujeitos na ética médica traz consigo a exigência do compromisso social. Por ética médica já não e entende apenas o dever ser da ação do
médico sobre o paciente, como também não se reduz à relação mútua entre médico e doente, estendendo-se ao máximo a seus familiares. Além dessas relações, que são importantes, se colocam as relações sociais mais amplas pelas quais médicos e doente se encontram com os “outros” da grande sociedade. A ambigüidade ética de cirurgias consideradas “de luxo” seria um exemplo de como pesa um compromisso ético sobre a própria relação médico-paciente. Esta observação pressupõe uma posição metodológica mais de fundo, que a teologia da libertação chama de “lugar social” a partir de onde se reflete a ética médica. Quando este “lugar” for exclusivamente o individualismo dos interesses pessoais, rompe-se o vínculo de uma ética médica com o social. Igualmente, se este “lugar” for apenas o conjunto de pessoas que têm acesso aos recursos médico-hospitalaes e às condições básicas de saúde, a ética médica perde sua função de instância crítica e se torna reduzida às casuística de grupos e pessoas privilegiadas. O “lugar” a partir de onde se colhe um critério ético fundamental, numa perspectiva de libertação, é exatamente o mundo dos pobres e excluídos. A partir daí se podem descobrir as tarefas mais urgentes requeridas pela vida e saúde e se pode passar a outros níveis de relações. A partir de uma visão de libertação, pode-se, portanto, postular a reflexão da ética médica em ao menos três diferentes níveis que naturalmente se cruzam: *um nível macro-social, em que a saúde e a doença possam ser percebidas dentro da trama social que as produz e, ao mesmo tempo, filtra o acesso a seus recursos. Consequentemente, nascem tarefas éticas de transformação para os sujeitos implicados; *pode-se distinguir também um nível que chamaríamos de midi-social. Por ele são compreendidas relações biomédicas intermediárias entre o macro-social e o interpessoal. Elas se dão ao se constituírem, por exemplo, grupos médicos, instituições de promoção da saúde e instituições hospitalares; *por fim, naturalmente o conhecido nível micro-social que diz respeito às relaçòes interpessoais entre o médico, o doente e seus familiares. UMA QUESTÃO DE HORIZONTE É sábio que não há ética sem um horizonte antropológico de sentido para a vida humana e suas relações. Mais particularmente, não se pode postular um compromisso social na ética médica sem se fazer referência a concepção básicas sobre a vida em suas relações sociais. A própria negação de qualquer vínculo social também requer um correspondente universo de sentido que a ampare. De fato, a ética médica, como todas as instâncias, se nutre de convicções de fundo que as sustentam. Numa perspectiva humanitária e cristã, o compromisso social na ética médica encontra uma primeira base no reconhecimento da condição existencial humana, que genericamente é igual para todos nós em suas riquezas e precariedades. Isto convoca todo o gênero humano a um “humanismo solidário’, que hoje, pelos avanços da tecnologia, se estende ao conjunto dos seres. Desprezar o “outro” é de alguma forma desprezar a si mesmo. Abandoná-lo é abandonar-se também, Assumindo esta concepção, tornar-se um desafio ético superar o individualismo, a marginalização, a discriminação entre as pessoas. Mas tal desafio se torna ainda maior na ética médica, quando se evidencia que a prática humanas se transformam em sistema de exclusão e, ao menos indiretamente, em sistema de produção de doença. Então, o ‘humanismo solidário” se vê desafiado a ir além das relações interpessoais e intra-hospitalares.
Entretanto, dentro de uma visão cristã da ética médica, deve-se acrescentar outra base que certamente constitui um passo mais largo. Em meio às contraposições que contradizem todo humanismo, a proposta cristã para a ática é a gratuidade, o amor. A convicção cristã afirma que, no dinamismo da gratuidade, se encontram as respostas para as grandes questões da vida, da doença, do sofrimento e da própria morte. Uma base ampla, vaga, geral? Pode ser . mas esta tese é fundamental para que uma ética possa ver as pessoas, e especialmente os pobres, para além do clamor por mera justiça distributiva na “ordem social”. A gratuidade é indispensável para que eles possam ser vistos com olhos de um amor que se traduz em expressões sociais. Márcio Fabri dos Anjos, sacerdote redentorista, diretor do Alfonsinum e professor de Teologia Moral. O CORPO – ESSE DESCONHECIDO Sofremos de uma tradição negativa em relação ao corpo humano. A anatomia de hoje começou há mais ou menos 500 anos. São contadas histórias de roubos de cadáveres em cemitérios, porque cortar gente morta a fim de estudar anatomia era tido como uma espécie de sacrilégio. Matar gente, às vezes aos montes, era possível. Ao longo das últimas centenas de anos, foi havendo um grande avanço da anatomia, da fisiologia, da microbiologia, das ci6encias que decompõem o corpo do homem e, paralelamente, foi-se desenvolvendo a noção de que o corpo é um escravo da mente (posso “manipulá-lo”), portanto, uma coisa inferior com a qual eu posso fazer o que quiser. Ao mesmo tempo, nessa compreensão de que se podia manipular o corpo, exalta-se a alma, acabando por estabelecer-se entre ambos uma distância intransponível. Mas, talvez, se pararmos para observar, possamos verificar que essa convicção, esse distanciamento, está contrastando com nossa experiência cotidiana. Se é verdade que meu corpo me obedece bastante em matéria de movimentos, gestos e habilidades manuais, é mentira que eu tenha poder sobre as minhas vísceras, minhas emoções, meus desejos e temores. Estes vêm e vão quando querem, sendo muito difícil “controlá-lo conscientemente”. Os próprios pensamento, tidos muitas vezes como a própria essência do espírito, com demasiada freqüência desobedecem ao meu querer. A toda hora nos vêm à mente pensamentos indesejados que, mil vezes afastados, mil vezes voltam... Aliada a esta separação histórica vem-se somar uma possibilidade de entender o corpo através da força do convívio e das regras sociais. Aprendemos com nossos pais ou pela experi6encia cultural que as pessoas que não nos fitam quando falam conosco são “falsas”. Para nossa cultura, “pessoas equilibradas” têm um olhar “sereno’ e, da mesma forma os “vazios de alma” têm olhar “vago”. A maneira de cumprimentar revela traços da personalidade; o modo de falar trai emoções inconfessas falas “convictas”, “doces”, “ríspidas”, “atropeladas” etc. É sabido, quando se az uma reflexão mais cuidados, que temos que contextualizar esses conhecimentos , pois, em muitos casos, ocorrem nos indivíduos disfunções orgânicas ou ações tão automatizadas que podem tonar-se verdadeiras marcas pessoais, que não têm significado cultural comum. Por exemplo, a pessoa míope, quando está sem óculos, pode estar franzindo a testa para enxerga melhor, não porque está desconfiada, brava ou discordando de algo.
O que talvez valha a pena refletir é que, se aprendêssemos desde cedo que o corpo e alma são uma coisa só, estaríamos aprendendo ao mesmo tempo as grandes virtudes da sinceridade e da autenticidade expressiva. De novo uma observação bem feita do cotidiano nos mostra que as pessoas estão se ‘traindo” a todo instante pelo próprio corpo. Hoje, com o uso de vídeos, pode-se mostrar para quem queira ver que só nos escondemos para quem não nos quer ver. E como as pessoas que efetivamente querem nos ver são poucas, o pseudo-dogma (da invisibilidade da alma) continua forte. As regras culturais também têm a ver com o próprio “eu” individual, isto é, a transformação do “eu” numa máscara socialmente planejada. Assim, a mulher tinge o cabelo para “camuflar-se” (só o jovem é belo!), usa maquilagem “natural” se pretende ser ela mesma, mais acentuada para mostrar traços de beleza como forma de atração, e assim por diante. A roupa que vestimos e os acessórios que usamos fornecem informação inicial acerca do que somos ou desejamos aparentar que somos. Se o “hábito não faz o monge”, ele certamente aponta a existência do monge, designando-o assim como membro de uma dada sociedade. A imensa maioria das pessoas acredita, ao falar, que o importante é o rosário das palavras, que este rosário diz exatamente o que elas pretendem e que a música da voz e a dança dos gestos estarão completamente de acordo ou integradas às palavras ditas. Mas, se fosse assim, a pessoa não estranharia nem a própria figura vista numa fotografia ou teipe, nem a própria voz e inflexões ouvidas num gravador. Nossa estranheza ante nossa imagem e voz mede a diferença entre o que pretendemos comunicar e o que o outro entende ou recebe. Ao percebermos que o outro não nos entendeu, atribuímos a ele, invariavelmente, a culpa. Ele é que não prestou atenção, que está azedo, com inveja e tudo o mais! De tal forma a palavra engoliu a comunicação humana que, para a maior parte das pessoas, ela é toda a comunicação. Perceber o próprio corpo significa, em todas as situações, reconhecer todas as nossas intenções, tanto as que vão expressas na palavra, como as que vão incluídas no tom de voz, nos gestos, nos olhares, na expressão da boca, no jeito do corpo.... Tomar consciência do corpo – perceber que ele existe e o que ele exige – é tomar pé de nossos desejos e temores, os mais verdadeiros e os mais profundos. Não é pouco e não é fácil. Em nossas relações interpessoais, demonstramos amor por meio de gesto ternos, gentis, afetuosos. Revelamos o amor usando palavras positivas, encorajadoras, solidárias, mas confiamos mais nas expressões de amor manifestada por contato físico. Necessitamos de contato físico e, a menos que sejamos seriamente impedidos, gostamos de tocar e se tocados. Às vezes, as pessoas rejeitam os contatos físicos em público porque, em nossa sociedade, tudo o que vai além do aperto de mão ou do tapinha nas costas tem implicações sexuais. Mas o corpo em contato com outro corpo não se resume e não pode ser reduzido só a sexo! Nossa negação do corpo pode nos ser prejudicial, pois é dele que emergem conceitos e emoções inconscientes para o indivíduo, mas visíveis para um observador. Como será possível nos tornarmos um (corpo –mente – emoções – espírito), negando uma parte de nós? Claro que somos mais que só o corpo, só a mente, só as emoções, pois, quando crianças, não tínhamos esse corpo – assim como ele está hoje -, nem essa mente, nem essas
emoções, e já éramos nós. Mas, hoje, é esse o corpo, é esse a emoção, é essa a mente também. Isso tudo somos nós também! Aprendemos a fazer de conta que não vemos um mundo de coisas, freqüentes e desagradáveis, feitas pelos outros e por nós mesmos. Exemplo? A mesma pessoa que diz amar a vida fuma dois maços de cigarro por dia; a mesma pessoa que diz respeitar a sociedade joga lixo na rua e dá um “jeitinho” de furar a fila; a mesma pessoa que diz respeitar os outros não cumprimenta o ascensorista do elevador! Faz parte da nossa educação formal valorizar a palavra e deixar de falar do todo comunicativo que são as pessoas (um modo formado de palavras e das manifestações e expressões de seu corpo); com o tempo, fazemos de conta que vemos estas coisas. Aquele corpo que faz tais gestos que assume determinadas posturas, que expressa o que o outro vê... não pode ser eu também! O corpo é muito mais espírito do que se está acostumado a pensar. Ou o espírito é mais corpo do que se está acostumado a aceitar. A desgraça, como sempre, provém da rotina. Vemos tantos corpos desde que nascemos, vivemos num país onde o corpo das pessoas é tão mal-nutrido e mal- vestido que se torna difícil para as pessoas reconhecer a grandeza, o caráter verdadeiramente divino deste objeto tão banal e, geralmente, tão maltratado. O que eu fico me perguntando é se nós, profissionais da área da saúde, que mexemos com o corpo do outro o tempo todo, podemos ter noção do que estamos fazendo, sem antes parar para conhecer e lidar com o próprio corpo – esse desconhecido. Maria Júlia Paes da Silva é doutora em enfermagem pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. FAMÍLIA ESTOURADA Este ano, a Igreja local nos convida a uma reflexão sobre a família. Os membros da família moderna, esquentados no forno da civilização individualista de consumo, para não dizer no fogo cruzado das mídias, vêm amiúde a derivar como icebergs após o rompimento da banquista tribal, afastando-se uns dos outros, segundo os caprichos das ondas onde cada um decidiu pescar. Os fragmentos chocam-se de vez em quando, ou vão colar-se por tempo indeterminado, com pedaços provenientes de outra banquista. Apesar desta crise da família despedaçada, vai-se moldando um novo direito social, onde nem tudo é negativo. Numa palavra, não estamos no fim da evolução da instituição natural-cultural da família. Certas causas que influíram para a desentruturação da antiga instituição militam paradoxalmente agora para que se conservem um refúgio emocional contra o anonimato da luta urbana pela sobrevivência e um fio de continuidade nas rupturas abruptas que sacodem o mundo do trabalho. A família foi, durante muito tempo, considerada como a cédula primordial e natural da sociedade. Ainda que tenha recebido pouquíssimo incentivo nos evangelhos (com a importante exceção da proibição do divórcio), a Igreja a mantém no lugar fundamental que, no fundo, merece. Hoje em dia, a família é uma das instituições que sofrem duros golpes, tanto da prática quanto da opinião pública, que não ousamos equiparar simplesmente à teoria. Entretanto, parece-nos que a instituição familiar honrada pela tradição católica que conhecemos evidencia certa lógica estrutural.
Esta coerência é precisamente contestada, por exemplo, neste trecho de André Burguière: “a singularidade da doutrina cristã, como aparece nos textos fundamentais do Padres da Igreja – Santo Agostinho em particular -, é ter querido associar, a ponto de tonálos inseparáveis, três aspectos da vida que o mundo antigo e a maioria das civilizações não européias nunca procuram fusionar: a sexualidade, que a Igreja identifica amplamente com o pecado; o matrimônio que ela considera com um mal menor; e o compromisso pessoal e irrevogável que de ser para ela ao mesmo tempo a regra da fé e do amor (a fidelidade)” (Le Nouvel Observateur, 18 de agosto de 1993). Esta caricatura vale outras, que os católicos fazem dos “outros”. É exato que a Igreja manifesta tradicionalmente para a sexualidade uma desconfiança que nosso tempo acha exagerada, mas não chega a identificá-la sem mais com o pecado. A corrente modernizante da Igreja já conseguiu resgatar uma sadia sexualidade matrimonial. O casamento não é mais considerado como um mal menor a serviço do natalismo e para atenuar o pecado. A procriação cessou de ser considerada como o fim primário do matrimônio, ainda que a vinculação estrutural deste com a procriação não seja questionável. Por mais difícil que seja hoje praticar uma fidelidade no decorrer duma duração de casamento que, em média, mais do que duplicou num século, a articulação entre o amor conjugal que vivifica a união matrimonial e a fidelidade indefectível exigida pela Igreja, não é arbitrária. A fidelidade, virtual confundida na modernidade com uma tolice de obstinação ou um conservadorismo arcaico, sofre, portanto, não apenas os ataques externos de crescentes oportunidades que se banham no óleo da permissividade, mas também um desprestígio íntimo contra o qual os cristãos têm mil razões para se opor. Contudo, muitos são tentados pelo lema “a única fidelidade conjugal que tenha valor de lei é a do amor autêntico”, como diz A. Burguière. O mesmo autor ridiculariza “o antigo modelo clerical da fidelidade”. O amorpaixão, de introdução relativamente recente como fator decisivo de casamento, tem de se converter em amor-dever na prática cristã. O valor da autonomia da pessoa foi defendido pela Igreja quando conseguiu fazer aceitar que a troca de consentimentos dos nubentes seja a matéria do sacramento de sua união definitiva; este princípio de autonomia enlouqueceu na cultura moderna quando o divórcio foi cada vez mais facilitado, por consentimentos mútuo em diversos países, em prejuízo dos filhos menores. A defesa da mulher fez passos gigantes, embora possa ainda melhorar e corrigir certos abusos do neomatriarcado. Mais alarmante é a situação real da criança brasileira: um quarto (15 milhões) da população infanto-juvenil do País vive na miséria. Será preciso acrescentar que o problema não é apenas de nossa família, mas também das famílias dos que , de uma maneira ou outra, dependem de nós? Hubert Lepargneur é Sacerdote camiliano, teólogo moralista, Comunidade de São Paulo. É PRECISO GRITAR MAIS ALTO Nossa reflexão, hoje, baseia-se em marcos 10,46-52. Leiamos o texto. “Ao sair de Jericó com o seus discípulos e grande multidão, estava sentado à beira do caminho o mendigo Bertimeu – o filho de Timeu -, cego. Quando percebeu que era
Jesus, o Nazareno, que passava, começou a gritar: “Filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim!”. E muitos o repreendiam para que se calasse. Ele, porém, gritava mais ainda “filho de Davi, tem compaixão de mim!”. Detendo-se, Jesus disse: “Chamai-o!”. Chamaram o cego, dizendo-lhe; “Coragem! Ele te chama. Levanta-te”. Deixando a sua veste, deu um pulo e foi até Jesus. Então Jesus lhe disse: “Que queres que eu te faça?” O cego respondeu: “Rabbúni! Que eu possa ver novamente!”. Jesus lhe disse: “Vai, a tua é te curou”. No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia-o pelo caminho”. Existem vários aspectos neste trecho do Evangelho, rico de ensinamentos, que nos chamam a atenção e que podem nos ajudar no ministério na área da saúde. Vejamos brevemente: De um lado, temos a triste situação de esquecimento, de marginalidade-social e econômica – em que se encontra Bartimeu ( à beira do caminho); omissão de multidão e a violência repressiva de que é vítima (e muitos o repreendiam para que se calasse). Esse quadro nos faz lembrar as intermináveis filas do INSS, o povo pobre, calado, fisionomia triste, e os disciplinados das senhas, mandando que fiquem quietos e comportadinhos, senão perdem a vez... Por outro lado, percebe se a transformação por que passa o cego ao saber que era Jesus que passava por ali. Demonstra coragem, ousadia e perseverança ao (gritar mais ainda: Filho de Davi, tem compaixão de mim!). Desafia ordens superiores que o mandavam calar-se; a importância fundamental da fé que liberta o mal e a doença (vai, tua fé te curou); e o seguimento de Jesus (no mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia-o pelo caminho). Podemos fazer um paralelo entre Bartimeu e a triste realidade dos doentes, principalmente dos mais abandonados e discriminados, hoje, os portadores do HIV/AIDS e os doentes mentais, entre outros. Também eles são marginalizados e vítimas do descaso e preconceito. Se simplesmente esperarem pela ajuda do governo e de outros setores da sociedade civil, dificilmente serão atendidos. Ao se manifestarem e assumirem sua situação , com freqüência, muitos sofrem sérias conseqüência, muitos sofrem sérias conseqüências: perdem amigos e emprego, são silenciados e rejeitados, rotulados de ‘aidéticos”, “doidos” e, como tais, desprezados. A reação não se faz esperar. Muito, ao se debaterem solidariamente neste clima hostil, desanimam, fecham-se em si próprios, desistem de lutar e de viver, morrendo “antes do tempo”. Outros não esmorecem, nem se acovardam diante de tal situação; antes, sentemse provocados e acabam descobrindo forças, capacidade de mobilização e convicções que nunca imaginaram possuir dentro de si. Muitos, na busca de dignidade de viver, lutando pelo fim do preconceito e por um atendimento hospitalar digno, quando necessário, acabam descobrindo o Deus da Vida revelado em Jesus Cristo, sua pessoa e mensagem. Essa experiência de acolhida e valorização humano-divino leva-os a um aprofundamento da fé, que se traduz no assumir mais corajosamente a luta pela vida, saúde, solidariedade e justiça. Libertados das amarras da doença, graças à solidariedade, não se fecham egoisticamente em si próprios, colocam-se a serviço dos semelhantes mais carentes. Ë importante notar que, no episódio evangélico em discussão, é a fé de Bartimeu que o salva e, como conseqüência, segue Jesus pelo caminho, caminho que é o de Jerusalém, lugar do sofrimento e da cruz (Calvário), mas também do renascimento e da ressurreição. Muitos doentes, que estão acorrentados a um leito ou imobilizados, completamente dependentes em tudo e de todos, vivem esta fé no silêncio, na humildade, o
caminho não se apresenta como um mar de rosas. Mesmo quando este seguimento se faz entre os espinhos, nem por isso é menos digno dos assim ditos “sãos”. É justamente aqui que surge a fé como dom, que age interiormente e dá sentido ao aparente absurdo da dor e do sofrimento sem explicação. A convicção profunda de ser amado por Jesus traz libertação, serenidade e esperança na vida do enfermo. E o seguimento acontece no anonimato, no silêncio da dor até, mas não menos significativo aos olhos de Deus. A fé temperada na agrura do sofrer transforma a relação dos doentes com eles mesmos, com os outros, com a realidade circundante e com o próprio Deus. Leva-nos a valorizar mais a vida, acreditar mais em nossas próprias potencialidades, abre-nos uns aos outros e ao sentido profundo da existência no aparente absurdo de tudo. A fé que reivindica saúde em Bartimeu é um convite a todos nós para não nos calarmos frente à negação do direito à saúde e não nos curvarmos perante tanta indiferença em relação ao sofrimento do semelhante. Num contexto profundamente marcado por sinais de morte e pelo indiferentismo frente à vida adoecida, é preciso gritar mais alto e sem medo. Somos agentes da vida e saúde! Para reflexão em grupo 1. O que significa na nossa realidade sermos agentes da vida e da saúde? 2. Como Bartimeu pode nos inspirar nessa missão? 3. Qual a importância da fé frente ao sofrimento humano? Léo Pessini é sacerdote camiliano, capelão do Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo.